domingo, 29 de janeiro de 2023

A luta dos professores e o sindicalismo colaboracionista

  

Imagem Manuel de Almeida/LUSA/Sapo24

A degradação da escola pública, à semelhança do que acontece no SNS e na Administração Pública em geral, começa pelas condições de trabalho dos seus profissionais, a começar no salário e acabar no congelamento das carreiras e crescimento da precariedade. Natural e compreensível que a luta nas escolas facilmente tenha juntado todos aqueles que ali trabalham e que tenham sido novas organizações sindicais a agarrar nas reivindicações, bem sentidas pelos trabalhadores e sempre desprezadas pelo poder instituído, e não as velhas, já que desagastadas pela conciliação e fretes feitos aos governos – lembremo-nos do acordo feito pela Fenprof/CGTP com a ministra Lurdes Rodrigues após as heróicas lutas dos professores em 2008, ao tempo do governo Sócrates e também PS, que mais não representou que uma clara traição à classe, tendo-se mantido todos os problemas que agora os professores pretendem ver resolvidos.

Os trabalhadores foram desarmados em termos políticos e ideológicos

A situação dos professores não difere muito da dos trabalhadores da transportadora aérea, ainda, nacional, TAP, que viram o despedimento colectivo, o corte dos salários, a intensificação dos ritmos de trabalho e a degradação geral das suas condições de trabalho como a única solução para a “reestruturação” da empresa a fim de, também um dia destes, ser entregue de mão beijada a alguma grande transportadora europeia, que o ministro da Economia gostaria que fosse a espanhola Iberia, mas que tudo leva a crer que venha a ser a alemã Lufthansa, não sendo por acaso que esta reestruturação, e até pela maneira como está a ser feita, se encontra sob total controlo de Bruxelas. E a situação não difere, como dizíamos, porque à custa dos trabalhadores e com estes, por acção das suas organizações sindicais, a serem divididos e encostados à parede como não houvesse qualquer outra alternativa, como que colaborando com a sua exploração e da qual se sentem dependentes, quase um síndrome de Estocolmo, tal como refere o filósofo Byung-Chul Han: (o cidadão consumidor) Limita-se a reagir de forma passiva à política, protestando e queixando-se, do mesmo modo que o consumidor perante as mercadorias e os serviços que lhe desagradam. Os trabalhadores foram desarmados em termos políticos e ideológicos

Quando os trabalhadores tentam romper com estas grilhetas e procuram outras formas de luta, e se organizam, logo o poder se encrespa e lança os seus colaboradores habituais, jornalistas, comentadores e sindicalistas profissionais, na difamação dos trabalhadores e dos seus eventuais novos dirigentes; quando esta manobra não resulta, ou simultaneamente, lança a repressão. Como já avisáramos no início da luta dos professores, o governo PS iria lançar a repressão e que a abertura para o diálogo não passava de uma forma de empatar para desmobilização; ora, o governo PS, através do Tribunal Arbitral, acaba de decretar a obrigatoriedade de serviços mínimos para os professores, uma paródia se não fosse séria a questão. Os professores e os restantes trabalhadores das escolas não lidam com situações de vida ou de morte de seres humanos, à semelhança de médicos ou de enfermeiros, a imposição de serviços mínimos tem como objectivo intimidar e ver como reagem não só os trabalhadores como os seus dirigentes sindicais. Em resposta, realizou-se em Lisboa uma manifestação como nunca se tinha visto até agora e mais dois dias de greve total foram agendados para antes da entrada em vigor dos tais pretensos serviços mínimos. Se a medida não resultar ou porque os trabalhadores a irão recusar, todos esperamos que venha aí a requisição civil, e o governo PS ficará para a história como aquele que mais vezes lançou esta medida contra os trabalhadores em democracia pós-25 de Abril – e diz-se socialista, ora se não fosse?!

A velha oligarquia sindical

Logo que que foi conhecida a medida de serviços mínimos para as escolas, dirigentes sindicais e partidários afectos às duas centrais sindicais repudiaram a atitude do governo, contudo os seus representantes no Tribunal Arbitral foram unânimes naquela decisão, a decisão foi unânime – saliente-se. CGTP e UGT criticam por um lado, mas apoiam pelo outro, numa hipocrisia muito semelhante à dos políticos dos partidos do poder. Mas há quem não consiga esconder mais o jogo de divisão e de apoio ao governo, e Mário Nogueira, o eterno secretário-geral da Fenprof, sentiu-se obrigado a vir a terreiro afirmar que "se o novo sindicalismo passa por levar assistentes operacionais a fazer a greve, não fazemos isso"; ou seja, parece que não quere a união dos diversos sectores dos trabalhadores da escola, contrariando o slogan tão repetido de “povo unido, jamais será vencido”; assim, na prática, impedem que esta luta tenha mais força e possa vir a ter sucesso. Os dirigentes sindicais do establishment dão a entender que não desejam os problemas dos trabalhadores resolvidos, e estamos a falar de problemas muitas vezes de natureza meramente economicista, terão medo de ficar sem assunto para as sucessivas e folclóricas lutas a que nos habituaram. Foi neste sentido, aqui algum tempo, que um dirigente sindical de um sindicato nacional afecto à CGTP que nos falou sobre a estratégia seguida, a de “guerrilha”, a ideia não era ir para uma luta aberta e rápida mas manter as reivindicações em lume brando; esse sindicalista há muitos anos que estava, e ainda está, em actividade exclusiva sindical embora continue a receber o vencimento pela entidade empregadora. É uma velha oligarquia sindical.

São os sindicalistas do regime que agora também se vêem ameaçados e foi graças a essa inércia deliberada que se abriram as portas para o aparecimento de outros sindicatos, primeiro para os sindicatos da UGT, central sindical que foi fundada com os dinheiros da social-democracia alemã, Fundação Friedrich Ebert, tal como o PS, para retirar poder à CGTP, e mais recentemente para outros sindicatos que se auto-intitulam “independentes”; esperemos que o sejam em relação ao governo e ao regime políticos, porque os outros desde há muito, ou desde sempre, nunca o foram. O secretário da Fenprof, quanto a esta questão, já tinha sido claro quando o atacam de ser um sindicalista ou defender um sindicalismo ligado ao “sistema”, respondendo que tem muito orgulho nisso porque se trata do “regime democrático”; contudo, não diz que o “regime”, a que se refere, é o regime “democrático, burguês e capitalista”. O homem tem trabalhado e, ao que parece, bem, mas ao serviço dos governos que nos têm desgovernado, principalmente dos governos PS, e fica assustado, a par do ministro e do resto da nossa elite, quando há uma luta a fugir ao controlo. Greves ou lutas sem controlo das centrais sindicais do regime, denominadas de “inorgânicas” e “imprevisíveis”, são odiadas por ministros, capitalistas e seus agentes de propaganda, como se pode ver na imprensa mainstream e nas redes sociais, e os próprios trabalhadores e dirigentes fora de caixa são de imediato alcunhados de “arruaceiros”, gente perigosa que é preciso aniquilar. A luta de classes, ao contrário da opinião dos conciliadores profissionais, é mesmo uma luta entre classes… e de morte.

O contexto das lutas dos trabalhadores é um contexto de guerra

Temos de perceber em que contexto estas lutas se estão a travar. A nível interno, principalmente em situação de crise mais aguda do sistema capitalista nacional e ou de seu regime de democracia de faz de conta, é o PS que é catapultado para o poder governativo, mesmo quando não ganha as eleições, como aconteceu em 2015; mas desta vez, e contrariando até alguma expectativa, ganha com maioria absoluta; o que não agradou, como era de esperar, à concorrência. Daí a constante guerrilha travada pelos partidos da dita “oposição”, cujo diferendo com o PS está apenas e só em saber quem é que mete a mão no pote; e o pote está bem atulhado com os dinheiros do PRR; quanto a novas eleições só no fim do mandato, e esperar que o governo caia por falta de apoio parlamentar, poderão esperar sentados; então, haverá que criar factos e moer lentamente o governo. O PR Marcelo hesita em dissolver o Parlamento com base na diminuta honestidade ou fraco currículo dos ministros ou secretários de estado porque, em hipóteses de o PS voltar a ganhar as eleições com maioria absoluta, seria ele que ficaria em maus lençóis, de maneira que o governo PS/Costa será para manter. Ora, lutas deste género, que estiveram em hibernação durante tantos anos se agora ressurgirem não deixam de ser bem-vindas para enfraquecer o governo e criar algum capital para os partidos da oposição, seja de “esquerda” ou de “direita”, contudo, não devem esticar-se muito porque haverá sempre o risco de se deitar abaixo o próprio regime.

E é com o argumento do enfraquecimento do regime democrático que se agita o espantalho do fascismo, foi assim durante o PREC, em 1974 e 75, agora é o espantalho, no sentido literal do termo, do Chega e do seu chefe, para assustar a pequena-burguesia receosa de perder o seu estilo de vida. Esta gente tem andando ao colo dos órgãos da informação mainstream, financiada pelos oligarcas emergentes do regime democrático, e tem servido para retirar votos e influência ao PSD (o CDS já foi) e deixar o PS governar à vontade. Com o agitar de espantalho dividem-se os trabalhadores, e os trabalhadores da TAP foram divididos, manipulados e comprados; agora, são os pilotos da SPAC que se queixam da “falta de preparação” do ministro (homem de mão dos lóbis do lítio e do hidrogénio dito “verde”) por ter acabado a reunião de forma abrupta sem ter deixado qualquer sombra de resolução do quer que fosse destes trabalhadores que, previamente convencidos de que estão a ser os bodes expiatórios para o “emagrecimento” da empresa, ainda continuam a acreditar no Pai Natal; ou seja, que existe um mínimo de vontade por parte do governo em atender às suas revindicações, parecendo que nada aprenderam até agora, nomeadamente com os seus colgas de cabine que se deixaram comprar por umas reles migalhas de 8 milhões de euros, enquanto a CEO estrangeira irá embolsar só de bónus mais de 2 milhões de euros caso leve a bom porto o seu trabalho de limpeza dos custos, onde se incluem os trabalhadores, da transportadora aérea nacional. É sempre o resultado inevitável da inexistência de uma direcção revolucionária e clarividente por parte dos trabalhadores, são o cordeiro sacrificial.

O mantra do “não há dinheiro” (para os trabalhadores)

Há e sobra muitos milhões de euros quando se trata de fazer a guerra, e a nível externo não nos podemos abstrair de que nos encontramos em situação de pré terceira guerra mundial que, a acontecer, será inevitavelmente nuclear. Os governos PS têm sido ao longo da história os governos que aprovam os créditos de guerra e enfiam os seus países nas guerras inter-imperialistas, e o PS português não é excepção à regra. Não há dinheiro para os professores nem para o SNS, por exemplo, mas há, contudo, para a ICAR, cujo apetite insaciável de riqueza e privilégios é mais que conspícuo, 160 milhões de euros na famigerada Jornada Mundial da Juventude, embora diga que irá arcar com a metade das despesas, o que não será verdade conhecendo-se o modus operandi desta igreja ao longo dos tempos. Não há dinheiro para aumentar de forma digna os trabalhadores da administração pública em geral e dos pensionistas em particular que recebem reformas de miséria, mas há para a guerra na Ucrânia, onde já foram queimados mais de 200 milhões de euros e preparando-se o governo do PS/Costa em enviar mais equipamento militar e outro, e que não ficará por aqui.

Não há mais dinheiro, este ano, para os trabalhadores, já diz o Medina, que da suspeição de "corrupção" já não se livra, e o Centeno governador do Banco de Portugal não se engasga ao afirmar que “a zona euro não vai entrar em recessão técnica”, e por extensão, Portugal, porque as empresas portuguesas não estão endividadas como estavam em 2019 (palavras no Fórum de Davos), o que não é para admirar já que receberam a maior fatia dos 4135 milhões de euros que o governo diz ter gastado em 2022 com a pandemia, e em 2021 não terá sido muito menos. Ficamos assim a saber, mais uma vez, para que serviu a pandemia, um pretexto para recapitalizar as falidas empresas nacionais e engordar os lucros das grandes empresas estrangeiras que por cá vão enchendo o saco. Não há dinheiro para os trabalhadores que na sua maioria ganharam menos de mil euros mensais, em média, em 2022, e, nomeadamente, para os trabalhadores mais jovens, 65% dos quais receberam ainda menos que os miseráveis 1000 euros. Mas há dinheiro para suportar 1640 militares profissionais em missões internacionais em 2023, despesa que chegará a muitas dezenas de milhões de euros, para defender os interesses de grandes empresas da União Europeia, na sua tarefa de exploração e de saque, em países estrangeiros, na sua maioria em África – o velho tique de ex-potência colonial que vem sempre ao de cimo.

Sindicalismo não colaboracionista e revolucionário é necessário

Perante a situação intolerável, esperamos que não sejam só palavras o “Não nos podem calar, isto só se vê nas ditaduras”, que haja força e determinação suficientes para levar até ao fim a luta que deverá terminar, só e quando, todas as reivindicações ficarem satisfeitas e terá de ser agora. Não como refere o chefe da Fenprof que admite que “o descongelamento do tempo de serviço vá além da legislatura”, preparando, mais uma vez, o boicote à luta dos trabalhadores. Os trabalhadores da educação, e não só, não podem esperar nada por parte do PR Marcelo que, nestas questões de ameaça existencial para o regime, está unido com o governo – o S.TO.P não se engana quando diz que "se Presidente continuar com posição neutra, não é neutralidade". A força dos trabalhadores está na sua unidade, na unidade entre todos independentemente da classe profissional, unidade entre todos os trabalhadores do estado, unidade entre os trabalhadores do sector público e do sector privado, porque há reivindicações e problemas comuns e o inimigo também é o mesmo: o governo PS/Costa, instrumento dos negócios dos capitalistas, e o sistema de exploração capitalista, para quem os trabalhadores são números e uma despesa a descartar. Novos sindicatos, dirigentes aguerridos e corajosos que não se deixem corromper, um sindicalismo revolucionário, são possíveis, porque necessários. Os sindicatos devem ser independentes, mas do governo e dos patrões e dos partidos do establishment, porque a falha está em não haver entre nós um partido revolucionário que agarre em mãos, como objectivo último, o fim do capitalismo. Este é que é o cerne da questão.

terça-feira, 24 de janeiro de 2023

A técnica e o governo

 

Giorgio Agamben

Algumas das mentes mais perspicazes do século XX concordaram em identificar o desafio político de nosso tempo com a capacidade de governar o desenvolvimento tecnológico. «A questão decisiva», escreveu, «é hoje como um sistema político, seja ele qual for, pode adaptar-se à era da tecnologia. Não sei a resposta para este problema. Não estou convencido de que seja democracia." Outros comparavam o controle da tecnologia à façanha de um novo Hércules: «aqueles que conseguirem submeter a técnica que escapou a todo controle e inseri-la em uma ordem concreta terão respondido aos problemas do presente muito mais do que aqueles que com os meios de tecnologia buscam pousar na lua ou em Marte."

O fato é que os poderes que parecem guiar e usar o desenvolvimento tecnológico para seus próprios fins são, na verdade, mais ou menos inconscientemente guiados por ele. Tanto os regimes mais totalitários, como o fascismo e o bolchevismo, quanto os ditos democráticos compartilham dessa incapacidade de governar a tecnologia a tal ponto que acabam se transformando quase inadvertidamente na direção exigida pelas próprias tecnologias que pensavam estar usando. para seus próprios fins. Um cientista que deu uma nova formulação à teoria da evolução, Lodewijk Bolk, via assim na hipertrofia do desenvolvimento tecnológico um perigo mortal para a sobrevivência da espécie humana. O crescente desenvolvimento das tecnologias científicas e sociais produz, de fato, uma verdadeira inibição da vitalidade, para a qual «quanto mais a humanidade avança no caminho da tecnologia, mais perto chega do ponto fatal em que o progresso significará destruição. E certamente não é da natureza do homem parar nisso». Um exemplo instrutivo é fornecido pela tecnologia de armas, que produziu dispositivos cujo uso implica a destruição da vida na terra – portanto, também daqueles que os possuem e que, como vemos hoje, continuam ameaçando usá-los.

É possível, então, que a incapacidade de governar a tecnologia esteja inscrita no próprio conceito de «governo», ou seja, na ideia de que a política é por natureza cibernética, ou seja, a arte de «governar» (kybernes é em grego o piloto do navio) a vida dos seres humanos e suas posses. A técnica não pode ser governada porque é a própria forma da governamentalidade. O que tem sido tradicionalmente interpretado – da escolástica a Spengler – como a natureza essencialmente instrumental da tecnologia revela a natureza inerente de uma instrumentalidade em nossa concepção de política. O que é decisivo aqui é a ideia de que a ferramenta tecnológica é algo que, operando de acordo com sua própria finalidade, pode ser utilizado para as finalidades de um agente externo. Como mostra o exemplo do machado, que corta em virtude de sua agudeza, mas é usado pelo carpinteiro para fazer uma mesa, a ferramenta técnica só pode servir a um propósito alheio na medida em que atinge o seu. Isso significa, em última análise - como é evidente nos dispositivos tecnológicos mais avançados - que a técnica realiza seu próprio fim ao servir-se aparentemente de um fim alheio. No mesmo sentido, a política, entendida como oikonomia e governo, é aquela operação que realiza um fim que parece transcendê-la, mas que na realidade é imanente a ela. Política e tecnologia são identificadas, isto é, sem resíduos e um controle político da tecnologia não será possível até que tenhamos abandonado nossa concepção instrumental, isto é, governamental, da política.

2 de janeiro de 2023

quodlibet

segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

Governar “seriamente” e a estabilidade do regime

Imagem no Facebook

Com a maioria absoluta do governo esperava-se que haveria a possibilidade de se “governar seriamente este país”, era, e ainda será, a opinião de muitos portugueses, nomeadamente, os que fazem parte do que se considera a “classe média” – é mais ou menos esta a ideia generalizada que perpassa nas redes sociais, por exemplo. Esta expectativa tem sido abalada pelo surgimento, quase todas as semanas, de casos de corrupção ou de menos ética envolvendo membros do governo ou seus familiares mais directos, o que não deixa de fragilizar o governo PS/Costa e a sua imagem perante a opinião pública. Aliás, tem sido esta a tónica colocada pelos partidos da oposição e de alguns media mais ligados aos partidos da oposição ou de grupos económicos que vêm nesta pressão, em tempo de grandes obras públicas e de distribuição de fundos europeus, uma forma de obrigar o governo a ceder aos seus interesses. Mas, na realidade, e mais do que isso, trata-se da fragilização e descredibilização do próprio regime democrático burguês.

O governo e os partidos do poder temem mais as lutas dos trabalhadores (professores) do que a corrupção endémica

Ora, o governo não tem governado nem seriamente, na óptica e nos interesses de grande maioria do eleitorado português, nem apresenta a estabilidade e solidez que tantas figuras gradas nacionais reclamam. São os chefes das associações patronais que avisam: "estabilidade política é fundamental para desenvolvimento do país"; são os think tank preocupados: “SEDES quer mais escrutínio para aumentar a estabilidade e credibilidade no governo”; o supremo magistrado da Nação foi das primeiras vozes a alertar: “a democracia precisa, mais do que nunca, de ser cuidada”, ao mesmo tempo que promete retirar conclusões se remodelação do governo não funcionar, mais tarde afirma, como que num arrependimento da prolixidade, que não irá demitir o governo e convocar eleições antecipadas porque ficaria numa posição insustentável se o PS viesse a ganhar de novo com outra maioria, possivelmente ainda mais ampla. Por fim lá veio a segunda figura do Estado, e em quase anúncio da pré-candidatura presidencial, desabafar: "demissões estão a desgastar o governo", no entanto, ressalvando que “as mudanças complicam a vida ao Executivo, mas não destroem a confiança no Parlamento. E é aqui que está o cerne da preocupação: a descredibilização do regime, mais do que a do governo.

Ao mesmo tempo que se digladiam na luta pelo enfraquecimento do governo, descredibilizando paradoxalmente o regime, todos os contendores se unem quando se sentem ameaçados pelas lutas dos trabalhadores, é o que está a acontecer com a luta dos professores da escola pública. Os professores estão a ser atacados e vilipendiados porque ousaram romper com a paz podre da conciliação de classes e reivindicar as suas mais que justas reivindicações, desde melhoria salarial, dignificação da carreira, contagem do tempo roubado, melhores condições de trabalho até fim da precariedade e das deslocações para centenas de quilómetros do local de residência, coisa que não acontece, por exemplo, com os médicos que também são funcionários públicos. Agitam o espantalho do fim da democracia, mas eles, partidos do poder, é que são os coveiros; acenam com os populismos e “vem aí o fascismo!”, mas é essa gente, e não os professores, que clamam e anseiam por eles. 

Costa manter-se-á no poder se conseguir reprimir esta luta, como já fez com anteriores semelhantes, estivadores, motoristas de matérias perigosas e enfermeiros. A perenidade do governo Costa não estará directamente ligada aos casos de corrupção que existem ou possam surgir entre os seus membros actuais ou futuros, mas à sua capacidade de executar as políticas dimanadas de Bruxelas e simultaneamente manter a paz social, como aqui temos referido insistentemente; paz social que tem vigorado graças à prestimosa e “responsável” colaboração dos sindicatos afectos às duas centrais existentes. Não são as greves e manifestações fofinhas que assustam o governo do capital, mas as greves, como afirmou o Costa da Educação, que são "atípicas", "radicais", "desproporcionais" e "imprevisíveis" que se poderão tornar perigosas, eventualmente, derrubando governos e, mais grave ainda, levar à insurreição geral e à instituição de regimes sem amos nem salvadores da pátria - a velha toupeira a fazer o seu trabalho.

Tanto o PR Marcelo como os partidos da oposição mais à direita querem tirar o PS do governo, mas todos têm medo de o fazer

Os “casos e casinhos”, de que fala Costa, mais não são que a guerrilha desencadeada contra o governo com o objectivo claro de o desgastar e descredibilizar para que, em próximas eleições legislativas, o PS seja derrotado inapelavelmente e os partidos da oposição, da direita, possam aceder ao pote. A motivação não está em se saber se o PS governa bem ou mal, com seriedade ou sem ela, mas quem saber que enfia a mão na massa, porque a política está há muito definida em Bruxelas e é para ser executada seja por quem for que esteja no turno da governação. Não deixa de ser enternecedor ouvir da boca do novo secretário-geral do PCP a hipótese de um projecto governativo, incluindo o PS e o PCP, auto-denominado de “"alternativa patriótica e de esquerda", sabendo-se de antemão da sua inviabilidade no quadro do euro e da União Europeia. O que é válido para o BE, na justa medida em que o seguro de vida destes dois partidos situados “à esquerda” é a de defender uma social-democracia, são partidos tipo flor de lapela que irão para o governo pendurados nas costas do PS. Tanto uns como outros querem aceder ao pote só que ninguém ousa derrubar o governo porque temem os resultados de mais umas eleições antecipadas.

Usar os casos de corrupção para fragilizar o governo PS e ainda por cima por parte do outro parceiro do Bloco Central de interesses não deixa de ser caricato, para não dizer pornográfico. E se os casos trazidos à luz do dia, parte deles pela “investigação” de órgãos de informação do género Correio da Manhã (propriedade do grupos Cofina do oligarca Paulo Fernandes, envolvido nos Pandora Papers, que desde há muitos anos tem vindo a fugir ao fisco e gozando de perdões fiscais de muitos milhões de euros) têm flagelado as fileiras do governo PS, cujas demissões de secretários e ministros irão já em treze, outros casos têm surgido conspurcando a honorabilidade de figuras do principal partido da oposição, incluindo o chefe que, se ainda não foi acusado de corrupção, não se livra da fama de ser um advogado chico-esperto que tem enriquecido com os ajustes directos entre seu escritório de advogado e algumas câmaras, uma legalidade feita à medida para o engrandecimento de uma burguesia oportunista emergente e, sempre ou quase sempre, à custa dos dinheiros públicos. Esta gente forma uma mafia e que se protege quando ameaçada e onde se esbate a fronteira entre uma classe política corrupta e venal e uma burguesia inútil e rentista.

A disputa é pelo acesso ao pote e não quanto à justeza das políticas para o povo português

A corrupção é o lubrificante que oleia as juntas e as rodas de engrenagem da economia capitalista e que assegura a lealdade dos políticos ao serviço da burguesia, o Salazar já fazia o mesmo porque sabia que gato com rabo preso não arranha, e verifica-se que ela é transversal aos partidos do poder e há políticos que se vendem por pouco. Os ministros são substituídos não porque os primeiros eram mais corruptos e menos competentes, mas porque não deveriam garantir as mesmas certezas quanto a quem irá beneficiar das benesses do governo, nos casos em concreto de obras do novo aeroporto, linha de alta velocidade, energias verdes e distribuição dos dinheiros do PRR (Plano de Recuperação e Resiliência). E para não deixar dúvidas, António Costa é peremptório sobre os “novos ministros”: são “pessoas com experiência” e dão “garantia de continuidade” … na gestão dos negócios da burguesia doméstica e dos interesses do grande capital financeiro representado por Bruxelas. Será nesta linha de preocupação que haverá algum lóbi, falando pela boca do chefe da oposição, que deseja o ministro das Finanças substituído, não pelo facto de eventualmente ser um “peso morto”, mas pela razão de que não será suficientemente diligente, só que a sua diligência é aquela que Bruxelas entender e não outra.

Nãos nos cansamos de relembrar que devemos aprender sempre com a História, mas a amnésia do passado, e passado relativamente recente, é lixada e impede que a nossa classe média e os trabalhadores aprendam alguma coisa. Foi quando os governos da I República, nomeadamente os de um outro Costa, que ficou conhecido por “raxa-sindicalistas”, começaram a atacar o movimento operário que socavou o apoio popular e assinou a sua certidão de óbito. Reprimir a classe operária depauperada e abandonar a arruinada classe dos pequenos proprietários criou rapidamente as condições para o pronunciamento militar de 28 de Maio de 1926. A classe operária ficou no desnorte por ausência de uma organização e direcção revolucionárias e a classe média, principalmente a da província, foi um forte apoio para a longevidade do fascismo.  São os partidos e governos de cariz social-democrata que, reprimindo as lutas do povo e assassinando os seus líderes, com o fim de deixar o movimento revolucionária sem direcção, facilitam assim a instauração da ditadura sem intermediação do grande capital. Em vésperas do PS comemorar os seus 50 anos, partido fundado na Alemanha pelos dinheiros da Fundação Friedrich Ebert, é bom relembrar que foi o governo deste social-democrata alemão, Friedrich Ebert, República de Weimar, que ordenou e financiou as milícias Freikorps para assassinar os dirigentes revolucionários Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, fez agora 104 anos (15 de Janeiro).

Estamos a tempo de impedir a repetição da História.

sábado, 7 de janeiro de 2023

O Erro de Descartes. Emoção, Razão e Cérebro Humano

António R. Damásio

É precisamente esta falta de compreensão da natureza das emoções e da razão (uma das características mais salientes da «cultura da queixa»*) que suscita alarme.

A concepção de organismo humano esboçada neste livro e a relação entre emoção e razão que emerge dos resultados aqui discutidos sugerem, no entanto, que o fortalecimento da racionalidade requer que seja dada uma maior atenção à vulnerabilidade do mundo interior.

A um nível prático, a função atribuída às emoções na criação da racionalidade tem implicações em algumas das perguntas com que a, nossa sociedade se defronta actualmente, entre elas a educação e a violência. Não é este o local para uma abordagem adequada destas questões, mas devo dizer que os sistemas educativos poderiam ser melhorados se se insistisse na ligação inequívoca entre as emoções actuais e os cenários de resultados futuros, e que a exposição excessiva das crianças à violência, na vida real, nos noticiários e na ficção audiovisual, desvirtua o valor das emoções na aquisição e desenvolvimento de comportamentos sociais adaptativos. O facto de tanta violência gratuita ser apresentada sem um enquadramento moral só vem reforçar a sua acção dessensibilizadora.

O ERRO DE DESCARTES

Não teria sido possível apresentar a minha participação nesta conversa sem ter invocado Descartes como símbolo de um conjunto de ideias acerca do corpo, do cérebro e da mente que, de uma maneira ou de outra, continuam a influenciar as ciências e as humanidades no mundo ocidental. A preocupação é dirigida tanto à noção dualista com a qual Descartes separa a mente do cérebro e do corpo como às variantes modernas desta noção: por exemplo, a ideia de que a mente e o cérebro estão relacionados mas apenas no sentido de a mente ser o programa de software que corre numa parte do hardware chamado cérebro; ou que o cérebro e o corpo estão relacionados, mas apenas no sentido de o primeiro não conseguir sobreviver sem a manutenção que o segundo lhe oferece.

Qual foi, então, o erro de Descartes? Ou, melhor ainda, a que erro de Descartes me estou a referir com ingratidão? Poderíamos começar com um protesto e censurá-lo por ter convencido os biólogos a adoptarem, até hoje, uma mecânica de relojoeiro como modelo dos processos vitais. Mas talvez isso não fosse muito justo, e comecemos, então, pelo «penso, logo existo». Esta afirmação, talvez a mais famosa da história da filosofia, surge pela primeira vez na quarta secção de O Discurso do Método (1637), em francês («Je pense, donc je suis»); e depois na primeira parte de Princípios da Filosofia (1644), em latim («Cogito ergo sum»)3. Considerada literalmente, a afirmação ilustra exactamente o oposto daquilo que creio ser verdade acerca das origens da mente e acerca da relação entre a mente e o corpo. A afirmação sugere que pensar e ter consciência de pensar são os verdadeiros substratos de existir. E, como sabemos que Descartes via o acto de pensar como uma actividade separada do corpo, esta afirmação celebra a separação da mente, a «coisa pensante» (res cogitans), do corpo não pensante, o qual tem extensão e partes mecânicas (rep extensa).

No entanto, já antes do aparecimento da humanidade, os seres eram seres. Num dado ponto da evolução, surgiu uma consciência elementar. Com essa consciência elementar apareceu uma mente simples; com uma maior complexidade da mente veio a possibilidade de pensar e, mais tarde ainda, de usar linguagens para comunicar e melhor organizar os pensamentos. Para nós, portanto, no princípio foi a existência e só mais tarde chegou o pensamento. E para nós, no presente, quando vimos ao mundo e nos desenvolvemos, começamos ainda por existir e só mais tarde pensamos. Existimos e depois pensamos e só pensamos na medida em que existimos, visto o pensamento ser, na verdade, causado por estruturas e operações do ser.

Quando colocamos a afirmação de Descartes no devido contexto, podemos perguntar-nos por um instante se poderá ter significado diferente daquele que lhe estamos a atribuir. Será que pode ser vista como o reconhecimento da superioridade da razão consciente, sem qualquer compromisso firme no que respeita à sua origem, substância ou permanência? É possível. Não poderia a afirmação ter servido também o hábil propósito de aliviar as pressões religiosas que Descartes podia sofrer? É possível, mas não podemos saber ao certo. (A inscrição que Descartes escolheu para a sua lápide foi uma citação a que recorria com frequência: «Rene qui latuit, bene vixit», de Tristia,3.4.25, de Ovídio. Tradução: «Aquele que se escondeu bem viveu bem.» Uma renúncia discreta ao dualismo?). Quanto à primeira possibilidade de interpretação, e fazendo o balanço final, suspeito que Descartes também queria dizer precisamente aquilo que escreveu. Quando as famosas palavras surgem pela primeira vez, Descartes rejubila com a descoberta de uma proposição tão verdadeira que não podia ser negada ou abalada por nenhuma dose de cepticismo:

 

[...] e reparando que esta verdade, «Penso, logo existo», era tão certa e tão segura que nem sequer as suposições mais extravagantes dos cépticos a conseguiam abalar, cheguei à conclusão de que a receberia sem qualquer hesitação como o primeiro princípio da Filosofia que procurava.

 

Descartes procurava uma fundação lógica para a filosofia, e a afirmação não se afastava muito da de Santo Agostinho «Fallor ergo sum» («Sou enganado, logo existo»). Mas, umas linhas mais adiante, Descartes esclarece a afirmação de forma inequívoca:

 

Por isso eu soube que era uma substância cuja essência integral é pensar, que não havia necessidade de um lugar para a existência desta substância e que ela não depende de algo material; então, este «eu», quer dizer, a alma através da qual sou o que sou, distingue-se completamente do corpo e é ainda mais fácil de conhecer do que este último; e, ainda que não houvesse corpo, a alma não deixaria de ser o que é.

 

É este o erro de Descartes: a separação abissal entre o corpo e a mente, entre a substância corporal, infinitamente divisível, com volume, com dimensões e com um funcionamento mecânico, por um lado, e a substância mental, indivisível, sem volume, sem dimensões e intangível; a sugestão de que o raciocínio, o juízo moral e o sofrimento adveniente da dor física ou agitação emocional poderiam existir independente corpo. Em concreto: a separação das operações mais refinadas da mente, para um lado, e da estrutura e funcionamento do organismo biológico, para o outro.

 

Mas há quem possa perguntar por que motivo incomodar Descartes e não Platão, cujas ideias sobre o corpo e a mente são muito mais exasperantes, como podemos verificar no Fédon? Porquê preocuparmo-nos com este erro específico de Descartes? Afinal, alguns dos seus outros erros são bem mais espectaculares do que este. Descartes pensava que o calor fazia circular o sangue, que as finas e minúsculas partículas do sangue se transformavam em «espíritos animais», os quais conseguiam depois mover os músculos. Por que não censurá-lo por uma dessas noções? A razão é simples: há muito tempo que sabemos que ele estava errado nestes aspectos concretos, e as perguntas sobre como e por que circula o sangue receberam já uma resposta que nos satisfaz completamente. O mesmo já não sucede com as questões relativas à mente, ao cérebro e ao corpo, em relação às quais o erro de Descartes continua a prevalecer. Para muitos, as ideias de Descartes são consideradas evidentes em si mesmas, e sem necessitarem de alguma reavaliação.

Pode bem ter sido a ideia cartesiana de uma mente separada do corpo que esteve na origem, pelo meio do século XX, da metáfora da mente como programa de software. De facto, se a mente pode ser separada do corpo, talvez fosse possível compreendê-la sem recorrer à neurobiologia, sem qualquer necessidade de saber neuroanatomia, neurofisiologia e neuroquímica. É interessante e paradoxal que muitos investigadores em ciência cognitiva, que julgam serem capazes de investigar a mente sem qualquer recurso à neurobiologia, não se considerem dualistas.

A separação cartesiana pode estar também subjacente ao modo de pensar de neurocientistas que insistem que a mente pode ser perfeitamente explicada em termos de fenómenos cerebrais, deixando de lado o resto do organismo e o meio ambiente físico e social – e, por conseguinte, excluindo o facto de parte do próprio meio ambiente ser também um produto das acções anteriores do organismo. Protesto contra esta restrição, não porque a mente não esteja directamente relacionada com a actividade cerebral mas porque esta formulação restritiva é forçosamente incompleta e insatisfatória em termos humanos. É um facto incontestável que o pensamento provém do cérebro, mas prefiro enquadrar esta afirmação e considerar as razões por que os neurónios conseguem pensar tão bem. Esta é, de facto, a questão principal.

A ideia de uma mente descorporalizada* parece ter também moldado a forma peculiar como a medicina ocidental aborda o estudo e o tratamento da doença (ver o Postscriptum).

A divisão cartesiana domina tanto a investigação como a prática médica. Em resultado disso, as consequências psicológicas das doenças do corpo propriamente dito, as chamadas doenças reais, são normalmente ignoradas ou são levadas em linha de conta muito mais tarde. Mais negligenciado ainda é o inverso, os efeitos dos conflitos psicológicos no corpo. É curioso pensar que Descartes contribuiu para a alteração do rumo da medicina, ajudando-a a abandonar a abordagem orgânica da mente-no-corpo que predominou desde Hipócrates até ao Renascimento. Que irritado que Aristóteles teria ficado se lhe tivessem dito.

Versões do erro de Descartes obscurecem as raízes da mente humana num organismo biologicamente complexo, mas frágil, finito e único; obscurecem a tragédia implícita no conhecimento dessa fragilidade, finitude e singularidade. E, quando os seres humanos não conseguem ver a tragédia inerente à existência consciente, sentem-se menos impelidos a fazer algo para a minimizar e podem mostrar menos respeito pelo valor da vida.

 

Os factos que apresentei relativos às sensações e à razão, juntamente com outros que discuti acerca da interligação entre o cérebro e o corpo propriamente dito, dão apoio à ideia mais geral com a qual abri o livro: que a compreensão cabal da mente humana requer a adopção de uma perspectiva do organismo; que não só a mente tem de passar de um cogitum não físico para o domínio do tecido biológico, como deve também ser relacionada com todo o organismo que possui cérebro e corpo integrados e que se encontra plenamente interactivo com um meio ambiente físico e social.

No entanto, a mente verdadeiramente incorporada que concebo não renuncia aos seus níveis mais refinados de funcionamento, aqueles que constituem a sua alma e o seu espírito. Do meu ponto de vista, o que se passa é que a alma e o espírito, em toda a sua dignidade e dimensão humana, são os estados complexos e únicos de um organismo. Talvez a coisa que se toma mais indispensável fazermos no nosso dia-a-dia, enquanto seres humanos, seja a de recordar a nós próprios e aos outros a complexidade, fragilidade, finitude e singularidade que nos caracterizam. É claro que esta não é uma tarefa fácil: mudar o espírito do seu pedestal num algures inlocalizável para um lugar bem mais exacto, preservando ao mesmo tempo a sua dignidade e a sua importância; reconhecer a sua origem humilde e a sua vulnerabilidade e ainda assim continuar a recorrer à sua orientação e conselho. Uma tarefa indispensável e difícil, sem dúvida, mas sem a qual talvez seja melhor que o Erro de Descartes fique por corrigir.

Notas:

* Culture of complaint, no original. (N. da T.)

* Disembodied, no original. (N. da T.) 

(“O Erro de Descartes. Emoção, Razão e Cérebro Humano”, António R. Damásio. Publicações Europa-América, 1994)