sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

leste e oeste

 

leste e oeste

Giorgio Agamben

A história dos homens tem sempre uma assinatura teológica e pode, portanto, ser instrutivo olhar para o actual conflito entre o Oriente e o Ocidente na perspectiva do cisma que separou a Igreja Romana da Ortodoxa há muitos séculos. Como se sabe, a base do cisma foi a questão do Filioque: o credo romano afirmava que o Espírito Santo procedia do Pai e do Filho (ex Patre Filioque), enquanto para a Igreja Ortodoxa o Espírito Santo procedia apenas do Pai.

Se traduzirmos a linguagem teológica em termos históricos concretos, isto significa - uma vez que o Filho encarna a economia divina da salvação ao nível da história terrena - que para o Oriente Ortodoxo Grego a vida espiritual dos crentes não estava directamente implicada no plano de economia histórica. A negação do Filioque separa o mundo celestial do terreno, a teologia da economia histórica. E isto - sem prejuízo de outros factores - pode explicar porque é que o Ocidente - especialmente na sua versão protestante - presta atenção ao desenvolvimento da economia histórica que é completamente desconhecida do mundo ortodoxo grego, que parece ignorar a revolução industrial e permanecer ancorados em modelos feudais. Traduzido em termos teológicos, o primado marxista da economia sobre a vida espiritual também corresponde perfeitamente à ligação do Espírito Santo com o Filho que define o Credo do Ocidente.

Ainda mais repleta de consequências é a inversão que ocorre com a Revolução Russa, quando o modelo ocidental da primazia da economia histórica é enxertado à força num mundo espiritualmente completamente despreparado para o receber. Mais uma vez, nesta perspectiva, o fracasso do modelo soviético e a evidente reproposta de motivos teológicos na Rússia pós-soviética podem ser explicados como o retorno da independência removida do Espírito Santo, que redescobre aquela posição central que o comunista regime não conseguiu apagar.

Parece tanto mais absurdo que - enquanto nas últimas décadas as Igrejas Romana e Ortodoxa se aproximavam - o Ocidente, não por acaso sob a liderança de um país protestante, propõe agora - mais ou menos inconscientemente em nome do Filioque - uma guerra sem quartel com a Rússia Ortodoxa.

20 de dezembro de 2023

quodlibet

Finis Itália

Tem-se falado do fim da Europa, se não do Ocidente, como o acontecimento que marca dramaticamente a era em que vivemos. Mas se há um país na Europa onde alguns dados permitem certificar a data do fim com sóbria precisão, é a Itália. Os dados em questão são dados demográficos. Todos sabemos que o nosso país vive há décadas um declínio demográfico que o coloca como o país europeu com a taxa de natalidade mais baixa. Mas poucos percebem que isto significa que a continuação deste declínio levaria o povo italiano à extinção em apenas três gerações.
É no mínimo estranho que continuemos a preocupar-nos com os problemas económicos, políticos e culturais sem ter em conta este facto, que anula todos eles. Evidentemente, assim como não é fácil imaginar a própria morte, também não se quer imaginar uma situação em que não haja mais italianos. Não me refiro aos cidadãos do Estado italiano, que não existia há pouco mais de um século e cujo desaparecimento, em última análise, não me preocupa tanto. Pelo contrário, entristece-me a possibilidade perfeitamente real de já não haver ninguém que fale italiano, de a língua italiana se tornar uma língua morta. Isto é, que ninguém mais pode ler a poesia de Dante como uma linguagem viva, como Primo Levi a leu ao seu companheiro Pikolo em Auschwitz. Isto entristece-me infinitamente mais do que o desaparecimento da República Italiana, que afinal fez tudo o que estava ao seu alcance para levar a esse fim. Talvez permaneçam as cidades maravilhosas, talvez permaneçam as obras de arte: não haverá mais o “belo país onde soa o sim”.

11 de dezembro de 2023
Giorgio Agamben

quodlibet

Em memória de Toni Negri

Duas noites antes de chegar até mim a notícia da morte de Antonio - Toni - Negri, sonhei muito com ele e sua presença era tão viva que, ao acordar, senti a necessidade de lhe escrever. Minha mensagem para o e-mail antigo que eu não usava há anos não conseguiu chegar até ele. Quando contei sobre o sonho, uma amiga me disse: “ele queria se despedir de você antes de partir”. Mesmo nas divergências dos nossos pensamentos, que se tornaram cada vez mais evidentes ao longo do tempo, algo nos prendia obstinadamente, algo que tinha a ver sobretudo com a sua vitalidade generosa, inquieta, meticulosa, que senti imediatamente quando o conheci pela primeira vez em Paris em 1987.

Com a morte de Toni sinto que falta alguma coisa - dentro de mim, debaixo dos meus pés, talvez sobretudo atrás de mim, como se uma parte do meu passado de repente se tornasse presente e se dirigisse a mim com saudades. E esta falta não diz respeito apenas a mim, mas a todo o nosso país e à sua história, cada vez mais falsa, cada vez mais ignorante, como mostram os obituários odiosos, que só lembram o mau professor e não o mau e atroz país em que ele lhe foi dado viver e que ele tentou, talvez erroneamente, melhorar. Porque Toni, partindo da tradição marxista a que pertencia e que talvez o tenha condicionado e traído, certamente tentou se medir com o destino da Itália e do mundo na fase extrema do capitalismo que atravessamos rumo sabe-se lá que infeliz destino. E é isso que aqueles que continuam a ultrajar a sua memória não ousam nem serão capazes de fazer.

18 de dezembro de 2023
Giorgio Agamben

quodlibet

terça-feira, 19 de dezembro de 2023

O último Natal da seita

  

Crónica escrita em Dezembro de 2014, antes das eleições de 2015 que, embora ganhas pela coligação pafiosa, permitiram a criação do governo da geringonça 1.0 e à expulsão do inenarrável Coelho, que agora vem bolsar umas vulgaridades quanto às razões da demissão de António Costa.

O último Natal da seita 

Está-se em aberta campanha eleitoral, o “nosso” primeiro veio dizer à populaça que o “período adverso” já passou, que os “sacrifícios foram muitos” mas valeram a pena já que a “saída foi limpa” e que a economia está a recuperar e não haverá “nuvens negras” no próximo ano graças à política do governo nestes três últimos anos; no outro partido do bloco central da governação e dos negócios, Costa de Lisboa desdobra-se em movimentações tendo tardado a visitar o antigo chefe, em prisão preventiva até que o juiz arranje material suficiente para o condenar, no receio de contaminação e eventual prejuízo eleitoral do PS, bem como evitando comprometer-se com medidas concretas quando governo. A demagogia corre emparelhada com a cobardia política.

Orçamento de Estado e aumento da dívida

O senhor Coelho sacode a água do capote quanto à solução avançada para a fraude e falência do BES (símbolo máximo da capitalismo nacional) e não explica, atendendo às suas palavras de “desanuviamento das nuvens negras” em 2015, por que carga de água que amanhã, dia 1 de Janeiro, primeiro dia do novo ano de 2015, o povo português terá combustíveis, luz e telecomunicações mias caros, bens essenciais para pessoas e pequenas empresas, pelas quais o senhor Coelho diz ralar-se tanto com a sua sobrevivência. Claro que nem será necessário referir a continuação da brutal carga fiscal sobre os trabalhadores e dos cortes salariais e congelação das carreiras dos trabalhadores da função pública ou do esbulho das reformas dos aposentados.

O Orçamento de Estado para 2015 diz bem do que vai ser a vida dos trabalhadores portugueses, indubitavelmente mais nuvens negras, ou seja, continua o esbulho de quem trabalha e o saque do que resta ainda de empresas públicas lucrativas, embora se proceda a uma gestão que as apresente como irremediavelmente falidas. A diminuição da despesa continua a ser feita no sector social do estado, menos educação, menos saúde, menos segurança social, enquanto os negócios com os amigos continuam, o aumento da despesa, são paradigmáticos os 765,9 milhões de euros (+32% em relação a 2014 e mais 82% do que em 2013) em “estudos, pareceres e outros trabalhos especializados”, ganham os escritórios de advogados, gabinetes de arquitetos e outras assessorias; bem como se mantêm as rendas das PPP's … e o serviço da dívida pública que levará todos os anos mais de 8 mil milhões de euros, se até 2020 o governo irá receber 27 800 milhões de euros de fundos europeus, o povo português irá pagar, no mesmo período de tempo, 60 mil milhões.

A dívida pública, que aumentou 40% nos últimos 3 anos corre a par do desemprego que continuará a crescer, nunca tendo parado, ao contrário do propalado pelo governo, só professores foram mais de 30 mil que foram atirados para o desemprego irremediável em mesmo período de tempo. Mais depressa do que a pública corre a dívida privada, especialmente a das empresas, mas desta ninguém fala. No actual Orçamento, segundo o Tribunal de Contas, não foram incluídos 500 milhões de euros em benefícios fiscais das empresas, como são inúmeras as fugas ao fisco (estas legais) e os sacos azuis escondidos nos Orçamentos do Estado!

A falsa alternativa do PS

O PS irá prosseguir a mesma política de roubo ao povo português. A absolvição dos líderes parlamentares e deputados da Assembleia Legislativa da Madeira na restituição de 6,4 milhões de euros das subvenções parlamentares desviados para as contas dos partidos (entre 2006 e 2014, cerca de 40 milhões de euros foram indevidamente recebidos e utilizados pelos partidos na Madeira, tendo mais de metade desse valor entrado nos cofres do PSD) é também boa expressão como os dinheiros públicos são gastos – e não venham depois queixar-se da descredibilização do regime.

Enquanto descem na UE os custos das telecomunicações, em Portugal sobem; da mesma maneira acontece com os combustíveis, numa altura em que nunca esteve tão baixo o preço do crude por força da guerra económica travada pelos EUA contra a Rússia, agora devido ao aumento dos impostos. Aumento este que irá incidir sobre todos os bens, tornando falácia a conversa da inflação igual a zero; com o acrescento do governo não cessar de inventar formas mirabolantes, como acontece com o imposto verde, de esvaziar ainda mais os bolsos dos trabalhadores, mesmo quando incide sobre as empresas, o pagante é sempre o pobre do dito “consumidor final”.

Se o ano de 2014 foi de aumento do preço das telecomunicações, e a subida foi maior do que a inflação, então 2015 será a continuação possivelmente em maior grau. A estratégia é a mesma para iludir a realidade, acenam-se com pequenas vantagens nas deduções em sede do IRS, mas os impostos marcam sempre a política de um qualquer governo. O PS no governo será a evolução na continuidade, possivelmente para pior, e, ao contrário do propagandeado, com PS ou sem PS, 2015 não será melhor do que 2014.

Faltará pouco para mais outra mensagem de optimismo, desta feita pela boca do senhor Silva de Boliqueime, corresponsável pela situação de miséria da larga maioria do povo português, outro exercício de demagogia e de hipocrisia; enquanto isso, assistimos a um PS preparando-se para tomar conta da governação, ou seja, do saque do povo português no interesse do grande capital financeiro internacional e dos seus agentes locais, mantendo a actual coligação até Outubro. Ao mesmo tempo que a CGTP vai convocando e desconvocando as greves segundo a agenda do PCP, numa guerrilha que acaba por desgastar não o governo mas os próprios trabalhadores; o bom exemplo encontra-se na greve dos trabalhadores da TAP que assustou o governo mas não irá impedir a privatização de uma empresa crucial para a economia e a soberania do país.

A privatização da TAP e a luta dos trabalhadores

O que se passou com a greve dos trabalhadores da TAP diz bem da qualidade dos dirigentes sindicais de serviço, seja de uma ou de outra central sindical, muita farronca no início, decretam uma greve de vários dias para o período sensível do fim de ano, quando a transportadora tem mais movimento pela visita de emigrantes e turistas, sendo em princípio a pressão exercida pelos sindicatos maior, mas foram entradas de leão e saídas de sendeiro, aliás, como os sindicatos do regime nos tem habituado.

O decretar da requisição civil, ainda antes da greve acontecer e de não se saber se os serviços mínimos iriam ou não ser respeitados, foi suficiente para amedrontar os corajosos sindicalistas, mais preocupados com o tacho sindical e em cumprir a agenda política do partido a que pertencem do que defender os interesses daqueles que dizem representar. A requisição civil não deveria ter sido acatada, a luta deveria ser total e determinada sabendo-se à partida que o governo iria mostrar os dentes. Luta contra o governo e contra a ilegalidade de uma medida decretada pelo pânico e não pelo sentimento de força. Os sindicatos não só se acobardam como não conseguem fazer uma análise realista da situação.

A propaganda dos media do regime faz o trabalho de intoxicação da opinião pública dando a entender que o governo tem força e defende o tal “interesse nacional” pela não nacionalização da totalidade, pelo menos para já (serão 10 anos?!), da TAP, de molde a assegurar algum controlo por parte do estado (uma rematada mentira!). Mas, desta vez, os media corporativos não conseguiram desacreditar greve já que a questão da privatização não é da simpatia de largos sectores da classe média. O governo está no mais completo isolamento, e é com favores destes que se deve perceber a longevidade de um governo que há muito se tornou ilegítimo e passou a ser odiado pelo povo português.

Haverá alternativa?

Por outro lado, apontam-se já candidatos para as eleições presidenciais, como expediente de manter o circo mediático e assim desviar a atenção do povo eleitor. Já se apresentam dois palhaços a escrutinar: um é um verdadeiro tartufo, eterno candidato a candidato cuja missão é urdir a intriga e fazer fretes ao governo do seu partido (acusado de mentiroso compulsivo e de chulo pelo chefe de um dos clãs da famiglia Espírito Santo); o outro, é um beato que fugiu a sete pés do país quando viu que a situação estava preta; quer um quer outro dão bem a imagem do regime. Qualquer um deles farão escurecer ainda mais as nuvens que nunca deixaram de estar sobre as cabeças de todos nós.

O ano de 2015 será a continuidade, mas a descontinuidade no espírito da larga maioria dos trabalhadores e do povo português. E talvez não seja assim tão certa a capitalização do descontentamento social em termos de votos pelos partidos da putativa oposição, que vão desgastando os trabalhadores com estas greves de faz e não faz (CT e os sindicatos desconvocam a greve dos trabalhadores da STCP porque a empresa anunciou que os motoristas ameaçados de despedimento irão passar ao quadro de pessoal). Cada vez mais se impõe que sejam os trabalhadores de forma autónoma a pôr as pernas a caminho para o derrube do governo, de preferência acompanhado pelo Silva, não com pequenas greves localizadas, mas por uma greve geral nacional pelo tempo e pelas vezes que se mostrarem necessárias. Estes são os nossos votos para o novo ano de 2015.

31 de Dezembro 2014

In “Os Bárbaros” 

terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Marcelo Traficante & Costa Calimero

 

O dia em que Marcelo anunciou aceitar a demissão do nosso primeiro Costa terá sido um dos mais felizes da sua vida, todo o empenho de intriga e de boicote ao governo e, em particular, ao seu líder obteve por fim sucesso, compensando o momento frustrante de ter sentido vontade de o fazer aquando da polémica Galamba, mas que não avançou pela simples razão de que as sondagens na altura davam uma vitória folgada de novo ao PS. Foi calculista, esperou pela oportunidade; contudo, ainda estamos na dúvida se a oportunidade foi ocasional ou preparada, ou precipitada, pelo próprio PS… e pelo Costa. A demissão do Governo e a dissolução da Assembleia da República poderão revelar-se uma casca de banana onde Marcelo irá estatelar-se mais tarde.

Curioso, e é mesmo curioso, que no dia em que Costa apresenta a demissão e a Procuradora Geral da República Lucília Gago vai a Belém falar com Marcelo, a PGR abre inquérito sobre o caso estranho de duas crianças gémeas, filhas de pais brasileiros e sem terem nascido em Portugal, obterem no SNS, e não no sector privado, um tratamento de 4 milhões de euros com medicamento cuja eficácia é ainda muito discutível e, como brinde, ainda receberam 4 cadeiras de rodas eléctricas e dois andarilhos, que não chegaram a levantar, no valor de cerca de 60 mil euros. Costuma dizer-se, e geralmente os factos posteriormente confirmam, que em política nada é ocasional, se aconteceu é porque foi organizado e previsto.

A PGR abriu inquérito sobre desconhecidos, com certeza que será um inquérito muito à semelhança do inquérito, feito no tempo da sua antecessora, sobre a corrupção dos submarinos, tendo concluído que em Portugal nada acontecera apesar na Alemanha se ter confirmado a corrupção activa, o que levou os seus autores para a prião, aqui tudo se terá esfumado. Será mais uma operação de branqueamento e de esquecimento este caso de Marcelo que, no dia 2 de Novembro e ao ser questionado pelas televisões, com aquele ar de sonso e de cara de peru velho, não se coibiu de declarar que sobre assunto de gémeas brasileiras e de ter falado com o filho nada se lembrar. Parece que alzheimer ocasional e temporário é mais frequente do que parece entre a nossa elite económica e política.

Perante a demissão de Costa, do seu discurso comovente, e sob a acusação de estar a judicializar a política, Lucília Gago, que foi nomeada por Marcelo sob proposta de Costa, entendeu fazer o seu papel de vítima, afirmando que não se sentia responsável pela demissão do primeiro-ministro, indo mais longe ao denunciar os ataques sobre o Ministério Público com o objectivo de o "menorizar, descredibilizar ou destruir". Será mais um caso para se dizer que quem não quer ser lobo não lhe deve vestir a pele. Faltará saber, como já aventamos, se estamos a assistir a um incidente resultante do apodrecimento da democracia parlamentar, como aconteceu por exemplo na Itália, ou tudo isto não passará de uma farsa montada para o PS consolidar o seu poder em governo futuro e destruir politicamente Marcelo. Muito provavelmente, só no fim se saberá.

Esta hipótese atrás levantada não é de todo disparatada, conhecendo-se os artistas intervenientes, especialistas exímios na dissimulação e na intriga. Podemos lembrar o golpe de Pedro Sánchez, na vizinha Espanha, que demitiu-se obrigando a eleições legislativas antecipadas porque sabia antecipadamente que fosse para eleições em Dezembro seria definitivamente escovado do governo, assim, antecipando-as ganhou fôlego para uma nova maioria mais consistente, embora as não viesse a ganhar, como na realidade veio a acontecer. São jogadas arriscadas que nem sempre correm bem, mas até agora o sucesso tem dominado. E a saída a tempo de Pedro Nuno Santos, apontado como o sucessor “natural” de Costa, e aproveitando o incidente da localização do aeroporto, parece ter sido de suspeita oportunidade, foi claro indício que a mudança seria para breve e não para o longínquo 2026.

Marcelo, que agora saltita de contentamento com o governo já demitido, teve de esperar quase um mês para se lembrar do que acontecera realmente com as gémeas brasileiras e se o filho terá falado com ele ou não. Assim, entendeu falar ao país não na qualidade de Supremo Magistrado da Nação mas como simples cidadão Marcelo Rebelo de Sousa, que terá eventualmente falado com o outro cidadão, o dr. Nuno Rebelo de Sousa; ou seja, assistimos a mais um número de comédia de feira. Ficamos, o povo ignaro, a saber que Marcelo afinal recebeu um email do filho, isto é, de outro cidadão, sobre o caso das gémeas e que a partir daí se desencadeou uma troca de correspondência entre a Casa Civil da Presidência da República, o Governo, o filho e o Hospital de Santa Maria. Marcelo chuta para canto, se houve cunha, não foi com ele, terá sido com o governo ou outrem desconhecido. E vai mais longe, acha que o filho não terá falado com o ex-secretário Lacerda Sales, o que mais tarde se veio a saber que não é verdade.

Este processo mirabolante do tratamento milionário de dois cidadãos estrangeiros, que receberam a nacionalidade portuguesa sem ainda se saber como e em tempo recorde, coisas que não são de acessibilidade fácil a qualquer cidadão, passando à frente de muitos outros cidadãos; isto é, com claro prejuízo para terceiros, e em altura em que o SNS atravessa severas dificuldades, criadas pela política danosa do governo PS/Costa, e em hospital público onde falta material básico, como espátulas de madeira que custam uns insignificantes cêntimos, onde as urgências não funcionam em pleno porque há falta de médicos. Fica-se com a sensação de que estamos perante uma política deliberada para arruinar o serviço público de saúde, em benefício do negócio dos privados da doença, e sempre com prejuízo do povo e não da elite. Esta e os amigos, quando se trata de tratamentos caros, apesar de eficácia duvidosa, vão sempre parasitar o Estado, ou seja, os dinheiros públicos.

Relembrar que as gémeas viram chumbado o tratamento no Brasil por incrivelmente oneroso, por estarem já a ser medicadas e pelo facto de os pais serem pessoas ricas. Agora, também se ficou a saber que os pais são ricos, mas endividados e com fracas possibilidades ou vontade, não se sabe, de recuperação económica, curiosamente pertencentes ao círculo íntimo de amizades do filho de Marcelo. Notar que o tratamento em Portugal foi feito no Hospital de Santa Maria depois de verem recusado o tratamento no Hospital de Dona Estefânia, facto negado por Marcelo, e por ordem do ex-secretário da Saúde Lacerda Sales na medida em que os médicos deste último hospital deram parecer negativo ao dito tratamento. Foi uma decisão administrativa e política, ant-ética, e depois de mais de um mês é que a Ordem dos Médicos, parece que acordou da letargia, anuncia um inquérito, mais outro para arquivo, aos médicos envolvidos no processo, incluindo Lacerda Sales, que diz prestar declarações só em sede própria, ou seja, na polícia; e depois queixam-se do excesso protagonismo da justiça.

Lacerda Sales de início não se lembrava de nada, depois lá teve um flash, e a sua superior, a ex-ministra Marta Temido, também de nada se recorda e, no seu estilo lampeiro, de carapau de corrida, acrescenta que a “lei obrigava o SNS a tratar” as gémeas, ao que parece a cunha até é legal ou pelo menos supérflua; contudo, não explica por que carga de água obtiveram a nacionalidade portuguesa e passaram à frente de outras crianças em situação análoga. E, talvez pensando no seu futuro político, já que é apontada a possível candidata do PS à câmara de Lisboa, teve o desplante de vir defender o PR Marcelo. Mas não é só Temido que defende o indefensável, o PS na Assembleia da República chumbou a ida destes dois ex-responsáveis pela Saúde à casa da democracia para explicarem o imbróglio do caso do tratamento milionário das gémeas brasileiras. O actual ministro de igual modo não quer opinar sobre o assunto porque não quer “condicionar” o inquérito em curso da responsabilidade do IGAS (Inspeção Geral das Actividades em saúde). Afinal, o PS e o Governo protegem o traficante de influências Marcelo, com a própria Temido a confirmar que esta é prática habitual.

Depois de o Governo ter entrado em modo de gestão, Costa vem a terreiro televisivo fazer o seu papel de vítima, coisa que, diga-se de passagem, já vinha a fazer desde o primeiro minuto em que apresentou a demissão. Queixa-se do PR, que avaliou mal o pedido de demissão e a dissolução do Parlamento, culpa a PGR que “enxertou” o fatídico parágrafo, que é a causa única e principal da sua demissão, faz comparação com os casos de Azeredo Lopes e de Cabrita, sente-se de consciência limpa, não deve nada a ninguém, vive só do seu salário, e tem a certeza que não será condenado e nem acusado sequer, e o mais provável é o processo ser arquivo findo o inquérito. Em suma, o homem está confiante, apesar de se carpir, fazendo lembrar a figura de animação, o Calimero, que constantemente dizia: "é uma injustiça, pois é" e "abusam porque sou pequenino"! Fica claro que Costa prepara o seu futuro político e, se puder, a vingança será servida fria.

Entretanto Marcelo, no seu impulso descontrolado de hipocrisia e desfaçatez, lá vai seguindo no seu papel, não se tendo engasgado quando, no Dia Internacional Contra a Corrupção, lançou uma nota pedindo às elites política e económica mais "consciência crítica" sobre efeitos da corrupção, como se ele não pertencesse a essas mesmas elites. O nosso beato tem fé que está seguro no cargo, já que não haverá ninguém com coragem para o derrubar e que o mecanismo pelo qual esse processo seria levado a efeito será dissolvido em 15 de Janeiro de 2024. Terá já encarregado os moços de recado a fim de lavar a mancha de que não se livrará tão cedo deste acto de corrupção. Marques Mendes já veio do púlpito televisivo perorar que a “culpa é do filho do Presidente”, como o filho pudesse ter tido a mesma atitude se o pai não fosse exactamente o Presidente. E até comentadores jornalistas de “esquerda”, e lembramo-nos de um do “Diário de Notícias”, que veio desculpabilizar Marcelo pela “pequena corrupção”. Ora, se Marcelo fosse pessoa intelectualmente séria, minimamente, já tinha pedido a demissão ainda mais depressa que o Costa.

Até quando o povo português terá de aturar e sustentar toda esta corja?

Imagem: in cristinasampaio.cartoon

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

A vigarice do BPN está sempre presente

 

Vai haver eleições antecipadas pela segunda vez em pouco mais de dois anos. O dito "principal partido da oposição" tenta apresentar alternativa procurando apagar o passado de exploração sobre o povo português e de vigarices cometidas pelo bando cavaquista. Em situação de crise, convoca a múmia que, levantando-se da tumba, se empertiga e arrasta jornalistas e fotógrafos, que se acotovelam para captar o melhor registo do fóssil. Não deixa então de ser oportuno recordar a vigarice que foi toda a operação BPN, contando com a cumplicidade e a impunidade do regime. Nenhum criminoso, incluindo os que chegaram a ser julgados, cumpriu pena de prisão, e alguns ainda andam por aí a gozar com o pagode. Crónica escrita em Agosto de 2011.

O BPN e os lucros da banca portuguesa

Coitados dos cinco maiores bancos a operar em Portugal (explorar o povo português) que tiveram apenas 487,5 milhões de euros de lucros no primeiro semestre do ano em vez dos 897,4 milhões em período análogo de 2010. E coitado do BIC e do ex-ministro cavaquista Mira Amaral que foram obrigados a ficar com um banco por 40 milhões de euros. Mais coitados terão sido as seguradoras que viram crescer os seus lucros 11,2%, no mesmo período, que passaram de 143 milhões para 159 milhões de euros. E o que será de nós que temos de aturar e sustentar toda esta corja de ladrões?

Toda a operação BPN foi uma monumental e inominável vigarice, bem maior do que a do Alves dos Reis no princípio do século passado. Tramóia montada de forma consciente e intencional pela camarilha dos cavaquistas que enriqueceram através da especulação, da fraude e do roubo descarado e descabelado, contando mais do que com a conivência que foi a colaboração activa da administração “socialista” do Banco de Portugal, que fez vista grossa sobre todo a actividade fraudulenta do BPN.

Quando o banco cavaquista faliu e invocando falsamente a “contaminação do sistema bancário”, o governo socrático/rosa procedeu à sua nacionalização, mas não à nacionalização da entidade proprietária do banco, grupo SLN, permitindo que os mesmos vigaristas continuassem com os seus negócios de vento em popa. Publicamente ninguém sabe quem são os acionistas individuais do BPN e da SLN assim como nenhum deles se encontra preso ou vá ser castigado pelos crimes cometidos. Agora com a privatização entregou-se o banco de mão beijada ao angolano BIC, pertencente à camarilha corrupta que detém o poder em Luanda e dirigido pelo “reformado” cavaquista da CGD (18 mil euros de reforma mensal, a que junta a reforma de 2 mil euros por ex-deputado) e ex-ministro liquidatário da indústria nacional.

O BPN é, do princípio ao fim, um roubo programado ao povo português pelo saque feito pelos seus acionistas enquanto propriedade privada e assalto aos dinheiros públicos enquanto nacionalizado. E mais um roubo com a sua entrega a uma instituição financeira estrangeira que assim adquire um papel importante no sistema financeiro nacional (ainda não sabemos a troco de quê?), com a agravante do Estado injectar 550 milhões de euros para o capitalizar e ficar com o ónus de indemnizar metade dos trabalhadores que irá ser dispensada, mais de 800 trabalhadores. Contudo, o negócio foi apresentado como “o melhor negócio do ano”! Claro que não foi para o Estado nem para o povo português, mas para o bando de ladrões, agora associado luso-angolano.

Este “episódio” BPN e que ficará como a maior vigarice do século XXI em Portugal e da dita “democracia dos cravos” coloca em evidência duas coisas, pelo menos: na economia capitalista quem domina é o capital financeiro; o poder político é ocupado por partidos e dirigentes políticos que, para além de indisfarçavelmente reacionários apesar da cor com que se possam pintar, são serventuários e corruptos ao serviço da alta burguesia financeira, nacional ou estrangeira pouco importa na medida em que o nacionalismo desta gente é a cor do dinheiro que arrebanham em off-shores.

Os lucros despudorados de bancos e seguradoras (3,6 milhões de euros/dia) e esta vigarice do BPN (mais de 5 mil milhões e não os 2,4 milhões falados pelo governo) falam por si e esclarecem perfeitamente que os sacrifícios não são para todos os portugueses, ao contrário do que arenga um Cavaco Silva ou um primeiro-ministro que agora vai molhar os pés nas águas quentes de Agosto, e que este regime político e sistema económico capitalista não são passíveis de regeneração.

Devemos acabar com o capitalismo, antes que ele acabe connosco! (Antes disso livrarmo-nos desta corja+troika!)

Nota: ainda veremos Passos Coelho e Paulo Portas como administradores do BIC quando saírem do governo e/ou “reformados” antecipados, à semelhança de Mira Amaral, graças ao “melhor negócio do ano”!

05 de Agosto 2011 

terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Melancolia em Tempos de Perturbação

 

Joke J. Hermsen

A melancolia é um estado de espírito que nos une através de fronteiras físicas e temporais. É difícil encontrar um período histórico ou uma cultura sem vestígios de sentimentos melancólicos.  

A proliferação de depressões nas últimas décadas deve-se a muitos factores, mas entre as causas há que contar também com a dificuldade que um número crescente de pessoas sente para fazer face a uma perda. A que se deve esta tendência? Terá que ver com o alto nível de bem-estar a que nos acostumámos? Terá aqui influência a individualização da sociedade? Haverá menos lugar para sentimentos ambivalentes porque queremos sentir-nos continuamente felizes? Abandonámos os meios que utilizávamos para enfrentar as nossas perdas e ajudar o próximo a superar as suas — como a reflexão, a serenidade, o sentido de pertença a um grupo, a arte e a criatividade —, que são precisamente as ferramentas necessárias para transformar a dor de uma perda numa melancolia de muitas tonalidades?

Ao longo do século XX, a melancolia foi sendo progressivamente substituída pelo termo médico «depressão», e, tal como aconteceu na Idade Média, perdemos de vista a dualidades dos estados de espírito sombrios e, em concreto, o lado positivo dos mesmos. A depressão é uma doença mental que temos de combater com fármacos. Na linguagem comum e na cultura, a palavra «melancolia» continua a existir. O facto de a ciência declarar como inútil para os seus fins um termo que continua muito vivo na sociedade diz muito acerca do paradigma científico deste momento. Investigadoras como Johannisson, Appignanesi e Dehue são da opinião que o paradigma psiquiátrico adquiriu tons marcadamente «neurobiológicos» nas últimas décadas. Esta tendência pressupõe que os transtornos anímicos sejam vistos segundo o chamado «modelo de entidades», ou seja, como afeções isoladas ou «entidades». Cada vez se tem menos em conta fatores como a trajetória de vida da pessoa, as experiências pessoais e as circunstâncias sociais. A depressão é entendida como uma doença mental e combate-se com medicamentos que modificam os níveis de neurotransmissores, como a serotonina e a noradrenalina. De acordo com o paradigma atual, a causa da depressão encontra-se num nível demasiado baixo dessas substâncias. No entanto, segundo Dehue, que analisou numerosos estudos internacionais sobre o efeito dos antidepressivos, a eficácia destes fármacos está a ser consideravelmente exagerada e deve-se, em muitos casos, a um efeito placebo. A prescrição de comprimidos contra a depressão em grande escala beneficia sobretudo a indústria farmacêutica.

Segundo Karin Johannisson, o facto de se ter esbatido a diferença entre melancolia e depressão não se deve unicamente à medicalização do problema, mas também à ideologia vigente, de culto ao mercado livre. O sujeito deprimido não encaixa no ideal imposto pelo neoliberalismo do Homo economicus exultante, que vive para o seu trabalho, e é objeto das criticas de otium e preguiça que recebia o homem ocioso na Idade Média. Na sociedade capitalista atual, não se gosta que alguém questione a fé cega em Mamon, o deus do dinheiro que nos trará a felicidade. De um ponto de vista económico, não se toleram as condutas divergentes ou improdutivas, porque todos têm de contribuir de forma ativa para a economia, como conclui Dehue em A Epidemia das Depressões. Tudo parece indicar, aliás, que a mentalidade de mercado baseada na maximização dos benefícios teve as suas consequências no âmbito da medicina, onde tanto as administrações públicas como as companhias de seguros impuseram cortes que afetam sobretudo as sessões terapêuticas e outros tratamentos que exigem demasiado tempo, o que explica, em parte, que os médicos se tenham deixado seduzir pelos comprimidos da indústria farmacêutica.

É relevante que precisamente o Geneesmiddelenbulletin1, em 2016, aquando do seu quinquagésimo aniversário, tenha convidado diferentes conferencistas a refletir sobre os derivados do uso de psicofármacos e sobre a influência da indústria farmacêutica na saúde das pessoas. Para além da Trudy Dehue, entre os conferencistas encontrava-se o professor catedrático dinamarquês Peter Gøtzsche, que publicou um estudo abrangente sobre os efeitos secundários dos antidepressivos, e o psiquiatra norte-americano Allen Frances, que denuncia a medicalização das atitudes divergentes no DSM-5. «Lamentavelmente, os psiquiatras não picaram o ponto», escreveu o jornalista Karel Berkhout na sua crónica no NRC Hundelsblad. «A Associação Holandesa de Psiquiatria não aceitou o convite para assistir ao evento porque, segundo o seu presidente, os conferencistas eram «críticos notórios» da psiquiatria e «não havia espaço suficiente para uma abordagem positiva».» Este desencontro não augura nada de bom para o debate sobre o tratamento adequado da depressão, nem para um diálogo sério sobre os efeitos primários e secundários dos psicofármacos, mas demonstra, sobretudo, que estamos muito longe de alcançar um consenso sobre a forma de entender e tratar a depressão e a melancolia.

Seja como for, haverá que criar de novo espaços para a deceção, o medo e a tristeza na nossa sociedade, fortemente medicalizada e comercializada, para aprendermos a encarar as perdas e não nos deixarmos arrastar por sentimentos sombrios. Para isso, talvez possamos encontrar inspiração noutras culturas, onde a melancolia ainda é considerada como mais um dos elementos da condição humana. Aliás, é importante observar a questão de um ponto de vista cultural mais amplo, visto que a melancolia não é um estado de espírito exclusivo dos homens ocidentais brancos com rasgos de genialidade, mas constitui uma parte importante da nossa condição e, como tal, oferece a possibilidade de nos compreendermos melhor uns aos outros.

1 Literalmente, «B0letim de Medicamentos», revista mensal publicada nos Países Baixos pela fundação homónima. (N. de T.)

(do capítulo Luto e Melancolia – “Melancolia em Tempos de Perturbação”, Joke J. Hermsen. Quetzal, 2022)