terça-feira, 28 de setembro de 2021

Uma comunidade na sociedade

 

Giorgio Agamben

 A Itália, como o laboratório político do Ocidente, no qual as estratégias das potências dominantes são elaboradas antecipadamente em sua forma extrema, é hoje um país humana e politicamente em abandono, no qual uma tirania sem escrúpulos e determinada se aliou a uma massa nas garras de um terror pseudo-religioso, pronto para sacrificar não apenas o que uma vez foi chamado de liberdades constitucionais, mas até mesmo todo o calor nas relações humanas. Na verdade, acreditar que o passe verde significa um retorno à normalidade é realmente ingênuo. Assim como uma terceira vacina já está sendo imposta, novas serão impostas e novas situações de emergência e novas zonas vermelhas serão declaradas, desde que o governo e os poderes por ele expressos o considerem útil. E aqueles que obedeceram imprudentemente pagarão o preço.

Nessas condições, sem derrubar todos os instrumentos possíveis de resistência imediata, os dissidentes precisam pensar em criar algo como uma sociedade em sociedade, uma comunidade de amigos e vizinhos dentro de uma sociedade de inimizade e distância. As formas desta nova clandestinidade, que deverá tornar-se o mais autónoma possível das instituições, serão ponderadas e experimentadas de tempos a tempos, mas só elas poderão garantir a sobrevivência humana num mundo que se devotou a uma mais ou menos autodestruição consciente.

quodlibet

terça-feira, 21 de setembro de 2021

Portugal: A rentrée

 

Uma burguesia compradora, rentista e parasita

   A rentrée foi marcada este ano por um acontecimento revestindo um simbolismo particular, embora outros se poderão entretanto apontar, que foi a homenagem do governo Costa/PS ao sócio nº1 do PSD, ex-ministro, ex-primeiro-ministro do VII e VIII governos constitucionais, administrador da Celbi e dono do grupo dos media Impresa e, antes do 25 de Abril de 1974 e a convite do outro Marcelo, liderou o que ficou conhecido como a ala liberal do fascismo para fazer ver no estrangeiro que em Portugal até havia democracia já que existia uma “oposição”. O pretexto, tal como já acontecera com a homenagem a Mário Soares, era relembrar os iniciadores da democracia portuguesa: se já havia um papa da democracia, agora teremos possivelmente um paizinho que, dando bem a imagem da nossa burguesia, nunca deixou de esbulhar o Estado.

A homenagem, para além de expor algumas fissuras do regime, acontece num momento em que a burguesia tenta ultrapassar divergências na distribuição dos milhões, que já estão a escorrer de Bruxelas e que serão pagos pelo povo com juros a redobrar. E numa situação pouco lisonjeira para a dita “economia nacional”, com os dados a revelar claudicação no final de Agosto, apesar de algum turismo e correlativo melhoria quanto a emprego. A dívida recorde de 762,5 mil milhões de euros de privados e entidades públicas (sem contar com os bancos) não é um bom sinal e não será aliviada com os dinheiros do PRR.

Para além da pompa e circunstância que o primeiro-ministro anuncia a criação de emprego, nomeadamente para o interior do país, torna-se indisfarçável o aumento do trabalho precário, mais 45% no segundo trimestre, e Portugal continua a possuir uma taxa de mais do dobro da média dos países da UE. O facto da Mota-Engil ter anunciado, mesmo com contas marteladas, que passou de prejuízos, 5 milhões de euros no ano passado , para lucros de 8 milhões no primeiro semestre deste ano, é um sinal de que o capitalismo por estes lados não vai de boa saúde.

Para encobrir a iminente bancarrota da economia nacional, as empresas receberam mais de 3,5 mil milhões de euros do governo a prestexto da pandemia e, só por esse facto, deveriam passar para a posse do Estado. Agora, e ainda não satisfeitos, os patrões (eufemisticamente “empresários”) estão a pedir mais em sede do próximo Orçamento de Estado. O governo tem que apresentar bons resultados, já que a economia não avança como o esperado e o futebol também não rende visto que nem houve revalidação do título europeu, então, recorre-se ao que está mais à mão: “Portugal com 73% da população vacinada contra a covid-19 e conta ter 85% daqui a uma semana” para se obter a tão desejada e badalada “imunidade de rebanho”.

Contudo, o governo ainda não indemnizou as famílias (88 pessoas afectadas e 15 mortes) que sofreram a contaminação pela legionella no Norte do país, provocada muito possivelmente pela fábrica que a multinacional Nestlé possui na região de Matosinhos, e nem investigou os autores do crime. Enquanto trata o povo como gado, vai enchendo os bolsos das multinacionais farmacêuticas, tendo já desembolsado 88,9 milhões de euros só para a Pfizer por uma vacina em fase experimental e por cujas consequências imediatas e a prazo aquela multinacional já se desresponsabilizou. Iremos em breve ter mais casos de famílias lesadas, à semelhança das afectadas pela legionella, à espera que as indemnizem por perdas (de vidas) de valor incalculável.

O homenageado em referência, capitalista com interesses na indústria da celulose, um dos correponsáveis pela eucaliptização do país, ao mesmo tempo que denuncia o carácter de intriguista e de falta de lealdade do actual inquilino do Palácio de Belém, manifesta preocupação pela saúde da democracia portuguesa que, segundo ele, não será fácil mantê-la “viva e actuante”; ou seja, garantir a sua continuidade para o engano e exploração dos trabalhadores e do povo português. E, antes que as coisas corram para o torto, critica o adiamento da revisão da lei eleitoral, necessidade já aventada ultimamente por muitos políticos e comentadores assoldados, com o obejctivo dos partidos do governo poderem ganhar maiorias absolutas com menos votos e arredar de vez os pequenos partidos incomodativos do regime. É esta gente que, fazendo jus ao seu passado de fascistas, depois reciclados em democratas, que mais tem contribuído para o descrédito e definhamento desta democracia de opereta.

O que foi conhecido na juventude por “francisquinho dos porsches” de igual modo se apoquenta com as já estafadas “fake news”, e defende papel “cada vez mais relevante” dos meios de comunicação social, e principais fazedores de boatos como os seus, cujas vendas e audiências estão de rastos e se não fossem as ajudas governamentais já teriam fechado. A Impresa recebeu 3 milhões de euros do governo do Costa/PS para apoiar a política oficial e o discurso quanto ao putativo combate à pandemia; a SIC se não fosse a vigarice dos sorteios telefonados, cujas receitas se equiparam às da publicidade, já teria falido. Como se constata, os órgãos oficiais de propaganda do regime não se encontram muito melhor que o dito. O descrédito aumentou significativamente nos últimos meses quanto à estória da covid e da correlativa estratégia de combate.

Balsemão é bem o retrato do capitalista nacional cujos principias dividendos ou vêm da especulação financeira ou de mamar directamente na teta do orçamento do estado, tendo sempre o governo como o leal e zeloso agente de negócios. Balsemão, sendo um dos principais acionistas do antigo Banco Privado Português (BPP), apresentou-se como vítima da falência, como nada tivesse a ver com ela, e ainda recebeu, como indemnização, 4,7 milhões de euros. E, esta hein?! Dentro da mesma linha se percebe que o antigo presidente do BPP, João Rendeiro, tendo sido condenado a 10 anos de prisão efectiva num processo e a 5 anos e 8 meses de também prisão efectiva em outro, já esgotados todos os recursos, ainda se encontra em liberdade. Parece que tem um cartão do governo, como o Ricardo Salgado, que diz “isento de prisão”. E depois vêm lamuriar-se que o regime está descredibilizado e possivelmente já com os pés para a cova; não será só uma questão de economia! Balsemão é bem o espelho de uma burguesia compradora e rentista que parasita não só o Estado, que é um estado de classe como o governo-agente-de-negócios, mas essencialmente e antes do mais o povo português. Uma burguesia parasita para a qual o povo português deve encontrar uma “chave genética” que a impeça de sobreviver e eliminá-la de vez.

Para terminar poderemos citar três casos entre vários, bem reveladores da natureza deste regime de falsa democracia em que vivemos, e que acabam por ser de certa maneira tão ou mais importantes pelo simbolismo que o acontecimento que temos vindo a relatar:

37.675 nascimentos no primeiro semestre do ano. Trata-se de um mínimo histórico, já que é o valor mais baixo desde que começaram os registos, há mais de 30 anos.”

"Não há apoios": Irmãs atuam nas ruas do Porto para conseguirem representar Portugal no Europeu de Ginástica. Pais vão pagar mais de mil euros”.

GNR encalha 'megalancha' que custou 8,5 milhões de euros. Investigado erro do comandante ou falha de máquinas”.

Um país sem futuro, por haver um governo que despreza o povo e desbarata os dinheiros públicos e que usa como instrumento policial (mais de repressão sobre os trabalhadores) incompetente para combater a criminalidade que diz querer combater.

domingo, 5 de setembro de 2021

Dois nomes

Giorgio Agamben

Dois nomes a ter em conta: Alessandro La Fortezza, Andrea Camperio Ciani. São dois professores que estão dispostos a renunciar ao ensino por rejeitarem o passe verde como instrumento de discriminação social. Aqui estão algumas palavras que escreveram, a primeira numa carta aberta aos seus alunos, a segunda na carta de demissão ao reitor da universidade onde lecionam.

"Caros rapazes, em junho nos despedimos com um “adeus”, mas hoje devo dizer que talvez não nos vejamos em setembro ... Vou tomar a vacina quando e se estiver convencido de que é a coisa certa a fazer, certamente não ir à escola, restaurante, show ou qualquer outro lugar. Nem mesmo para manter o emprego. Lembremo-nos que "o homem não viverá só de pão" (Mt 4.4) ... se um dia eu decidir vacinar-me, ou se sentir necessidade de fazer um diagnóstico, não baixaria o passaporte verde de qualquer maneira, para que as minhas escolhas individuais, quaisquer que sejam, não constituam motivo de discriminação para quem fez escolhas diferentes”.

"Colega Reitor, (não utilizo superlativos para o que segue), eu, o abaixo assinado Andrea Camperio Ciani, professor titular desta Universidade Livre de Pádua, tendo sido informado pelo decreto do Reitor que o passe verde é obrigatório para a realização das aulas, declaro formalmente, a vós, e para informação, a Ministra da Universidade Maria Cristina Messa e o Ministro da Saúde Roberto Speranza, que terão a honra e a dignidade de colocar o meu passe verde à sua frente”.

Dois exemplos, que se seguidos por outros professores, retirariam qualquer valor ao infame decreto de um governo que discrimina os cidadãos de segunda classe que recusam o passe verde, ao mesmo tempo que, com um decreto específico (nº 44/2021, agora convertido em lei), exonerou-se de qualquer responsabilidade em caso de morte ou lesões causados ??pelas vacinas. É tempo, tanto para professores como para alunos, de redescobrir, depois de dois anos de estado de exceção e de anulação de todas as liberdades mais elementares, aquela consciência política que parece ter desaparecido das escolas e universidades.

28 de agosto de 2021

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