«A criação voluntária de
um estado de emergência permanente (mesmo se eventualmente não
declarado no sentido técnico) tornou-se, desde então*, uma das
práticas essenciais dos Estados contemporâneos, mesmo dos chamados
democráticos. Perante a progressão imparável daquela a que se
chama uma «guerra civil mundial»**, o estado de excepção tende
cada vez mais a tornar-se o paradigma de governo dominante na
política contemporânea»
Giorgio Agamben in “Estado de Excepção”, 2003
Giorgio Agamben in “Estado de Excepção”, 2003
A
seguir ao estado de emergência, que inevitavelmente se irá repetir
e transformar-se em nova normalidade, segue-se o estado de calamidade
pública, que deveria ter sido decretado em vez do de emergência só
que não dava para suspender os direitos e liberdades dos
trabalhadores, por imposição menos do patronato do que pelo medo
das consequências de se manter ad aeternum o estado de prisão
domiciliário dos portugueses em termos de conflitualidade social.
Após
os chefes da direita tradicional terem criticado a realização do 1º
de Maio com pessoas presentes na rua pela CGTP, a central sindical
oficiosa do regime, uma “pouca-vergonha” e uma “falta de
respeito”, pela perda de autoridade de quem manda, o PR Marcelo,
tal como o escorpião da história, não conseguiu conter a sua
verdadeira natureza e de lá veio a ferroada, para não dizer coice,
de que estava a contar com uma “cerimónia mais simbólica, como a
do 25 de Abril na Assembleia da República, com “menos de 100
pessoas”, como os sindicalistas estivessem em espaço fechado. Para
a burguesia o 25 de Abril não passa de uma data perdida na memória,
que nem interessa trazer muito à baila pelo perigo de revolução
que poderia ter ocorrido com os trabalhadores na rua a exigir mais do
que uma simples mudança de figurões, e da mesma maneira quer que o
1º de Maio, dia de luta do proletariado, não seja mais do que um
acto simbólico ou uma romaria, coisa de que a CGTP não tem fugido
muito. A frustração presidencial desabafada e um pouco retardada
correspondeu ao desejo e necessidade de se dirigir ao eleitorado mais
conservador, pouco atreito a festividades vermelhas, e amaciar mais
uma vez o pelo à Igreja Católica.
Aliás,
uma estratégia semelhante ao do primeiro-ministro Costa do PS que,
tendo começado por atirar o reinício da austeridade sobre os
trabalhadores mais pobres e precários, os que na sua maioria não
votam PS e nem votem sequer, e agora faz finca pé que as aulas
recomecem para os alunos que têm exames à porta para acesso no
ensino superior, filhos da classe média e clientes dos colégios
privados onde vão vão comprar a nota, vai tentando gerir a crise
económica/pandémica conciliando gregos e troianos, como é do seu
timbre. Fechou os olhos à realização do 1º de Maio na rua pela
CGTP, com a deslocação de pessoas de outros concelhos, quando isso
estava interdito, mantendo assim o namoro com o PCP e BE e
respectivos eleitorados, ao mesmo tempo, tenta satisfazer os patrões,
com especial incidência os grandes grupos económicos, jamais
deixando de olhar para as sondagens (“a gestão da pandemia da
Covid-19 fez disparar a popularidade de António Costa entre os
portugueses”, diz a imprensa/propaganda) a pensar em possíveis
eleições antecipadas para o ano que vem a fim de obter a tão
almejada e fugidia maioria absoluta. Enquanto esta não vem, o estado
de emergência dará sempre para governar por decreto, sem precisar
de maioria no Parlamento, porque este diz sempre ámen.
Não
é inocente nem casual o anúncio feito pela ministra da Saúde, em
modo moço de recados, de que o evento de Fátima de 13 de Maio se
poderia realizar desde que “respeitadas as regras sanitárias”, o
que terá muito “surpreendido” as reverendíssimas autoridades
eclesiásticas católicas do país, que logo se comprometeram a
actuar no mais restrito preceito pelas regras dimanadas pelo governo.
É para se dizer que tão queridos que eles são!, até parece que
governo e ICAR não actuam com conhecimento prévio e que a aparente
compensação à Igreja pela realização do 1º de Maio pelo CGTP
não era já ponto assente. Costa com esta putativa benesse apenas se
limita a fazer pela vida em próximas eleições legislativas e,
concomitante, carreira política pessoal. Se a CGTP veio para a rua,
mui respeitosa, como também é o seu selo, fez muito bem, porque se
o não fizesse ficaria mais do que evidente o seu conluio com o
governo PS e lá se iria o seu capital de credibilidade perante os
trabalhadores; e uma central sindical incapaz de mobilizar os
trabalhadores nem que seja para a paz social, que é o que mais
importa neste caso, é imprestável, completamente descartável pela
burguesia, e também se iriam os tachos de burocratas sindicais da
maioria dos seus dirigentes: ir trabalhar aos sessenta e tal anos é
uma grande chatice, que o diga o Ti'Arménio!
Marcelo
e Costa estão bem um para o outro, ambos defendem o mesmo, esta
economia de mercado - que a própria CGTP não põe em causa,
tornando-se cada vez mais nauseabundos o seu reformismo e pactuação
com um regime a cair de podre -, e obrigar os trabalhadores a pagar
com imenso suor e sangue a crise do capitalismo, nacional e europeu.
Marcelo e Costa divergem quanto muito no tom da forma e do tempo como
esse objectivo deverá ser atingido e ambos fazem pela vida. Os dois
dão muitos abraços e beijinhos, um ao outro, quando se trata de
defender a estabilidade política e a não conflitualidade social,
como sublinhou Marcelo aquando da surpresa pela manifestação da
CGTP; beliscam-se e arranham-se quando os interesses pessoais ou da
tribo porventura colidem. Marcelo faz questão de se assumir, e disso
faz alarde, como porta-voz e defensor por excelência da burguesia
nacional e dos seus interesses, não deixando de frisar o
órgão-central da alt-right portuguesa, o já incontornável
“Observador”, que “quase 20% do PIB passou por Belém em mês
meio”, desde “banqueiros, gestores e empresários” em mais de
40 encontros, ouvindo-os “falar da crise” e também fazer
pedidos. O que não é para admiração porque serão estes que lhe
pagarão as despesas da reeleição para o ano e que, desta vez e ao
contrário do que tem sido habitual, será mais bem complicada do que
a eleição na primeira vez.
A
estafa de tanta reunião, e com a agravante de se conter nos beijos,
afectos e selfies, Marcelo teve que desabafar, coisa que lhe acontece
frequentemente, de que a pandemia da Covid-19 “está a ser um
desafio enorme para a nossa (a deles) economia” e que “a economia
não fechou portas, há que produzir (os trabalhadores), há que
exportar e há que trabalhar (os trabalhadores)", reafirmando um
modelo económico que acabou de mostrar que está falido, mais do que
isso, moribundo. E mais disse: “vai ser um desafio para a nossa
maneira de viver”, referindo-se mais ao povo português do que
propriamente à classe que representa, reafirmando as palavras
anteriores do Costa que "daqui para à frente nada será igual
até que seja encontrada uma vacina" para o coronavírus. Ou
seja, a pandemia está a ser um bom álibi, embora de garantia
duvidosa, para reforçar a exploração dos trabalhadores e impedir
que estes se mobilizem em lutas terrivelmente assustadoras pelo
perigo de estas conduzirem à expropriação dos principais meios de
produção e de distribuição e à mudança do regime político. A
burguesia nacional e o seu comité de negócios, governo PS/Costa,
não sabem ao certo de quem devem ter mais medo: se do povo que se
pode revoltar caso o confinamento se mantenha indefinidamente, se o
confinamento da economia a mais do que a conta torne a dita
recuperação económica simplesmente inviável... e lá se vai a
taxa de lucro!
Em
qualquer daquelas hipóteses a burguesia teme pelo futuro, com ou sem
União Europeia. As medidas do governo que tanta satisfação estão
a dar ao Costa, em termos de popularidade, poderão ter o condão de
fazer precipitar o que ele tanto quer esconjurar. A revolução está
sempre ao virar da esquina, basta uma faúlha para incendiar a
floresta, e não é, para quem a faz, um convite para jantar.
*Promulgação
do “Decreto para a protecção do povo e do Estado” em 28 de
Fevereiro de 1933, também conhecido por Reichstagsbrandverordnung;
**O
combate à Covid-19 já foi declarado como «guerra mundial».
Nenhum comentário:
Postar um comentário