sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Marcelito: O homem das trincheiras e chefe da oposição ao governo

 

Imagem no "Expresso"

Depois de ter renunciado ao desejo de dissolver a Assembleia da República e demitir o governo, porque seria uma atitude nitidamente impopular, o PR Marcelo de Sousa entendeu retomar, agora com mais vigor, uma política de afrontamento com o governo de maioria absoluta do Partido Socialista e liderado por António Costa. Primeiro, não aprovar o pacote legislativo sobre a habitação, depois visitar a Polónia e a Ucrânia, os dois principais peões de brega do imperialismo norte-americano na Europa, querendo condicionar e definir a política externa do governo.

O veto da Lei da Habitação do PS foi o primeiro embate, realizado de forma cínica e trocista na medida em que o homem foi “estudar” o documento enquanto estava de férias mais a companheira, dando a ideia de que o país está acima de tudo, mesmo podendo importunar a vida familiar que se pretende recatada, e anunciou o veto já quando se encontrava em vista à Polónia a fazer não se sabe o quê, já que a nível europeu a figura não chega sequer à insignificância.

Marcelo foi claro quanto à razão da não promulgação do dito “pacote legislativo”, não há um problema de inconstitucionalidade, mas um problema político". Está contra não porque o PS, com esta legislação aprovada na Assembleia da República, fosse atentar contra os interesses dos grandes proprietários e especuladores imobiliários ou não resolver os graves problemas da habitação em Portugal, mas pela simples razão de marcar uma posição contra o governo. Claro que teve logo o apoio do seu antigo partido, da oposição em geral e de quem está interessado em que tudo fique na mesma.

O homenzinho que nesta área já destronou o antecessor Mário Soares, passa mais tempo no estrangeiro do que dentro do país e onde geralmente mais opina sobre as questões da política doméstica, revelando uma faceta importante e já não muito escondida do seu verdadeiro carácter. Visitar dois países que se encontram na linha da frente no conflito espoletado pelos EUA contra a Rússia revela uma outra faceta, também já conhecida, de rafeiro perante interesses estrangeiros predominantes. Se a Ucrânia claudicar, prevê-se que a Polónia de imediato entre na guerra para reivindicar o território da antiga Galécia que chegou a controlar entre as duas guerras mundiais.

Marcelo jamais abandonará o seu lado dúplice, de falsidade e de alguma chique-espertice, visita a Polónia e não diz claramente se vai ou não à Ucrânia, escudando-se na existência ou não de condições, sabendo toda a gente de antemão que iria, e iria de certeza porque a a atracção pelos seus é mais do que forte. E foi, levando atrás um séquito de lacaios e de gente que tem como profissão demonstrar que o capitalismo é eterno; e foi levado ao colo, como é habitual, pela bajuladora comunicação social mainstream.

Não deixa de ser caricato ver a figurinha triste mediatizada dentro de uma trincheira que, ao que parece, terá sido construída mais para mera propaganda e atracção turística. A figura que não cumpriu o serviço militar para não ir combater para a guerra em África, beneficiando do facto de pertencer a uma das famílias da oligarquia fascista, o que na altura foi um acto de extrema cobardia e anti-patriótico considerando a classe a que pertencia e a política em vigor do regime fascista pela qual Portugal ia do Minho a Timor.

O “primeiro presidente na trincheira” (e com certeza será o único), como referem os media, teve que fazer o seu papel de “homem corajoso”. “Não teve medo” quando ouviu as sirenes quando confraternizava em Kiev com os seus correligionários; discursou em ucraniano para reafirmar a solidariedade com o governo (neo-nazi), instalado no poder pelos norte-americanos, não com o povo ucraniano, porque seria até um paradoxo na medida em que despreza e ofende o próprio povo português; condecora (com o Grande-Colar da Ordem da Liberdade!) um dos principais inimigos do povo ucraniano, conduzindo-o para uma guerra que antes de terminar já mostrou que é um autêntico genocídio, mas em privado, possivelmente, para não ficarem imagens para o futuro; e, como cereja no topo do bolo, convidou-o para visitar Portugal; e, já com saudades, prometeu uma nova ida à Ucrânia, que muito possivelmente será frustrada porque então a Ucrânia já não existirá como estado.

Marcelito, com barriga cheia de missão cumprida, e depois de ter alargado as fronteiras do glorioso império, "a fronteira de Portugal é a fronteira da Ucrânia", de reafirmar, não deixando de ser irónico vindo de quem vem, o mestre da duplicidade e da intriga, que "não há jogo duplo" de Portugal em relação à adesão da Ucrânia à UE, e sabendo-se da posição de Costa sobre a questão de novas adesões e das verbas que já eram insuficientes antes da União ter entrado em recessão económica, prepara-se para a luta: “não há drama, a vida continua”, depois de conhecer a posição do governo em reafirmar as medidas do Mais Habitação na Assembleia da República.

Quando o país está a arder de lés a lés, com o ministro Carneiro a afirmar que a principal responsabilidade pela desgraça é a falta de cuidado do povo, e não a política de desprezo pela floresta e de apoio às celuloses e aos empresários dos meios de combate; quando a economia portuguesa está a dar sinais claros de estagnação e em breve de recessão, com a queda do turismo que nem a JMJ salvou, apesar das declarações espampanantes de Moedas, de Costa e de Marcelo, que traria enormes retornos; quando os partidos da oposição se encontram sem rumo e sem saída para a situação de crise económica crónica embora mitigada, com o líder do principal partido da oposição a ser um dia destes trocado pelo actual presidente da câmara de Lisboa; quando o país vem sustentado uma vasta e variada corja de gente corrupta, com o rebentar de casos sucessivos de corrupção dentro e fora da administração pública; só falta então a luta intestina e assanhada entre o presidente da república Marcelo e o primeiro-ministro Costa. 

Ou será tudo uma encenação, já que estamos perante dois grandes artistas, enquanto o povo vai sendo massacrado?!

segunda-feira, 21 de agosto de 2023

A indústria dos incêndios em Portugal

 

Escrita há meia dúzia de anos mas cada vez mais actual graças ao governo PS, com ilustração actualizada de henricartoon

Nem tudo são boas notícias e agora quando o governo PS/Costa se regozijava com a saída do país do Procedimento por Défice Excessivo e com a agência de notação financeira Fitch a rever a perspectiva da dívida pública portuguesa de estável para positiva, embora a nota em BB+, ou seja, "lixo" (do bom), tiveram de vir de lá os incêndios, este ano a época começou mais cedo e com maior violência, com o acrescento trágico de várias dezenas de mortes e de feridos (ao momento: 61 mortos e 62 feridos).

É mesmo para dizer que os governos do PS atraem a desgraça, lembremo-nos da queda da ponte Entre-Rios com 59 mortes, no governo PS/Guterres, tragédia cuja responsabilidade morreu solteira; o mesmo acontecerá agora. Há 16 anos foi o pilar da ponte Hintze Ribeiro que estava velho, desta vez, foi a trovoada seca; é sempre culpa da natureza, quando não é de algum trabalhador mais distraído. O governo? o sistema capitalista explorador cuja ganância pelo lucro tudo destrói?, esses nem sequer são mencionados.

Portugal tem sido há uns vinte anos o país com mais incêndios por habitante e maior área ardida na Europa; há anos em que mais de metade da área flagelada da UE é em Portugal. Não é por acaso que visto do espaço o nosso país é o mais desertificado da Europa e com a mancha florestal sempre a diminuir, ao contrário do que acontece nos outros países da Europa do Sul, igualmente sujeitos a altas temperaturas durante grande parte do ano. Não se admirem, portanto, que chova cada vez menos e que as temperaturas sejam cada vez mais altas de ano para ano, porque é o resultado lógico da desflorestação do país. E com uma causa última: o capitalismo, por natureza, predador. Há incêndios por uma simples razão: de uma maneira ou de outra, dão lucro a alguém e um lucro fácil sem grande investimento.

Andam por aí umas boas almas a queixarem-se das razões dos incêndios e, em particular, da desertificação humana do interior do país. Ora, se os governos do PS e do PSD não têm feito outra coisa, principalmente desde a entrada do país na então CEE, senão encerrar escolas, caminhos-de-ferro, estações dos CTT e da CGD, e encerrar ou limitar a actividade de centros de saúde e de hospitais, o que esperar então da demografia da população de regiões cujas carências, a todos os níveis, não tem cessado de progredir? Como autêntico incêndio, a desertificação humana explicada também pela falta de empregos e baixos salários que, por sua vez, causa de aumento da emigração não só para os grandes centros urbanos do litoral como principalmente para o estrangeiro.

O governo e restantes ditas "autoridades responsáveis" continuam a bater na tecla das "causas naturais", desta feita foi a "trovoada seca", foi uma "árvore" que, atingida por um raio, deu inicio à tragédia, facilitada pela pouca humidade existente no ar e pela vegetação ressequida. Só que há um simples "senão", o chefe da PJ não disse que espécie de árvore é que deu o início à ignição – foi um eucalipto?, foi um pinheiro?, o homem não diz! – e quase ninguém, com excepção de um jornalista da RTP, falou qual a espécie arbórea mais ardida; ora, toda agente sabe que o país tem sido transformado há umas duas ou três décadas num imenso eucaliptal (32% de toda a área florestal, já à frente do pinheiro bravo), substituindo o pinhal imposto à força pelo Salazar, no benefício das grandes empresas da indústria da pasta do papel. E mais ainda: não se ouviu, pelo menos até agora, ninguém questionar o governo PS/Costa se já revogou ou não a tristemente celebre lei da Cristas/Passos Coelho que liberalizou a plantação do eucalipto por todo o país. Vimos e ouvimos, sim, sem contraditório avançado pelos jornalistas, as palavras falsamente pesarosas e absolutamente hipócritas daqueles dois crápulas políticos.

Mas não são só os concelhos de Pedrógão Grande, Castanheira de Pera, Figueiró dos Vinhos, Góis e Penela, os distritos de Leiria, Coimbra e Castelo Branco, e outras regiões do país, que estão a arder, tendo até este momento mobilizado 2.605 operacionais, 764 viaturas e 26 meios aéreos, para fazer frente a 51 fogos, 14 em curso, 32 em conclusão e cinco em resolução (dados da Protecção Civil, às 15 horas e 15 minutos, no dia 18 de Junho de 2017, era DC, para que conste), é todo o país. É o povo trabalhador português que sofre. São os baixos salários: no início do ano havia cerca de 730 mil trabalhadores abrangidos pelo SM, mais 13,9% do que em Março de 2016, e o salário médio oferecido nos novos contratos efectivos rondava 810 euros brutos por mês e a prazo era 665 euros, o que dá uma diferença de apenas 145 euros, enquanto, no início de 2014, essa diferença era mais do dobro (384 euros).

É a precariedade permanente e crescente: na Feira do Livro de Lisboa, que ocorreu no início do mês, os trabalhadores que, dentro dos contentores, vendiam os livros, ganhavam 3 euros à hora e com contrato por duas semanas; algumas caves de vinho do Porto estão a contratar gente a 2,5 euros à hora e a recibo verde; e o Pingo Doce, que foge ao pagamento dos impostos, propôs aos familiares dos seus trabalhadores um “estágio” durante o Verão, no Algarve, a trabalhar 10 horas por dia, com turnos rotativos, a troco de 500 euros. As exportações aumentaram 0,4% e as importações subiram 10,8% em Abril face ao período homólogo, o que se traduziu num agravamento do défice da balança comercial para 1.239 milhões de euros. E a dívida pública aumentou em Março para 243,5 mil milhões de euros, mais 23 milhões de euros por comparação com Fevereiro; dívida que está e vai continuar a ser paga pelo povo trabalhador com língua de palmo.

Podem vir, pela enésima vez, falar de falta de meios para apagar os incêndios, de falta de acessos no terreno, da má gestão da floresta, da falta de emparcelamento e de outras tretas do género, que de tantas vezes repetidas já ninguém as ouve porque ineficazes e, mesmos estas, sem que haja a mínima vontade política de as implementar, porque quem detém o poder sabe das verdadeiras razões e deixará mais uma vez as coisas como sempre estiveram. E o PS é hábil em querer contentar gregos e troianos, mas sempre beneficiando os mesmos de sempre, no caso, quem lucra com os incêndios.

Numa primeira análise duas ou três medidas resolveriam o problema: gestão colectiva e pública da floresta; reintrodução de espécies nativas a fim de restabelecer a flora original e proibição total do eucalipto e do pinheiro bravo, duas espécies estranhas que vieram ajudar à destruição do ecossistema mediterrânico (antes da nacionalidade, o território era coberto de norte a sul, incluindo o Alentejo, por floresta e vegetação característica desta parte da Península Ibérica); todos os meios de combate aos incêndios são propriedade do estado. E, acima de tudo, substituir a economia capitalista, predadora dos recursos da natureza e exploradora do ser humano, por uma economia socialista a fim de satisfazer as necessidades do povo português, nas diversas áreas da vida.

Leitura interessante sobre a floresta portuguesa:

http://www.jornalmapa.pt/2015/07/01/a-floresta-que-nos-resta/

18 de Junho 2017

Imagem em: https://henricartoon.pt/tragica-recorrencia-1545240 

terça-feira, 15 de agosto de 2023

Quando os impostos sobre os trabalhadores aumentaram brutalmente

 Na senda da acumulação do capital

Desempregados à espera dos cabazes de natal, 2013 - Bruno Simões Castanheira - http://www.projectotroika.com/

Crónica escrita em tempos da troika e do governo de má-memória de Passos Coelho/Paulo Portas que subiu brutalmente os impostos lançando o povo português na maior das misérias. Agora, o Montenegro diz ter uma arma miraculosa para o bem-estar dos portugueses: "descer os impostos"!....

Os trabalhadores pagaram IRS em 2013 como nunca tinham feito, foram esbulhados pelo estado capitalista em mais 3223 milhões de euros, mais 35,5% do que em 2012, totalizando 12.308 milhões de euros, ou seja, 34% do total das receitas fiscais; enquanto isso, os patrões beneficiaram de perdões fiscais (mais de mil milhões de euros em 2012), viram o IRC aliviado em 2% e, em futuro próximo, o IRC será para diminuir ainda mais para, segundo o jargão, atrair capital estrangeiro e arrancar com o “milagre económico”. E o IRS subir mais um pouco, já que “Portugal tem hoje um número de escalões que não existe em outros países europeus”, diz o secretário de estado. E a hipótese de cortes adicionais nos salários não está descartada porque “não é possível cumprir o objetivo de baixar os impostos em 2015 sem controlar a despesa pública”, diz o ministro.

Esta sangria dos rendimentos do trabalho para o capital parece que não tem fim, a política de austeridade veio para ficar pela simples razão de que o capitalismo não saiu, nem parece sair, da crise onde se atolou pelas sua própria natureza, e os números estão aí. Entre 2008 e 2012, depois do eclodir da crise com o rebentamento da bolha especulativa dos créditos subprimes e da falência do norte-americano Lehman Brothers, os estados europeus apoiaram os bancos nacionais de forma encoberta em cerca de 1,33 biliões de euros, isto é, cerca de 10,3% do Produto Interno Bruto da União Europeia, para além dos apoios directos e oficiais de 634,1 mil milhões de euros, cerca de 5% do PIB; ou seja, no total foram 15,3% da riqueza da Europa que foram entregues ao bandido (bancos).

Mas o saque não ficará por aqui, porque a situação de bancarrota não foi superada, os bancos da Zona Euro ainda precisam de mais 767 mil milhões de euros, o quer dizer que mais de 20% da riqueza produzida na Europa será delapidada pelos bancos. A saída da crise terá forçosamente de passar pelo superar do sistema económico capitalista e a primeira medida inevitavelmente será a nacionalização por cada estado de todo o sistema bancário e financeiro.

Mas para quem ainda tenha dúvidas, os recentes números quanto à grande concentração de riqueza em menos de 1% da população com o concomitante empobrecimento da restante população são mais que esclarecedores. A metade mais pobre da população mundial possui a mesma riqueza que as 85 pessoas mais ricas do mundo, segundo relatório recente da ong Oxfam; cerca de 1% dos mais ricos aumentaram os rendimentos em 24 dos 26 países, para os quais os dados estão disponíveis, entre 1980 e 2012, e que sete em cada dez pessoas vivem em países onde a desigualdade económica aumentou nos últimos 30 anos; entre estes países encontra-se Portugal onde os rendimentos dos 1% dos mais ricos mais do que duplicaram desde 1980. Haverá melhor prova de que o capitalismo é insaciável na sua ânsia pela acumulação e que esta tem sempre no polo oposto a mais absoluta miséria?

A continuação do capitalismo levará à sua implosão e à destruição da própria humanidade pelo interminável empobrecimento de mais de 99% da população, para além da exaustão dos recursos do planeta. Não há que reformar ou instituir regras à exploração do trabalho pelo capital, há sim que quebrar esta cadeia, começando por estoirar com a cadeia imperialista que subjuga Portugal ao domínio da Alemanha, com a saída do euro.

Esta luta contra o sub-imperialismo alemão passa em primeiro lugar pela luta sem tréguas contra as elites nacionais que partilham em menor grau do bolo resultante do saque sobre o povo português. Elites que têm como modo de sobrevivência a corrupção e o compadrio, a mesma Oxfam, no relatório "Governar para as elites: sequestro democrático e desigualdade económica", conclui que a concentração de 46% da riqueza em mãos de uma minoria supõe um nível de desigualdade "sem precedentes" que ameaça "perpetuar as diferenças entre ricos e pobres até as tornar irreversíveis".

Os casos mais recentes de políticos enfiados até aos gorgomilos na corrupção são esclarecedores: o pregador moralista Marques Mendes, cuja empresa mas não a pessoa (note-se a nuance) enganaram o fisco em 773 mil euros com a venda ilegal de acções; e o actual secretário de Estado da Segurança Social, Agostinho Branquinho, que, aquando deputado, pressionou ao licenciamento do hospital privado S. Martinho, de um amigo seu, em que uma denúncia (!) de corrupção foi usada como instrumento de pressão. Gente sem moral que gosta de enviar o produto do saque pessoal para os paraísos fiscais, como agora ficou mais uma vez provado com a divulgação dos dados da investigação internacional sobre o universo dos paraísos fiscais da nova burguesia chinesa, já conhecida por “Chinaleaks”, e onde foram encontrados 18 registos que ligam Portugal.

Enquanto medra a corrupção e sobe o saque (a dívida das empresas públicas subiu 565 milhões de euros desde a chegada da troika, atingindo já os 47 mil milhões de euros, 28,4% do PIB nacional), o povo é mantido no engano para deixar-se roubar, pelo menos é o que se retira dos dados do inquérito feito pela AMI que traça o perfil da pessoa em situação de pobreza: uma mulher desempregada, entre 40 e 59 anos, escolaridade entre o 2º e 3º ciclo do ensino básico, e carências alimentares.

A burguesia e o seu governo celerado contam com a despolitização de largo sector do povo e daquele que sendo pobre não tem consciência do facto, como o universo inquerido pela ong nacional que, por sua vez, recebe muitos milhares de euros do erário público: apesar de 88% dos entrevistados terem um rendimento per capita inferior a 421 euros, apenas 48% consideravam estar em situação de pobreza. Em relação às camadas mais combativas do povo trabalhador lá estão os sindicatos com a UGT à cabeça com a lenga-lenga esfarrapada de “temos o dever de não derreter a esperança dos portugueses”, qual esperança? em quem? e em quê?

Os trabalhadores portugueses há muito que perderam a esperança neste governo e nesta política, contudo, não sabem ainda qual o caminho a seguir porque não vêem alternativa ao actual regime democrático burguês e ao sistema de exploração que por detrás se encontra. Uma das razões desta falha de perspectiva são os actuais partidos, nomeadamente os partidos que se reivindicam da esquerda comunista ou revolucionária que são mais papistas que o papa, teimando em manter a luta no actual quadro institucional. Contudo, não estará longe o dia em que esta barreira será rompida. Nada existe para sempre.

31 de Janeiro de 2014 

quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Os direitos reprodutivos e sexuais das mulheres

 

 Elfried Harth

"Lutar contra os direitos reprodutivos das mulheres, contra a legalização do aborto, é tomar partido contra a vida das mulheres, pois prefere-se arriscar a saúde e a vida de alguém de quem ninguém duvida que é uma pessoa, embora talvez de sexo feminino, pretendendo proteger a vida de um ser de quem é impossível ter a certeza de que é uma pessoa. Abortar só uma mulher o pode fazer. Cometer um homicídio, também um varão o pode fazer. Mas ambos os actos são sancionados de modo diferente. Isso demonstra que a preocupação principal da Igreja é controlar o corpo, a sexualidade e a capacidade de reprodução das mulheres, pois aqui encontra-se o fundamento da estrutura de poder patriarcal da Igreja.”

(Conferência “Os direitos reprodutivos e sexuais das mulheres” da teóloga Elfried Harth, pertencente ao Colectivo Católicas pelo Direito a Decidir, in XXVI Congresso de Teologia de Madrid, em Setembro de 2006)

A preocupação principal da Igreja é controlar o corpo, a sexualidade e a capacidade de reprodução das mulheres

Convidaram-me para dar o meu contributo à reflexão que, como cristãs, cristãos estamos a realizar aqui neste Congresso sobre a bioética, com um destaque a partir da perspectiva dos direitos reprodutivos e sexuais das mulheres. Talvez seja bom começar por tentar examinar o que é que entendemos por “Direitos reprodutivos e sexuais”.

Agrada-me muito uma definição que deram umas mulheres camponesas mexicanas, num dos muitos encontros que o colectivo Católicas pelo Direito a Decidir realiza no México e noutros países latino-americanos onde trabalha. Formularam-no mais ou menos assim: É o direito das pessoas a sentir-se agradecidas pelo corpo que Deus lhes deu, um corpo dotado, por um lado, da capacidade do prazer e, por outro, da capacidade de produzir novos seres humanos; é o direito a explorar e a viver plena e positivamente essas duas capacidades, e a viver e a desfrutar plenamente cada uma de per si; é o direito a construir-se como pessoa moralmente autónoma, adulta e responsável através do exercício dessas capacidades e poder exercê-las plenamente; é o direito à integridade física e psicológica; é o direito a saber e a exigir que o princípio fundamental de cada relação íntima de casal é a justiça, a responsabilidade pelo próprio corpo e o bem-estar, assim como pelo corpo e o bem-estar do casal; é o direito a determinar o número de filhos que se quer ter, assim como o momento em que se quer ter; é o respeito por esse dom tão precioso que Deus nos deu, o nosso corpo, respeito que a nossa tradição católica proclama e ritualiza, por exemplo, no sacramento da unção dos doentes e nos ritos da sepultura dos mortos.

Quais as condições para viver esses direitos?

O matrimónio por toda a vida é sem dúvida alguma uma instituição muito importante no contexto do exercício da sexualidade humana, antes de mais quando uma pessoa ou um casal opta pela procriação, e se trata duma relação estável que proporcione segurança e continuidade na tarefa da criação dos filhos. Porém, sabemos todas, todos que não é a forma jurídica duma relação, nem o seu carácter heterossexual ou monossexual o que garante a sua qualidade, e, por isso, o que chamamos “direitos sexuais e reprodutivos”, mas sim a justiça que reina dentro da relação de casal. Para poder desfrutar os seus direitos sexuais e reprodutivos, as pessoas têm que respeitar-se, primeiro, a elas próprias e depois o respectivo casal.

Direitos sexuais e reprodutivos não devem confundir-se com libertinagem e irresponsabilidade.

Trata-se, pelo contrário, de que a sociedade, todas as mulheres, todos os homens criemos as condições que permitam que as pessoas possam desfrutar o seu corpo de maneira sadia. Começando por rejeitar rotundamente todo o tipo de violência e de coerção, que é precisamente a negação da justiça. Começando por proporcionar a cada menina, menino e a cada adolescente uma educação sexual e emotiva que lhes permita desenvolver uma atitude respeitosa e responsável perante o corpo, uma atitude positiva perante a sexualidade e uma consciência madura perante o que significa trazer um filho ao mundo. O corpo e as suas faculdades são algo precioso que não se desperdiça, mas que se cuida e que se desfruta.

Trata-se de que toda a pessoa conheça e tenha acesso aos meios que lhe permitam exercer a sua sexualidade de forma gozosa e sem riscos para a sua saúde física e mental. Começando por saber dizer NÃO a algo que não se deseja. Uma adolescente, uma mulher, toda a pessoa tem que saber que é legítimo dizer NÃO a relações carnais que ela não esteja a desejar, a relações que contenham riscos para a sua saúde, a relações que não incluam métodos de protecção contra infecções ou contra uma gravidez não desejada. Deve, por exemplo, saber que é legítimo e sin­toma de responsabilidade usar e reclamar o uso do preservativo, para prevenir uma gravidez não desejada ou uma infecção.

Em Dezembro passado, o colectivo Católicas pelo Direito a Decidir organizou uma viagem pelo Perú e pelo Brasil para um grupo de seis parlamentares de vários países europeus. O objectivo da viagem era permitir a essas seis legisladoras europeias explorar o impacto que a religião tem sobre os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres na América Latina.

Tiveram que ouvir horrores em todo o lado sobre o empenho que a hierarquia eclesiástica põe para os obstruir, desde a educação sexual da juventude nos colégios até ao acesso a meios contraceptivos para a população pobre. Ao mesmo tempo, houve também experiências muito comovedoras, como o encontro com uma freira brasileira que colabora com o colectivo Católicas pelo Direito a Decidir, do Brasil.

Essa mulher trabalha na pastoral de prostitutas e há pouco tempo concluiu uma tese de teologia com Maria José Rosado, a directora do colectivo Católicas, que trabalha na Universidade católica de S. Paulo. Trata-se duma tese sobre a religiosidade das prostitutas, sobre a mariologia destas mulheres. Contava-nos que têm uma imen­sa devoção a Maria, na qual vêem a grande consoladora, uma pobre mu­lher do povo, que compreende as suas penas, sem as julgar. No fundo, vêem nela o rosto compassivo de Deus. E é precisamente este um dos objectivos maiores do trabalho da religiosa: anunciar a essas mulheres a Boa Notícia, trabalhar sobre os tremendos sentimentos de culpabilidade que as oprimem.

Há algumas que há anos não voltaram a comungar, embora sintam uma grande sede de se aproximar da mesa do Senhor. Vão à missa, mas ficam no último banco, pois sentem-se indignas de ir mais acima. Sentem que pecaram e que terão que voltar a pecar, pois são mães e têm que dar de comer aos seus filhos. Sofrem por ter cometido doze, quinze abortos, por não terem podido proteger-se contra uma gravidez não desejada. Sofrem de cada vez que tiveram que negar a vinda ao mundo de um filho, mas fizeram-no porque queriam evitar-lhes o destino que os esperava como filhos de prostituta.

A religiosa faz-lhes ver que o que ela reconhece nos actos que tanto as culpabilizam é, afinal, amor: concretamente, optaram por carregar com uma culpa por amor ao próximo, por amor a essa criatura não nascida, por amor aos filhos que já têm e para os quais um irmãozito mais seria uma carga muito pesada. E então ela apoia o colectivo Católicas pelo Direito a Decidir na sua luta pela despenalização do aborto, por amor e respeito para com estas mulheres. Sabe que cada vez que uma delas tenha que praticar um aborto clandestino, a sua vida corre perigo. E tem a convicção de que a vida de cada uma delas é amada por Deus e que cada uma delas tem o direito à vida, à integridade física, à dignidade.

Defender os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres é, portanto, uma opção pelos pobres. É lutar por que o acesso à educação sexual, aos meios contraceptivos e em último recurso ao aborto não sejam privilégio exclusivo de quem tem dinheiro para os comprar. Para que também a adolescente mais humilde e a mulher mais indigente não tenham que arriscar a sua vida e a sua saúde, mas que se lhes reconheça a dignidade de serem agentes morais no que respeita à sua sexualidade e à sua capacidade de reprodução e que possam viver uma sexualidade sadia, positiva e gozosa, em relações justas e responsáveis.

Agora perguntareis: E que tem tudo isto a ver com a bioética, esta disciplina recente que se vem forjando na intersecção da biologia, medicina, filosofia, teologia, direito e política?

Diria que o aparecimento da bioética como disciplina é precisamente um dos muitos sintomas duma revolução profunda e global de nossos conhecimentos, em que estamos comprometidos todas, todos, e que exerce um tremendo impacto sobre todos os aspectos das nossas vidas e da nossa consciência como seres humanos.

O que significa esta revolução para as mulheres? O que significa para o seu corpo e para os seus direitos relativamente ao seu corpo? O que si­gni­fica para a sua capacidade reprodu­tiva e para os seus direitos relativa­mente à sua capacidade reprodutiva? O que significa para a sua sexualidade e para os seus direitos relativamente à sua sexualidade? O que significa para a ordem de poder da nossa sociedade, uma ordem baseada na diferença dos sexos, por sua vez, organizada numa hierarquia dos sexos, na qual o masculino prima e reina sobre o feminino?

Estas são apenas um par das muitas perguntas que surgem quando en­tra­mos nesta problemática. E é muito difícil formular respostas. Penso que, quanto a certezas e verdades encontramo-nos actualmente numa situação parecida à do povo eleito, nos tempos do Faraó: O Espírito que é como um vento invisível que não se deixa encurralar, mas sopra livremente por onde quer, está a convidar-nos ao êxodo, a partir para horizontes desconhecidos, sem mais garantias que a fé numa promessa e a esperança de alcançar o prometido. Encontramo-nos numa situação em que todo o tipo de fronteiras começam a desvanecer-se. E com isso começa a cambalear a ordem social. E é esse o motivo que explica o recru­descimento de todos os fundamentalismos a que estamos a assistir na actualidade, fundamentalismos que são sinto­mas do medo perante as incertezas e os questionamentos da ordem social, sintomas duma resistência a toda a mudança, à necessidade de reformular ou reinterpretar os mitos fundadores das nossas tradições.

É altura de sublinhar que todos os fundamentalismos, sejam cristãos, muçulmanos, judeus, nacionalistas, ou de qualquer outro tipo, têm uma preocupação chave, que é a negação dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, o afã por controlar o corpo das mulheres. Embora possam estar em guerra uns contra os outros, já em matéria de negação dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, os fundamentalistas são incondicionais aliados.

Assim a Santa Sé, graças ao privilégio que goza de ser a única reli­gi­ão à qual se reconhece o estatuto de observador não membro das Nações Unidas, não tem o menor escrúpulo em unir-se aos governos de Estados como Sudão, Iraque, Líbia para obstruir todo o avanço ao nível de política internacional em matéria de direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. E com a chegada de George W. Bush à presidência dos Estados Unidos, este país passou a ser o seu melhor aliado nesse campo, motivo pelo qual os bispos americanos apoiaram a sua reeleição em 2004, em detrimento do seu opositor católico. Preferiram que voltasse a ser eleito presidente, um protestante que desencadeou a guerra no Iraque e que governa contra os pobres no seu país, desde que isso viesse a impedir a chegada à presidência de um católico partidário dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.

Porque se sentem tão ameaçados os fundamentalistas pelos desenvolvimentos científicos recentes?

Porque estes questionam profundamente os fundamentos antropológicos que regem a simbologia dos nossos sistemas de poder, tanto a simbologia religiosa como a política.

Com o desenvolvimento das tecnologias da reprodução assistida, da clonagem, por exemplo, as categorias de oposição e de complementaridade dos sexos, isto é, a fronteira que os separava, que servia para estabelecer e justificar uma determinada ordem social, começa a deixar de ser pertinente.

Se até à data a reprodução biológica da espécie humana requeria a existência duma humanidade sexuada e a interacção sexual entre dois seres de sexo oposto, vislumbra-se que isto não continuará a ser indispensável no futuro. Pelo menos, não o será cientificamente, teoricamente. Isto é, ainda que os nossos legisladores continuem a proibir a clonagem reprodutiva e os nossos cientistas respeitem essa lei, o que o nosso entendimento nos permite vislumbrar, o que a nossa mente actualmente é já capaz de imaginar e de pensar, não deixará de ter um profundo impacto sobre a antropologia e, como corolário, sobre a teologia.

Demonstrou-se que é possível produzir um novo mamífero a partir de um ovocito nucleado desta espécie de mamífero à qual se implantou o núcleo de outra célula de qualquer outro indivíduo dessa espécie. Quer isto dizer que a reprodução deixa de depender exclusivamente da sexualidade. Reprodução e sexualidade são duas coisas distintas e desligadas uma da outra. É concebível criar um indivíduo da raça humana, distinto dos demais da sua es­pécie, a partir de um ovocito, e sem necessidade de esperma. Ainda se precisará, para o desenvolvimento desse clone, de um útero, pois a ciência ainda não conseguiu desenvolver incubadoras que possam suprir o ventre da mulher.

Significa isto, à distância – ao menos teoricamente – que se continuaria a precisar de mulheres, mas já não haveria necessidade de varões, para que a espécie humana continue a perpetuar-se e não desapareça da face da terra.

Podemos então imaginar uma sociedade humana configurada por indivíduos que já não são “o fruto do homem”, ou para dizer de maneira mais precisa, “o fruto do varão”. Porém, o que significam então, nessas condições, categorias antropológicas e, como co­rolário, políticas e religiosas como as de “pai”, “irmão”, “filiação”, “linhagem”, “descendência”, “antepassados”, “geração”?

Dar-nos-emos conta de que não precisamos de chegar até à biorevolução para que muitas destas categorias sejam redefinidas. Já estamos a assistir a isso, por exemplo, com o reconhecimento do matrimónio gay . A biorevolução no fundo só concede maior plausabilidade às mudanças antropológicas que estamos a viver, corroborando no biológico o que já estamos a experimentar no social e no jurídico: que as fronteiras que nos pareciam inquestionáveis e evidentes – a Lei Natural ditada por Deus e reflexo da sua vontade divina desde um princípio, agora e sempre e pelos séculos dos séculos amén – cada dia o são menos.

O que significa então ser mulher? E que significa ser varão? Admito que, embora julgo intui-lo, definindo-me eu mesma como uma mulher, a verdade é que sinto-me incapaz de dar uma definição categórica e essencialista, que estabeleça sem ambiguidade alguma a fronteira entre os dois seres, catalogando um na categoria “varão” e o outro na categoria “mulher”. Sinto que a fronteira entre ambos está a desvanecer-se, é cada mais opaca.

O que significa esta biorevolução para o corpo das mulheres e para os seus direitos relativamente ao seu corpo? O corpo das mulheres foi sempre em todos os sistemas políticos e económicos que conhecemos, a matéria-prima destinada a produzir e a reproduzir o bem mais precioso da espécie humana que é a sua própria sobrevivência e a sua própria perpetuação. Foi a fonte da força de trabalho necessária para criar tudo o que a humanidade tenha podido considerar como riquezas, e isto antes de que estas riquezas pos­sam ser acumuladas ou repartidas. Os varões também desempenharam um papel indispensável neste trabalho, mas uma diferença económica central entre varão e mulher é que a quantidade de tempo que o varão precisa investir no desempenho do seu papel biológico de reprodutor é sumamente breve, apenas um par de instantes, enquanto que a parte que incumbe à mulher se prolonga no mínimo por um período de nove meses.

Num mundo em que a única função dos varões e das mulheres fosse a reprodução, e que um varão fecundasse apenas uma mulher por dia, um varão precisaria dumas 300 mulheres para optimizar a sua capacidade reprodutiva, enquanto que a uma mulher bastaria ter relações reprodutivas com um homem cada 300 dias para optimizar a sua. Numa povoação de igual número de varões e de mulheres, sobrariam 299 varões por cada mulher. Ou para o formularmos em linguagem económica: o valor biológico-económico duma mulher seria equivalente ao de 299 varões. Pelo menos em sociedades em que a reprodução biológica da espécie humana se opere segundo a tradição sexuada-sexual. Pois no horizonte duma reprodução por clonagem, o valor biológico do varão chega ao zero, zero.

Todos os povos que se dedicaram à criação de animais compreenderam desde os mais remotos tempos históricos esta diferença no valor dos sexos: Conservam as preciosas fêmeas que proporcionam leite e crias ou ovos, e sacrificam os machos de valor incomparavelmente inferior, para proporcionarem carne para a dieta do grupo, conservando unicamente um par de reprodutores.

E podemos estar seguros de que a origem remota de toda a ordem social e política de que se dotou a espécie homo sapiens radica na apropriação e no controlo desse valor in­com­parável que representa na sociedade humana a capacidade reprodutiva inerente ao corpo das mulheres. E a ordem patriarcal consiste em que aqueles indivíduos do sexo masculino que consigam apropriar-se ou ao menos controlar o corpo e o produto do corpo das mulheres, são também aqueles que detêm o poder. E a obsessão pelo controlo do cor­po das mulheres é talvez a melhor medida para apurar o grau de fundamentalismo patriarcal de qualquer sistema de poder.

O exemplo mais flagrante proporciona-o a nossa Santa Mãe Igreja Católica Apostólica e Romana. Essa “senhora”, que é uma estrutura de poder que em realidade está constituída exclusivamente por varões que renunciaram à sua capacidade reprodutiva biológica, em troca do máximo título de autoridade patriarcal que é o de “pai”, é um colectivo exclusivamente masculino que decide quais são as regras que regem a sexualidade.

Primeiro, a daqueles varões que preferiram renunciar ao poder dentro da dita estrutura a favor do exercício da sua sexualidade [os leigos]. A Santa Mãe Igreja impõe-lhes que a única sexualidade legítima é a heterossexual, isto é, aquela que implica interacção com o corpo duma mulher, com a qual estejam unidos em matrimónio indissolúvel. E de harmonia com a sexualidade das mulheres. Porém, o que antes de mais ela se arroga é o controlo exclusi­vo dos corpos das mulheres, quando estas se encontram em gestação, reduzindo-as a seres portadores no seu seio de um espaço extraterritorial, uma espécie de enclave do qual se vêm expropriadas enquanto se esteja desenvolvendo ali um fenómeno biológico que pode chegar a culminar na vinda ao mundo de um novo indivíduo da espécie humana.

Po­rém, este afã por expropriar a mulher gestante do seu corpo e do que este está a produzir, será realmente um afã para proteger a vida de um ser humano? Então, como explicar que pela destruição duma vida humana haja sanções diferentes, segundo os casos?

O direito canónico estipula que a sanção para o aborto é a excomunhão. Esta sanção não se aplica nem ao homicídio nem ao assassinato. Nem sequer ao massacre ou ao genocídio.

Se uma mulher grávida não quer assumir essa maternidade, e decide des­truir a vida que está a gestar-se no seu útero, ela tem duas possibilidades: Ou aborta, talvez aos dois ou três meses de gravidez, isto é, opta pela destruição do fruto do seu ventre antes de dar à luz, ou então dá à luz e mata logo a seguir o bebé que deu à luz.

Pois bem, o Direito Canónico considera os dois actos como crimes, mas distintos, dos quais o aborto merece uma pena muito maior que o infanticídio!

Com o aborto, uma mulher demonstra que reivindica a integridade do seu corpo, esteja este em fase de gestação ou não, e nega-se a aceitar uma “extra­territorialidade” dentro de si, sobre a qual outros possam deter a autoridade e o controlo. Por isso, estes ameaçam a mulher com a excomunhão. Não se tra­ta de castigar em primeiro lugar a destruição duma vida humana, mas a reivindicação da soberania moral da mulher, a reivindicação do controlo sobre o seu próprio corpo.

Aqui radica a importância do reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres: é a condição para que todas as mulheres possam reivindicar a integridade do seu corpo. É necessário que se reconheça a cada mulher o direito a decidir qual é a opção legítima para ela, no caso duma gravidez: ou a de a levar ao fim, ou a de lhe pôr fim. Para que a maternidade seja algo realmente digno e humanizante, é preciso que se reconheça também como legítima a opção do aborto. Pois a minha maternidade só é realmente uma opção positiva e livre, se eu posso legitimamente optar pelo aborto, realizando-o. E embora o Vaticano, no seu afã de poder, tente escondê-lo, essa é a doutrina católica genuína. Pois cabe recordar aqui que uma das componentes fundamentais da tradição católica é que a consciência individual bem (in)formada é a suprema instância moral.

Um acto não é um crime porque sim, mas segundo as circunstâncias em que se cometa. Se uma mulher opta por um aborto, depois de ter orado e pesado no seu coração e consciência os diferentes aspectos da situação em que se encontra, chegando à conclusão de que no seu caso concreto o aborto é a opção mais responsável, pecaria se agis­se contra a sua consciência não abortando. Trata-se duma decisão grave e difícil. E ninguém pode negar que um aborto implica a destruição de uma vida humana. Porém, a Igreja católica admite que há casos graves em que a destruição duma vida humana pode justificar-se. Assim, desenvolveu toda uma teologia da guerra justa, por exem­plo. Nela enumera as condições nas quais se justifica destruir vidas de seres humanos nascidos, de pessoas. Ao contrário, é muito pouco o que existe no campo da teologia do aborto justo. Praticamente reduz-se ao que compilámos e sistematizámos em Católicas pelo Direito a Decidir, e que é parte duma teologia feminista da libertação.

Assim, perguntamo-nos, por exemplo: Porque se consideraria que uma mulher é capaz de trazer ao mundo uma criatura humana e de criá-la e de ajudá-la a ser uma pessoa adulta e responsável, mas já não se crê que ela seja capaz de decidir, quando se encontra grávida sem ter optado por isso, se quer e pode ou não assumir essa maternidade específica nas circunstâncias concretas da sua vida? E recordamos que, contrariamente ao que sucede no caso da destruição da vida duma pessoa numa guerra, ou num caso de legítima defesa, no caso do aborto a própria Igreja admite que não tem a capacidade de definir o momento em que se sabe com certeza que um embrião ou feto é uma pessoa humana.

Aqui precisamente, os recentes desenvolvimentos do conhecimento científico ajudam-nos a ver com maior claridade do que nos era possível até há pouco: que o que existe no momento da concepção é um conjunto de células plenipotenciárias sem especificação alguma. Não é possível falar ainda de pessoa humana. Pois é possível por exemplo que ocorra uma divisão des­tas células de tal forma que resultem não um, mas dois embriões. O que será então da alma imortal? Também poderá dividir-se em duas, ou será que já pre-existia em duplicado desde o princípio numa só célula?

Intuitivamente podemos compreender que, embora haja destruição de vida humana, não é o mesmo destruir um embrião, que uma pessoa nascida. Basta imaginar a cena seguinte: Uma médica trabalha num laboratório de reprodução assistida. Um dia, uma co­lega deixa-lhe um bebé de um ano no laboratório, enquanto vai resolver um problema no exterior. Pouco depois, produz-se um curto-circuito no laboratório que desencadeia um grave incêndio. Soam os alarmes e a doutora sabe que tem apenas um minuto para sair do laboratório e salvar a sua vida. Que decisão será mais ética: que tome nos braços o bebé que dorme na sua alcofa, para o livrar do perigo, ou que sacrifique esta jovem vida para salvar as 500 vidas de 500 embriões congelados que estão guardados na arca frigorífica do laboratório?

Lutar contra os direitos reprodutivos das mulheres, contra a legalização do aborto, é tomar partido contra a vida das mulhe­res, pois prefere-se arriscar a saúde e a vida de alguém de quem ninguém duvida que é uma pessoa, embora talvez de sexo feminino, pretendendo proteger a vida de um ser de quem é impossível ter a certeza de que é uma pessoa.

Abortar só uma mulher o pode fazer. Cometer um homicídio, também um varão o pode fazer. Mas ambos os actos são sancionados de modo diferente. Isso demonstra que a preocupação principal da Igreja é controlar o corpo, a sexualidade e a capacidade de reprodução das mulheres, pois aqui encontra-se o fundamento da estrutura de poder patriarcal da Igreja. E isto explica porque o Vaticano não pode aceitar os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, não pode aceitar a igualdade das mulheres, não pode permitir que as mulheres che­guem a simbolizar a autoridade institucional dentre da religião, pois toda a estrutura do poder e da autoridade da Igreja está baseada na negação da soberania moral das mulheres, no que respeita ao seu próprio corpo, à sua sexualidade e à sua capacidade de reprodução .

A obsessão do Vaticano contra o sacerdócio das mulheres não é senão o reverso desta medalha. Não pode o Vaticano permitir o acesso das mulheres ao sacerdócio, pois o sacerdócio, tal como o concebe o Vaticano, está baseado e pressupõe o controlo da sexualidade em geral e o controlo da capacidade de reprodução das mulheres em particular. No dia em que o Vaticano conceda às mulheres acesso ao sacerdócio, este deixa de ser o que é. E no dia em que o sacerdócio deixe de ser o que é, o Vaticano não terá nenhuma objecção em admitir as mulheres ao sacerdócio.

Será puro acaso que as primeiras reivindicações formais de mulheres para serem admitidas ao sacerdócio tenham coincidido com a invenção da pílula contraceptiva? Foi em 1963 que uma suíça e depois duas alemãs enviaram ao Concílio Vaticano II o pedido de que se considerasse a admissão de mulheres ao sacerdócio.

A pílula contraceptiva tornou independente a sexualidade da reprodução. A resposta do Vaticano foi a Humanae Vitae . Juntamente com a questão do celibato dos sacerdotes, Paulo VI retirou também a questão da contracepção das deliberações do Concílio Vaticano II. Pensando preservar a autoridade da Igreja, o que conseguiu foi dar-lhe um golpe quase mortal, pois confundiu autoridade com poder.

Com a revolução bioética que estamos a viver, agora é a reprodução que se está a tornar independente da sexualidade. As relações entre os sexos que anteriormente já haviam experimentado uma mudança profunda, como se verão agora afectadas? O que será da ternura, do prazer, do amor? Seremos capazes de aprendê-los, de os experimentar, de os proporcionar, sem passar forçosamente pela reprodução? Pela sexualidade? Pela heterossexualidade? Não são estas manifestações humanas, que sempre existiram, independentemente da reprodução e da sexualidade e da heterossexualidade, só que pelo afã de controlar a sexualidade e a reprodução muitas vezes nos esquecemos disso, até ao ponto de sermos capazes de justificar e de viver uma sexualidade e uma reprodução talvez heterossexuais, porém totalmente carentes de ternura, de prazer e de amor? Não estamos a assistir, precisamente através de fenómenos como o matrimónio gay , a transsexualidade, etc., ao aparecimento de novas estruturas sociais que mostram precisamente que a ternura, o prazer e o amor vão muito mais além das fronteiras definidas pelos do poder?

Talvez chegue um dia em que a mulher, que o corpo humano sexuado, deixe de ser indispensável para a criação de novos indivíduos humanos, para a perpetuação da espécie humana. Nesse dia, o controlo sobre esse corpo dotado duma capacidade específica perderá a sua importância e as estruturas de poder que se formaram para exercer esse controlo perderão também o seu objecto. Vamos permitir que tenhamos de esperar pela chegada desse dia, para inventarmos um mundo mais justo e mais propício para se viver com ternura, prazer e amor?

redescristianas

sábado, 5 de agosto de 2023

A igreja católica em cruzada contra os infiéis

Crónica escrita há algum tempo mas inteiramente pertinente atendendo ao momento actual de visita papal ao estado católico luso

António

É mesmo para se dizer que a Igreja Católica já não é o que era, isto quanto aos escândalos sexuais dos seus ministros. Já vão longe os tempos em que os conventos e mosteiros pouco se distinguiam de vulgares bordéis, onde freiras e abadessas recebiam os seus amantes, na maioria padres, aí tinham os filhos e os criavam, como no célebre convento do Lorvão, nas proximidades de Coimbra, cuja abadessa ficou na História por ter sido encontrada em alegre ménage à quatre com uma outra freira, o bispo de Coimbra e a sua amante. Basta ler Alexandre Herculano para ficarmos elucidados sobre o que se passava à época e o Lorvão não era caso isolado, a corrupção e a podridão eram gerais.

“... A imoralidade pululava por toda a parte, sobretudo entre o clero, e especialmente entre o regular... Os eclesiásticos, por exemplo, da vasta diocese de Braga eram um tipo acabado de dissolução....Os mosteiros ofereciam os mesmos documentos de profunda corrupção, distinguindo-se entre eles o de Longovares, da Ordem de Santo Agostinho, e os de Seiça e Tarouca, da Ordem de Cister, ou antes nenhum dos mosteiros cistercienses se distinguia, porque em todos eles os abusos eram intoleráveis”. Assim se referia Alexandre Herculano ao estado moral dos monges em pleno século XVI, mas quanto aos conventos das freiras a situação não era melhor: “Os conventos de freiras não se achavam em melhor estado, sendo o de Chelas, o de Semide e outros teatro de contínuos escândalos. A história de Lorvão e da sua abadessa, D. Filipa de Eça, é um dos quadros mais característicos daquela época... Das freiras então actuais uma parte nascera no mosteiro; suas mães não só não se envergonhavam de as criar no claustro e para o claustro, mas aí mantinham também seus filhos do sexo masculino”.

A devassidão misturava-se com o grande número de sacerdotes, como os proventos eram imensos assim as “vocações” não faltavam: “Um dos males que mais afligiam o reino era a excessiva multidão de sacerdotes. Havia pequena aldeia onde viviam até quarenta, do que resultava andarem sempre em competências, disputando uns aos outros as missas, enterros e solenidades do culto, com altíssimo escândalo do povo”. E mais adiante o nosso historiador não se cansa de apontar: “Um dos abusos frequentes que estes tais cometiam era casarem clandestinamente, podendo assim delinquir sem perigo, porque, se os processavam por algum crime de morte, declinavam a competência dos tribunais seculares, e suas mulheres, para os salvarem, não hesitavam em se envilecerem a si próprias perante os magistrados, declarando-se concubinas.”

Mas esta situação de casamentos clandestinos entre os padres levava ao surgimento de um outro fenómeno, o da bigamia, tudo sob a bênção da Santa Madre Igreja, e continuando com Alexandre Herculano: “Os casamentos clandestinos que facilitavam tais horrores, e que eram vulgaríssimos, produziam ainda outros resultados não menos deploráveis. Negava-se não raro, depois, a existência de um facto que se não podia provar, e o receio do rigor dos pais fazia com que muitas filhas aceitassem segundas núpcias pertencendo já a outro homem”. Os casamentos clandestinos não tinham como resultado apenas a bigamia, mas conduziam ao aborto em escala alargada: “Ainda quando não chegavam a esta situação extrema, a vergonha e o temor produziam infanticídios em larga cópia”.

 

Como se pode verificar, longe vão os tempos áureos dos casamentos clandestinos, da bigamia e dos abortos feitos em profusão dentro da Igreja sem que nenhuma santa consciência ficasse por isso mais pesada, já para não falar na devassidão reinante no Vaticano com papas e papisas à mistura, porque para isto também havia remédio: a confissão e o pagamento de multas pecuniárias tudo redimiam. Agora, os escândalos são outros, não passa praticamente nenhum mês que a imprensa não refira casos de pedofilia em que os diversos membros da hierarquia católica, desde padres a bispos e cardeais, se encontram envolvidos.

Para além do nosso caso doméstico do bispo do Funchal que ordenou padre o secretário, pedófilo e amante, e o fez sair da prisão onde se encontrava por presumível crime de homicídio e com contornos de envolvimento sexual, são frequentes os casos de pedofilia por esse mundo católico fora. Nos Estados Unidos, segundo peritos em questões religiosas citados pelo Washington Post , desde o início dos anos 80, cerca de dois mil padres de uma população de 51 mil foram acusados de abusos sexuais. Também foi na terra do Tio Sam que foram pagas as maiores indemnizações pela igreja Católica por crimes de abuso sexual em menores praticados pelos seus ministros, totalizando cerca de 148 milhões de contos, sendo a última de 4 milhões e 255 mil contos a oito meninos de coro que foram abusados sexualmente por um padre da diocese de Dallas, no Texas.

Mas não é só nos Estados Unidos que estas coisas acontecem, porque na civilizada Europa, nomeadamente na aristocrática Áustria, cardeais há que são acusados pelo mesmo tipo de crime. A recente viagem do papa a este país viu-se envolvida na polémica dos escândalos sexuais do arcebispo de Viena, cuja fraqueza eram os jovens seminaristas, e que muito a custo é que foi afastado do seu cargo, mantendo-se ainda no seio da igreja, e o padre, que fez a denúncia e que ainda continuava a falar sobre o assunto não respeitando o silêncio imposto ao clero, teve como prémio o seu afastamento da paróquia onde predicava.

Quando os padres, numa larga maioria, deixaram de ter a fama de devassos e femeeiros para ganharem a de homossexuais e pedófilos, a Igreja persiste nos seus preconceitos quanto ao celibato, ao uso do preservativo e à ordenação das mulheres. É que as solicitações agora são maiores, e não apenas no campo da sexualidade, no entanto a repressão mantém-se e o resultado não poderá ser outro senão o aparecimento de uma enormidade de aberrações.

Carlos Latuff

Mas há alguém que pretende dar uma explicação para isto, explicação que vem de dentro da própria Igreja Católica, e queira ver na repressão de uma “sobrevivência pagã” - como é ainda considerada cristianamente a sexualidade humana - a expressão de uma «psique neurótica» e de «uma psicologia dos grupos conduzindo à neurose». A atitude de sempre da Igreja católica, e reiterada em 1975 pela Sagrada Congregação da Fé quanto a questões de sexo e de castidade, é interpretada numa perspectiva psicanalítia por um dos seus últimos elementos proscritos, o teólogo e psiquiatra alemão Eugene Drewermann que vê como resultado no indivíduo (homem da igreja ou crente) desta política medieval «o menosprezo do ego, a “mortificação” da pulsão sexual e a submissão do indivíduo ao grupo (leia-se hierarquia)».

O mesmo autor reconhece, fruto da sua experiência de psicoterapeuta, que a percentagem de homossexuais dentro da Igreja católica é grande, como consequência principal da sua moral repressiva e da atitude quanto ao celibato, quer entre religiosos de sexo masculino como do sexo feminino, chegando aos 25% os jovens seminaristas que, de forma permanente ou esporádica, se dedicam a práticas homossexuais. A homossexualidade considerada como uma das formas mais graves de pecado pela Igreja (os acusados pelo crime nefando eram sentenciados à fogueira pela Santa Inquisição, se fosse agora muito havia que queimar!) é por esta directamente fomentada mas que, ao mesmo tempo - contradição das contradições -, obstinadamente se recusa a reconhecer como realidade existente no seu seio.

E entre os padres que decidem abandonar o caminho do onanismo para se ligar a alguma mulher, respondendo assim aos apelos mais íntimos do seu ser, confrontam-se as mais das vezes com o problema dos filhos não desejados, sendo, por isso, e segundo este teólogo alemão, os abortos coisa frequente: é que o “concubinato” é tolerado desde que o sacerdote em causa não persista ou “não dê escândalo” (cânone 1395 do Direito Canónico), isto é, que não haja conhecimento do “pecado”. Quanto a práticas masturbatórias, elas são frequentes; segundo Drewermann, são diversos os casos, por si vistos na clínica, de eclesiásticos, alguns ocupando altos cargos hierárquicos que, perante as dificuldades de preparação de uma conferência ou homília, começavam sempre por se masturbar. Masturbação, considerada pela Teologia católica como “um acto gravemente oposto à ordem”, ou então a procura do álcool, outro refúgio bastante solicitado e que, quer um quer outro, funcionam como droga para vencer o medo e a insegurança.

Esta realidade não é de estranhar numa religião, e continuamos a citar as palavras de Drewermann (que apesar de tudo não renega a sua fé), que «falsifica a neurose em santidade, a doença em eleição divina e a angústia em confiança em Deus», e onde a separação entre o pensamento e a sensibilidade, a actividade intelectual e a vivência emocional, constitui uma estrutura fundamental do pensamento clerical. Esta hipocrisia, a mesma que a burguesia manifesta, mas mais refinada e levada ao extremo, é própria de uma religião que «é inimiga da natureza e oposta ao amor», melhor dizendo, tem como objectivo a subjugação do homem, a sua destruição como indivíduo livre e senhor do seu destino.

Contrariamente ao que pensam alguns renovadores da Igreja católica, temerosos desta não se saber moldar aos novos tempos e por isso apressar o seu desaparecimento, jamais esta Igreja aceitará as palavras de Jesus (de Kazantzakis) para a sua amante, Maria Madalena: “Eu não sabia, minha bem-amada, que o mundo era tão belo e a carne tão santa... Eu não sabia que a alegria do corpo não era pecado.”

Bibliografia:

- Alexandre Herculano. “História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal”. Edição Círculo de Leitores, 1987.

- Eugen Drewermann. “Funcionários de Deus”. Editorial Inquérito, 1994.

- Imprensa diária.

Coimbra, 25 de dezembro de 2002

terça-feira, 1 de agosto de 2023

SUBTERRÂNEOS DA HISTÓRIA

 

por Manuel António Pina

Talvez a verdade não venha sempre ao de cima (não vem de certeza), mas às vezes lá vai emergindo, aqui e ali. Dessa, a que tem chegado nos últimos tempos aos jornais é suficiente para termos perdido as últimas réstias de confiança, os que ainda tínhamos alguma, na boa fé dos governos cuja propaganda constantemente nos fala de valores (a “democracia”, a "civilização ocidental", os "direitos humanos", a "liberdade"...). Os relatórios da Amnistia Internacional e da Human Rights Watch sobre as políticas de tortura sistemática adoptadas por EUA e Reino Unido na "guerra suja " contra o terrorismo são a ponta do "iceberg" de uma realidade que não é, infelizmente, de hoje.

Sabe-se agora que, enquanto, em Nuremberg, julgavam os nazis, ingleses e americanos tinham, ali ao lado, os seus próprios e secretos "Auschwitzs". O do Reino Unido, revela o "Guardian", era em Bad Nenndorf (perto de Hanover). Aí eram presos e sujeitos a tortura homens e mulheres suspeitos de "simpatias comunistas" e as chocantes fotografias desses prisioneiros que o "Guardian " publica não são diferentes das dos "esqueletos vivos" dos campos de concentração nazis ou do “gulag” soviético. A diferença é que os nazis perderam a guerra e eles é que foram julgados...

(in JN, 05/04/2006)

A Grã-Bretanha possuía programa secreto de tortura de presumíveis comunistas durante a Guerra Fria

 O jornal The Guardian publicou as fotos de cidadãos vítimas de um programa secreto de interrogatórios e de torturas levado a cabo pelo governo britânico em território da Alemanha ocupada, nos primeiros tempos da Guerra Fria.

Segundo o mesmo jornal diário, as fotos mostram homens torturados, privados durante vários dias do sono e de alimentos, submetidos a espancamentos e a temperaturas extremas em centros de detenção do ministério da Guerra britânico.

Alguns destes cidadãos acusados de “actividades e simpatias comunistas” morreram de inanição e vítimas de maus tratos e de tortura; esta praticada por instrumentos que tinham sido encontrados em prisões pertencentes à Gestapo nazi.

Os indivíduos que aparecem nestas fotografias eram supostos comunistas, detidos em 1946, e manifestando simpatia pela União Soviética, que, pouco tempo antes, era aliada da Grã-Bretanha na luta contra o III Reich. O governo britânico de então (e não só) acreditava na inevitabilidade de uma guerra com o bloco soviético, o que justificava o uso de todos e quaisquer métodos para a obtenção de informações sobre o outro lado.

Os militares britânicos torturaram também dezenas de mulheres, bem como agentes soviéticos e alguns cidadãos suspeitos de simpatias nazis. Foi tudo metido no mesmo saco. Afinal, a tortura não é de agora e não são só os americanos que torturam, os súbditos de Sua Majestade Britânica possuem também as mãos sujas de sangue.

Logo que a notícia foi publicada, o porta-voz do Partido Liberal para os assuntos militares, Nick Harvey, na oposição, insistiu que o Ministério da Defesa reconheça o ocorrido, não deixando de dizer, ao mesmo tempo, que “ainda que seja demasiado tarde para se exigir responsabilidades concretas”. No entanto, Sherman Carroll, da Fundação Médica para o Cuidado das Vítimas da Tortura, pediu às autoridades britânicas que apresentem as devidas desculpas e recompensem financeiramente os sobreviventes.

As fotos foram tiradas em Fevereiro de 1947 por um oficial da Marinha Britânica, desejoso que o governo britânico pusesse fim ao programa secreto de torturas. Só agora as fotos foram tornadas públicas porque se quis fazer tarde (dar conhecimento público) o que nunca deveria ter acontecido.