segunda-feira, 27 de junho de 2022

“Os trabalhadores estão mais ricos”

Cada vez mais o governo de Costa/PS 3.0 se assemelha ao governo de má memória Passos&Portas quanto à duplicidade da política que é aplicada. O discurso é sempre a “bem do povo” (antigamente era “nação”) mas a prática nunca deixa de favorecer as elites, com marcado prejuízo para os que trabalham e fazem funcionar o “país” – conceito diverso conforme os diferentes interesses dos que ali residem. Quando Costa diz que o “salário médio subiu 23% nos últimos seis anos”, não percebendo a polémica desencadeada pela declaração de que os salários poderão crescer mais de 20% nos próximos quatros anos da legislatura, esta reacção faz-nos pensar em outras duas declarações do passado, uma de Luís Montenegro, actual líder eleito do PSD, "a vida das pessoas não está melhor mas o país está muito melhor", a outra de Bagão Félix, ex-ministro da Segurança Social e do Trabalho no governo de Durão Barroso/PSD e das Finanças no governo efémero de Santana Lopes/PSD, “Portugal está melhor, mas os portugueses estão pior”. Costa à frente das câmaras não teve pejo em afirmar que “os trabalhadores estão mais ricos” desde que está à frente do governo, mas para seu azar os números estão constantemente a desmenti-lo, o que não deixa de ser trágico para o povo português:

- Dois terços dos portugueses cortam na alimentação devido à subida dos preços (segundo inquérito).

- Negociação coletiva deixou menos trabalhadores acima do salário mínimo. Percentagem de trabalhadores com remunerações mais baixas atualizadas acima do mínimo caiu de 40% para 16% - dados anuais relativos ao ano passado (da imprensa).

- Maioria de quem faz férias fica no país e contém gastos. Situação de crise força a poupança, 76% tenciona gastar o mesmo ou menos dinheiro do que no último período de descanso (segundo inquérito).

- Portugal é o terceiro país da Zona Euro onde o preço dos alimentos mais subiu. Bens alimentares em Portugal ficaram 7,6 pontos percentuais mais caros desde o início do ano. Subida é quase o dobro da registada na Zona Euro (da imprensa).

- O consumo interno diminuiu e terá sido este que fez crescer, anemicamente, o PIB no último trimestre: Portugal em contraciclo com a Europa no novo crédito ao consumo em 2022.

- O Endividamento da economia renova máximos – o endividamento do setor não financeiro (administrações públicas, empresas e particulares) aumentou 5,1 mil milhões de euros, para 782,5 mil milhões de euros em Abril (boletim do Banco de Portugal).

- Euribor em 1% agrava fatura da casa em 38 euros por mês (da imprensa).

- Os preços das habitações em Portugal subiram quase 13% no primeiro trimestre, período em que a venda de casas a cidadãos estrangeiros disparou quase 70%; ou seja, continua a especulação imobiliária, agravada pela reactivação dos vistos Gold (lavagem de dinheiro das mafias internacionais).

- Contudo, o Banco de Portugal está preocupado com o risco de queda nos preços das casas, porque poderá afetar a estabilidade financeira por levar ao aumento de imparidades (prejuízos) da banca ou redução do rendimento disponível, acrescentamos nós, dos especuladores.

E a lista dos dados que revelam o estado real da economia portuguesa, conhecidos nos últimos dias, poderia aumentar ainda mais, mostrando que Costa mente com todos os dentes que tem na boca.

Perante a mais que certa recessão económica que rapidamente se avizinha – a economia global tem 50% de probabilidade de entrar em recessão, estima Citigroup –, o governo de Costa decidiu alargar por mais três meses o apoio ao cabaz alimentar, 60 euros por mês, medida que irá abranger "cerca de um milhão de famílias"; o que por si bem revela que os portugueses estão piores, fazendo lembrar as palavras dos dois políticos de direita atrás citados. No mesmo sentido o governo espanhol, do congénere local do PS português, decidiu, para fazer face ao aumento dos preços, dar a cada família mais carenciada 200 euros por mês, descer o IVA da electricidade para 5%, aumentar as reformas mais baixas e outros apoios sociais, num montante global de 9 mil milhões de euros.

Por cá, Costa não se mostra favorável à reposição do IVA de 6%, anterior à vinda da Troika, nem ao aumento generalizado dos salários como ficou demonstrado pelo chumbo da proposta de aumento de 4% aquando da discussão do Orçamento de Estado para este ano. Mais recentemente, o Parlamento volta a chumbar, desta vez, as iniciativas para acabar com bloqueios à progressão da carreira docente; como também não deixa de ser paradigmático a declaração do jovem turco, apontado como possível sucessor de Costa, de que o governo “não pode aumentar os custos laborais” na TAP… porque “dá prejuízo”; como se o aumento dos salários não fosse um investimento, por exemplo, para melhorar a tão badalada “fraca produtividade” do trabalho em Portugal.

Quando o governo Costa/PS, juntamente com os governos dos outros estados membros da União Europeia, privilegia a atribuição de subsídios às famílias mais pobres em vez de subir os salários e tabelar os preços, ou eventualmente entrar directamente no mercado com a oferta de produtos de consumo a preços mais baixos a fim de fazer baixar a inflação, está simplesmente a facilitar o aumento dos lucros das empresas, nomeadamente os das grandes que dominam o mercado, e a mitigar a pobreza para evitar o conflito social. O estado/governo apenas se substitui aos bancos alimentares das Jonets para abafar a contestação dos trabalhadores mais pobres que poderão despoletar uma revolta social mais ampla. Esta política do governo dito “socialista” é a política já explicitada pelo FMI, que “diz aos países para aceitarem preços elevados, mas protegendo os mais pobres”; isto é, acarinhar a inflação e a especulação para que o grande capital financeiro e os grandes grupos económicos continuem a aumentar os lucros. Ora, como a riqueza flui como a água em sistema de vasos comunicantes, irá sempre dos mais pobres para os mais ricos. É a política seguida pelo BCE, espécie de sucursal europeia do FMI, directamente controlado pelo imperialismo americano, que, por sua vez, possui uma delegação no nosso país, o Banco de Portugal, que, sempre que surge a necessidade ou a ocasião, vem a público pela voz do seu presidente dar as directivas ao governo e o conselho ao populacho indígena.

Trata-se da dinâmica imparável do capitalismo – a essência, a alma – de acumulação e concentração, porque se parar o sistema implode. E nunca esteve tão perto como nos tempos de hoje, daí a guerra, sempre inevitável em capitalismo e domínio da burguesia. E os números vão demonstrando que a riqueza tem crescido em Portugal desde que Costa foi para o governo, mas essencialmente para o lado dos mais ricos e em detrimento dos mais pobres, e os referentes a 2021 são claros: a riqueza em Portugal cresceu 3,3% em 2021. A riqueza cresceu mas concentrou-se nos mais ricos, seguindo o que acontece a nível global: segundo a “Global Wealth 2022 – Standing Still Is Not an Option” e divulgada pela Boston Consulting Group (BCG), o património financeiro a nível mundial registou a "maior subida anual dos últimos 10 anos" (10,6%), valor recorde de 530 biliões de dólares em 2021, graças aos “ganhos nos mercados acionistas e a um aumento da procura de ativos tangíveis"; isto é, o capitalismo dito de “casino”, a especulação financeira, pura e dura, a funcionar em pleno. 

Esta especulação desenfreada mostra, por outro lado, que a crise actual é uma crise de superprodução, não compensando o investimento nos sectores produtivos, virando-se assim o capital mais para os investimentos especulativos e para a criação de dinheiro fictício. E quanto maior for o empreendimento neste sentido, maior será o rebentar da bolha que vier a seguir. Cada crise gera sempre uma crise ainda maior, ao mesmo tempo que o capitalismo esgota os seus expedientes para evitar as crises. Crises estas que o grande capital tenta reverter sempre a seu favor, assim se percebe que crises artificiais, como a da pandemia covid-19 e as que presentemente se estão a preparar, crise climática e outras pandemias, serão úteis para encobrir a verdadeira natureza da crise económica, que lhes é subjacente, e justificar as medidas, consideradas inevitáveis, por parte dos governos do grande capital, mesmo que disfarçando-se de “socialistas” ou de “social-democratas”, que não deixarão de se lamentar por não terem podido fazer mais e melhor para o cidadão comum. Entretanto, o cidadão mais rico estará cada vez mais rico.

Ao contrário dos desejos dos apologistas do regime, os factos não correspondem aos desejos e são incontornáveis: as importações sobem mais que exportações, o aumento do défice da balança de bens, para 1.975 milhões de euros, reflete um crescimento das importações superior ao das exportações (29% e 15,9%, respetivamente), sendo que o valor das exportações e o das importações ultrapassaram os registados em Abril de 2019, no pré-pandemia. Eis o resultado inevitável de uma moeda forte, o euro, como instrumento monetário de uma economia que pouco produz. Qual a admiração do fantasma da recessão já assustar as bolsas? Após uma década inédita, dinheiro vai voltar a ter custo e a inflação na Zona Euro foi confirmada nos 8,1% em Maio e a da União Europeia nos 8,8%. Perante o descalabro, Lagarde confirma subida de juros como estratégia anti-crise, mas subir os juros para “combater” a inflação é o mesmo que atirar gasolina para o fogo. Parece ser esta a medida mais eficaz para combater a crise, o que não deixa de ser verdade, mas para combater a crise dos lucros dos capitalistas e não a crise de sobrevivência de quem vive do produto da venda da sua força de trabalho.

Fazendo fé nos resultados do inquérito já referido, da Aximage quanto às quebras no rendimento nos últimos 12 meses por parte dos portugueses, 46% dos inquiridos consideram a gestão do governo para atenuar os efeitos da crise “muito má”, por oposição aos 14% que a avaliam de forma positiva. Estará alguma coisa a mudar? O governo de maioria absoluta do PS/Costa irá aguentar os quatro anos? Uma coisa é certa: a luta de classes irá inevitavelmente intensificar-se.

temposdecolera

O Salário

 

(ou a necessidade de acabar com o regime de salariato)

Karl Marx

O salário é determinado pela luta hostil entre capitalista e operário. A necessidade da vitória para o capitalista. O capitalista pode viver mais tempo sem o operário, do que este sem aquele. Ligação entre os capitalistas: habitual e com efeito; a dos operários: proibida e com más consequências para eles. Além disso, o proprietário fundiário e o capitalista podem acrescentar vantagens industriais aos seus réditos. O operário nem renda fundiária nem juro do capital ao seu rendimento industrial. Daí tão grande a concorrência entre os operários.

Portanto, só para o operário a separação de capital, propriedade fundiária e trabalho é uma separação necessária, essencial e nociva. Capital e propriedade fundiária não precisam de permanecer nesta abstracção, mas o trabalho do operário sim. Para o operário, portanto, a separação de capital, renda fundiária e trabalho é mortal.

A taxa mais baixa e a unicamente necessária para o salário é a subsistência do operário durante o trabalho, e mais o bastante para que ele possa alimentar uma família e para que a raça dos operários não se extinga. O salário habitual é, segundo Smith, o mais baixo que é compatível com a simple humanité , a saber, com uma existência de animal.

A procura de homens regula necessariamente a produção de homens como de qualquer outra mercadoria. Se a oferta for muito maior do que a procura, então uma parte dos operários cai na situação de miséria ou na morte pela fome. A existência do operário é, portanto, reduzida à condição da existência de qualquer outra mercadoria. O operário tornou-se uma mercadoria e é uma sorte para ele quando consegue encontrar quem o compre. E a procura, da qual a vida do operário depende, depende do capricho do rico e capitalista.

Se a quantidade da oferta excede a procura, então uma das partes constitutivas do preço – lucro, renda fundiária, salário – é paga abaixo do preço, portanto uma parte destas prestações subtrai-se a esta aplicação e o preço de mercado gravita para o preço natural como ponto central.

Mas, 1) se, com uma grande divisão do trabalho, para o operário é dificílimo dar ao seu trabalho um outro rumo, 2) na sua relação subalterna para com o capitalista cabe-lhe antes de mais a desvantagem.

Com a gravitação do preço de mercado para o preço natural, o operário perde, portanto, ao máximo e incondicionalmente. E precisamente a capacidade do capitalista de dar um outro rumo ao seu capital quer põe sem pão o ouvrier , restringido a um determinado ramo de trabalho, quer o força a submeter-se a todas as exigências desse capitalista.

As oscilações acidentais e súbitas do preço de mercado atingem menos a renda fundiária do que a parte do preço decomposta em lucro e salário, mas menos o lucro do que o salário. Por cada salário que sobe há na maior parte das vezes um que fica estacionário e um que cai.

O operário não precisa de necessariamente ganhar com o ganho do capitalista, mas necessariamente perde com ele. Assim, o operário não ganha quando o capitalista mantém o preço de mercado acima do preço natural através de segredos de comércio ou de fabrico, através do monopólio ou da situação favorável do seu pedaço de terra.

Mais: Os preços do trabalho são muito mais constantes do que os preços dos meios de vida. Frequentemente estão em relação inversa. Num ano caro, o salário diminui por causa da diminuição da procura, eleva-se por causa da elevação dos meios de vida. Portanto equilibra-se. Em todo o caso, uma quantidade de operários fica sem pão. Em anos baratos, o salário eleva-se por causa da elevação da procura, diminui por causa dos preços dos meios de vida. Portanto equilibra-se.

Outra desvantagem do operário:

Os preços de trabalho das diversas espécies de trabalhos são muito mais diversos do que os ganhos dos diversos ramos onde o capital se aplica. No trabalho, toda a diversidade natural, espiritual e social da actividade individual se destaca e é paga diversamente, enquanto o capital morto segue sempre no mesmo passo e é indiferente perante a actividade individual real.

É sobretudo de notar que, onde o operário e o capitalista sofrem igualmente, o operário sofre na sua existência, o capitalista no ganho do seu Mamon (deus da riqueza na mitologia fenícia e síria) morto.

O operário não tem apenas de lutar pelos seus meios de vida físicos, tem de lutar pela aquisição de trabalho, isto é, pela possibilidade, pelos meios de poder realizar a sua actividade.

Consideremos as 3 situações principais em que a sociedade se pode encontrar e observemos a posição do operário nelas.

I) Se a riqueza da sociedade estiver em declínio, então o operário sofre ao máximo, pois: ainda que a classe operária não possa ganhar tanto como a dos proprietários na situação próspera da sociedade aucune ne souffre aussi cruellement de son déclin que la classe des ouvriers .

2) Consideremos agora uma sociedade na qual a riqueza progrida. Esta situação é a única favorável ao operário. Aqui começa a concorrência entre os capitalistas. A procura de operários excede a sua oferta: Mas:

Primeiro: A elevação do salário leva a trabalho a mais entre os operários. Quanto mais eles querem ganhar, tanto mais têm de sacrificar o seu tempo e, desapossando-se completamente de toda a liberdade, executar trabalho de escravos ao serviço da cupidez. Com isso, eles encurtam o seu tempo de vida. Este encurtamento da duração da sua vida é uma circunstância favorável à classe operária no seu todo, porque por isso se toma sempre necessária nova oferta. Esta classe tem sempre de sacrificar uma parte de si própria para não soçobrar totalmente.

Mais: Quando se encontra uma sociedade em enriquecimento progressivo? Com o crescimento de capitais e réditos de um país. Mas isto só é possível

a) contanto que seja amontoado muito trabalho, pois capital é trabalho amontoado; portanto, contanto que sejam retirados ao operário cada vez mais produtos seus, que o seu próprio trabalho cada vez mais o defronte como propriedade alheia e cada vez mais os meios da sua existência e da sua actividade se concentrem na mão do capitalista.

b) O amontoamento do capital aumenta a divisão do trabalho, a divisão do trabalho aumenta o número dos operários; inversamente, o número dos operários aumenta a divisão do trabalho, tal como a divisão do trabalho aumenta o amontoamento dos capitais. Com esta divisão do trabalho, por um lado, e o amontoamento dos capitais, por outro, o operário toma-se cada vez mais puramente dependente do trabalho, e de um trabalho determinado muito unilateral, maquinal. Portanto, assim como é corpórea e espiritualmente reduzido a máquina - e de homem a uma actividade abstracta e a um estômago -, assim também se torna cada vez mais dependente de todas as oscilações do preço de mercado, da aplicação dos capitais e do capricho do rico. Na mesma medida, a concorrência dos operários é elevada pelo crescimento da classe de homens que apenas trabalha, portanto o seu preço baixa. No sistema fabril, esta posição do operário atinge o seu ponto culminante.

c) Numa sociedade que se encontra em crescente prosperidade, já só os mais ricos de todos podem viver do juro do dinheiro. Todos os restantes têm com o seu capital que montar um negócio ou de o lançar no comércio. Por este facto, a concorrência entre os capitais torna-se, portanto, maior, a concentração dos capitais torna-se maior, os grandes capitalistas arruínam os pequenos e uma parte dos outrora capitalistas afunda-se na classe dos operários, a qual, com esta entrada, sofre em parte de novo uma redução do salário e cai numa dependência ainda maior dos poucos grandes capitalistas. Na medida em que o número dos capitalistas se reduziu, quase deixou de existir a sua concorrência relativamente aos operários, e, na medida em que o número dos operários aumentou, a concorrência deles entre si tornou-se tanto maior, mais desnaturada e mais violenta. Por isso, uma parte do estado operário cai, assim, necessariamente na miséria ou no estado de morrer à fome, tal como uma parte dos capitalistas médios cai no estado operário.

Portanto, mesmo na situação da sociedade que é mais favorável ao operário, a consequência necessária para o operário é trabalho a mais e morte prematura, descer à condição de máquina, de servo do capital que se amontoa perigosamente perante ele, nova concorrência, morte à fome ou mendicidade de uma parte dos operários.

A elevação do salário suscita no operário a mania do enriquecimento, própria do capitalista que, contudo, ele só pode satisfazer pelo sacrifício do seu espírito e corpo. A elevação do salário pressupõe o amontoamento do capital – e conduz a ele; portanto, coloca o produto do trabalho como cada vez mais estranho perante o operário. Na mesma medida, a divisão do trabalho torna-o cada vez mais unilateral e dependente, tal como acarreta a concorrência não só dos homens, mas também das máquinas.

Uma vez que o operário desceu à condição de máquina, a máquina pode enfrentá-lo como concorrente. Finalmente, tal como o amontoamento do capital aumenta a quantidade da indústria e, portanto, dos operários, a mesma quantidade da indústria traz, com esta acumulação, uma maior quantidade de obras que se torna sobreprodução e acaba ou por pôr sem trabalho uma grande parte de operários ou por reduzir o seu salário ao mais miserável mínimo.

Estas são as consequências de uma situação da sociedade que é a mais favorável ao operário, a saber, a situação da riqueza crescente, progressiva.

Mas, por fim, esta situação crescente tem que atingir um dia o seu apogeu. Qual é, então, a posição do operário?

3) «Num país que tivesse atingido o último estádio possível da sua riqueza salário e juro de capital seriam ambos muito baixos. A concorrência entre os operários para obter ocupação seria tão grande que os salários seriam reduzidos ao que é suficiente para manter o dito número de operários e, estando já o país suficientemente povoado, este número nunca poderia aumentar. O a mais teria de morrer.

Portanto, na situação em retrocesso da sociedade: miséria progressiva do operário; na situação em progresso: miséria complicada; na situação plena: miséria estacionária.

(Retirado de “Manuscritos Económico-Filosóficos de 1844” de Karl Marx. Ed. Avante. 1993)

segunda-feira, 20 de junho de 2022

QUANDO OS LOBOS UIVAM

Aquilino Ribeiro

Chegado pois Outubro, despejavam-se os povos para as portelas da serra, quando uma voz correu: Deixassem-se ficar em casa: o Governo ia já tomar conta da serra e expulsá-los. Acabou-se; nunca mais teriam o direito de lá cortar um chamiço ou levar uma ovelha parida a encher o fole.

Meia manhã, era tudo cheio nas dez aldeias e nos montes, onde alguns roçadores e mateiros tinham rompido na faina sôfrega e desatinada. Quem levou a notícia? Foi este tio, foi aquele recoveiro, foi a Júlia Tanganha, que anda aos ovos, foi o António João que passou com a camioneta, a questão é que era verdade. Tão verdade que já estavam na vila os carros dos engenheiros e as máquinas de lavrar – informou outra voz. Vinham portanto os cães do Governo escorraçá-los da serra! Então o dia de juízo estava a amanhecer!

Governo para o aldeão é sinónimo de Estado e de tudo o que dá leis, uma quadrilha do olho vivo. Já lhes levavam coiro e camisa em contribuições, tributos, posturas, alcavalas de vária ordem, e vinham ainda esbulhá-los da serra! Hoje a serra, amanhã, por uma razão análoga, corriam-nos de casa para fora. Ah, cachaporra dum santo! O que todos queriam era viver à custa da barba longa, mãos brancas com bons anéis, bom automóvel, amigas para o gozo e criadas para todo o serviço que vinham buscar aos viveiros da plebe, cabritos gordos que se criavam nos ferregiais, e trutas que eles serranos estavam proibidos de pescar nos seus rios. Que maiores carrascos e ladrões!?

Esta era a noção que tinham do Governo. O Governo não era formado por um corpo de homens bons e sábios, com função directiva, reguladora e distribuidora dos bens comuns, e atentos à promulgação e defesa do direito? Qual o quê? Bandoleiros das encruzilhadas e gorgulhos silenciosos das arcas e larvas da carne é que eles eram!

– Morram! – rouquejava a voz irosa pelas vielas das dez aldeias.

Uma vez a correr o rumor de que o Governo ia tomar posse da serra, o problema transcendia para o terreno do assalto e roubalheira à mão armada. Em brejos e chapadas, os roçadores endireitaram a suã e, queixo por cima dos punhos, apoiados ao cabo da roçadoira, olhos em alvo, quedavam-se a considerar. Alguns amortalhavam o seu paivante. Os mais desatinados jogaram fora a enxada:

– Se me hão-de levar o mato, já não roço mais. Puta que os pariu!

Foram-se juntando e alagando os ecos com sua grita de incêndio. Entretanto tais e tais mandavam dizer para casa que viessem buscar as cocadas, que no dia seguinte de sorte as poderiam levantar. E a alturas do meio-dia uma grande febre se tinha apossado da população, em remoinho e zumbente. Depois, com o entrechoque de opiniões e sentenças e os fumos da vinhaça bebida à desmedida, a cólera subiu. De aldeia para aldeia como de homem para homem trocavam-se protestos de tesura. Tudo a postos, sem que soasse o clarim! Ia-se ver quem os tinha no seu lugar. Parada da Santa era a sede do quartel general, uma vez que ali residia o mais afoito e denodado dos serranos, homem de cabeça e de pulso, o João Rebordão. Este, por fas ou por nefas, estava arvorado em caudilho. Mas ele queria e, tomando a investidura a capricho, desatou a dar ordens de alevante. Os mensageiros largaram a todos os horizontes a pé e a cavalo, para trazerem essa noite, a bem ou a mal, a Parada os maiorais das aldeias. Havia que combinar as operações contra o inimigo. Os portadores eram moços de cara direita, prontos como ordenanças, e com todo o recato, sem soprar palavra, a fim de não dar azo a que se esquivassem os medrosos, cumpriram as instruções à risca.

Foi assim que o Manuel do Rosário, alcaide virtual da Azenha, recebeu a parte. Andava ele, ferreiro com larga freguesia de porta e de mercado, a amanhar carvão nas devesas da serra, que lhe faltara de todo na forja, quando se apercebeu de dois homens que cresciam de peito para ele, mato fora. Só o fumo da queimada, encastelando-se direito no céu sereno, os pudera guiar até aqueles andurriais, longe de vila e termo. Viandantes desgarrados, gente com recado, bandoleiros, foi-se pondo de sobreaviso.

– De parte do senhor João Rebordão, de Parada da Santa – disse um dos homens depois de salvar. – Meu amo roga-lhe o favor de chegar lá...

– Chegar lá...? Há novidade em casa do meu compadre?

– Que me conste, não há.

– Vêm de caso feito?

– Saiba vossemecê que sim.

Manuel do Rosário quedou meditabundo, de braços à dependura, rente à cova, redonda como cisterna, que o torgo em brasa enrubescia. Trabalhava-o o incerto motivo daquele passo.

– Não desconfiam para que seja?

– Pergunta bem... – respondeu o que parecia ter a cargo ser o língua da embaixada, abrindo as mãos em sinal de ignorância.

Em volta, suspensos como ele, o Calhandro, moço da forja, e os filhos, Céu, muito amojuda e cheia das ancas, Serafim, ainda com pêlo de rato no pescoço, olhavam admirados.

O ferreiro enxotou-os:

– Gira, estes tios não trazem bêberas.

Rodaram, e ele pegou dum estaqueiro a espertar o fogo que amortecia. E, esquivando a cabeça à labareda que se ateava com a mexida, os dentes em arreganho, murmurou:

– Alguma coisa há... Meu compadre não é homem para panos quentes.

Os recoveiros não descerraram os lábios e ele decidiu-se:

– Pois, amigos, eu amanhã, se Deus quiser, lá apareço.

– O senhor João Rebordão pede-lhe para vir hoje.

– A estas horas? São duas da tarde, para mais que não para menos. Os dias vêem-se fugir...

– Nós fazemos-lhe companhia – pronunciou o que estivera mudo até então. – Os lobos não o comem...

– Assim é sangria desatada?

– Só sabemos que nos mandou dar-lhe este recado, estivesse lá no cabo do mundo.

– Mas é noite, meus santos, é noite! A que horas chegamos lá? E quem me há-de tratar do carvão?... A gente que para aí trago só presta para comer...

– Jurámos que o havíamos de levar... Sem o amigo não entramos à porta do senhor João Rebordão – tornou o segundo num assomo de impaciência, mostrando a dentuça de mastim.

– Boa vai ela – disse o ferreiro em tom sorridente. – Pois já que assim é, vamos lá. Manda quem pode...

Traçou da véstia e, deitando uma derradeira vista de olhos à cova ardente, disse para o Calhandro:

– Ao tempo de abordarmos ao povo, abafai. Mas haveis de pôr mais tocas. Os torrões também não são bastantes...

E despediu de vereda para a aldeia a ensaboar-se e a vestir o fato de ver a Deus, que não parecia bem ao pai dum senhor doutor – trazia um filho em Coimbra – pôr pé em terra alheia, roto, com a roupa de cote e suja à força de bater.

Caminho fora, Manuel do Rosário, sobressaltado, não se lembrando, em seu génio intemporal, que se podia tratar da serra, tentou ainda espreitar para a alma crispada dos estafetas. Com manhoso jeito, de começo; deliberadamente, sem resguardo, depois:

– Amigos, vamos a fumar. Para entreter o caminho...

– Bem haja, foi extravagância que nunca usei – respondeu o mais velho, declinando o cigarro que o Rosário lhe metia pelos olhos.

E não houve modo de lhes abrir a boca.

Foi só perto de Parada da Santa que, topando-se com outros amigos e moradores de Arcabuzais da Fé, Corgo das Lontras, Urrô do Anjo, Ponte do Junco, veio ao fundamento do negócio. Quando chegaram à povoação, tendo-se-lhes associado vizinhos daquém e dalém, chamava-se àquilo uma açudada de gente.

Era à noitinha e na casa deste e daquele se deparou agasalho aos forasteiros. Cearam, beberam e, antes de volverem a suas terras, juntos os chefes no alpendre do Rebordão, concertaram a táctica a seguir.

Manhã alta, quando romperam para o planalto as duas turmas dos Serviços Florestais com tractores, caterpillars , arados de ferro puxados a bois do vale do Távora, e uma centena de operários engajados, longe, nas aldeias famintas dos ratinhos, já encontraram muito povo pelas rechãs. Da banda do norte, no sector compreendido pelos lugares de Valadim das Cabras, Almofaça, Azenha, Parada da Santa, Rebolide, comandava o engenheiro-chefe Streit da Fonseca. Os aldeões, que foram saindo das luras, perante o homem de meia-idade, alto, de lábios e mãos delicadas, cabelo loiro aparado à escovinha, orelhas tombantes, olhos pequenos por cima duma massa gelatinosa cor de açafrão, uma grande carraça branca no ouvido, cobraram o seu respeito. Reparando bem para ele, ficaram com a ideia dum rosto cortado à goiva, ângulos vivos, linhas bruscas, como as imagens dos santeiros na primeira mão.

Nas outras aldeias, sul e sudoeste, Arcabuzais da Fé, Urrô do Anjo, Ponte do Junco, Favais Queimados, Corgo das Lontras, superintendia César Fontalva. Instalado no jeep com a sua pasta e as suas plantas topográficas, acolhia afável e risonho a quem vinha. Quando este aparato todo, com a sua mecânica infernal e caras que ninguém vira mais gordas, automóveis pejados de ferramentas, uma carrinha alentejana com sobrecéu amarelo, vozes, petardadas dos motores, subiu de Almofaça para a serra pelo caminho dos gados, o gentio que restava dentro de muros saiu a ver. Igual apenas os cortiços quando enxameiam:

– Excomungados, vêm-nos roubar a serra!

-Oh, malditos eles sejam!

-Onde vão pastar as nossas pobres ovelhinhas?

– Toque-se a rebate! Toque-se a rebate, e vamo-nos a eles!

E, de facto, os sinos de Almofaça desataram a tocar. Estes passaram senha aos outros, e dali a pouco dez, vinte campanários repicavam freneticamente. Pelas aldeias, velhos, mulheres e crianças, depois de atafulharem no caldo mais umas sopetarras, e meterem na algibeira o seu tropeço de broa com meio queijo ou um salpicão, puseram-se em marcha para a serra, a ajuntar-se às hostes. Estava um dia mortiço de Inverno, e na luz baça, esvantes, os longes perdiam todo o relevo. Aos engenheiros em seus jeeps devia ter sido assinalado o avanço das várias colunas de povo que marchavam a corta-mato, subindo os cerros, afundindo-se nos vales para reaparecer mais perto, nítidas e truculentas, com seu matiz de horda, estopa, burel, chitas versicolores nas mulheres, mobilidades fugazes de rapazes e rapariguinhas, e uma ou outra voz mais alta, às vezes um rumor de palavras marteladas, trazidas na refega do vento. Eram seis, dez colunas, afora os grupos por detrás dos oiteiros, que se viam crescer. A certa altura, a falange que parecia mais compacta deteve-se, um galope de cavalo à distância dos caterpillars. Logo vultos se entrecruzaram dumas para as outras, por certo no papel de parlamentários.

Streit, que era homem de expediente, deu ordem para que se iniciassem os trabalhos. As escavadoras por um lado, as juntas de bois por outro, romperam. No intuito de averiguar com que fígados vinha aquela gente mandou os dois Lêndeas falar com eles.

Bruno chegou e disse:

– Vós que quereis? Medir-vos com a tropa? Estais muito enganadinhos. Não vedes a cavalaria com as clavinas a tiracolo? Reparai bem para o que ides fazer. Depois não vos queixeis!

– Traidor! Fora o traidor! Fora o lêndeas que se vendeu!

Bruno Barnabé, ante aquela assuada, temeu-se:

– Não me queiram mal, rapazes! Cada um governa a vida como pode. Eu estou convosco, mas é preciso tino. O chefe é o Rebordão, não é? Onde está ele?

O Rebordão apartou-se com Bruno. Lá estiveram em grande cavaco, primeiro contumelioso, depois amainado.

Na outra turma, onde dirigia Fontalva, Modesto Lêndeas não chegou a assentar pé. Correram com ele. O Louvadeus disse-lhe:

– Aqui não se toca em ninguém com um dedo molhado. Vai dizê-lo ao chefe e deixa-nos campo para cebolas. Mas já!...

(“Quando os Lobos Uivam”, Aquilino Ribeiro. Bertrand Editora, 2005)

A cruzada para o desmantelamento do SNS e do sector estado em geral

 

A morte do recém-nascido no Hospital das Caldas da Rainha, atribuída por toda a comunicação corporativa ao encerramento das urgências de obstetrícia por alegada falta de médicos, foi o tiro de partida para a autêntica cruzada desencadeada por todos os órgãos de comunicação mainstream contra o SNS, dando a ilusão de que o querem defender ao apontar as deploráveis falhas, agora mais que evidentes no encerramento de algumas urgências de obstetrícia neste fim de semana, mas que são antigas. Em última instância, o ataque é contra o governo do partido socialista liderado por António Costa. O jornal “Público” – órgão que desde a sua fundação sempre deu prejuízo à proprietária, a família Azevedo, que nunca o encerrou pela importância em formar e formatar opinião pública – é aquele que mais se destaca na cruzada.

A cruzada do jornal “Público”

Contando os artigos sobre o SNS e o estado do Estado, chegamos ao número 14 artigos a malhar no mesmo: a ineficiência do sector público, em geral, e da saúde, em particular. A família Azevedo parece querer investir a fundo na área da saúde e muito possivelmente em outras – no ensino já está instalada com um colégio de topo para aos filhos da classe média alta – que possam ser rentabilizadas na lógica do mercado, para isso há que desacreditar o sector do estado e depois abocanhar os pedaços mais apetitosos em termos de mais-valias. Depois de realizada a contagem dos artigos na edição on-line, no passado sábado, mais uns três ou quatro surgiram ainda no mesmo dia. Onde se inclui o editorial do director sobre o tema e um outro particularmente patético do diretor-adjunto: “O SNS não pode fechar” - quase para chorar!

O esforço não olha a meios e o próprio director é o mais empenhado, jornalista tristemente conhecido pelas crónicas abertamente propagandística e planfetárias, nomeadamente quanto às questões da pandemia covid-19 e agora da guerra da Ucrânia. Fazendo-se notar pela “despublicação” de um artigo considerado politicamente incorrecto sobre a vacinação escrito por um médico colaborador assíduo daquele jornal, já para não falar da tentativa ataque de carácter à historiador Raquel Varela por ter denunciada a situação e cuja penalização foi ter deixado de ali escrever. Decididamente que o “Público” não passa de um vulgar e pouco inteligente órgão de propaganda de uma parte, pelo menos, da nossa elite económica, com o objectivo de pressionar a tomada de determinadas medidas políticas por parte do governo.

Dramatizar (ainda mais) os problemas antigos do SNS

Mas vamos ao que interessa, as notícias quanto à saúde em Portugal apresentadas pelo pasquim em causa são “aterradoras”, e só no dia 11: «Resposta a doentes com cancro cresceu em 2021 mas não compensou início da pandemia… Contratação de mais recursos humanos para o SNS e a criação de um plano de recuperação são algumas das recomendações para atenuar o problema». «Médicos com mais de 65 anos representam 24% do total... Mais de mil clínicos dos centros de saúde podem aposentar-se este ano». «Associações preocupadas com falta de médicos e enfermeiros nos serviços de obstetrícia - Falta de médicos e enfermeiros nos serviços de obstetrícia está a começar a afectar a mortalidade materna». «Interna e director de serviço: 42 anos separam estes médicos que trabalham num SNS “em esforço” - António Sarmento e Carolina Guimarães fazem parte da equipa médica do SNS no Hospital de São João, no Porto.»

Não é difícil perceber quais são os principais problemas que sufocam o SNS, desde falta de médicos, poucas vezes falam da falta de enfermeiros ou de assistentes operacionais e de outros profissionais, dando a ideia que são secundários aos médicos, que é a classe que mais se ausenta do público para acumular simultaneamente com o privado, até à falta de condições, como se lamenta a interna do Hospital de São João «“O que cansa não é ver doentes, é a falta de condições”, diz a jovem médica». Todos se lamentam, mas se déssemos uma volta pelos médicos do SNS, veríamos grande parte deles a boicotar o trabalho nos hospitais públicos e a irem fazer no privado o que não fazem no público, traficando doentes de um lado para o outro.

Entidades que não fazem parte da solução mas do problema

Não deixa de ser enternecedor ouvir um bastonário da Ordem dos Médicos ou um presidente do Sindicato Independente dos Médicos, raramente se ouve alguém de outro sindicato da classe nos media corporativos, principalmente nas televisões, discorrer sobre os problemas do SNS; sabendo-se de antemão que quando se fala em formação de mais médicos logo respondem que não é necessário mais médicos, os que existem chegam. Não disfarçam o incómodo de possível excesso de médicos porque, caso acontecesse, a concorrência seria enorme e os honorários escandalosos que cobram no privado iriam de imediato por água abaixo. Alguns médicos, assim como a Ordem, não fazem parte da solução para o SNS, mas fazem parte do problema. A aspiração a um SNS fraco é indisfarçável, tal como os conflitos de interesses, e comportam-se todos como os parasitas que não querem matar o hospedeiro, apenas enfraquecê-lo, mantê-lo no limiar da sobrevivência, porque caso o matassem eles próprios se suicidariam.

Todos se preocupam com o estado de saúde do SNS, não só as figuras atrás referidas, como o presidente da república, que comenta tudo e mais alguma coisa quando é para alfinetar o governo, mesmo em Londres, longe do país, e em plena excursão patriótica-recreativa, Marcelo não consegue conter a verborreia: «Presidente preocupado com fecho de urgências de obstetrícia, mas desdramatiza problema “específico”… visitou uma escola e um hospital onde trabalham muitos profissionais de saúde portugueses… alvitrando em tom governamental que é preciso “defender o sistema como um todo e ir introduzindo as mudanças necessárias para o adaptar à realidade”. Para quem votou contra a lei do SNS em 1979 e pugna por um “Sistema” Nacional de Saúde, onde caibam privados e sector social (igreja católica), é preciso ter pouca vergonha na cara. Mas já estamos habituados.

Os governos e os partidos da ordem são os principais responsáveis

Nesta magna questão da saúde, talvez a mais sensível para os portugueses em geral, é natural e nem se poderia esperar outra coisa senão ouvir críticas e protestos por parte de todos os partidos da dita oposição parlamentar. Montenegro diz que há “sinais graves de degradação”, não esclarecendo que foi um governo do seu partido que em 1988 decretou a Lei da Gestão Hospitalar, e que marca o início do processo de privatização da saúde em Portugal; e também foi o seu partido, no tempo do duo Coelho&Portas, que mais degradou o SNS, indo além do imposto pela troika e mais enfermeiros e médicos mandou emigrar de Portugal. Ironicamente, no dia 10 de Junho, dia da “Pátria”, foram enaltecidos e condecorados (um deles) por Marcelo numa de populismo desbragado. A demagogia não tem limites para esta gente.

Continuando das putativas oposições, deve-se apontar um Chega, cujo dirigente máximo defende a privatização total da saúde, e no maior dos desplantes reivindica um debate de urgência sobre obstetrícia. O IL, querendo ultrapassar o PSD em todos os assuntos que incomodam o governo, acusa o governo de “irresponsabilidade” e de “incompetência” no problema da falta de médicos obstetras e ginecologistas e, por conseguinte, da impossibilidade de manter abertas todas as urgências destas especialidades. O PCP faz o que lhe compete, «exige medidas do Governo em relação aos serviços de ginecologia e obstetrícia» e o BE vai atrás, esquecendo-se ambos que há pouco mais de meia dúzia de meses andavam com o governo do PS&Costa às costas. Todos estes partidos escamoteiam o essencial das coisas e a verdadeira razão da privatização da saúde em Portugal e da política dúplice do PS.

Bruxelas impõe o negócio do século XXI

Vêm de há muito, desde que Portugal aderiu a CEE/UE, as directivas comunitárias sobre a privatização da saúde em Portugal, processo que logo começou no primeiro governo de maioria absoluta de Cavaco, como já foi apontado, e estendeu-se por todos os governos quer do PSD quer do PS, sem excepção, umas vezes de forma mais rápida e notória, outras em modo mais disfarçado e insidioso, como tem acontecido nos governos do PS em geral. O governo Guterres fica na história por ter dado início às parecerias público-privado na saúde, ideia genial do ex-ministro Correia Campos que vai passeando o resto da existência por tachos públicos e alvitres sobre a salvação (!?) do SNS, e o de Sócrates por ter sido de todos o que mais se excedeu no encerramento de serviços do SNS, maternidades, urgências dos serviços primários, de número de camas, ao mesmo tempo que os privados começaram a proliferar como cogumelos quase no mesmo sítio onde fechavam os serviços do estado.

Com Costa é quando mais se contradiz o discurso com a realidade e a privatização tem seguido, essencialmente, com a compra de serviços ao privado, não se abrem os serviços (e as mais de 3000 camas) que foram encerrados, não se melhoram as carreiras e os salários dos trabalhadores da saúde, aliciando-os para o público, e continua-se com a descapitalização do SNS. A pandemia da covid-19 foi um excelente pretexto para a compra de máscaras, testes, equipamentos (os famigerados ventiladores que agora estão em armazém a ganhar pó e teias de aranha, como acontece nos CHUC), serviços, vacinas e o mais que estará para vir, aos privados e nomeadamente aos grupos farmacêuticos estrangeiros; com médicos dentro do SNS a funcionar como lobistas de toda a sorte de interesses privados, não só médicos como os próprios organismos do estado com a DGS à cabeça; com os diversos Organismos de médicos e farmacêuticos a colher os dividendos do grande negócio, com todos os privados e a igreja católica em bicos de pés e farmacêuticos a dar prova de existência como protagonistas indispensáveis ao SNS; ou melhor dito: mamar nas tetas do orçamento.

O OE-2022 contempla toda esta sorte de clientes – indisfarçavelmente a saúde é o negócio do século XXI. O povo no final é quem paga a factura e, no entanto, tem um SNS cada vez pior. Assim se percebe que se gaste mais dinheiro não com a saúde do povo português, mas para a engorda do negócio. Não é por acaso que foi arranjada para o cargo da tutela uma mulher que é simultaneamente relações públicas e comissária política, e que parece que veio para ficar. Porque sobre questões de saúde, manda Bruxelas. E sobre isto nenhum partido fala, seja de direita ou de esquerda. Em tempo de crise profunda da economia capitalista, esta tem, por força da sua natureza, de englobar todos os sectores da actividade humana; isto é, tudo é passível de se transformar em mercadoria. Se há mercado, tudo se comercializa, tudo tem um preço… até muitos políticos da nossa praça – será tudo uma questão de oferta.

Nota: sobre o outro assunto que é o cepo das marradas do “Público” - O estado da Administração Pública – falaremos detalhadamente em próximo artigo.

https://osbarbarosnet.blogspot.com/2022/06/a-cruzada-para-o-desmantelamento-do-sns.html

terça-feira, 14 de junho de 2022

O Desespero Humano

 

O desespero é a «doença mortal» (capítulo III)

Sören Kierkegaard

ESTA IDEIA de «doença mortal» deve ser tomada num sentido particular. A letra significa um mal cujo termo é a morte, e serve então de sinónimo duma doença da qual se morre. Mas não é neste sentido que se pode designar assim o desespero; porque, para o cristão, a própria morte é uma passagem para a vida. Desse modo, a nenhum mal físico ele considera «doença mortal». A morte põe termo às doenças, mas só por si não constitui um termo. Mas uma «doença mortal» no sentido estrito quer dizer um mal que termina pela morte, sem que após subsista qualquer coisa. E é isso o desespero.

Mas noutro sentido, mais categoricamente ainda, ele é a «doença mortal». Porque, bem longe de dele se morrer, ou de que esse mal acabe com a morte física, a sua tortura, pelo contrário, está em não se poder morrer, como se debate na agonia o moribundo sem poder acabar. Assim, estar mortalmente doente é não poder morrer, mas neste caso a vida não permite esperança, e a desesperança é a impossibilidade da última esperança, a impossibilidade de morrer. Enquanto ela é o supremo risco, tem-se confiança na vida; mas luando se descobre o infinito do outro perigo, tem-se confiança na morte. E quando o perigo cresce a ponto de a morte se tornar esperança, o desespero é o desesperar de nem sequer poder morrer.

Nessa última acepção, o desespero é portanto a «doença mortal», esse suplício contraditório, essa enfermidade do eu: eternamente morrer, morrer sem todavia, morrer, morrer a morte. Porque morrer significa que tudo está acabado, mas morrer a morte significa viver a morte; e vivê-la um só instante, é vivê-la eternamente. Para que se morresse de desespero como duma doença, o que há de eterno em nós, no eu, deveria poder morrer, como o corpo morre de doença. Ilusão! No desespero, o morrer continuamente se transforma em viver. Quem desespera não pode morrer; «assim com um punhal não serve para matar pensamentos», assim também o desespero, verme imortal, fogo inextinguível, não devora a eternidade do eu, que é o seu próprio sustentáculo. Mas esta destruição de si própria que é o desespero é impotente e não consegue os seus fins. A sua vontade própria é destruir-se, mas é o que ela não pode fazer, e a própria impotência é uma segunda forma da sua destruição, na qual o desespero pela segunda vez erra o seu alvo, a destruição do eu; é, pelo contrário, uma acumulação de ser, ou a própria lei dessa acumulação. Eis o ácido, a gangrena do desespero, esse suplício cuja ponta, dirigi da sobre o interior, nos afunda cada vez mais numa auto-destruição impotente. Bem longe de consolar o desesperado, pelo contrário o insucesso do seu desespero a destruí-lo é uma tortura, reanimada pelo seu rancor; porque é acumulando sem cessar, no presente, o desespero pretérito que ele desespera por não poder devorar-se nem libertar-se do seu eu, nem aniquilar-se. Tal é a fórmula de acumulação do desespero, o crescer da febre nesta doença do eu.

O homem que desespera tem um motivo de desespero, é o que se pensa durante um momento, e só um momento; porque logo surge o verdadeiro desespero, o verdadeiro rosto do desespero. Desesperando duma coisa, o homem desesperava de si, e logo em seguida quer libertar-se do seu eu. Assim, quando o ambicioso que diz «Ser César ou nada» não consegue ser César, desespera. Mas isto tem outro sentido, é por não se ter tornado César que ele já não suporta ser ele próprio. No fundo, não é por não se ter tornado César que ele desespera, mas do eu que não o deveio. Esse mesmo eu que doutro modo teria feito a sua alegria, alegria contudo não menos desesperada, ei-lo agora mais insuportável do que tudo. A olhar as coisas mais de perto, não é o facto de não se ter tornado César que é insuportável, mas o eu que não se tornou César, ou, antes, o que ele não suporta é não poder libertar-se do seu eu. Tê-lo-ia podido, tomando-se César, mas tal não sucedeu, e o nosso desesperado tem de se sujeitar. Na sua essência, o seu desespero não varia, pois não possui o seu eu, não é ele próprio. Ele não se teria tomado ele próprio, tomando-se César, é certo, mas ter-se-ia libertado do seu eu. É portanto superficial o dizer dum desesperado, como se fosse o seu castigo, que ele destrói o seu eu. Porque é justamente aquilo de que, para seu desespero, para seu suplício, ele é incapaz, visto que o desesperado lançou fogo àquilo que nele é refractário, indestrutível: o eu.

Desesperar duma coisa não é ainda, por consequência, verdadeiro desespero, é o seu início: está latente, como os médicos dizem duma enfermidade. Depois declara-se o desespero: desespera-se de si próprio. Olhai uma rapariga desesperada de amor, isto é, da perda do seu amado, morto ou inconstante. Tal perda não é desespero declarado, mas é dela própria que ela desespera. Aquele eu, do qual ela se teria despojado, que teria perdido deliciada se ele se tivesse tomado o bem do «outro», esse eu provoca agora a sua tristeza, porque tem de ser um eu sem o «outro». Esse eu que tem sido – aliás também desesperado noutro sentido – o seu tesouro, é-lhe agora um abominável vazio, morto o «outro», ou como que uma repugnância, pois provoca o abandono. Tentai dizer-lhe: «Estás a matar-te minha filha», logo vereis como ela responde: «Ai de mim! não, a minha pena, precisamente, é não o conseguir».

Desesperar de si próprio, querer, desesperado, libertar-se de si próprio, tal é a fórmula de todo o desespero, e a segunda: querer, desesperado, sê-lo, reduz-se àquela, como atrás reduzimos (ver capítulo I) , ao desespero no qual alguém quer ser ele próprio, aquele em que se recusar a sê-lo. Quem desespera quer, no seu desespero, ser ele próprio. Mas então, é porque não pretende desembaraçar-se do seu eu? Aparentemente, não; mas se virmos as coisas mais de perto, encontramos sempre a mesma contradição. Este eu, que o desesperado quer ver, é um eu que ele não é (pois querer ser o eu que se é verdadeiramente é o contrário do desespero), o que ele quer, com efeito, é separar o seu eu do seu Autor. Mas aqui ele falha, não obstante desesperar, e apesar de todos os esforços do desespero, este Autor permanece o mais forte e constrange-o a ser o eu que ele não quer ser. Entretanto o homem deseja sempre libertar-se do seu eu, do eu que é, para se tornar um eu da sua própria invenção. Ser este «eu» que ele quer faria a sua delícia – se bem que noutro sentido o seu caso não seria menos desesperado – mas o constrangimento de ser este eu que não quer ser, é o seu suplício: não pode libertar-se de si próprio.

Sócrates provara a imortalidade da alma pela impotência da doença da alma (o pecado) em destruí-la, como a doença destrói o corpo. Pode-se demonstrar identicamente a eternidade do homem pela impotência do desespero em destruir o eu, por esta atroz contradição do desespero. Sem a eternidade em nós próprios não poderíamos desesperar; mas caso ele pudesse destruir o eu, também não haveria desespero.

Assim é o desespero, essa enfermidade do eu, «a Doença mortal». O desesperado é um doente de morte. Mais do que em nenhuma outra enfermidade, é o mais nobre do eu que nele é atacado pelo mal; mas o homem não pode morrer dela. A morte não é neste caso o termo da enfermidade: é um termo interminável. Salvar-nos dessa doença, nem a morte o pode, pois aqui a doença, com o seu sofrimento e... a morte, é não poder morrer.

E esse o estado de desespero. E o desesperado pode não o saber, pode conseguir (isto é sobretudo verdadeiro para o desespero que se ignora) perder o seu eu, e perdê-lo tão completamente que não fiquem vestígios: de qualquer modo a eternidade fará revelar-se o desespero do seu estado, retê-lo no seu eu. E porque nos espantaremos deste rigor? pois que este eu, nosso ter, nosso ser, é ao mesmo tempo a suprema infinita concessão da Eternidade ao homem e a garantia que tem sobre ele.

“O Desespero Humano”, Sören Kierkegaard. Livraria Tavares Martins, 1961

10 de Junho, dia para todos os gostos

  

Devemos considerar no mínimo estranho que no dia de 10 de Junho de cada ano se comemore o “Dia” de “Portugal” – anteriormente era da “Raça”, este ano terá sido das “Forças Armadas” e da “arraia-miúda” –, aproveitando o dia em que morreu, segundo consta porque não se sabe ao certo, o poeta Luís de Camões, homem incompreendido e abandonado pelas elites de então em situação de doença e na mais absoluta miséria. Comemorar o dia de um país, independentemente do conceito que se tem de “país”, num dia em que houve um óbito não augura nada de bom para o futuro de quem quer que seja, muito menos de um país ou de um povo. Parece que o agoiro continua presente e bem para além das profecias do sapateiro ou do padre missionário, fazendo fé no que se passa no país.

Este ano de 2022 e em governo de maioria absoluta do partido socialista – fundado em 1973 com o dinheiro da social-democracia alemã – as comemorações não tiveram a honra da presença do primeiro-ministro, há seis anos no poder sem oposição, por se encontrar retido em casa, presumimos, devido a “doença”; pela informação do presidente Marcelo, não terá sido nada de grave, já foi anunciada para amanhã a sua ida a Londres, ao que consta, para assinar com o seu homólogo britânico um “acordo político global para regular as relações bilaterais luso-britânicas” após o Brexit. Marcelo esteve assim à vontade para explanar livremente as suas ideias quanto ao país, ao povo, denominado “arraia-miúda”, e quanto ao governo; mas quanto a este último de forma velada, coisa que parece ter escapado a alguns jornalistas e paineleiros televisivos, e, em particular, mandar umas indirectas ao Costa.

O presidente/rei começou pela “graxa”, no seu melhor estilo de sedução: “A nossa pátria é o povo”. Foi um longo elogio ao povo português, como referem os media mainstream, numa mistura de populismo e de adulteração da História de Portugal, bem retratados em "sem o povo, sem a arraia miúda, não teria havido Portugal". Sabemos que a história da humanidade é a história da luta de classes, como também se sabe que, desde o início da nacionalidade e ao longo dos séculos da existência de Portugal, a luta foi dirigida pelas diversas elites que se sucederam no poder, utilizando como meio a dita arraia-miúda que, quando se sentia prejudicava, não deixava de lutar pelos seus interesses, fazendo frustrar parcialmente algumas das pretensões da elite em ascensão. E a demagogia presidencial não se fez poupada quando refere às lutas liberais e, nomeadamente, evoca a Constituição de 1822 e a independência do Brasil, dois acontecimentos ainda abominados por boa parte da nossa elite saudosa do império colonial e do antigo regime autoritário – Salazar era um monárquico, à semelhança de Marcelo, que se regia pelo Código de Direito Canónico –, assim como o estudo do período do Liberalismo sempre foi desprezado antes e depois do 25 de Abril no ensino público.

Marcelo esteve à vontade para encher a boca com o povo, o que não deixa de ser irónico conhecendo-se a origem social da criatura e o facto de, graças a essa situação, não ter cumprido o serviço militar obrigatório, como aconteceu com todos os homens saudáveis da sua idade e geração, e para, fazendo jus à palavra de ordem da sua oligarquia, “defender a Pátria” no antigo Ultramar. A técnica é mais do que evidente, dar graxa ao povo, envolver-se num mar de multidão, mostrar que a sua popularidade não é inferior à do governo e, principalmente, à do seu rival político Costa. Se o governo possui a maioria absoluta através do voto, ele, Marcelo, tem o apoio entusiasta e incondicional do povo na rua; uma espécie de CGTP em modo plural em termos sociais, uma espécie de selecção nacional de futebol, é transversal. Marcelo seguiu a intervenção do caquético Jorge Miranda, o considerado “Pai” da Constituição da República mesmo depois das inúmeras revisões que já sofreu, no que concerne à formação do Portugal Liberal de 1820 e, contrariando os avisos deste último quanto ao perigo dos “populismos nacional-radicais”, entrou numa de populismo nacional em modo moderado. A arte da representação e da hipocrisia não ficou por mãos alheias e Costa que se cuide.

Em ambos os discursos, Marcelo e Miranda, reclamou-se “melhor democracia” e “melhor patriotismo”. Foi uma das tónicas dominantes, ficando-se com a sensação de que neste reino à beira-mar plantado tanto uma coisa como a outra não andarão lá muito bem; caso contrário, nem sequer seriam referidas ou seriam referidas com menos enfâse. A primeira é abertamente um recado dirigido ao governo e a Costa para não abusarem da maioria absoluta; Marcelo lá estará a marcar posição com o veto, que será quase de certeza de novo utilizado na Lei da Eutanásia recentemente aprovada pela Assembleia da República. Quanto a patriotismo, há muito que estamos conversados quanto à veracidade ou solidez deste sentimento. Bastará olhar para o comportamento das nossas elites ou parte significativa delas ao longo da História de Portugal quando este foi invadido por forças estrangeiras: ou viraram-se para o inimigo, fim da primeira dinastia e da perda da independência, ou fugiram, invasões napoleónicas, abandonando o povo e deixando o país entregue aos ingleses, tornando-se Portugal a partir desse momento num mero protectorado britânico. No tempo presente ouvir da boca de um Marcelo, o dignatário máximo do país e chefe supremo das forças armadas (que fugiu à tropa!) palavras como “patriotismo” é simplesmente caricato; ou provocatório se atendermos que se trata de um país que pertence à Nato e faz parte da União Europeia, sinónimo de falta de soberania monetária, económica e de segurança e, em suma, política (OE-22 depois de aprovado ainda vai ao aval de Bruxelas!)

O presidente da República, bem como o presidente da comissão organizadora das comemorações, colocou na agenda política/económica o mar como prioridade, justificando com o passado glorioso do povo português que se espalhou pelo mundo, escamoteando que a dita “epopeia marítima” foi um projecto da elite – colonial e que deu origem à actual globalização e agora em fim de vida – e não do povo; e se este quase despovoou o país – no final do século XVI terá emigrado cerca de um terço da população que existia no início – foi devido à miséria em que esse povo, agora tão glorificado, vivia. Exactamente à semelhança do que aconteceu no século passado, especialmente nas décadas de sessenta e setenta, e ainda no momento presente. Portugal é, juntamente com a Irlanda, o país europeu de onde mais se saiu para fugir à fome; ao contrário do País Basco, por exemplo, onde a luta contra as arbitrariedades políticas, as injustiças sociais e a adversidades da vida sempre esteve presente e constitui quase uma tradição; entre nós, é o individualismo que impera e o resultado está bem à vista. E se referirmos os indicadores económicos e sociais mais recentes, fica-se com a nítida sensação – e se persistirmos neste caminho, que mais não é que uma corrida cega para o precipício – de que Portugal como país não tem qualquer futuro. Esquecem-se de uma questão: na União Europeia, o mar já não é nosso.

Vale pelo simbolismo o acontecimento, noticiado ainda há pouco tempo, do roubo do canhão do reinado de D. João V da fortaleza de Valença. Não é somente a incúria pelo nosso património – património histórico que atesta a luta do povo pela independência do país – mas o saque de que o povo é vítima, constantemente e na maioria das impunidades, e do qual a nossa seráfica elite cobra sempre a devida percentagem. 10 de Junho será mais o dia dos finados.

Cartune: Afonso in "P"

Original em temposdecolera


 

quinta-feira, 9 de junho de 2022

O direito à resistência

 

Giorgio Agamben

Tentarei compartilhar com vocês algumas reflexões sobre a resistência e a guerra civil. Não estou lembrando que já existe um direito de resistência no mundo antigo, que tem uma tradição de louvar o tiranicídio, e na Idade Média. Tomás resumiu a posição da teologia escolástica no princípio de que o regime tirânico, na medida em que substitui um interesse partidário pelo bem comum, não pode ser iustum. A resistência – Thomas diz a perturbatio – contra esse regime não é, portanto, uma seditio.

Escusado será dizer que a questão comporta necessariamente um certo grau de ambiguidade quanto à definição do carácter tirânico de um determinado regime, como atesta a cautela de Bartolo, que no seu Tratado sobre os guelfos e os gibelinos distingue um tirano a ex defectu tituli de um tirano ex parte exercitii, mas depois tem dificuldade em identificar uma iusta causa resistendi.

Essa ambiguidade reaparece nas discussões de 1947 sobre a inclusão de um direito de resistência na constituição italiana. Dossetti havia proposto, como você sabe, que o texto incluísse um artigo que dizia: "A resistência individual e coletiva a actos do poder público que violem as liberdades fundamentais e os direitos garantidos por esta Constituição é um direito e um dever dos cidadãos".
O texto, que também foi apoiado por Aldo Moro, não foi incluído e Meuccio Ruini, que presidiu a chamada Comissão dos 75 que deveria preparar o texto da Constituição e que, alguns anos depois, como presidente do Senado, teve de se destacar pela forma como tentou impedir a discussão parlamentar sobre a chamada lei da fraude, preferiu adiar a decisão para a votação da assembleia, que sabia que seria negativa.

Não se pode negar, porém, que as hesitações e objeções de juristas – inclusive de Costantino Mortati – não foram isentas de argumentos, quando apontaram que a relação entre direito positivo e revolução não pode ser regulada juridicamente. É o problema que, no que diz respeito à figura do partidário, tão importante na modernidade, Schmitt definiu como o problema da "regulação do irregular". É curioso que os juristas estivessem falando da relação entre direito positivo e "revolução": ter-me-ia parecido mais precisamente falar de "guerra civil". De fato, como traçar uma linha entre o direito de resistência e a guerra civil? A guerra civil não é o resultado inevitável de um direito de resistência seriamente entendido?

A hipótese que hoje pretendo propor a vocês é que essa forma de abordar o problema da resistência negligencia o essencial, ou seja, uma mudança radical que diz respeito à própria natureza do Estado moderno - ou seja, do Estado pós-napoleónico. Não podemos falar de resistência sem antes refletirmos sobre essa transformação.

O direito público europeu é essencialmente um direito de guerra. O Estado moderno se define não apenas, em geral, pelo monopólio da violência, mas, mais concretamente, pelo monopólio do jus belli. O Estado não pode renunciar a esse direito, mesmo ao custo, como vemos hoje, de inventar novas formas de guerra.

jus belli não é apenas o direito de fazer e travar guerras, mas também o direito de regular legalmente a condução da guerra. Distinguiu-se assim entre o estado de guerra e o estado de paz, entre o inimigo público e o criminoso, entre a população civil e o exército combatente, entre o soldado e o guerrilheiro.

Agora sabemos que precisamente essas características essenciais do jus belli desapareceram há muito tempo e minha hipótese é precisamente que isso implica uma mudança igualmente essencial na natureza do Estado.
Já durante a Segunda Guerra Mundial, a distinção entre a população civil e o exército combatente havia sido progressivamente obliterada.

Uma luz indicadora é que as convenções de Genebra de 1949 reconhecem um status legal para a população que participa da guerra sem pertencer ao exército regular, com a condição, no entanto, de que os comandantes possam ser identificados, que as armas sejam exibidas e que haja algum marca.

Mais uma vez, estas disposições não me interessam porque conduzem ao reconhecimento do direito de resistência – aliás, como viram, muito limitado: um partidário que exibe as suas armas não é um partidário, é um partidário inconsciente – mas porque implicam uma transformação do mesmo estado, como titular do jus belli.

Como vimos e continuamos a ver, o Estado, que do ponto de vista estritamente jurídico, entrou agora definitivamente no estado de excepção, não abole o jus belli, mas ipso facto perde a possibilidade de distinguir entre guerra regular e guerra civil. Estamos diante de um Estado que está conduzindo uma espécie de guerra civil planetária, que não pode de forma alguma reconhecer como tal.

A resistência e a guerra civil são, portanto, classificadas como actos de terrorismo e não será descabido aqui recordar que a primeira aparição do terrorismo após a guerra foi obra de um general do exército francês, Raoul Salan, comandante supremo das forças armadas francesas na Argélia, que havia criado em 1961 a OEA, que significa: Organização armée secrète. Pense na fórmula "exército secreto": o exército regular se torna irregular, o soldado se confunde com o terrorista.

Parece-me claro que em face deste Estado não se pode falar de um "direito de resistência", possivelmente codificável na constituição ou dela adquirível. Pelo menos por duas razões: a primeira é que a guerra civil não pode ser regulamentada, como o Estado, por sua vez, está tentando fazer por meio de uma série indefinida de decretos, que alteraram de alto a baixo o princípio da estabilidade da lei. Temos na origem um Estado que conduz e tenta codificar uma forma disfarçada de guerra civil.
A segunda, que para mim constitui uma tese inalienável, é que nas condições atuais a resistência não pode ser uma atividade separada: ela só pode se tornar uma forma de vida.
Só haverá resistência real se e quando cada um for capaz de extrair desta tese as consequências que lhe dizem respeito.

quodlibet

sexta-feira, 3 de junho de 2022

A Armadilha da semana de trabalho de 4 dias

 

O governo anuncia, em grandes paragonas, a semana de trabalho dos 4 dias e a Agenda do Trabalho Digno, que se presume trabalho com salários dignos e sem precariedade; e com certeza serão aprovadas na Assembleia da República. A classe do patronato põe reservas, deseja sempre mais e sabe que o governo é permeável aos desejos, porque também desconfia sempre de mudanças ou modernismos, mesmo que estes lhe venham a ser favoráveis a prazo; o seu conservadorismo e falta de visão das coisas não deixam de ser genéticos.

O engodo da semana dos 4 dias

A semana dos 4 dias é um engodo que os sindicatos parecem estar a engolir, os da UGT, com entusiasmo, os da CGTP, com algum receio, mas sem ainda protestarem. O governo garante que o novo horário semanal será ainda experimental e ensaiado, pelo menos por agora, apenas no sector privado, e não haverá redução salarial. Este é o aliciante enganador para convencer trabalhadores e direcções sindicais submissas.

Se não há diminuição do salário é porque o mesmo número de horas irá ser distribuído pelo menor número de dias e, então, forçosamente a jornada de trabalho irá subir das 8 horas para as 9 horas ou 10 horas, considerando o horário semanal das 40 horas predominante no sector privado e agora distribuído pelos cinco dias. Ficando mais dias de folga e atendendo ao facto de que os salários, pela simples força do aumento brusco e rápido da inflação, irão encolher, os trabalhadores terão a tendência de trabalhar mais para recuperar a perda do poder de compra. Se chegarmos ao final do ano de 2022 com uma taxa média de inflação anual de 8% (por este andar poderá chegar aos dois dígitos), descontando o aumento dos 0,9% deste ano e fazendo contas a 14 meses de salário por ano, ficaremos com um salário reduzido em cerca de um mês; ou seja, um dos subsídios irá ao ar.

Os trabalhadores, perante o salário cada vez mais diminuto e à semelhança do que acontece em economias capitalistas mais desenvolvidas, exemplo a dos Estados Unidos, tenderão ou a fazer mais horas extraordinárias ou em arranjar mais uns biscates ou segundos ou terceiros empregos, como já acontece na área da saúde onde muitos dos trabalhadores acumulam o trabalho no sector público com o do privado, aumentando assim, e em muito, a semana de trabalho e inclusivamente a jornada que chega muitas das vezes às 12 e 16 horas, perante a complacência dos sindicatos. Por esta via habilidosa de encolher os dias de trabalho, o governo facilitará a que os capitalistas aumentem a semana de trabalho para as tão faladas 60 horas; e o estado, como mau patrão que é, de imediato seguirá os passos. A política correcta seria reverter todas as alterações às leis laborais impostas pelo troika durante o governo de PSD/CDS/Passos/Portas e não seguir o mesmo rumo mas por atalhos.

Um retrocesso civilizacional

A data do 1º de Maio, Dia internacional do Trabalhador, nasceu da luta da classe operária no último quartel do século XIX pelo horário das oito horas de trabalho (os três oitos: 8 horas de trabalho, 8 horas de descanso, 8 horas de recreio e cultura) e à custa de muitos sacrifícios, incluindo centenas de mortes pelo mundo fora; tendo irrompido inicialmente nos Estados Unidos depressa se espalhou pela Europa e pelos países mais industrializados do planeta. No tempo presente, e devido à crise grave e profunda do capitalismo e à capitulação dos sindicatos e dos partidos de esquerda, nomeadamente os que se reivindicam do comunismo, assistimos a um trágico retrocesso civilizacional da situação de vida dos trabalhadores a todos os níveis. E é exactamente um partido da pequena burguesia, que se autoproclama “socialista”, que leva a cabo a tarefa de agravar a níveis inauditos a exploração do trabalho.

Quanto à agenda ardilosa e provocadora do putativo “trabalho digno”, iremos ter exactamente o oposto: trabalho com horários extenuantes, salários miseráveis e com mais e maior precariedade. Se os patrões discordaram na dita “concertação social” foi pela simples razão de que o que foi apresentado é ainda insuficiente. Os eventuais “alargamento da compensação por despedimento” e “limitação das renovações de contratos temporários” são mais aparente que reais, porque os despedimentos continuarão a sair baratos aos patrões e os contratos temporários continuarão a ser o dominante nas novas contratações, nem sequer a intenção do governo em acabar com a precariedade dentro da função pública, como se constata pelo número enorme de professores com vinte e mais anos de serviço e cinquenta anos de idade que ainda se mantêm na precariedade ou pelo número imparável de jovens sem garantia de um futuro seguro e digno: 62% é o número de contratos a prazo entre os jovens, dos quais 82%  preferiam um trabalho sem termo, tal é a sus insatisfação.

Salário e mais-valia

A recusa do PS e do seu governo em aumentar o salário dos trabalhadores em 4% este ano alegando que isso iria escalar a inflação e mediante mereceu o quase silêncio dos partidos de esquerda e dos próprios sindicatos na justa medida em que nem uns nem outros desmontaram em termos económicos essa mentira; os protestos foram circunstanciais Ora, o salário é o preço de uma mercadoria que os trabalhadores assalariados possuem como única forma de subsistência, que é a sua força de trabalho ou trabalho, abreviando; ou seja, é o preço dos meios estritamente necessários para poderem viver e reproduzirem-se; mas, segundo a agenda eugenista actualmente em prática, nem para esta última função esses bens são suficientes daí a quebra abrupta da taxa de fertilidade, a burguesia entende que não precisa de um exército de mão de obra de reserva tão numeroso, haverá então que o diminuir. E é precisamente para aumentar o rendimento do trabalho que está aí a dita “revolução industrial 4.0”: calcula-se que um robot substitua pelos menos duas dezenas de trabalhadores e que a digitalização provoque a atomização do trabalho, embora haja capitalistas, Elon Musk é um deles, que desconsideram o teletrabalho, optando pela escravatura directa.

E como o salário é o preço de uma mercadoria também ele está sujeito às mesmas leis das outras mercadorias. Se não aumenta em proporção, no mínimo, igual, as condições de vida do trabalhador irão forçosamente degradar-se. Se isto acontecer é porque os patrões irão à partida aumentar sobejamente os seus lucros já que os custos do trabalho diminuíram; por outras palavras, a mais valia (parte do trabalho não pago e que vai além do necessário para a sobrevivência do trabalhador) extorquida ao trabalhador aumentou. Mas, por outro lado, constituindo a massa dos assalariados o grosso dos consumidores, massa que tende a aumentar com a proletarização crescente da pequena burguesia, o poder de compra (mercado) diminui, entrando o capitalismo num ciclo vicioso do qual não consegue sair sem o risco de implodir. Uma contradição irresolúvel.

A missão histórica dos partidos ditos socialistas

A prática demonstra que a política do governo do PS não tem sido mais do que garantir a exploração dos trabalhadores e, dentro do possível, aumentá-la a nível superlativo, mantendo simultaneamente a paz social. Aliás, tem sido esta a missão histórica dos partidos que se autodenominam de “socialistas” ou “social-democratas”: aumentar a exploração dos trabalhadores e reprimi-los se necessário, e, a nível externo, apoiar as guerras desencadeadas ou fomentadas pelas suas burguesias nacionais; dentro da União Europeia, a opção tem sido claramente pelo apoio ao imperialismo americano e à sua sucursal europeia UE; mais do que apoiante, um fiel lacaio, diga-se em abono da verdade, sempre à espera da recompensa. O azar é que às vezes Roma nem sempre paga a traidores.

O governo irá revelar-se cada vez mais arrogante devido à maioria absoluta e ao apoio do partido mais trauliteiro e fascistóide que, por sua vez, manterá a dupla função: assustar a pequena burguesia e alguns operários; apoiar, como se tem verificado neste curto tempo de legislatura, todas as medidas do PS contra o mundo do trabalho, especialmente as mais gravosas; este apoio será a medida exacta da verdadeira dimensão da legislação anti-operária de autoria socialista. No entanto, a arrogância apenas dissimula a cobardia política de uma corte de políticos corruptos e pusilânimes, fiéis vassalos de Bruxelas, que facilmente serão derrubados caso o povo se dispunha à luta. A saída, para quem trabalha e é explorado, será sempre a da luta e corre-se o risco (nós esperamos bem que sim) de que as lutas venham a ser tormentosas e inorgânicas, no sentido de deixarem de ser controladas pelos sindicatos e partidos reformistas, e coloquem abertamente em causa o capitalismo e o poder político do capital e do imperialismo: outro mundo é possível porque necessário.

quarta-feira, 1 de junho de 2022

O Príncipe

 

Nicolau Maquiavel

De principati civili (Do principado civil)

Mas voltemos à outra hipótese, quando um cidadão se torna senhor do seu país não por perfídia ou outra violência execrável, mas, sim, pelo favor dos seus concidadãos, o que se pode chamar principado civil (e para o conseguir não tem necessidade de possuir a maior virtù ou a mais feliz das sortes, mas, antes, uma astúcia afortunada). Alcança-se esta dignidade ou pelo favor popular ou pelo dos grandes, pois em todas as cidades se encontram estas duas tendências diferentes, resultantes do facto de o popular não gostar de ser mandado nem oprimido pelos mais poderosos e de os poderosos terem sede de mandar e oprimir o povo. Destes dois apetites diferentes resulta nas cidades um dos três efeitos seguintes: principado, ou liberdade, ou desregramento.

O principado provém do povo ou dos grandes, conforme a oportunidade se oferece a um ou aos outros. Os mais ricos, ao verem que não podem resistir ao povo, começam a criar fama a um deles e constituem-no seu príncipe, a fim de, à sua sombra, poderem saciar os seus apetites. Pelo seu lado, o povo apenas dá fama a um só quando compreende que, de outro modo, não pode fazer frente aos grandes, e elege-o príncipe para que o defenda. O que chega a príncipe com a ajuda dos ricos mantém-se com mais dificuldade do que escolhido pelo povo, pois, vendo-se príncipe no meio de outros que lhe parecem seus iguais, não os pode comandar nem afeiçoar a seu gosto. Mas aquele que chega a príncipe pelo favor do povo encontra-se sozinho e não tem à sua volta ninguém – ou então tem muito poucos – que não esteja pronto a obedecer-lhe. Não se pode honestamente, e sem prejudicar os outros, contentar os grandes, mas deve-se contentar o povo, porque o desejo deste é mais honesto do que o daqueles que procuram atormentar os pequenos, que não querem ser atormentados. Aliás, um príncipe com um povo hostil nunca se pode sentir em segurança, pois o povo é muito numerosos, mas pode-se precaver dos grandes. Que são poucos. O pior que pode acontecer a um príncipe cujo povo é seu inimigo é ser abandonado por ele, mas, se os grandes lhe são contrários, deve temer não só que o abandonem, mas também que lhe caiam em cima, porque, possuidores de melhor visão e de mais astúcia do que o povo, nunca perdem tempo, tratam logo de se pôr a salvo e de procurar as boas graças de qualquer outro que o vença. Acontece ainda que o príncipe é obrigado a viver sempre com o mesmo povo, mas pode passar bem sem os grandes, pode criá-los e destruí-los todos os dias, tirar-lhes e dar-lhes poder e autoridade quando lhe aprouver.

Para melhor entender este ponto, digo que os grandes se podem analisar de duas maneiras principais. Ou, pelo seu procedimento, se governam de tal modo que se associam em todas as coisas, à sorte do príncipe, ou não se associam. Aqueles que se sujeitam e não pilham devem ser honrados e amados; aqueles que não procedem assim devem ser encarados de duas maneiras. Ou são como são por falta de ânimo e cobardia natural, e nesse caso o príncipe deve servir-se deles, principalmente dos que são bons conselheiros, porque o honram, quando as coisas correm bem, e na adversidade não lhe podem fazer mal. Mas quando não se querem comprometer por cálculo e ambição, é sinal de que pensam mais neles do que no príncipe, e, nesse caso, este deve precaver-se e temê-los como se fossem inimigos declarados, pois na adversidade ajudarão sempre a arruiná-lo.

Assim, quem chegar a príncipe com a ajuda do povo deve conservar sempre a sua amizade – o que lhe será fácil, visto o povo só desejar que não o oprimam. Mas aquele que se torna príncipe contra o povo e pelo favor dos grandes deve esforçar-se, acima de tudo, por aliciar o povo, por ganhar a sua amizade – o que lhe será fácil, se o tomar sob a sua protecção. E como os homens são de tal natureza que, se recebem bem daqueles de que esperavam mal, se sentem mais gratos do que se sentiriam de qualquer outro modo, o povo amá-lo-á ainda mais do que se ele próprio o tivesse eleito. O príncipe poderá conquistá-lo de muitas maneiras, das quais, em virtude de mudarem conforme os súbditos, não se pode indicar a regra certa e, por isso, não falarei. Repetirei apenas ser necessário que um príncipe se faça amar pelo seu povo, porque de contrário não terá nenhum remédio nas suas adversidades. Nábis, rei de Esparta, resistiu ao ataque de toda a Grécia e de um exército romano, que se ufanava de diversas vitórias, e para defender a sua pátria e os seus estados contra esse perigo bastou-lhe precaver-se contra poucas pessoas. Isso não lhe bastaria se o povo o odiasse. E não me venham, para rebater a minha opinião, com o provérbio de que «quem se apoia no povo constrói sobre o lodo» .É bem verdade que, quando um simples cidadão tem essa veleidade e imagina que o povo o libertará se inimigos ou magistrados o oprimem, verifica, muitas vezes, que só recebe ofensas, como sucedeu aos Gracos, em Roma, e a Messere Jorge Scali, em Florença. Mas se aquele que se apoiar no povo for um príncipe capaz de comandar, e se for homem de ânimo a quem os perigos e os reveses não assustem, e se encorajar todos com a firmeza do seu espírito e as ordens que der, se for um príncipe assim, verá que o povo nunca o deixará mal, verá que construiu sobre bons alicerces.

Estes principados tornam-se periclitantes quando saltam de um governo civil para um governo absoluto, porque tais príncipes mandam ou por si próprios ou por intermédio de magistrados. No segundo caso, a sua situação mais fraca e perigosa, visto dependerem inteiramente da vontade daqueles que têm tais dignidades, os quais os podem arruinar facilmente, sobretudo em tempo de adversidade, voltando-se contra eles ou deixando de lhes obedecer. Em momento de perigo já não é altura de o príncipe pensar em retomar a autoridade, porque os cidadãos e os súbditos, que se habituaram às ordens dos magistrados, não sentem inclinação, em circunstâncias de crise, para obedecer às suas. Em épocas duvidosas, um tal príncipe terá sempre poucos em quem possa confiar. Não se poderá basear no que viu em tempo tranquilo, quando os cidadãos têm necessidade do Estado, pois então todos o lisonjeiam, todos lhe

fazem promessas e todos querem morrer por ele, visto a morte estar longe; mas quando a fortuna é adversa e o Estado precisa dos cidadãos, encontra poucos. E a experiência é mais perigosa, ainda, porque só pode ser feita uma vez. Por isso, um príncipe sensato e prudente deve achar maneira de os seus súbditos terem necessidade dele e do Estado em todas as circunstâncias de fortuna ou infortúnio. Assim, ser-lhe-ão sempre fiéis.

“O Príncipe”, Nicolau Maquiavel. 1972. Publicações Europa-América.