terça-feira, 5 de maio de 2020

A Calamidade, o Costa e o Marcelo



«A criação voluntária de um estado de emergência permanente (mesmo se eventualmente não declarado no sentido técnico) tornou-se, desde então*, uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, mesmo dos chamados democráticos. Perante a progressão imparável daquela a que se chama uma «guerra civil mundial»**, o estado de excepção tende cada vez mais a tornar-se o paradigma de governo dominante na política contemporânea»
Giorgio Agamben 
in “Estado de Excepção”, 2003

A seguir ao estado de emergência, que inevitavelmente se irá repetir e transformar-se em nova normalidade, segue-se o estado de calamidade pública, que deveria ter sido decretado em vez do de emergência só que não dava para suspender os direitos e liberdades dos trabalhadores, por imposição menos do patronato do que pelo medo das consequências de se manter ad aeternum o estado de prisão domiciliário dos portugueses em termos de conflitualidade social.

Após os chefes da direita tradicional terem criticado a realização do 1º de Maio com pessoas presentes na rua pela CGTP, a central sindical oficiosa do regime, uma “pouca-vergonha” e uma “falta de respeito”, pela perda de autoridade de quem manda, o PR Marcelo, tal como o escorpião da história, não conseguiu conter a sua verdadeira natureza e de lá veio a ferroada, para não dizer coice, de que estava a contar com uma “cerimónia mais simbólica, como a do 25 de Abril na Assembleia da República, com “menos de 100 pessoas”, como os sindicalistas estivessem em espaço fechado. Para a burguesia o 25 de Abril não passa de uma data perdida na memória, que nem interessa trazer muito à baila pelo perigo de revolução que poderia ter ocorrido com os trabalhadores na rua a exigir mais do que uma simples mudança de figurões, e da mesma maneira quer que o 1º de Maio, dia de luta do proletariado, não seja mais do que um acto simbólico ou uma romaria, coisa de que a CGTP não tem fugido muito. A frustração presidencial desabafada e um pouco retardada correspondeu ao desejo e necessidade de se dirigir ao eleitorado mais conservador, pouco atreito a festividades vermelhas, e amaciar mais uma vez o pelo à Igreja Católica.

Aliás, uma estratégia semelhante ao do primeiro-ministro Costa do PS que, tendo começado por atirar o reinício da austeridade sobre os trabalhadores mais pobres e precários, os que na sua maioria não votam PS e nem votem sequer, e agora faz finca pé que as aulas recomecem para os alunos que têm exames à porta para acesso no ensino superior, filhos da classe média e clientes dos colégios privados onde vão vão comprar a nota, vai tentando gerir a crise económica/pandémica conciliando gregos e troianos, como é do seu timbre. Fechou os olhos à realização do 1º de Maio na rua pela CGTP, com a deslocação de pessoas de outros concelhos, quando isso estava interdito, mantendo assim o namoro com o PCP e BE e respectivos eleitorados, ao mesmo tempo, tenta satisfazer os patrões, com especial incidência os grandes grupos económicos, jamais deixando de olhar para as sondagens (“a gestão da pandemia da Covid-19 fez disparar a popularidade de António Costa entre os portugueses”, diz a imprensa/propaganda) a pensar em possíveis eleições antecipadas para o ano que vem a fim de obter a tão almejada e fugidia maioria absoluta. Enquanto esta não vem, o estado de emergência dará sempre para governar por decreto, sem precisar de maioria no Parlamento, porque este diz sempre ámen.

Não é inocente nem casual o anúncio feito pela ministra da Saúde, em modo moço de recados, de que o evento de Fátima de 13 de Maio se poderia realizar desde que “respeitadas as regras sanitárias”, o que terá muito “surpreendido” as reverendíssimas autoridades eclesiásticas católicas do país, que logo se comprometeram a actuar no mais restrito preceito pelas regras dimanadas pelo governo. É para se dizer que tão queridos que eles são!, até parece que governo e ICAR não actuam com conhecimento prévio e que a aparente compensação à Igreja pela realização do 1º de Maio pelo CGTP não era já ponto assente. Costa com esta putativa benesse apenas se limita a fazer pela vida em próximas eleições legislativas e, concomitante, carreira política pessoal. Se a CGTP veio para a rua, mui respeitosa, como também é o seu selo, fez muito bem, porque se o não fizesse ficaria mais do que evidente o seu conluio com o governo PS e lá se iria o seu capital de credibilidade perante os trabalhadores; e uma central sindical incapaz de mobilizar os trabalhadores nem que seja para a paz social, que é o que mais importa neste caso, é imprestável, completamente descartável pela burguesia, e também se iriam os tachos de burocratas sindicais da maioria dos seus dirigentes: ir trabalhar aos sessenta e tal anos é uma grande chatice, que o diga o Ti'Arménio!

Marcelo e Costa estão bem um para o outro, ambos defendem o mesmo, esta economia de mercado - que a própria CGTP não põe em causa, tornando-se cada vez mais nauseabundos o seu reformismo e pactuação com um regime a cair de podre -, e obrigar os trabalhadores a pagar com imenso suor e sangue a crise do capitalismo, nacional e europeu. Marcelo e Costa divergem quanto muito no tom da forma e do tempo como esse objectivo deverá ser atingido e ambos fazem pela vida. Os dois dão muitos abraços e beijinhos, um ao outro, quando se trata de defender a estabilidade política e a não conflitualidade social, como sublinhou Marcelo aquando da surpresa pela manifestação da CGTP; beliscam-se e arranham-se quando os interesses pessoais ou da tribo porventura colidem. Marcelo faz questão de se assumir, e disso faz alarde, como porta-voz e defensor por excelência da burguesia nacional e dos seus interesses, não deixando de frisar o órgão-central da alt-right portuguesa, o já incontornável “Observador”, que “quase 20% do PIB passou por Belém em mês meio”, desde “banqueiros, gestores e empresários” em mais de 40 encontros, ouvindo-os “falar da crise” e também fazer pedidos. O que não é para admiração porque serão estes que lhe pagarão as despesas da reeleição para o ano e que, desta vez e ao contrário do que tem sido habitual, será mais bem complicada do que a eleição na primeira vez.

A estafa de tanta reunião, e com a agravante de se conter nos beijos, afectos e selfies, Marcelo teve que desabafar, coisa que lhe acontece frequentemente, de que a pandemia da Covid-19 “está a ser um desafio enorme para a nossa (a deles) economia” e que “a economia não fechou portas, há que produzir (os trabalhadores), há que exportar e há que trabalhar (os trabalhadores)", reafirmando um modelo económico que acabou de mostrar que está falido, mais do que isso, moribundo. E mais disse: “vai ser um desafio para a nossa maneira de viver”, referindo-se mais ao povo português do que propriamente à classe que representa, reafirmando as palavras anteriores do Costa que "daqui para à frente nada será igual até que seja encontrada uma vacina" para o coronavírus. Ou seja, a pandemia está a ser um bom álibi, embora de garantia duvidosa, para reforçar a exploração dos trabalhadores e impedir que estes se mobilizem em lutas terrivelmente assustadoras pelo perigo de estas conduzirem à expropriação dos principais meios de produção e de distribuição e à mudança do regime político. A burguesia nacional e o seu comité de negócios, governo PS/Costa, não sabem ao certo de quem devem ter mais medo: se do povo que se pode revoltar caso o confinamento se mantenha indefinidamente, se o confinamento da economia a mais do que a conta torne a dita recuperação económica simplesmente inviável... e lá se vai a taxa de lucro!

Em qualquer daquelas hipóteses a burguesia teme pelo futuro, com ou sem União Europeia. As medidas do governo que tanta satisfação estão a dar ao Costa, em termos de popularidade, poderão ter o condão de fazer precipitar o que ele tanto quer esconjurar. A revolução está sempre ao virar da esquina, basta uma faúlha para incendiar a floresta, e não é, para quem a faz, um convite para jantar.

*Promulgação do “Decreto para a protecção do povo e do Estado” em 28 de Fevereiro de 1933, também conhecido por Reichstagsbrandverordnung;
**O combate à Covid-19 já foi declarado como «guerra mundial».

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