sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

leste e oeste

 

leste e oeste

Giorgio Agamben

A história dos homens tem sempre uma assinatura teológica e pode, portanto, ser instrutivo olhar para o actual conflito entre o Oriente e o Ocidente na perspectiva do cisma que separou a Igreja Romana da Ortodoxa há muitos séculos. Como se sabe, a base do cisma foi a questão do Filioque: o credo romano afirmava que o Espírito Santo procedia do Pai e do Filho (ex Patre Filioque), enquanto para a Igreja Ortodoxa o Espírito Santo procedia apenas do Pai.

Se traduzirmos a linguagem teológica em termos históricos concretos, isto significa - uma vez que o Filho encarna a economia divina da salvação ao nível da história terrena - que para o Oriente Ortodoxo Grego a vida espiritual dos crentes não estava directamente implicada no plano de economia histórica. A negação do Filioque separa o mundo celestial do terreno, a teologia da economia histórica. E isto - sem prejuízo de outros factores - pode explicar porque é que o Ocidente - especialmente na sua versão protestante - presta atenção ao desenvolvimento da economia histórica que é completamente desconhecida do mundo ortodoxo grego, que parece ignorar a revolução industrial e permanecer ancorados em modelos feudais. Traduzido em termos teológicos, o primado marxista da economia sobre a vida espiritual também corresponde perfeitamente à ligação do Espírito Santo com o Filho que define o Credo do Ocidente.

Ainda mais repleta de consequências é a inversão que ocorre com a Revolução Russa, quando o modelo ocidental da primazia da economia histórica é enxertado à força num mundo espiritualmente completamente despreparado para o receber. Mais uma vez, nesta perspectiva, o fracasso do modelo soviético e a evidente reproposta de motivos teológicos na Rússia pós-soviética podem ser explicados como o retorno da independência removida do Espírito Santo, que redescobre aquela posição central que o comunista regime não conseguiu apagar.

Parece tanto mais absurdo que - enquanto nas últimas décadas as Igrejas Romana e Ortodoxa se aproximavam - o Ocidente, não por acaso sob a liderança de um país protestante, propõe agora - mais ou menos inconscientemente em nome do Filioque - uma guerra sem quartel com a Rússia Ortodoxa.

20 de dezembro de 2023

quodlibet

Finis Itália

Tem-se falado do fim da Europa, se não do Ocidente, como o acontecimento que marca dramaticamente a era em que vivemos. Mas se há um país na Europa onde alguns dados permitem certificar a data do fim com sóbria precisão, é a Itália. Os dados em questão são dados demográficos. Todos sabemos que o nosso país vive há décadas um declínio demográfico que o coloca como o país europeu com a taxa de natalidade mais baixa. Mas poucos percebem que isto significa que a continuação deste declínio levaria o povo italiano à extinção em apenas três gerações.
É no mínimo estranho que continuemos a preocupar-nos com os problemas económicos, políticos e culturais sem ter em conta este facto, que anula todos eles. Evidentemente, assim como não é fácil imaginar a própria morte, também não se quer imaginar uma situação em que não haja mais italianos. Não me refiro aos cidadãos do Estado italiano, que não existia há pouco mais de um século e cujo desaparecimento, em última análise, não me preocupa tanto. Pelo contrário, entristece-me a possibilidade perfeitamente real de já não haver ninguém que fale italiano, de a língua italiana se tornar uma língua morta. Isto é, que ninguém mais pode ler a poesia de Dante como uma linguagem viva, como Primo Levi a leu ao seu companheiro Pikolo em Auschwitz. Isto entristece-me infinitamente mais do que o desaparecimento da República Italiana, que afinal fez tudo o que estava ao seu alcance para levar a esse fim. Talvez permaneçam as cidades maravilhosas, talvez permaneçam as obras de arte: não haverá mais o “belo país onde soa o sim”.

11 de dezembro de 2023
Giorgio Agamben

quodlibet

Em memória de Toni Negri

Duas noites antes de chegar até mim a notícia da morte de Antonio - Toni - Negri, sonhei muito com ele e sua presença era tão viva que, ao acordar, senti a necessidade de lhe escrever. Minha mensagem para o e-mail antigo que eu não usava há anos não conseguiu chegar até ele. Quando contei sobre o sonho, uma amiga me disse: “ele queria se despedir de você antes de partir”. Mesmo nas divergências dos nossos pensamentos, que se tornaram cada vez mais evidentes ao longo do tempo, algo nos prendia obstinadamente, algo que tinha a ver sobretudo com a sua vitalidade generosa, inquieta, meticulosa, que senti imediatamente quando o conheci pela primeira vez em Paris em 1987.

Com a morte de Toni sinto que falta alguma coisa - dentro de mim, debaixo dos meus pés, talvez sobretudo atrás de mim, como se uma parte do meu passado de repente se tornasse presente e se dirigisse a mim com saudades. E esta falta não diz respeito apenas a mim, mas a todo o nosso país e à sua história, cada vez mais falsa, cada vez mais ignorante, como mostram os obituários odiosos, que só lembram o mau professor e não o mau e atroz país em que ele lhe foi dado viver e que ele tentou, talvez erroneamente, melhorar. Porque Toni, partindo da tradição marxista a que pertencia e que talvez o tenha condicionado e traído, certamente tentou se medir com o destino da Itália e do mundo na fase extrema do capitalismo que atravessamos rumo sabe-se lá que infeliz destino. E é isso que aqueles que continuam a ultrajar a sua memória não ousam nem serão capazes de fazer.

18 de dezembro de 2023
Giorgio Agamben

quodlibet

terça-feira, 19 de dezembro de 2023

O último Natal da seita

  

Crónica escrita em Dezembro de 2014, antes das eleições de 2015 que, embora ganhas pela coligação pafiosa, permitiram a criação do governo da geringonça 1.0 e à expulsão do inenarrável Coelho, que agora vem bolsar umas vulgaridades quanto às razões da demissão de António Costa.

O último Natal da seita 

Está-se em aberta campanha eleitoral, o “nosso” primeiro veio dizer à populaça que o “período adverso” já passou, que os “sacrifícios foram muitos” mas valeram a pena já que a “saída foi limpa” e que a economia está a recuperar e não haverá “nuvens negras” no próximo ano graças à política do governo nestes três últimos anos; no outro partido do bloco central da governação e dos negócios, Costa de Lisboa desdobra-se em movimentações tendo tardado a visitar o antigo chefe, em prisão preventiva até que o juiz arranje material suficiente para o condenar, no receio de contaminação e eventual prejuízo eleitoral do PS, bem como evitando comprometer-se com medidas concretas quando governo. A demagogia corre emparelhada com a cobardia política.

Orçamento de Estado e aumento da dívida

O senhor Coelho sacode a água do capote quanto à solução avançada para a fraude e falência do BES (símbolo máximo da capitalismo nacional) e não explica, atendendo às suas palavras de “desanuviamento das nuvens negras” em 2015, por que carga de água que amanhã, dia 1 de Janeiro, primeiro dia do novo ano de 2015, o povo português terá combustíveis, luz e telecomunicações mias caros, bens essenciais para pessoas e pequenas empresas, pelas quais o senhor Coelho diz ralar-se tanto com a sua sobrevivência. Claro que nem será necessário referir a continuação da brutal carga fiscal sobre os trabalhadores e dos cortes salariais e congelação das carreiras dos trabalhadores da função pública ou do esbulho das reformas dos aposentados.

O Orçamento de Estado para 2015 diz bem do que vai ser a vida dos trabalhadores portugueses, indubitavelmente mais nuvens negras, ou seja, continua o esbulho de quem trabalha e o saque do que resta ainda de empresas públicas lucrativas, embora se proceda a uma gestão que as apresente como irremediavelmente falidas. A diminuição da despesa continua a ser feita no sector social do estado, menos educação, menos saúde, menos segurança social, enquanto os negócios com os amigos continuam, o aumento da despesa, são paradigmáticos os 765,9 milhões de euros (+32% em relação a 2014 e mais 82% do que em 2013) em “estudos, pareceres e outros trabalhos especializados”, ganham os escritórios de advogados, gabinetes de arquitetos e outras assessorias; bem como se mantêm as rendas das PPP's … e o serviço da dívida pública que levará todos os anos mais de 8 mil milhões de euros, se até 2020 o governo irá receber 27 800 milhões de euros de fundos europeus, o povo português irá pagar, no mesmo período de tempo, 60 mil milhões.

A dívida pública, que aumentou 40% nos últimos 3 anos corre a par do desemprego que continuará a crescer, nunca tendo parado, ao contrário do propalado pelo governo, só professores foram mais de 30 mil que foram atirados para o desemprego irremediável em mesmo período de tempo. Mais depressa do que a pública corre a dívida privada, especialmente a das empresas, mas desta ninguém fala. No actual Orçamento, segundo o Tribunal de Contas, não foram incluídos 500 milhões de euros em benefícios fiscais das empresas, como são inúmeras as fugas ao fisco (estas legais) e os sacos azuis escondidos nos Orçamentos do Estado!

A falsa alternativa do PS

O PS irá prosseguir a mesma política de roubo ao povo português. A absolvição dos líderes parlamentares e deputados da Assembleia Legislativa da Madeira na restituição de 6,4 milhões de euros das subvenções parlamentares desviados para as contas dos partidos (entre 2006 e 2014, cerca de 40 milhões de euros foram indevidamente recebidos e utilizados pelos partidos na Madeira, tendo mais de metade desse valor entrado nos cofres do PSD) é também boa expressão como os dinheiros públicos são gastos – e não venham depois queixar-se da descredibilização do regime.

Enquanto descem na UE os custos das telecomunicações, em Portugal sobem; da mesma maneira acontece com os combustíveis, numa altura em que nunca esteve tão baixo o preço do crude por força da guerra económica travada pelos EUA contra a Rússia, agora devido ao aumento dos impostos. Aumento este que irá incidir sobre todos os bens, tornando falácia a conversa da inflação igual a zero; com o acrescento do governo não cessar de inventar formas mirabolantes, como acontece com o imposto verde, de esvaziar ainda mais os bolsos dos trabalhadores, mesmo quando incide sobre as empresas, o pagante é sempre o pobre do dito “consumidor final”.

Se o ano de 2014 foi de aumento do preço das telecomunicações, e a subida foi maior do que a inflação, então 2015 será a continuação possivelmente em maior grau. A estratégia é a mesma para iludir a realidade, acenam-se com pequenas vantagens nas deduções em sede do IRS, mas os impostos marcam sempre a política de um qualquer governo. O PS no governo será a evolução na continuidade, possivelmente para pior, e, ao contrário do propagandeado, com PS ou sem PS, 2015 não será melhor do que 2014.

Faltará pouco para mais outra mensagem de optimismo, desta feita pela boca do senhor Silva de Boliqueime, corresponsável pela situação de miséria da larga maioria do povo português, outro exercício de demagogia e de hipocrisia; enquanto isso, assistimos a um PS preparando-se para tomar conta da governação, ou seja, do saque do povo português no interesse do grande capital financeiro internacional e dos seus agentes locais, mantendo a actual coligação até Outubro. Ao mesmo tempo que a CGTP vai convocando e desconvocando as greves segundo a agenda do PCP, numa guerrilha que acaba por desgastar não o governo mas os próprios trabalhadores; o bom exemplo encontra-se na greve dos trabalhadores da TAP que assustou o governo mas não irá impedir a privatização de uma empresa crucial para a economia e a soberania do país.

A privatização da TAP e a luta dos trabalhadores

O que se passou com a greve dos trabalhadores da TAP diz bem da qualidade dos dirigentes sindicais de serviço, seja de uma ou de outra central sindical, muita farronca no início, decretam uma greve de vários dias para o período sensível do fim de ano, quando a transportadora tem mais movimento pela visita de emigrantes e turistas, sendo em princípio a pressão exercida pelos sindicatos maior, mas foram entradas de leão e saídas de sendeiro, aliás, como os sindicatos do regime nos tem habituado.

O decretar da requisição civil, ainda antes da greve acontecer e de não se saber se os serviços mínimos iriam ou não ser respeitados, foi suficiente para amedrontar os corajosos sindicalistas, mais preocupados com o tacho sindical e em cumprir a agenda política do partido a que pertencem do que defender os interesses daqueles que dizem representar. A requisição civil não deveria ter sido acatada, a luta deveria ser total e determinada sabendo-se à partida que o governo iria mostrar os dentes. Luta contra o governo e contra a ilegalidade de uma medida decretada pelo pânico e não pelo sentimento de força. Os sindicatos não só se acobardam como não conseguem fazer uma análise realista da situação.

A propaganda dos media do regime faz o trabalho de intoxicação da opinião pública dando a entender que o governo tem força e defende o tal “interesse nacional” pela não nacionalização da totalidade, pelo menos para já (serão 10 anos?!), da TAP, de molde a assegurar algum controlo por parte do estado (uma rematada mentira!). Mas, desta vez, os media corporativos não conseguiram desacreditar greve já que a questão da privatização não é da simpatia de largos sectores da classe média. O governo está no mais completo isolamento, e é com favores destes que se deve perceber a longevidade de um governo que há muito se tornou ilegítimo e passou a ser odiado pelo povo português.

Haverá alternativa?

Por outro lado, apontam-se já candidatos para as eleições presidenciais, como expediente de manter o circo mediático e assim desviar a atenção do povo eleitor. Já se apresentam dois palhaços a escrutinar: um é um verdadeiro tartufo, eterno candidato a candidato cuja missão é urdir a intriga e fazer fretes ao governo do seu partido (acusado de mentiroso compulsivo e de chulo pelo chefe de um dos clãs da famiglia Espírito Santo); o outro, é um beato que fugiu a sete pés do país quando viu que a situação estava preta; quer um quer outro dão bem a imagem do regime. Qualquer um deles farão escurecer ainda mais as nuvens que nunca deixaram de estar sobre as cabeças de todos nós.

O ano de 2015 será a continuidade, mas a descontinuidade no espírito da larga maioria dos trabalhadores e do povo português. E talvez não seja assim tão certa a capitalização do descontentamento social em termos de votos pelos partidos da putativa oposição, que vão desgastando os trabalhadores com estas greves de faz e não faz (CT e os sindicatos desconvocam a greve dos trabalhadores da STCP porque a empresa anunciou que os motoristas ameaçados de despedimento irão passar ao quadro de pessoal). Cada vez mais se impõe que sejam os trabalhadores de forma autónoma a pôr as pernas a caminho para o derrube do governo, de preferência acompanhado pelo Silva, não com pequenas greves localizadas, mas por uma greve geral nacional pelo tempo e pelas vezes que se mostrarem necessárias. Estes são os nossos votos para o novo ano de 2015.

31 de Dezembro 2014

In “Os Bárbaros” 

terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Marcelo Traficante & Costa Calimero

 

O dia em que Marcelo anunciou aceitar a demissão do nosso primeiro Costa terá sido um dos mais felizes da sua vida, todo o empenho de intriga e de boicote ao governo e, em particular, ao seu líder obteve por fim sucesso, compensando o momento frustrante de ter sentido vontade de o fazer aquando da polémica Galamba, mas que não avançou pela simples razão de que as sondagens na altura davam uma vitória folgada de novo ao PS. Foi calculista, esperou pela oportunidade; contudo, ainda estamos na dúvida se a oportunidade foi ocasional ou preparada, ou precipitada, pelo próprio PS… e pelo Costa. A demissão do Governo e a dissolução da Assembleia da República poderão revelar-se uma casca de banana onde Marcelo irá estatelar-se mais tarde.

Curioso, e é mesmo curioso, que no dia em que Costa apresenta a demissão e a Procuradora Geral da República Lucília Gago vai a Belém falar com Marcelo, a PGR abre inquérito sobre o caso estranho de duas crianças gémeas, filhas de pais brasileiros e sem terem nascido em Portugal, obterem no SNS, e não no sector privado, um tratamento de 4 milhões de euros com medicamento cuja eficácia é ainda muito discutível e, como brinde, ainda receberam 4 cadeiras de rodas eléctricas e dois andarilhos, que não chegaram a levantar, no valor de cerca de 60 mil euros. Costuma dizer-se, e geralmente os factos posteriormente confirmam, que em política nada é ocasional, se aconteceu é porque foi organizado e previsto.

A PGR abriu inquérito sobre desconhecidos, com certeza que será um inquérito muito à semelhança do inquérito, feito no tempo da sua antecessora, sobre a corrupção dos submarinos, tendo concluído que em Portugal nada acontecera apesar na Alemanha se ter confirmado a corrupção activa, o que levou os seus autores para a prião, aqui tudo se terá esfumado. Será mais uma operação de branqueamento e de esquecimento este caso de Marcelo que, no dia 2 de Novembro e ao ser questionado pelas televisões, com aquele ar de sonso e de cara de peru velho, não se coibiu de declarar que sobre assunto de gémeas brasileiras e de ter falado com o filho nada se lembrar. Parece que alzheimer ocasional e temporário é mais frequente do que parece entre a nossa elite económica e política.

Perante a demissão de Costa, do seu discurso comovente, e sob a acusação de estar a judicializar a política, Lucília Gago, que foi nomeada por Marcelo sob proposta de Costa, entendeu fazer o seu papel de vítima, afirmando que não se sentia responsável pela demissão do primeiro-ministro, indo mais longe ao denunciar os ataques sobre o Ministério Público com o objectivo de o "menorizar, descredibilizar ou destruir". Será mais um caso para se dizer que quem não quer ser lobo não lhe deve vestir a pele. Faltará saber, como já aventamos, se estamos a assistir a um incidente resultante do apodrecimento da democracia parlamentar, como aconteceu por exemplo na Itália, ou tudo isto não passará de uma farsa montada para o PS consolidar o seu poder em governo futuro e destruir politicamente Marcelo. Muito provavelmente, só no fim se saberá.

Esta hipótese atrás levantada não é de todo disparatada, conhecendo-se os artistas intervenientes, especialistas exímios na dissimulação e na intriga. Podemos lembrar o golpe de Pedro Sánchez, na vizinha Espanha, que demitiu-se obrigando a eleições legislativas antecipadas porque sabia antecipadamente que fosse para eleições em Dezembro seria definitivamente escovado do governo, assim, antecipando-as ganhou fôlego para uma nova maioria mais consistente, embora as não viesse a ganhar, como na realidade veio a acontecer. São jogadas arriscadas que nem sempre correm bem, mas até agora o sucesso tem dominado. E a saída a tempo de Pedro Nuno Santos, apontado como o sucessor “natural” de Costa, e aproveitando o incidente da localização do aeroporto, parece ter sido de suspeita oportunidade, foi claro indício que a mudança seria para breve e não para o longínquo 2026.

Marcelo, que agora saltita de contentamento com o governo já demitido, teve de esperar quase um mês para se lembrar do que acontecera realmente com as gémeas brasileiras e se o filho terá falado com ele ou não. Assim, entendeu falar ao país não na qualidade de Supremo Magistrado da Nação mas como simples cidadão Marcelo Rebelo de Sousa, que terá eventualmente falado com o outro cidadão, o dr. Nuno Rebelo de Sousa; ou seja, assistimos a mais um número de comédia de feira. Ficamos, o povo ignaro, a saber que Marcelo afinal recebeu um email do filho, isto é, de outro cidadão, sobre o caso das gémeas e que a partir daí se desencadeou uma troca de correspondência entre a Casa Civil da Presidência da República, o Governo, o filho e o Hospital de Santa Maria. Marcelo chuta para canto, se houve cunha, não foi com ele, terá sido com o governo ou outrem desconhecido. E vai mais longe, acha que o filho não terá falado com o ex-secretário Lacerda Sales, o que mais tarde se veio a saber que não é verdade.

Este processo mirabolante do tratamento milionário de dois cidadãos estrangeiros, que receberam a nacionalidade portuguesa sem ainda se saber como e em tempo recorde, coisas que não são de acessibilidade fácil a qualquer cidadão, passando à frente de muitos outros cidadãos; isto é, com claro prejuízo para terceiros, e em altura em que o SNS atravessa severas dificuldades, criadas pela política danosa do governo PS/Costa, e em hospital público onde falta material básico, como espátulas de madeira que custam uns insignificantes cêntimos, onde as urgências não funcionam em pleno porque há falta de médicos. Fica-se com a sensação de que estamos perante uma política deliberada para arruinar o serviço público de saúde, em benefício do negócio dos privados da doença, e sempre com prejuízo do povo e não da elite. Esta e os amigos, quando se trata de tratamentos caros, apesar de eficácia duvidosa, vão sempre parasitar o Estado, ou seja, os dinheiros públicos.

Relembrar que as gémeas viram chumbado o tratamento no Brasil por incrivelmente oneroso, por estarem já a ser medicadas e pelo facto de os pais serem pessoas ricas. Agora, também se ficou a saber que os pais são ricos, mas endividados e com fracas possibilidades ou vontade, não se sabe, de recuperação económica, curiosamente pertencentes ao círculo íntimo de amizades do filho de Marcelo. Notar que o tratamento em Portugal foi feito no Hospital de Santa Maria depois de verem recusado o tratamento no Hospital de Dona Estefânia, facto negado por Marcelo, e por ordem do ex-secretário da Saúde Lacerda Sales na medida em que os médicos deste último hospital deram parecer negativo ao dito tratamento. Foi uma decisão administrativa e política, ant-ética, e depois de mais de um mês é que a Ordem dos Médicos, parece que acordou da letargia, anuncia um inquérito, mais outro para arquivo, aos médicos envolvidos no processo, incluindo Lacerda Sales, que diz prestar declarações só em sede própria, ou seja, na polícia; e depois queixam-se do excesso protagonismo da justiça.

Lacerda Sales de início não se lembrava de nada, depois lá teve um flash, e a sua superior, a ex-ministra Marta Temido, também de nada se recorda e, no seu estilo lampeiro, de carapau de corrida, acrescenta que a “lei obrigava o SNS a tratar” as gémeas, ao que parece a cunha até é legal ou pelo menos supérflua; contudo, não explica por que carga de água obtiveram a nacionalidade portuguesa e passaram à frente de outras crianças em situação análoga. E, talvez pensando no seu futuro político, já que é apontada a possível candidata do PS à câmara de Lisboa, teve o desplante de vir defender o PR Marcelo. Mas não é só Temido que defende o indefensável, o PS na Assembleia da República chumbou a ida destes dois ex-responsáveis pela Saúde à casa da democracia para explicarem o imbróglio do caso do tratamento milionário das gémeas brasileiras. O actual ministro de igual modo não quer opinar sobre o assunto porque não quer “condicionar” o inquérito em curso da responsabilidade do IGAS (Inspeção Geral das Actividades em saúde). Afinal, o PS e o Governo protegem o traficante de influências Marcelo, com a própria Temido a confirmar que esta é prática habitual.

Depois de o Governo ter entrado em modo de gestão, Costa vem a terreiro televisivo fazer o seu papel de vítima, coisa que, diga-se de passagem, já vinha a fazer desde o primeiro minuto em que apresentou a demissão. Queixa-se do PR, que avaliou mal o pedido de demissão e a dissolução do Parlamento, culpa a PGR que “enxertou” o fatídico parágrafo, que é a causa única e principal da sua demissão, faz comparação com os casos de Azeredo Lopes e de Cabrita, sente-se de consciência limpa, não deve nada a ninguém, vive só do seu salário, e tem a certeza que não será condenado e nem acusado sequer, e o mais provável é o processo ser arquivo findo o inquérito. Em suma, o homem está confiante, apesar de se carpir, fazendo lembrar a figura de animação, o Calimero, que constantemente dizia: "é uma injustiça, pois é" e "abusam porque sou pequenino"! Fica claro que Costa prepara o seu futuro político e, se puder, a vingança será servida fria.

Entretanto Marcelo, no seu impulso descontrolado de hipocrisia e desfaçatez, lá vai seguindo no seu papel, não se tendo engasgado quando, no Dia Internacional Contra a Corrupção, lançou uma nota pedindo às elites política e económica mais "consciência crítica" sobre efeitos da corrupção, como se ele não pertencesse a essas mesmas elites. O nosso beato tem fé que está seguro no cargo, já que não haverá ninguém com coragem para o derrubar e que o mecanismo pelo qual esse processo seria levado a efeito será dissolvido em 15 de Janeiro de 2024. Terá já encarregado os moços de recado a fim de lavar a mancha de que não se livrará tão cedo deste acto de corrupção. Marques Mendes já veio do púlpito televisivo perorar que a “culpa é do filho do Presidente”, como o filho pudesse ter tido a mesma atitude se o pai não fosse exactamente o Presidente. E até comentadores jornalistas de “esquerda”, e lembramo-nos de um do “Diário de Notícias”, que veio desculpabilizar Marcelo pela “pequena corrupção”. Ora, se Marcelo fosse pessoa intelectualmente séria, minimamente, já tinha pedido a demissão ainda mais depressa que o Costa.

Até quando o povo português terá de aturar e sustentar toda esta corja?

Imagem: in cristinasampaio.cartoon

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

A vigarice do BPN está sempre presente

 

Vai haver eleições antecipadas pela segunda vez em pouco mais de dois anos. O dito "principal partido da oposição" tenta apresentar alternativa procurando apagar o passado de exploração sobre o povo português e de vigarices cometidas pelo bando cavaquista. Em situação de crise, convoca a múmia que, levantando-se da tumba, se empertiga e arrasta jornalistas e fotógrafos, que se acotovelam para captar o melhor registo do fóssil. Não deixa então de ser oportuno recordar a vigarice que foi toda a operação BPN, contando com a cumplicidade e a impunidade do regime. Nenhum criminoso, incluindo os que chegaram a ser julgados, cumpriu pena de prisão, e alguns ainda andam por aí a gozar com o pagode. Crónica escrita em Agosto de 2011.

O BPN e os lucros da banca portuguesa

Coitados dos cinco maiores bancos a operar em Portugal (explorar o povo português) que tiveram apenas 487,5 milhões de euros de lucros no primeiro semestre do ano em vez dos 897,4 milhões em período análogo de 2010. E coitado do BIC e do ex-ministro cavaquista Mira Amaral que foram obrigados a ficar com um banco por 40 milhões de euros. Mais coitados terão sido as seguradoras que viram crescer os seus lucros 11,2%, no mesmo período, que passaram de 143 milhões para 159 milhões de euros. E o que será de nós que temos de aturar e sustentar toda esta corja de ladrões?

Toda a operação BPN foi uma monumental e inominável vigarice, bem maior do que a do Alves dos Reis no princípio do século passado. Tramóia montada de forma consciente e intencional pela camarilha dos cavaquistas que enriqueceram através da especulação, da fraude e do roubo descarado e descabelado, contando mais do que com a conivência que foi a colaboração activa da administração “socialista” do Banco de Portugal, que fez vista grossa sobre todo a actividade fraudulenta do BPN.

Quando o banco cavaquista faliu e invocando falsamente a “contaminação do sistema bancário”, o governo socrático/rosa procedeu à sua nacionalização, mas não à nacionalização da entidade proprietária do banco, grupo SLN, permitindo que os mesmos vigaristas continuassem com os seus negócios de vento em popa. Publicamente ninguém sabe quem são os acionistas individuais do BPN e da SLN assim como nenhum deles se encontra preso ou vá ser castigado pelos crimes cometidos. Agora com a privatização entregou-se o banco de mão beijada ao angolano BIC, pertencente à camarilha corrupta que detém o poder em Luanda e dirigido pelo “reformado” cavaquista da CGD (18 mil euros de reforma mensal, a que junta a reforma de 2 mil euros por ex-deputado) e ex-ministro liquidatário da indústria nacional.

O BPN é, do princípio ao fim, um roubo programado ao povo português pelo saque feito pelos seus acionistas enquanto propriedade privada e assalto aos dinheiros públicos enquanto nacionalizado. E mais um roubo com a sua entrega a uma instituição financeira estrangeira que assim adquire um papel importante no sistema financeiro nacional (ainda não sabemos a troco de quê?), com a agravante do Estado injectar 550 milhões de euros para o capitalizar e ficar com o ónus de indemnizar metade dos trabalhadores que irá ser dispensada, mais de 800 trabalhadores. Contudo, o negócio foi apresentado como “o melhor negócio do ano”! Claro que não foi para o Estado nem para o povo português, mas para o bando de ladrões, agora associado luso-angolano.

Este “episódio” BPN e que ficará como a maior vigarice do século XXI em Portugal e da dita “democracia dos cravos” coloca em evidência duas coisas, pelo menos: na economia capitalista quem domina é o capital financeiro; o poder político é ocupado por partidos e dirigentes políticos que, para além de indisfarçavelmente reacionários apesar da cor com que se possam pintar, são serventuários e corruptos ao serviço da alta burguesia financeira, nacional ou estrangeira pouco importa na medida em que o nacionalismo desta gente é a cor do dinheiro que arrebanham em off-shores.

Os lucros despudorados de bancos e seguradoras (3,6 milhões de euros/dia) e esta vigarice do BPN (mais de 5 mil milhões e não os 2,4 milhões falados pelo governo) falam por si e esclarecem perfeitamente que os sacrifícios não são para todos os portugueses, ao contrário do que arenga um Cavaco Silva ou um primeiro-ministro que agora vai molhar os pés nas águas quentes de Agosto, e que este regime político e sistema económico capitalista não são passíveis de regeneração.

Devemos acabar com o capitalismo, antes que ele acabe connosco! (Antes disso livrarmo-nos desta corja+troika!)

Nota: ainda veremos Passos Coelho e Paulo Portas como administradores do BIC quando saírem do governo e/ou “reformados” antecipados, à semelhança de Mira Amaral, graças ao “melhor negócio do ano”!

05 de Agosto 2011 

terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Melancolia em Tempos de Perturbação

 

Joke J. Hermsen

A melancolia é um estado de espírito que nos une através de fronteiras físicas e temporais. É difícil encontrar um período histórico ou uma cultura sem vestígios de sentimentos melancólicos.  

A proliferação de depressões nas últimas décadas deve-se a muitos factores, mas entre as causas há que contar também com a dificuldade que um número crescente de pessoas sente para fazer face a uma perda. A que se deve esta tendência? Terá que ver com o alto nível de bem-estar a que nos acostumámos? Terá aqui influência a individualização da sociedade? Haverá menos lugar para sentimentos ambivalentes porque queremos sentir-nos continuamente felizes? Abandonámos os meios que utilizávamos para enfrentar as nossas perdas e ajudar o próximo a superar as suas — como a reflexão, a serenidade, o sentido de pertença a um grupo, a arte e a criatividade —, que são precisamente as ferramentas necessárias para transformar a dor de uma perda numa melancolia de muitas tonalidades?

Ao longo do século XX, a melancolia foi sendo progressivamente substituída pelo termo médico «depressão», e, tal como aconteceu na Idade Média, perdemos de vista a dualidades dos estados de espírito sombrios e, em concreto, o lado positivo dos mesmos. A depressão é uma doença mental que temos de combater com fármacos. Na linguagem comum e na cultura, a palavra «melancolia» continua a existir. O facto de a ciência declarar como inútil para os seus fins um termo que continua muito vivo na sociedade diz muito acerca do paradigma científico deste momento. Investigadoras como Johannisson, Appignanesi e Dehue são da opinião que o paradigma psiquiátrico adquiriu tons marcadamente «neurobiológicos» nas últimas décadas. Esta tendência pressupõe que os transtornos anímicos sejam vistos segundo o chamado «modelo de entidades», ou seja, como afeções isoladas ou «entidades». Cada vez se tem menos em conta fatores como a trajetória de vida da pessoa, as experiências pessoais e as circunstâncias sociais. A depressão é entendida como uma doença mental e combate-se com medicamentos que modificam os níveis de neurotransmissores, como a serotonina e a noradrenalina. De acordo com o paradigma atual, a causa da depressão encontra-se num nível demasiado baixo dessas substâncias. No entanto, segundo Dehue, que analisou numerosos estudos internacionais sobre o efeito dos antidepressivos, a eficácia destes fármacos está a ser consideravelmente exagerada e deve-se, em muitos casos, a um efeito placebo. A prescrição de comprimidos contra a depressão em grande escala beneficia sobretudo a indústria farmacêutica.

Segundo Karin Johannisson, o facto de se ter esbatido a diferença entre melancolia e depressão não se deve unicamente à medicalização do problema, mas também à ideologia vigente, de culto ao mercado livre. O sujeito deprimido não encaixa no ideal imposto pelo neoliberalismo do Homo economicus exultante, que vive para o seu trabalho, e é objeto das criticas de otium e preguiça que recebia o homem ocioso na Idade Média. Na sociedade capitalista atual, não se gosta que alguém questione a fé cega em Mamon, o deus do dinheiro que nos trará a felicidade. De um ponto de vista económico, não se toleram as condutas divergentes ou improdutivas, porque todos têm de contribuir de forma ativa para a economia, como conclui Dehue em A Epidemia das Depressões. Tudo parece indicar, aliás, que a mentalidade de mercado baseada na maximização dos benefícios teve as suas consequências no âmbito da medicina, onde tanto as administrações públicas como as companhias de seguros impuseram cortes que afetam sobretudo as sessões terapêuticas e outros tratamentos que exigem demasiado tempo, o que explica, em parte, que os médicos se tenham deixado seduzir pelos comprimidos da indústria farmacêutica.

É relevante que precisamente o Geneesmiddelenbulletin1, em 2016, aquando do seu quinquagésimo aniversário, tenha convidado diferentes conferencistas a refletir sobre os derivados do uso de psicofármacos e sobre a influência da indústria farmacêutica na saúde das pessoas. Para além da Trudy Dehue, entre os conferencistas encontrava-se o professor catedrático dinamarquês Peter Gøtzsche, que publicou um estudo abrangente sobre os efeitos secundários dos antidepressivos, e o psiquiatra norte-americano Allen Frances, que denuncia a medicalização das atitudes divergentes no DSM-5. «Lamentavelmente, os psiquiatras não picaram o ponto», escreveu o jornalista Karel Berkhout na sua crónica no NRC Hundelsblad. «A Associação Holandesa de Psiquiatria não aceitou o convite para assistir ao evento porque, segundo o seu presidente, os conferencistas eram «críticos notórios» da psiquiatria e «não havia espaço suficiente para uma abordagem positiva».» Este desencontro não augura nada de bom para o debate sobre o tratamento adequado da depressão, nem para um diálogo sério sobre os efeitos primários e secundários dos psicofármacos, mas demonstra, sobretudo, que estamos muito longe de alcançar um consenso sobre a forma de entender e tratar a depressão e a melancolia.

Seja como for, haverá que criar de novo espaços para a deceção, o medo e a tristeza na nossa sociedade, fortemente medicalizada e comercializada, para aprendermos a encarar as perdas e não nos deixarmos arrastar por sentimentos sombrios. Para isso, talvez possamos encontrar inspiração noutras culturas, onde a melancolia ainda é considerada como mais um dos elementos da condição humana. Aliás, é importante observar a questão de um ponto de vista cultural mais amplo, visto que a melancolia não é um estado de espírito exclusivo dos homens ocidentais brancos com rasgos de genialidade, mas constitui uma parte importante da nossa condição e, como tal, oferece a possibilidade de nos compreendermos melhor uns aos outros.

1 Literalmente, «B0letim de Medicamentos», revista mensal publicada nos Países Baixos pela fundação homónima. (N. de T.)

(do capítulo Luto e Melancolia – “Melancolia em Tempos de Perturbação”, Joke J. Hermsen. Quetzal, 2022)

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

A demissão da ministra e a mercantilização da saúde


 Crónica escrita em Setembro de 2022 e que vem a propósito da intervenção mediática da ex-ministra da Saúde Marta Temido a respeito do seu desconhecimento do tratamento das gémeas brasileiras, e que terá sido legal (?!) já que foi feito, ao mesmo tempo que defendia Marcelo, talvez a pensar no seu futuro político. Se desconhecia, então foi ministra incompetente; se conhecia, então é mentirosa e, pela atitude inquieta que apresentou, quase de certeza que é válida esta última hipótese.

 Depois da apresentação do pedido de demissão por parte da ministra Marta Temido, apareceram muitas boas almas a manifestar “surpresa” pelo acto de quem até parecia ter entregado o corpo e o espírito à nobre e ingrata missão de defesa do SNS. A primeira alma surpreendida foi o primeiro-ministro que, mais tarde, se terá contraditado ao afirmar que a morte de uma grávida em transferência de hospital foi a “última gota” na tolerância de alguém que, afinal, terá sido negligente ou menos competente no cargo.

A seguir à grosseria e ingratidão do “nosso” primeiro, assim foi acusado, sobrevieram de imediato os elogios ao trabalho e espírito de sacrifício da ministra demissionária, mas ainda não demitida, em prol da saúde dos portugueses e, em particular, da salvaguarda do SNS. Contudo, as ordens e os sindicatos dos profissionais do sector, para além dos partidos da oposição, rejubilaram contando com a fragilização do governo e uma futura remodelação.

O governo como agente de negócios

Convém, talvez, relembrar que a ministra, à semelhança dos restantes titulares das pastas, mais não é do que mero executivo que vai cumprindo na execução e vigilância das directivas que lhe são ordenadas pelo chefe; e que este, por sua vez, as recebe de Bruxelas e dos diversos lóbis que por aqui vão sobrevivendo à custa dos dinheiros públicos e dos favores dos políticos que estão no poder graças aos seus financiamentos.

Já ninguém acredita, neste tempo de democracia liberal, que os partidos do regime suportam as milionárias campanhas eleitorais somente com o dinheiro das quotas dos militantes e não com os apoios diversos, que depois terão de ser recapitalizados pela governação. Geralmente estes governantes a soldo são bem recompensados, quando abandonam a política, com lugares de relevo nas administrações das empresas que foram beneficiados. Tanto de um lado como do outro, trata-se apenas de investimento.

O paraíso dos seguros privados

Na mesma ordem de ideias, ninguém vai na onda de que os órgãos de informação, principalmente os mais importantes, estão de boa fé ou não há interesses disfarçados, ao desencadearem e desenvolverem campanhas contra o SNS; no entanto, fazem de conta que o estão a defender através da (falsa) preocupação de eventual prejuízo acarretado para os cidadãos utentes pelo deficiente, ou falta dele, funcionamento.

Assim se percebe os violentos ataques aos serviços de obstetrícia e ginecologia dos hospitais públicos levados a cabo por todos os media corporativos, campanha que foi iniciada e conduzida, como já aqui denunciámos, pelo inefável jornal “Público”, propriedade de uma família de ricos emergentes depois do 25 de abril. Porque só com a degradação profunda do SNS, inclusivamente com o fecho de algumas unidades (“Grupo de trabalho diz que é necessário fechar maternidades e serviços de obstetrícia”), os empresários do negócio da saúde, ou melhor da doença, poderão ter mercado para os seus lucros.

Ainda não eram conhecidos os resultados do grupo criado pelo governo para estudar os problemas desta área dentro do SNS, já o grupo Sonae sai a terreiro revelando ao que vem e sem papas na língua: “Há seis milhões de portugueses sem seguro e muitos querem ter” – explica Miguel Águas, administrador da Sonae MC. E acrescenta: “a quantidade de publicidade nas televisões e rádios pode fazer supor que o mercado dos seguros de saúde está saturado, mas a realidade é muito diferente” – o título é claro: “Sonae lança seguros de saúde e quer um milhão de clientes”. Não serão necessárias mais palavras para se entender ao que andam estes agentes, porque também sabem que a política deste governo nunca deixou de lhes estar de feição.

Só ficam surpreendidos os desatentos ou os papalvos da política, na justa medida em que todos os indícios apontam para um ponto comum: a privatização da saúde. Os portugueses são os que mais pagam a saúde do seu próprio bolso, de nada ou pouco servindo o dinheiro que lhes é sacado através dos seus impostos, dentro dos países da OCDE; agora, ficou-se a saber que “SNS gastou 718 milhões de euros em exames e tratamentos no privado; valor recorde é consequências dos gastos com testes à covid-19”. Ou mais uma prova que atesta para que serviu realmente a tão milagrosa e oportuna pandemia.

Abre a época da vacinação em massa

Os comerciantes da morte devem estar, a esta hora, a salivar por mais, atendendo às recentes notícias quanto ao que se prevê para o próximo Outono: “OMS espera aumento de hospitalizações e mortes com o tempo frio – A Organização Mundial da Saúde (OMS) admitiu hoje que é expectável um aumento de hospitalizações e mortes por COVID-19 depois do Verão, quando o tempo ficar mais frio”. As expectativas do negócio são boas, embora a União Europeia tenha anunciado tempo seco e quente até Novembro, alguma vez o frio chegará para ajudar à venda das vacinas, pelo menos.

Mal o Governo anunciara a data do início da campanha de vacinação, tal como os incêndios e a caça há sempre uma “época” como resultado da instituição do facto, logo a mesma imprensa (que não se cansa em denegrir o SNS) avisa: “COVID-19: Portugal volta a registar mais de 3 mil casos nas últimas 24 horas – Número de mortes é o mais alto desde 8 de Agosto”. O negócio já está concluído e a campanha irá iniciar-se: “Primeiras 650 mil novas vacinas já chegaram a Portugal - As primeiras doses da vacina adaptada à variante Ómicron já estão em Portugal e vão começar a ser utilizadas no dia 7 de Setembro”. Prevê-se a vacinação de 3 milhões de portugueses (para já!).

A vacinação começará pelos cidadãos mais vulneráveis ou com mais de 80 anos e irá descendo gradualmente na escala etária. Poder-se-ia, demagogicamente, que será para aliviar a despesa da Segurança Social; no entanto, há uma realidade incontornável que o governo e a DGS ainda não souberam explicar, que é o grande número de mortes por excesso entre os mais idosos (mais de 85 anos) nos últimos meses, mais precisamente, desde Março. Mas, mais grave ainda, há um outro grupo etário onde se observa igualmente um repentino e nunca visto agravamento da mortalidade: os adolescentes e jovens entre os 15 e os 24 anos. No global, um aumento médio de 42 óbitos a mais por dia (dados em "PáginaUm").

O inexplicável excesso de mortalidade 

Este excesso de mortalidade poderá ter várias causas. Poderá ser da vacina, que em vez reforçar o sistema imunitário o vai, pelo contrário, enfraquecer ou desencadear doenças de auto-imunidade, como por diversas vezes já foi denunciado; ou poderá ser pela degradação das condições de vida e de pior atendimento pelos serviços de saúde, onde se inclui o SNS depreciado intencionalmente pelo governo e pelos médicos a quem dá jeito levar os doentes do público para o privado porque é aí que vão enriquecendo. Parece-nos que talvez estas duas últimas razões sejam as mais importantes, embora todas elas se interligam e potenciam.

A diminuição do poder de compra do povo português, apesar de todas as medidas “anti-inflacionárias” tomadas pelo governo, irá deteriorar as condições de vida e de trabalho, começando por uma pior alimentação e pior estilo de vida, assim como degradar os níveis de saúde, a começar pela saúde mental. Irá retirar quaisquer perspectivas de futuro à nossa juventude, observa-se que que há cada vez mais jovens menores envolvidos em crimes e internados em centros educativos, segundo refere a imprensa, num crescimento considerado alarmante. Igualmente se constata que de toda a população são os jovens que mais emigram: no primeiro semestre emigraram tantos como no ano passado.

Iremos assistir daqui para a frente a uma degradação acelerada dos níveis de saúde dos portugueses em geral na proporção da mercantilização da saúde: menos saúde = mais lucros para o privado. A demissão da ministra, sabendo-se como funciona o governo, já estava preparada e há muito. Com esta ou outra qualquer ministra/ministro o destino do SNS também há muito está traçado pela elite predadora e gananciosa, a não ser que utentes e trabalhadores da saúde se oponham tenazmente a esta tenebrosa política.

6 de Setembro de 2022

Imagem: António Costa e Marta Temido - Jornal Açores 9

sexta-feira, 24 de novembro de 2023

O governo de iniciativa presidencial

 

O que o beato Marcelo mais almeja é benzer um governo seu, da sua cor e paladar, daí ter ficado eufórico e aceitado de imediato o pedido de demissão do PM Costa, oportunidade para relembrar o Silva de Boliqueime quando deu posse ao seu governo, desprezando a correlação de forças dentro da Assembleia da República, para mais tarde ser obrigado a engolir a geringonça.

Neste tempo todo, pouco mais de quinze dias, ficou-se a conhecer, coisa que já não era desconhecida, que a direita que está no poder da governação, incluindo a alta figura magistrada da Nação, a elite nacional a quem o poder obedece e serve, os banqueiros e funcionários/banqueiros, os jornalistas e comentadores avençados, e tudo o mais, mais não são que a direita radical (muito mais radical que a vituperada “esquerda radical” que quer ir para o governo). A extrema-direita, até aqui ainda disfarçada de democrática, mas mal disfarçada, nestes 40 anos de democracia burguesa de opereta, não pode deixar de mostrar o que na realidade é e ao que vem, aliás, sempre veio: uma extrema-direita salazarenta e ressabiada, disposta a vingar-se da derrota (meia) que sofreu em 25 de Abril e não recuperada totalmente em 25 de Novembro.

O discurso do Silva de Boliqueime, que discrimina os partidos com representação parlamentar que podem formar governo, e os que dele estão à partida afastados por não aceitarem os compromissos externos do país (do governo), nomeadamente. desejarem a saída do euro e/ou da UE e a renegociação da dívida pública, insiste na formação de um governo de coligação de extrema-direita, sem apoio maioritário no Parlamento, como acabou por indigitar, revela que os interesses dos bancos alemães e franceses, de que o BCE é uma emanação, estão em primeiro lugar, seguidos pela ganância sem escrúpulos da burguesia nacional que aceita ficar com as migalhas do saque.

O aparecimento em público do temor dos banqueiros e funcionários-banqueiros nacionais, o incontornável presidente do BPI, o presidente do BCP/Millennium e o funcionário laranja presidente da Associação Portuguesa de Bancos, pela eventual inexistência de “um Governo estável a longo prazo e que cumpra com os compromissos de Portugal” ou de um “Governo governe bem” no interesse da estabilidade dos negócios da banca que, após as ajudas directas do estado, mais de 15 mil milhões de euros (1500 euros por português), ainda se encontra em situação de falência, esperando arrecadar mais algum, mostra para que serve o governo: gerir os negócios do capital.

O governo a quem o Silva deu posse é abertamente um governo de extrema-direita, basta olhar para os novos ministros, onde se destaca o beato professor catedrático de Direito de Coimbra, lembrando o estilo do velho das botas, agora ministro do Interior, um governo mais do que “ao serviço dos bancos”, é indubitavelmente um governo do grande capital financeiro. O governo minoritário da coligação fascista PàF mostra, por outro lado, que as eleições desta “democracia” mais não são que um pormenor para enganar os incautos e, só por isso, (e utlizando as palavras do ministro das botas) deve entregar-se quanto antes a Deus.

A simples possibilidade, que não passa ainda de eventualidade incerta, de aparecimento de um governo de maioria PS/BE/PCP, mesmo com os dois últimos partidos como simples apoiantes parlamentares, tem suscitado os mais terríveis pesadelos nas abencerragens mais reaccionárias da nossas elites, políticas e económicas, que, diga-se de passagem, são quase todas, mostrando que a nossa burguesia não é inteligente nem possui vistas largas, ao contrário da de outros países da União Europeia que já viram que partidos de orientação social-democrata, embora com outra designação ou farpela, como são os BE´s e a maior parte dos PC´s, são ainda a melhor forma de fazer com que as políticas de austeridade sejam aceites pelo povo e os trabalhadores, intimidados com a falsa “não há alternativa”.

A insistência na velha fórmula de governo de direita, tipo PSD/CDS-PP, que na realidade é extrema-direita, quando mais de dois terços do eleitorado se expressaram sem margem para dúvidas que estão contra estas políticas, poderá conduzir a uma radicalização de posições, principalmente por parte de quem sofre a austeridade que, devido à continuação e profundamente da crise do capitalismo, irá redobrar. Não é por acaso que um Pacheco Pereira (PP) se tem esforçado em apontar os perigos de tal extremar de campos, insistindo no regresso à antiga social-democracia do centro, porque sabe que este caminho em que teimam Silvas de Boliqueime e os nossos banqueiros e empresários de sucesso conduzirá inevitavelmente à revolta social e, eventualmente, à revolução socialista, o que significará o fim do capitalismo e das classes parasitárias existentes em cada país, ou seja, as ditas elites nacionais, onde PP se inclui.

É bem possível, mas ainda não é certo, que vingue um governo de maioria de esquerda, apesar do trabalho de sapa dos submarinos existentes no PS, agora formalmente capitaneados pelo Assis, mais parecido com o coreano Kim Il-sung do que propriamente com o santo. Mas até seria bom que tal acontecesse porque iria mostrar que partidos como um BE ou um PCP são partidos nacionalistas apostados em salvar um capitalismo de cor também nacional e as elites ditas “patrióticas”, desprezando os operários e o povo, cujos interesses só poderão ser salvaguardados com a destruição da base económica, o capitalismo, que está na origem de todo o sofrimento e miséria de quem trabalha.

Mas o mais certo é o bronco Silva de Boliqueime, fazendo jus ao seu espírito salazarento e provinciano (no mau sentido do termo, diga-se) dê continuidade ao governo do seu partido e de iniciativa pessoal, caso seja chumbado no Parlamento, como governo de gestão, tentando esvaziar de poder o órgão que constitui o poder principal e o símbolo desta democracia formal saída do golpe de estado do 25 de Abril. O que não deixará de ser uma coisa boa, numa perspectiva de que irá intensificar as contradições entre classes e dentro da própria classe dominante, já manifestada na incapacidade de criar um governo de maioria parlamentar, daí as propostas de algumas figuras mais cinzentas do regime, tipo Guilherme Silva, de se reformar o sistema eleitoral com a concessão de um bónus de mais deputados ao partido vencedor, a exemplo do da Grécia em que o partido que ganha leva mais 50 deputados, já não chegando as distorções provocadas pelo actual método de Hondt. Por este andar, não faltará muito para que ou se dará maioria absoluta ao partido mais votado, seja qual for o número de votos, ou se fará a criminalização dos partidos da oposição, como acontece na Turquia, país candidato ao clube UE, ou então deixar-se-á de fazer eleições e ficará governo de nomeação presidencial, segundo indicação expressa e formal de Bruxelas/Alemanha, como já agora o labrego (sem ofensa para os labregos) Silva defende abertamente.

O que não deixará, diga-se de passagem, de ser também uma coisa boa, apesar dos enormes males e sofrimentos que acarretará para os trabalhadores e o povo português, porque também fará avançar a consciência política não só da parte mais revolucionária da classe operária, o proletariado, como de outras camadas dos trabalhadores; valerá mais que mil discursos contra o sistema e conduzirá, como já anteriormente referimos em caso de governo de maioria de esquerda, à criação de condições subjectivas para o aparecimento de um partido revolucionário, coisa que não existe presentemente, que aponte o caminho da revolução socialista. O Silva, com a sua proverbial cegueira e congénita estupidez, está apenas a apressar a revolução socialista.

O que queremos salientar que qual seja o expediente usado pela burguesia a fim de prolongar o seu sistema de exploração e de fazer recair os custos da crise sobre os ombros dos trabalhadores, será inevitável a classe operária tomar consciência de molde a compreender que não há outro caminho alternativo ao capitalismo senão o socialismo; ou seja, a tomada do poder como única via para a reorganização da economia segundo não o lucro e a ganância, mas a satisfação das necessidades, a todos os níveis e não só material, dos cidadãos, qualquer que seja a classe social, sexo, credo ou cor; isto é, a emancipação e a libertação de toda a humanidade.

Publicado na revista “Os Bárbaros” em 03 de Novembro 2015

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Fúria que sonha

 

Giorgio Agamben

No Museu Nacional Romano do Palazzo Altemps existe uma cabeça de mármore que, segundo a tradição, representa uma Erínia adormecida. Os olhos fechados, os tufos de cabelo desgrenhados na testa e nas bochechas, os lábios entreabertos, o rosto da Fúria - se for uma Fúria, seja Alecto, Megera ou Tisífone - repousa tranquilamente sobre uma almofada de mármore escuro, como se ela estivesse sonhando.

Uma fúria que em vez de gemer e gritar, sacudir os cabelos serpentinos, fecha os olhos e sonha, desmente-se. No entanto, precisamente e apenas o sonho ou o sono de uma fúria se assemelha ao pensamento. O pensamento não é apenas contemplação, é antes de tudo fúria. Pensamos, contemplamos, só se primeiro houve a fúria, se olhando para a abominação do homem e do mundo, a mente - disse Bruno - tendo descido "à parte mais infernal... sente-se dilacerada e dilacerada em pedaços". E só se na nossa fúria heróica conseguirmos fechar os olhos e sonhar, existe a verdadeira quietude, existe a visão e a teoria. Os nossos sonhos não são, portanto, devaneios, que sabemos serem enganosos e vãos, mas verdades nas quais, mesmo de olhos fechados, não podemos deixar de acreditar, porque vimos primeiro a vingança e o erro. O pensamento é esse apaziguamento da fúria, é uma Erínia que sonha.

13 de novembro de 2023

quodlibet

Imagem: Orestes perseguido pelas Fúrias, de William-Adolphe Bouguereau, 1862.

*

Um Outro Silêncio

Enquanto os meios de comunicação social dedicam todo o seu espaço à guerra na Ucrânia e em Gaza e contam, como parecem adorar fazer, os mortos palestinianos e israelitas, ucranianos e russos, outro povo foi mais uma vez ignorado: os arménios, forçados a evitar serem exterminados para deixar o país onde viviam. Após a ofensiva militar dos azeris em Setembro de 1923, Nagorno-Karabakh ou República de Artsakh, como a chamavam os seus habitantes arménios, já não existe. Tal como já aconteceu muitas vezes nesta região, as fronteiras serão novamente traçadas e populações inteiras serão dizimadas e deslocadas em nome da limpeza étnica. Quando, no final da Primeira Guerra Mundial, a Federação Transcaucasiana, criada em 1917 por arménios, azeris e georgianos, foi dissolvida e o território conquistado pelos russos, Nagorno-Karabakh, embora 98% povoado por arménios, foi atribuído por Estaline não à República Socialista Soviética da Arménia, mas à do Azerbaijão. Daí, após a dissolução da União Soviética, os conflitos que tiveram o seu triste desfecho nos últimos dias. É necessário refletir sobre o destino deste povo que, como os judeus, sofreu um genocídio e não se fala dele, embora seja talvez a mais antiga comunidade cristã e, portanto, ocupe um dos quatro bairros em que se encontra dividida a antiga cidade de Jerusalém. Está perto de nós, talvez mais perto do que os outros de que falamos. O que está a acontecer em Nagorno-Karabakh preocupa-nos e questiona-nos e por isso preferimos ignorá-lo.

14 de novembro de 2023

Giorgio Agamben

quodlibet

Imagem: CNN Portugal.

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Substituição de governo (funcionários) em tempo de cólera

  

Costa apresentou a demissão ao PR Marcelo e este de imediato aceitou, parecendo que já estava à espera do acontecimento. A razão do pedido toda a gente a conhece, ou talvez não, porque muitas vezes o pretexto não é a causa, apenas um meio para resolver um problema e esconder a verdadeira razão. No caso presente, o leitmotiv foi o envolvimento do nome Costa em processo de escutas sobre o alegado envolvimento de figuras do seu gabinete e de amizade próxima em corrupção, tráfico de influências e vantagens indevidas no negócio do século da transição energética pelo lítio e hidrogénio verde. O “capitalismo verde” não será melhor que o actual, porque são exactamente o mesmo.

A judicialização da política em benefício do establishment

Após a demissão e apurando-se que terá havido um “lapso” (o “erro” é intencional), afinal, o Costa será o outro, o da Economia, mas nem Costa retirou o pedido de demissão, também as eleições antecipadas já estão marcadas, nem a Gago da PGR veio abaixo. Fica-se com a ideia que toda a gente ficou satisfeita com a nova situação, desde o PS à oposição, passando por Marcelo. E quanto ao processo e depois da decisão do juiz sobre as medidas de coação impostas aos presumíveis prevaricadores, a acusação de corrupção, que fez correr meio mundo ou mundo inteiro da política e da comunicação mainstream, acabou por cair, entretanto, a máquina para o assalto ao pote entrou em movimento desenfreado e agora nada nem ninguém a fará parar.

Estranhamos que, sendo a Procuradora Geral da República pessoa de confiança do governo PS e de Costa, pelo menos foi acusada de o ser pelos partidos de direita que a compararam com a anterior, essa, sim, é que era boa porque não condescendia com os crimes do PS, Costa não soubesse que iria rebentar a bomba que poderia causar a sua demissão e do seu governo, porque a investigação decorria desde o dia 17 de Outubro, segundo a dita PGR. Este caso faz-nos lembrar outro caso semelhante, o da Casa Pia, que envolveu os nomes de Ferro Rodrigues, então secretário geral do PS, e outra figura socialista importante, Paulo Pedroso, que chegou a estar preso alguns meses. Quando Durão Barroso deu de frosques, o presidente da república de então, Jorge Sampaio, em vez de convocar eleições antecipadas, preferiu manter o PSD no governo com um novo primeiro-ministro, surgindo assim a figura caricata de Santana Lopes como chefe do governo. E por que isto terá acontecido, talvez pelas mesmas razões de agora?

É que, durante o tempo de governo Santana Lopes, o PS mudou de direcção, surgiu o jovem turco Sócrates, e só depois, e alegando incapacidade do governo PSD para manter a governação, Sampaio descarta o governo, dissolve a Assembleia da República e convoca eleições, com o resultado que sabemos, vitória ao PS. Ficamos com a sensação de que a direcção de Ferro Rodrigues no PS não seria de grande confiança para o establishment a fim de fazer frente aos tempos difíceis que se avizinhavam e que trouxeram a troika a Portugal. Já com novo governo e dirigido pelas pessoas certas, Ferro Rodrigues e Paulo Pedroso viram cair as suspeições de quem eram objecto, mas ficaram com o futuro político prejudicado. Esta intervenção da justiça na política, lawfare ou judicialização da política, foi realizada a contento e em benefício de uma ala do PS e, sobretudo, das elites que dominam o país. Estaremos a assistir a algo semelhante com o derrube de este governo PS e do seu chefe que, ao contrário do antecessor, estará em condições de continuar com a carreira política, possivelmente até Belém?

A disputa pelo acesso ao pote

Devemos fazer correr a fita do tempo um pouco para trás e lembrar-nos que nas últimas eleições legislativas, que foram antecipadas, todos, partidos e cidadãos, esperavam que o PS se ganhasse seria por um triz e que haveria a forte possibilidade, fazendo fé nas sondagens e na vitória do Moedas com a sua coligação nas eleições para a Câmara de Lisboa, de o PSD vir a ser o vencedor e poder criar, mas em sentido contrário, uma geringonça, como, aliás, veio acontecer para o Governo Regional dos Açores, mas o raio é que o PS conseguiu, sabe-se lá como, tirar da cartola uma maioria absoluta – um desaforo!  Mal o governo PS, e outra vez chefiado pelo Costa, tomou posse, de imediato toda a sorte de ataques e de agoiros foram lançados sobre os malditos que estavam destinados a gerir sozinhos os mais de 55 mil milhões de euros que virão de Bruxelas até 2027.

E com o objectivo de enfiar a mão na massa que a oposição, nomeadamente a que fica mais do lado direito, procurou de imediato todos os pretextos e incidentes: a substituição do ministro das Infraestruturas, que deveria estar a incomodar alguém, pelo famigerado Galamba, e a estória rocambolesca do portátil com segredos de estado que deveria ter resultado na demissão deste último. Por que é que Marcelo não despachou o Costa nessa altura? Muito possivelmente teve medo de o PS vir a ganhar de novo as eleições e assim ficaria, ele presidente da república, em situação deveras delicada. Costa e governo ficaram em funções, mas alguma coisa deveria ser feita de molde a dar a chance ao outro bando da governação poder aceder ao quinhão a que se acha direito: ou há moralidade ou comem todos!

Nunca é despiciendo falar do bolo que as nossas elites estão à espera e que será mais tarde pago não por elas mas pelo povo, daí também não ser conveniente beliscar a “reputação do país”. São 8 mil milhões para o novo aeroporto; 2 mil milhões para a Ferrovia 2020, a concluir até final de 2023; 23 mil milhões do Acordo de Parceria entre Portugal e a Comissão Europeia, com aplicação entre 2021 e 2027; 22,6 mil milhões, que poderão chegar aos 30,5 mil milhões, do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) que terão de ser aplicados até 2026. Resumindo, será mais de um terço de todos os fundos (150 mil milhões de euros) que Portugal (não o povo português) recebeu desde a entrada na então CEE e agora União Europeia. Percebe-se que a disputa é feroz e tudo serve para destruir o governo PS e substitui-lo por outro de cor mais alaranjada. No entanto, ouvindo os líderes do PSD e do IL, a preocupação é sempre o “país”, só nunca especificam que país é que se trata.

O que terá provocado verdadeiramente a queda do governo PS?

Henricartoon

Terá sido a pedido de “várias famílias” que o PR Marcelo, esfregando as mãos de contente, depois de aceitar o pedido de demissão do Costa e de auscultar o seu “conselho de estado”, decidiu dissolver a Assembleia da República, o tal “órgão máximo da democracia”, mas… atenção!, só depois da aprovação do Orçamento de Estado para 2024. Brinquem lá com as eleições, elejam o PS ou o PSD, sós ou acompanhados, o importante é os nossos empresários garantirem que não falhará o quinhão que lhes é devido no assalto aos dinheiros públicos, produto do assalto cometido pelo PS ao rendimento dos cidadãos comuns portugueses, vulgo povo. As elites indígenas pouco se importam com as paragonas dos seus media: «“Demissão de Costa tem “impacto brutal na reputação de Portugal”», o que eles querem é dinheiro, não sendo mero acaso o CEO dos CTT ter vindo a terreiro: «Crise política "é indesejada", mas é "mitigada" com aprovação do OE» ou uma das organizações dos patrões logo esclarecesse: «Confederação do Comércio aplaude decisão "adequada" de Marcelo de salvar OE». Com coisas sérias não se brinca: “Empresas preocupadas querem OE aprovado”.

O alarido provocado pelos media mainstream serve mais para iludir os tolos e esconder as verdadeiras causas da substituição das hostes funcionárias no governo, do género: «“Uma crise política e uma crise de regime?”; “Depois de 2902 dias como primeiro-ministro, Costa demitiu-se: já não vai bater o recorde de Cavaco”; “Uma etapa que se encerrou. Costa é a 14.ª demissão de uma longa lista”; “De governos impossíveis a “mata-borrão” das crises. Costa sai ao fim de oito anos”; “PS em choque, mas pronto para substituir Costa por um “senador” “’Bomba atómica’ na política portuguesa preocupa empresários” “Bolsa em queda após demissão de António Costa, juros da dívida mantêm-se estáveis” “Ambientalistas temem que processo do lítio retire confiança à transição verde”; “Citi avisa que agravamento da incerteza política pode pesar na dívida portuguesa”, “Banqueiros pedem estabilidade e solução rápida para a crise política”». Mas tudo não passa de espavento.

 «Eurostat confirma contração de 0,1% na Zona Euro no 3.º trimestre. Portugal caiu 0,2%». Não deixa de ser fastidioso falar em números e ainda por cima de economia, mas a verdade é que a crise é política e é, acima de tudo, económica, raramente há crise na esfera da política que não tenha subjacente uma crise económica e, no caso presente, uma crise dentro de crise, que não se sabe como e quando vai terminar, daí as guerras como consequência e solução. E pelo sexto mês consecutivo que as exportações têm vindo baixar: “Exportações encolhem 8,2% em setembro. Défice comercial atinge 2.171 milhões”. Com a procura externa a baixar, bem como a interna, daí a diminuição das importações, apesar do turismo se ter aguentado, as empresas também sofrem: “Empresas não tinham crédito tão caro desde 2008”. E o outro Costa, causador da confusão, não se engasga: «Não nos podemos iludir. Vamos ter um ano de 2024 difícil.»

O aumento da pobreza despoleta a revolta

Se a crise económica capitalista é incontornável, a pobreza em Portugal não o é menos: «“Rendimentos em Portugal são os sextos mais baixos da UE em poder de compra”; “Portugal é um país onde as desigualdades estão a crescer de uma forma muito rápida”; “Mulheres têm pensões 43% mais baixas do que os homens”; “Isto é uma doidice! Um litro de azeite a 9,99 euros?”. E onde há exploração e pobreza há revolta: “Empresas com despedimentos coletivos aumentam 28% até setembro”, “Pré-avisos de greve até setembro aumentam 290% no Estado e 50% no privado”. Mas de outro lado, contrastando: “Principais bancos já renegociaram mais de 100 mil créditos à habitação” e “Seis em cada dez pessoas têm dificuldade em pagar casa”. No entanto, os bancos nunca tiveram lucros como agora devido à alta das taxas de juro: “Margem dos cinco maiores bancos dispara 80% para 6,7 mil milhões de euros”. As assimetrias socio-económicas em Portugal nunca foram tão grandes como no tempo actual, que é indubitavelmente um tempo de cólera.

Terá sido o descambar da situação económica e social que levou de certo modo as elites a decidir que é altura de substituir o governo do PS, apesar da maioria absoluta, porque não dará garantias de poder vir a lançar sobre os que trabalham as medidas austeritárias que o grande capital necessita para sair da crise, e a repressão, que poderá ser feroz, sobre as lutas dos trabalhadores. Talvez um governo de toda a direita, incluindo o Chega e não apenas do PSD, seja o mais eficaz. Esta sim uma razão para descartar Costa e sus muchachos, coisa que ele próprio até agradece. Há quem goste de comparar Costa com Sócrates, nós preferimos comparar mais os governos de Sócrates e de Passos Coelho/Paulo Portas. O primeiro justificou a intervenção da troika de má-memória e preparou o terreno para a actuação caceteira do governo que veio a seguir, o pafioso PSD/PP, mais apetrechado a fazer o papel de polícia mau. Agora, poderemos estar a assistir a uma situação semelhante, o polícia bom governo PS/Costa irá dar lugar ao ultramontano governo PSD/Chega, que ficará na história como o mau da fita.

A situação actual é incerta e os acontecimentos são imprevisíveis e o facto palpável é que os partidos que vão concorrer às próxima s eleições legislativas antecipadas, e apesar de alguma gabarolice e muita demagogia, não parecem ter lá ficado muitos felizes com a solução encontrada pelo PR Marcelo; é que há o risco de todos eles falharem e as elites, por iniciativa própria ou por Bruxelas, entendam que fará tempo de alterar o quadro partidário actual ou encontrar uma solução mais musculada para fazer face à crise económica e acabar com o regabofe partidário. A última palavra caberá sempre ao grande capital financeiro, o verdadeiro dono da chafarica, ou ao povo dirigido pelo proletariado revolucionário que entenda tomar em mãos o seu próprio destino.

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Marcelo, O Dissolvente… do regime democrático

 


Marcelo, após as várias trapalhadas que criou, regozija com a apresentação do pedido de demissão de Costa, devido a suspeição de estar envolvido em corrupção ligada aos negócios da “transição energética”, um dos objectivos e razões da dita, preparando-se para a dissolução da Assembleia da República e convocação de eleições antecipadas. Não foi em Maio com o caso “Galamba”, foi agora e a iniciativa partiu de Costa. Marcelo poderá igualmente agradecer à Procuradoria Geral da República que se assume como instrumento na luta política. Quase de certeza que terá tido uma convulsão fisiológica.

O deflagrar da denominada “bomba atómica” irá fazer esquecer, pelo menos durante algum tempo, as boutades de Marcelo, que estão longe de ser uns meros descuidos ou gafes, mas as expressões da sua verdadeira natureza de democrata reciclado depois de 25 de Abril. A sua formação cultural de filho da oligarquia fascista vem periodicamente ao decimo quando o controlo abranda, ou por estar bem-disposto após lauta refeição bem regada ou por se sentir mais seguro, contando com a condescendência dos media mainstream e das massas mais ingénuas. Nos últimos tempos, e para citar apenas alguns episódios, o monárquico PR, uma contradição nos termos, quebrou o fino verniz que cobre o seu real carácter.

Começou com a desculpabilização do número de vítimas do clero católico pedófilo, encobrindo o seu amigalhaço bispo e avisando-o de que estaria a ser investigado pela justiça; depois, veio tentar esclarecer o que disse, operação que repete sempre quando a boca atira para o disparate. A seguir, se bem nos lembramos, veio a observação aparentemente brejeira sobre o decote que deixava antever o volume das mamas de uma jovem emigrante, parece que jamais terá visto coisa semelhante; desculpou-se então com o frio que se fazia sentir. Mais recentemente, foi a abordagem paternalista e a despropósito, na medida que não é assunto do seu ofício, ao embaixador do estado palestiniano em Portugal sobre os responsáveis pelo actual conflito no Médio Oriente; perante as reacções, sentiu a necessidade de vir por duas vezes esclarecer o vómito presidencial. Declaradamente, não possui controlo de impulso, será distúrbio de personalidade para o qual não há tratamento?

Mas continuando, e, last but not least, espécie de cereja em cima do bolo, é apontado como suspeito de ter metido cunha para o tratamento de duas crianças brasileiras com medicamento milionário no SNS. Resumindo, e considerando apenas estas metidas da pata na poça, Marcelo revela uma mentalidade arrogante, de os meios justificam os fins e os nossos estão primeiro, nepotismo à última exponencia, paternalista e colonialista, patriarcal e sexista, pese o seu fácies de peru velho, monárquico e beato, e, acima de tudo, um político populista e hipócrita – decididamente, um reaccionário. O que é natural, está-lhe nos genes; mesmo que troque de género, através de umas cirurgias plásticas, o sexo será sempre o mesmo porque os genes não mudam.

O presidente beato de sacristia, que é levado ao colo pelos órgãos de propaganda do regime e que agora devem delirar com a atitude de dissolução do Parlamento e de convocação de eleições antecipadas, é apresentado por estes laxantes cerebrais como seja ele o responsável pela actividade do governo, à semelhança de regime presidencialista, uma espécie de regente de orquestra, que não é, e que poderá, um dia destes, o feitiço virar-se contra o feiticeiro; ou seja, ter um fim triste. Já aqui o dissemos, Marcelo ficará na história como o presidente da república ligado, e até certo ponto corresponsável, à degradação do regime democrático saído do golpe de estado de 25 de Abril de 1974, e que daqui a pouco mais de cinco meses completará cinquenta anos – à semelhança, pelo menos formal, do padrinho Caetano que foi o último primeiro-ministro (então presidente do conselho) do fascismo luso. 

Será bom recordar que Marcelo foi reconduzido em 2021 com mais votos do que em 2016, teve mais votos do que todos os outros candidatos e obteve o seu maior apoio no seio da classe média que ama sobretudo a paz social e predominante no interior do país. Marcelo, logo que se soube dos resultados recebeu os maiores encómios da imprensa mainstream: “Portugal desafia a pandemia e reelege Marcelo Rebelo de Sousa como Presidente”, lembremo-nos que o homenzinho declarara que se candidatava porque havia a pandemia, presumindo-se que caso o não fizesse seria uma cobardia; “Marcelo liderou onde há mais casos covid-19 e maior área ardida”, parecia que era a esperança do povo para a cura da doença e para a regeneração florestal do país!; “Marcelo quer unir" e “venceu em todos os 308 concelhos do país”, será o chefe da “união nacional”. No entanto, somente 23,48% dos eleitores votaram nele, o que não impediu que tivesse sido apresentado como o Salvador da Pátria. E será este salvador que irá ajudar a enterrar a democracia de Abril, e vontade não lhe falta.

É curioso notar que a qualidade dos presidentes da república eleitos que temos tido desde o 25 de Abril tem vindo gradual e imparavelmente a diminuir desde o primeiro. O general Ramalho Eanes, o único que soube dignificar o cargo, talvez por ser militar, não sabemos, e que, como figura política, sempre se deu ao respeito. A partir daí, tem sido o descalabro, desde uma figura demagógica e poltrona, passando por um político frouxo e outro empedernidamente reaccionário, até ao actual, de carácter dúplice, intriguista e perigoso, e que poderá gabar-se de ter sido o único, se a memória não nos atraiçoa, de ter concitado contra si uma manifestação popular. Ficará na história pela triste figura de ter degradado o papel e a imagem do mais elevado magistrado da nação, rebaixando-os aos de qualquer soba de reino das bananas. O que, diga-se de passagem, não é de estranhar já que reflecte o ponto a que chegou esta democracia de ópera bufa. Marcelo, mistura de duquesa de Mântua e de  Sidónio, será o símbolo do apodrecimento do regime e a nostalgia do Portugal salazarento que ressuscita na sua pessoa.

Ver A reeleiçãso de Marcelo

segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Desobediência Civil

 

Hannah Arendt 

A desobediência à lei, civil e criminal tornou-se um fenómeno de massa nos anos recentes, não apenas na América, mas também em muitas outras partes do mundo. O desafiar da autoridade estabelecida, religiosa e secular, social e política, como fenómeno mundial pode bem vir a ser considerado um dia como o mais notável evento da última década. Na verdade, «as leis parecem ter perdido o seu poder». Visto de fora e considerado na sua perspetiva histórica, não há sinal mais claro – nem mais explícito da instabilidade interna e da vulnerabilidade dos governos e sistemas legais existentes – que possa ser imaginado. Se a história nos ensina alguma coisa sobre as causas da revolução – e a história não ensina muito, mas ainda ensina consideravelmente mais do que as teorias das ciências sociais – é que uma desintegração dos sistemas políticos precede as revoluções, que o sintoma revelador da desintegração é uma progressiva erosão da autoridade governamental, e que esta erosão é causada pela incapacidade do governo para funcionar adequadamente, de onde brotam as dúvidas dos cidadãos sobre a sua legitimidade. E isto que os marxistas costumavam chamar uma «situação revolucionária» - que, claro está, na maior parte dos casos não se desenvolve numa revolução.

No nosso contexto, a grave ameaça ao sistema judicial dos Estados Unidos é exatamente o caso. Lamentar «o canceroso crescimento das desobediências» não faz muito sentido a menos que se reconheça que, de há muitos anos para cá, as instituições encarregues de fazer respeitar a lei foram incapazes de pôr em vigor legislação contra o tráfico de droga, os assaltos e os roubos. Considerando que as probabilidades de que os criminosos dessas categorias nunca venham a ser apanhados são superiores a nove para um e que só um em cada cem irá para a prisão, há todas as razões para ficar surpreendido com o facto de que tais crimes não sejam piores do que são. (Segundo o relatório de 1967 da Comissão Presidencial de Execução da Lei e Administração da Justiça, «bem mais de metade de todos os crimes nunca são levados ao conhecimento da polícia» e «dos que o são, menos de um quarto origina uma detenção. Quase metade de todas as detenções acabam pela retirada das acusações.) É como se estivéssemos empenhados numa experiência nacional para descobrir quantos criminosos potenciais – ou seja, pessoas que são impedidas de cometer crimes apenas pela força dissuasora da lei – existem de facto numa dada sociedade. Os resultados podem não ser encorajadores para os que sustentam que todos os impulsos criminosos são aberrações – ou seja, impulsos de pessoas mentalmente doentes agindo sob compulsão da sua doença. A simples e bastante assustadora verdade é que, em circunstâncias de permissividade legal e social, participam num comportamento criminoso mais ultrajante pessoas que, em circunstâncias normais, talvez sonhassem com esses crimes sem nunca considerarem cometê-los de facto». *

Na sociedade de hoje, nem os potenciais violadores da lei (ou seja, criminosos não-profissionais e não-organizados) nem os cidadãos respeitadores da lei precisam de estudos elaborados para lhes dizer que os actos criminosos provavelmente – quer dizer, previsivelmente – não terão qualquer espécie de consequências legais. Ficámos a saber, com grande pena nossa que o crime organizado é menos de recear do que os delinquentes não-profissionais - que aproveito oportunidade – e a sua inteiramente justificada «ausência de preocupação com serem punidos»; e este estado de coisas não é alterado nem clarificado pela investigação da «confiança pública no processo judicial americano». Aquilo contra o que nos erguemos não é o processo judicial, mas o simples facto de que os atos criminosos não têm habitualmente qualquer espécie de consequências; não são seguidos de processes judiciais. Por outro lado, temos de nos perguntar o que aconteceria se os poderes da polícia fossem restaurados para o ponto razoável em que 60 a 70 por cento de todos crimes fossem adequadamente seguidos de prisão e julgamento. Há alguma dúvida de que isso significaria o colapso dos já desastrosamente sobrecarregados tribunais e teria consequências muito aterradoras para o igualmente sobrecarregado sistema prisional? O que é tao aterrorizador na situação atual não é o mau funcionamento do poder policial per se, mas que remediar radicalmente essa situação significaria uma catástrofe para os outros ramos do sistema judicial, igualmente importantes.

A resposta do governo a isto, e similarmente a outras degradações dos serviços públicos, tem sido invariavelmente a criação de comissões de estudo, cuja fantástica proliferação em anos recentes fez provavelmente dos Estados Unidos o país mais investigado na Terra. Não há dúvida de que as comissões, depois de gastarem muito tempo e dinheiro com o intuito de descobrir que «quanto mais pobres as pessoas, mais provável é que sofram de malnutrição» (uma pérola de sabedoria que até foi objeto de «Citação do Dia» do New York Times), fazem frequentemente recomendações razoáveis. Estas, todavia, raramente são postas em prática mas são, em vez disso, submetidas a um novo painel de investigadores. O que todas as comissões tem em comum é uma tentativa desesperada de descobrir alguma coisa sobre as «causas profundas» de seja qual for o problema – em especial se for o problema da violência – e dado que as causas mais profundas são, por definição, ocultas, o resultado final de uma equipa dessas é, com demasiada frequência, pouco mais do que hipóteses e teorias não demonstradas. O efeito concreto é que a investigação se converteu num substituto para a acção, e as «causas mais profundas» estão a cobrir as óbvias, que são frequentemente tão simples que a ninguém «sério» e «erudito» pode ser pedido que lhes dê qualquer atenção. Decerto, encontrar remédios para as insuficiências óbvias não garante a solução do problema; mas negligenciá-las significa que o problema nem sequer será adequadamente definido. A investigação converteu-se numa técnica de evasão e isto certamente não ajudou a já abalada reputação da ciência.

Dado que a desobediência e o desafio à autoridade são uma marca tão geral do nosso tempo, é tentador ver a desobediência civil como um mero caso especial. Do ponto de vista do jurista, a lei é violada pelo que participa na desobediência civil, nãoo menos do que pelo criminoso, e é compreensível que as pessoas, em especial tratando-se de advogados, suspeitem que a desobediência civil, precisamente por causa de ser exercida em público, está na raiz da variedade criminal – não obstante todas as provas e argumentos contrários, porque a prova «para demonstrar que os atos de desobediência civil... levam a... uma propenção para o crime» não é «insuficiente», mas simplesmente inexistente. Apesar de ser verdade que os movimentos radicais e, certamente, as revoluções atraem elementos criminosos, não seria correcto nem sensato igualar os dois; os criminosos são tão perigosos para os movimentos políticos como para a sociedade como um todo. Além disso, enquanto a desobediência civil pode ser considerada uma indicação de uma significativa perda de autoridade (apesar de dificilmente poder ser vista como a sua causa), a desobediência criminal não é mais do que a inevitável consequência da desastrosa erosão da competência e poder da polícia. As propostas para sondar a «mente criminosa», quer com testes de Rorschach quer através dos serviços de informações, tem um ar sinistro, mas também pertencem às técnicas de evasão. Um fluxo incessante de hipóteses sofisticadas acerca da mente – essa mais esquiva das propriedades do homem – o criminoso oculta o sólido facto de que ninguém é capaz de capturar o seu corpo, do mesmo modo que o hipotético pressuposto das «atitudes negativas latentes» dos polícias esconde o seu registo visivelmente negativo da solução de crimes .

A desobediência civil ocorre quando um significativo número de cidadãos se convence de que os canais normais da mudança já não funcionam, e as queixas não são ouvidas ou não se age quanto a elas, ou então, pelo contrário, quando o governo está prestes a mudar e embarcou e persiste em modos de acção cujas legalidade e constitucionalidade estão abertas a sérias dúvidas. Os casos são numerosos e sete anos de guerra não declarada no Vietname; a crescente influência dos serviços secretos nos assuntos públicos; ameaças abertas ou ligeiramente veladas às liberdades garantidas pela Primeira Emenda; tentativas de privar o Senado dos seus poderes constitucionais, seguidas da invasão do Camboja decidida pelo Presidente em claro desrespeito da Constituição, que exige a aprovação do congresso para iniciar uma guerra; para não mencionar a referência ainda mais assustadora do Vice-Presidente aos resistentes e dissidentes como «"abutres"... e "parasitas" [que] podemos permitir-nos apartar... da nossa sociedade sem mais arrependimento do que deveríamos sentir ao deitar fora maçãs podres de um barril» - uma referência que desafia não apenas as leis dos Estados Unidos mas também qualquer ordem legal. Por outras palavras, a desobediência civil pode ser adaptada à necessária e desejável mudança ou à necessária e desejável preservação ou restauro do status quo – à preservação de direitos garantidos pela Primeira Emenda, ou ao restauro do adequado equilíbrio de poderes no governo, que é posto em perigo pelo ramo executivo e também pelo enorme crescimento do poder federal à custa dos direitos dos estados. Em nenhum desses casos pode a desobediência civil ser considerada igual à desobediência criminal.

Há toda a diferença do mundo entre o criminoso que evita o olhar do público e o participante na desobediência civil que toma a lei nas suas próprias mãos em aberta provocação. Esta distinção entre uma violação aberta da lei, efetuada em público, e uma violação clandestina só pode ser descurada por preconceito ou má vontade. E hoje reconhecido por todos os escritores sérios que abordam o tema e é claramente a condição primordial para todas as tentativas que defendem a compatibilidade da desobediência civil com a lei e as instituições americanas de governo. Além disso, o violador comum da lei, mesmo que pertença a uma organização criminosa, age para o seu próprio benefício, apenas; recusa ser dominado pelo consentimento de todos os outros e cede apenas à violência das entidades que obrigam a cumprir a lei. O participante na desobediência civil, embora esteja habitualmente em desacordo com uma maioria, age em nome e para bem de um grupo; desafia a lei e as autoridades estabelecidas com o fundamento de um desacordo básico e não porque, como indivíduo, deseja criar uma excepção para si e sair impune. Se o grupo a que pertence é signiticativo em número e posição, é-se tentado a classifica-lo como membro de uma das «maiorias concorrentes» de John C. Calhoun, Ou seja, secções da população que são unânimes no seu desacordo. O termo, infelizmente, esta manchado por argumentos pró-escravatura e racistas e, em Disquisition on Government, 0nde aparece, cobre apenas interesses, não opiniões ou convicções, de minorias que se sentem ameaçadas por «maiorias dominantes». De qualquer modo, o que importa é que estamos a lidar aqui com minorias organizadas que são demasiado importantes, e não apenas em número, mas em qualidade de opinião, para serem ignoradas com segurança. Porque Calhoun tinha certamente razão quando sustentava que em questões de grande importância nacional a «concorrência ou aquiescência das várias porções da comunidade» são um pré-requisito do governo constitucional. Pensar nas minorias desobedientes como rebeldes e traidoras vai contra a letra e o espírito de uma Constituição cujos criadores eram especialmente sensíveis aos perigos de uma incontida regra da maioria.

De todos os meios que os participantes na desobediência civil podem usar na linha da persuasão e da dramatização das questões, o único meio que pode justificar que se lhes chame «rebeldes» é a violência. Por isso, a segunda característica necessária geralmente aceite da desobediência civil é a não-violência, e decorre daí que «a desobediência civil não é revolução. (...) O participante na desobediência civil aceita  quadro da autoridade estabelecida e a legitimidade geral do sistema de leis, ao passo que o revolucionário os rejeita». Esta segunda distinção entre o revolucionário e o que desobedece, tão plausível à primeira vista, revela-se mais difícil de sustentar do que a distinção entre o participante na desobediência civil e o criminoso. O primeiro partilha com o revolucionário o desejo «de mudar o mundo», e a mudança que quer realizar pode ser drástica, de facto – como, por exemplo, no caso de Gandhi, que é sempre citado, neste contexto, como o grande exemplo da não-violência. (Será que Gandhi aceitava o «quadro da autoridade estabelecida», que era a lei britânica na Índia? Respeitava a «legitimidade geral do sistema de leis» da colónia?)

* Exemplos horríveis desta verdade foram apresentados durame o chamado «Julgamento de Auschwitz», na Alemanha, cujas actas podem ser encontradas em Bernd Naumann, Auschwitz, Nova Iorque, 1966. Os acusados eram «um mero punhado de casos abomináveis», selecionados entre cerca de 2000 homens da SS em serviço nos campos entre 1940 e 1945. Todos eles foram acusados de homicídio, o único crime que em 1963, quando o julgamento começou, não estava coberto pela prescrição. Auschwitz foi o campo do extermínio sistemático, mas as atrocidades que quase todos os acusados tinham cometido nada tinham que ver com a ordem para a «solução final»; os seus crimes eram puníveis pela lei nazi e em alguns cases, raros, os perpetradores foram de facto punidos pelo governo nazi. Esses acusados não tinham sido especialmente selecionados para prestar serviço num campo de extermínio; a razão por que tinham vindo para Auschwitz era apenas não serem aptos para o serviço militar. Quase nenhum deles tinha registo criminal de qualquer espécie, e nenhum tinha uma história de sadismo e homicídio. Antes de terem vindo para Auschwitz e durante os dezoito anos que tinham vivido na Alemanha do pós-guerra, tinham sido cidadãos respeitáveis e respeitados, indistinguíveis dos seus vizinhos.

("Desobediência Civil", Hannah Arendt. Relógio D’Água, 2017)