segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Costa compra a paz social e o capital regozija

 

No dia anterior em que o governo e os sindicatos da UGT assinam o acordo “histórico” plurianual (vigorará até 2026) sobre aumentos salariais para o sector dos trabalhadores da Função Pública, mas que que se estenderá para todo o sector laboral, ficou-se a saber que a Galp registou uma subida nos seus lucros de 86%, para 608 milhões de euros, nos primeiros nove meses do ano.

A subida média dos salários será na ordem dos 2% ao ano, os salários mais baixos terão uma subida um pouco maior, o salário mínimo será de 761,58 euros em 2023, em percentagem bem inferior à inflação média anual, que no fim deste ano será bem à vontade de dois dígitos, e ainda mais distante da percentagem da subida dos lucros das grandes empresas, ou melhor dizendo, do aumento escandalosos da riqueza dos seus acionistas.

O putativo “O Acordo de Rendimentos e Competitividade”, assinado pelo Governo e os parceiros sociais (a CGTP de fora) no passado dia 9 de Outubro, já tinha sido de agrado geral dos patrões, se a CCP não esteve na cerimónia de assinatura, apesar de ter subscrito o documento, foi pela simples razão de que queria mais e não pela menos boa condução do processo.

A aprovação do “acordo de parceiros sociais” e o aumento geral dos salários por quatro anos foi declaradamente uma vitória para a burguesia e mais uma derrota para a classe dos trabalhadores assalariados. De há muito que os trabalhadores têm vindo a ser derrotados, manietados por sindicatos da ordem que se vendem por poucas migalhas e garantem a quem explora os trabalhadores a paz social.

Curiosamente, mas sem espanto, tem sido o partido dito “socialista” que melhor tem conduzido este processo, daí o facto de, em situações de maior aperto para a burguesia nacional, ser catapultado para a governação mesmo quando não ganha as eleições. Por outro lado, a também dita “concertação social” faz da Assembleia da República gato sapato, um órgão praticamente inútil.

A concertação dos lucros do capital à custa de maior exploração de quem trabalha e produz, que tem visto constantemente a redução dos seus rendimentos, principalmente de há vinte anos para cá, isto é, desde que o país adoptou o euro como moeda oficial, já estava à partida prevista no Orçamento de Estado para o ano de 2023. A certeza de que a paz social estaria garantida era um dado adquirido e vamos lá ver como os outros sindicatos, afectos à CGTP, vão quebrar este pacto e impor a actualização anual dos salários em valores, no mínimo, próximos da taxa de inflação.

O acordo dos parceiros sociais garantiu de imediato mais 3.000 milhões, a juntar a outros milhões de euros, de apoio às empresas (as grandes) para fazerem face ao aumento brutal do preço do gás e eletricidade. Dentro de este âmbito e referindo-se ao Orçamento, Costa declara descartar que este orçamento seja um "orçamento de contenção" na medida em que prevê 8 mil milhões de euros em apoios "às empresas e famílias". Não diz que na realidade é apenas às empresas, porque se o fizesse desmascarava-se; mas facilmente se vê que os apoios referidos, onde se inclui o cheque de 125 euros, servem somente e apenas para financiar a inflação e evitar, pelos menos em tempo próximo, a contestação social.

Marcelo, amigo de ocasião do governo Costa-PS, veio logo a correr, entre as contínuas e frequentes viagens ao estrangeiro, dizer que o acordo cria "almofada" para os próximos anos. Será assim um amortecedor para a crise endémica do capitalismo nacional e, vamos lá ver!, do descontentamento popular. O monárquico PR vela, antes do mais, pelos interesses da classe a que pertence e de quem especificamente lhe pagou as campanhas eleitorais, que ele não se cansa de referir quer foram baratinhas. Quando entra em contradição como o governo, fá-lo mais quanto à forma da governação, ou por interesses pessoais, do que propriamente quanto ao conteúdo.

OE de 2023 fica bem definido pelas palavras do governador do Banco de Portugal, sucursal do Banco Central Europeu, o incontornável Centeno, que aparece nos media mainstream como tivesses sido escrutinado pelo voto dos portugueses, por esperar ter “o menor défice da zona euro no próximo ano”. Será, outra vez, ir para além da troika. Antes dele, já Costa tinha dito que o governo já esgotara a margem para aumentos gerais na Função Pública. O défice está primeiro, mas só para os trabalhadores.

Por detrás das declarações destes dois homens de mão do grande capital financeiro representado por Bruxelas, teremos de ver a crónica e prolongada crise económica, agora agravada pela cruzada belicista contra os infiéis do Oriente; agravamento decorrente da corrida aos armamentos, em preparação aberta de uma outra guerra mundial, e pela carestia inusitada da energia, que já se fazia sentir antes da deflagração da guerra na Ucrânia como consequência da crise inata do capitalismo. A realidade, como a prova do algodão que não engana, repetimos, vinha de trás. 

Espera-se que, logo que acabem os apoios às empresas, no quadro (com a justificação) do combate às consequências da pandemia (estados de emergência), as insolvências de empresas deverão subir 30% no final de 2022. Serão predominantemente pequenas e médias empresas nacionais, no contínuo e imparável processo de acumulação e concentração do capital; processo que se acelera quando se regista uma forte baixa da taxa de lucro e um excesso de produção, como está desde algum tempo a acontecer.

Nestes períodos o desemprego é mais do que inevitável e, com os tais “apoios” do Costa, irá somente disparar mais lentamente. No entanto, o sinal está dado e por uma grande empresa alemã: Adidas vai despedir até 300 trabalhadores na Maia – para o jornal do regime “Expresso”, a Adidas irá “dispensar” 300 “colaboradores”, é o português suave e o despedimento democrático. Lá fora, a holandesa Philips vai despedir 4.000 trabalhadores e a Royal Mail (serviços de correios) vai despedir seis mil. É o princípio do fim. Outra estratégia é fomentar a entrada de imigrantes que, agarrando qualquer trabalho para sobreviverem, aceitam salários mais baixos o que, juntamente com o desemprego, faz diminuir ainda mais os salários nominais. Entretanto a Shell quase que triplica os lucros, no primeiro semestre do ano, para 25.156 milhões de dólares (25.359 milhões de euros).

Os tais apoios às empresas e não às famílias estão a ser feitos à custa de um maior endividamento do estado e, segundo os números que são públicos recentemente, o endividamento das famílias e das empresas, que o governo diz querer defender, não está a diminuir, bem pelo contrário: endividamento da economia sobe em Agosto para 794,4 mil milhões de euros. E o estado continua a endividar-se: dívida direta do Estado somava 279,9 mil milhões de euros em Setembro, mais 1,4 mil milhões do que no final do ano passado (IGCP); custo da dívida pública portuguesa quase triplicou no espaço de dois anos; o serviço da dívida também subiu para 6,8 mil milhões de euros em 2023, mais 8,2 % do que o valor orçamentado para este ano. Todos os apoios anunciados irão sair dos bolsos dos trabalhadores e da classe média, esta em ritmo acelerado de empobrecimento.

E sairá da carteira do cidadão comum os milhões que estão a ir, outra vez, para os bancos, e diz o Macedo da CGD que "partimos para esta crise com bancos mais saudáveis". Não parece, a diferença é que a extorsão é agora mais disfarçada e em modo suave. E os bancos discretamente vão levando a deles avante, pedindo 1.372 milhões de euros em créditos fiscais e fisco a pagar já 397 milhões; o Novo Banco recebeu a quase totalidade dos reembolsos, sem que as verbas tenham sido inscritas no Orçamento de Estado. Os americanos da Lone Star agradecem a generosidade.

No início do Verão assistimos a uma campanha levada cabo pelos partidos de direita, e acolitados pelo bastonário da Ordem dos Médicos, no deita-abaixo do SNS no que dizia respeito aos serviços de obstetrícia e ginecologia e respectivas urgência e blocos de partos, o “Público” deu o tiro de partida, e mais tarde viemos a saber que o grupo Sonae, o dono do pasquim, tinha interesses no sector da saúde, lançando um seguro de saúde que pretende atingir um milhão de clientes. Agora assiste-se à campanha da pobreza.

Nesta campanha, desta feita lançada pelo jornal do regime e propriedade do sócio número um e fundador do PSD, ainda o principal partido da oposição, ficou-se a saber que a fome é tanta no seio do povo que até os supermercados colocam sistemas de alarme nas latas de atum “Bom Petisco”, logo uma das consideradas melhores marcas e que lançou uma das embalagens com as cores da bandeira da Ucrânia, para não serem furtadas pelos novos famintos. As notícias proliferam: «hospitais acolhem pessoas que se fingem doentes para comer nas urgências, alguns pedem “para ficar internados”». Será a peste, que parece ter surgido só depois de o PS ter ficado com maioria absoluta na Assembleia da República.

Não é desconhecimento para ninguém que a pobreza e a fome, umas vezes aberta e outras encoberta, que a acompanha é um mal secular deste país e que não foi extirpadas da sociedade portuguesa depois do 25 de Abril. Agravou-se depois da proclamação da Constituição de 1976 e foi institucionalizada pelo novo regime, sendo entregue o alegado combate à Igreja Católica e a associações tipo Banco Alimentar, que, por sua vez, alimenta os seus promotores e não os presumíveis destinatários. Se há dois milhões de habitantes na pobreza e mais outros tantos, caso não recebam as ajudas sociais, totalizando muito possivelmente mais de 45% da população, qual a admiração? É o resultado lógico das políticas levadas a cabo quer pelo PS, quer pelo PSD, separados ou em conjunto.

O governo ufana-se que o desemprego é relativamente baixo em Portugal, a economia continuará a crescer, a inflação será passageira e que estaremos livre da recessão, contrariando as expectativas dos bancos em relação a economias mais fortes e industrializadas, por exemplo a alemã, como estivéssemos encerrados na redoma de vidro ou separados do resto da União Europeia por uma muralha da China. Contudo, não saberá responder por que carga de água Portugal é o quarto país da UE com a taxa de desemprego jovem mais elevada e os preços dos bens essenciais continuam a subir de forma assustadora e imprevisível, alguns dos quais em mais do dobro da taxa oficial da inflação (9,3% em Setembro, a mais elevada dos últimos 30 anos).

É indisfarçável que a população portuguesa está a ficar mais pobre, e de forma mais acelerada desde que o país aderiu ao euro. Uma moeda forte em uma economia fraca, pouco industrializada e com uma agricultura dominada por culturas intensivas detidas por grandes empresas estrangeiras, promove as importações e dificulta as exportações, mantendo a balança comercial cronicamente deficitária, com o resultado esperado de empobrecimento do país. Produz-se preferencialmente o que o estrangeiro deseja e importa-se principalmente o que necessitamos para sobreviver. Somos o elo fraco na cadeia capitalista europeia e qualquer dia quebraremos. Será uma questão de tempo.

E quando isso estiver quase a acontecer e se o PS capitaneado pelo chefete Costa não conseguir impedir que a embarcação afunde outros serão chamados para o leme do barco que nunca deixou de meter água. Ouvir ao beato PR que pensa que é rei que o “país ultrapassou última crise com "grande dignidade" devido ao Governo de Passos” ou que "país deve esperar muito do contributo de Passos Coelho" é coisa natural, na justa medida em que, e à falta de melhor, a figura ainda será uma boa garantia para substituir a cenoura socialista pelo cacete da direita abertamente neo-liberal e troglodita. Não nos esqueçamos que Coelho foi quem ganhou as eleições ao PS e por duas vezes seguidas.

Costa, sabendo da coisa, tenta encostar-se a Bruxelas, defendendo "solução permanente" europeia para enfrentar as crises, porque, na sua óptica de chico-esperto, "há sempre uma crise à nossa espera". A nível interno, procura aliados a todo o custo e os votos da Igreja serão sempre bem-vindos, daí os apoios às misericórdias e às diversas realizações católicas, com a organização da Jornada Mundial da Juventude ser custeada com, pelo menos, 36,5 milhões de euros saídos do erário público.

Por outro lado, tenta ser bom e leal executante das políticas impostas pelo directório europeu defendendo que o acordo de rendimentos, já referido, servirá também para “apaziguar a tensão social”. Esta é uma das suas principais preocupações e razão central da sua permanência no poder, e quando isto deixar de acontecer a porta já estará aberta para uma solução de repressão aberta e para tal qualquer cabo de esquadra serve. E bem diz o monárquico e desculpabilizador da pedofilia da Igreja Católica: (elogios a Passos Coelho) “é o que muitos portugueses pensam”. Alguns.

segunda-feira, 3 de outubro de 2022

"Perdoa-nos as nossas dívidas"

Giorgio Agamben

A oração por excelência - aquela que o próprio Jesus nos ditou ("rezar assim") - contém uma passagem que o nosso tempo se esforça a todo o custo por contradizer e que será bom recordar, precisamente hoje, que tudo parece estar reduzido a uma feroz lei de dois lados: crédito/débito. Dimitte nobis debita nostra… "perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores". O original grego é ainda mais peremptório: aphes emin ta opheilemata emon, "Deixe ir, remova nossas dívidas de nós." Refletindo sobre essas palavras em 1941, em plena guerra mundial, um grande jurista italiano, Francesco Carnelutti, observou que, se é uma verdade do mundo físico que o que aconteceu não pode ser apagado, o mesmo não pode ser dito para o mundo moral. , que se define precisamente pela possibilidade de perdoar e perdoar.

Antes de mais nada, é preciso afastar o preconceito de que se trata na dívida de um direito genuinamente econômico. Mesmo deixando de lado o problema do que se quer dizer quando falamos de uma "lei" econômica, uma breve investigação genealógica mostra que a origem do conceito de dívida não é econômica, mas jurídica e religiosa - duas dimensões que quanto mais se recua em direção ao pré-história, mais eles tendem a se confundir. Se, como Carl Schmitt mostrou, a noção de Schuld , que em alemão significa dívida e culpa, está na base do edifício do direito, não menos convincente é a intuição de um grande historiador das religiões, David Flüsser. Enquanto um dia ele estava refletindo sobre o significado da palavra pistis em uma praça em Atenas, que é o termo que nos Evangelhos significa "fé", ele viu à sua frente a escrita em letras grandes trapeza tes pisteos . Não demorou muito para ele perceber que estava diante de um letreiro de banco ( Banco di Credito) e no mesmo instante se deu conta de que o significado da palavra em que vinha pensando há anos tinha a ver com crédito - o crédito que gozamos com Deus e que Deus goza conosco, já que cremos nele. Para estes Paulo pode dizer em uma definição famosa que "a fé é a substância das coisas que se esperam": é o que dá realidade ao que ainda não existe, mas no qual cremos e confiamos, no qual depositamos nosso crédito no linha. e nossa palavra. Algo como um crédito existe apenas na medida em que nossa fé pode dar-lhe substância.

O mundo em que vivemos hoje se apropriou desse conceito jurídico e religioso e o transformou em um dispositivo letal e implacável, diante do qual toda necessidade humana deve se curvar. Este dispositivo, no qual todas as nossas pistis, toda a nossa fé foram capturadas, é o dinheiro, entendido como a própria forma de crédito/débito. O Banco - com seus funcionários e especialistas cinzentos - tomou o lugar da Igreja e de seus padres e, ao governar o crédito, manipula e administra a fé - a confiança escassa e incerta - que nosso tempo ainda tem em si. E fá-lo da forma mais irresponsável e sem escrúpulos, tentando ganhar dinheiro com a confiança e as esperanças dos seres humanos, estabelecendo o crédito de que todos podem usufruir e o preço a pagar por isso (mesmo o crédito dos Estados, que docilmente abdicaram de sua soberania). Assim, ao governar o crédito, governa não só o mundo, mas também o futuro dos homens, um futuro que a emergência quer cada vez mais curto e expirar. E se a política não parece mais possível hoje, é porque o poder financeiro de fato se apoderou de toda a fé e todo o futuro, todo o tempo e todas as expectativas.
A chamada emergência pela qual estamos passando - mas o que se chama emergência, agora está claro, é apenas o funcionamento normal do capitalismo de nosso tempo - começou com uma série de operações de crédito imprudentes, sobre créditos que foram descontados e revendidos dezenas de vezes antes que eles possam ser feitos. Isso significa, em outras palavras, que o capitalismo financeiro - e os bancos que são seu principal órgão - funciona jogando com o crédito - isto é, com a fé - dos homens.

Se hoje um governo - na Itália como em outros lugares - realmente quer se mover em uma direção diferente daquela que está tentando impor em todos os lugares, é sobretudo o dispositivo dinheiro/crédito/dívida que ele deve questionar resolutamente como sistema de governo. Só assim uma política se tornará possível novamente - uma política que não aceita ser estrangulada pelo falso dogma - pseudo-religioso e não econômico - da dívida universal e irrevogável e restitui aos homens a memória e a fé nas palavras que tantas vezes recitaram quando crianças: "Perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores".

28 de setembro de 2022

Fonte: quodlibet