quarta-feira, 10 de abril de 2024

O Vigésimo Quarto Governo

 

Em 50 anos de democracia de Abril, vamos no governo nº24, ou seja, já passaram 23 governos de turno e chegou-se às duas dúzias – são dois números redondos, é para se dizer que à dúzia é mais barato. Este governo é apresentado pelos media de referência como «um Governo de “capacidades e talentos” que está a ser “preparado” há mais de um ano», ou o «Governo muito mais técnico e feminino», características por si só suficientes para ultrapassar a falta de “experiência no poder”. São dezassete ministros e 41 secretários de estado que já tiraram a “fotografia de família” na vila de Óbidos e onde, muito provavelmente, não deixaram de apreciar a famosa ginjinha e comido o copo de chocolate. Mas, talvez por essa razão, o primeiro-ministro já anteriormente declarara que irá governar por decreto e os mesmos media mainstream já apelam de forma veemente à estabilidade, quando até à véspera das eleições não se cansavam de desestabilizar o governo de maioria absoluta do PS.

O bloco central de interesses e a agenda da extrema-direita

O país tem sido governado, na maior parte do tempo, à vez: ora governa PS, ora governa PSD, só ou acompanhado pelo anexo. Mas, em questões fundamentais para as elites indígenas ou em relação às “orientações” de Bruxelas, tem havido sempre acordo entre os dois partidos, usualmente denominado de “pacto de regime”. Neste momento, parece que estamos a assistir a uma crise deste namoro ou união de facto pela introdução de um terceiro elemento, o partido da extrema-direita; ou, então, a uma sucessão de truques, ou seja, a mais uma encenação de que estes dois principais partidos da governação são exímios. Também poderá ser uma mistura das duas coisas, ambos continuarem a apresentar-se perante o povo que os elege e sustenta como partidos “responsáveis”, amantes da estabilidade, mas só quando lhes interessa, e simultaneamente usarem o terceiro partido como instrumento de manipulação. PS empurra o PSD para os braços do mal-amado para o acusar de faltar à palavra (“não é não”), entretanto o PSD vitimiza-se pela má fé do PS. No final, a comédia está sempre presente.

Nos entrementes, assiste-se à união das diversas forças políticas e de influência social mais conservadores e reaccionárias existentes no seio da sociedade portuguesa. A apresentação do livro pelo ex-primeiro-ministro Coelho, que martirizou o povo trabalhador com austeridade redobrada, gabando-se de ter ido além das imposições da troika, onde critica as políticas de “esquerda” dos governos PS no sentido da legalização do aborto e da eutanásia e da aceitação da ideologia identitária do lóbi LGBTQI+, tem o efeito, para além de mobilizar toda a elite que se revês nos valores “sagrados” do “Deus, Pátria e Família”, de impor ao governo esta agenda, em claro revivalismo do fascismo. Não foi por acaso que os dois principais e mais mediáticos dirigentes do terceiro partido estiveram presentes na apresentação da obra e um deles sentiu-se à vontade para sugerir Passo Coelho como possível e desejado candidato a Belém.

O chefe do governo AD tem sido criticado pelo facto do seu primeiro acto, logo após a tomada de posse do governo, ter sido a mudança do famigerado logótipo do governo da República, que teria sido alterado pelo governo anterior em aberta falta de respeito pelos símbolos mais do que sagrados da “bandeira nacional”, por óbvia ausência de programa credível para a resolução dos principais problemas do país, um sinónimo de inépcia. Mas a questão é simbólica e é muito mais importante do que possa parecer, foi o primeiro sinal de que a agenda do governo ou as linhas com que se vai cozer vão muito para além do programa com que se apresentou ao eleitorado. Vai ser o programa, puro e duro, do grande capital financeiro e do sector mais trauliteiro da burguesia nacional e, caso seja aplicado, irá doer muito mais do que aquele que foi ditado pela troika, com a alegação de que o país estaria prestes em entrar na bancarrota. Agora, será o povo português em entrar em bancarrota completa se o plano seguir em frente.

A mudança de discurso e a Igreja na política

Ainda não se conhecia toda a constituição governamental e já o discurso dos partidos da AD era outro, ficou-se agora a saber, como fosse diferente no governo anterior, que o governo se vê “forçado a ajustar programa económico às novas regras de Bruxelas”. Já não há dinheiro para tudo o que se prometeu, embora se continue a afirmar abertura ao diálogo com toda a gente, e polícias, militares, professores, oficiais de justiça, médicos, enfermeiros e os mais que venham a reivindicar as justas atualizações salariais e de carreira terão de esperar ou contar com menos. Novo “plano orçamental de médio prazo” vai ter de respeitar as normas impostas por Bruxelas.

O líder do “principal partido da oposição”, lugar disputado pelo chefe do terceiro partido que promete “oposição” ao governo e à “oposição” se necessário, já escreveu a Montenegro, estará disponível para acordo com condições para aprovar orçamento retificativo, onde se incluem melhorias para as carreiras da função pública. Aquele terá manifestado inteira disponibilidade, mas “o tempo e o modo” serão definidos pelo governo. Coloca-se a questão pertinente: será só para isso ou para mais alguma coisa? O mais provável é que as “oposições” sejam mais no nome do que nos factos, daí termos enfiado a palavra entre comas.

Marcelo quis lembrar ao país que o eleitorado entendeu dar a vitória aos "moderados" e não aos "radicais", deixando no ar que numa próxima vez isso poderá não acontecer, querendo possivelmente chantagear os partidos que à esquerda se oponham à governação da AD. E, algum tempo depois, o bispo do Porto não esteve com meias palavras: "a Igreja tem de se meter na política", não exactamente através dos paroquianos como afirmou, mas directamente como partido informal, uma força de pressão, que ousa já dar a cara. Quase ao mesmo tempo, o Patriarca de Lisboa vem dizer que o “país”, isto é, o povo, tem de “reencontrar força” para “superar dificuldades”, que já são esperadas pelas elites e que as pretendem resolver à custa de mais sacrifícios, não delas mas dos que trabalham.

O endurecimento do regime no seu cinquentenário

As mensagens são claras: o governo da AD governará com o programa da extrema-direita. Não são apenas os velhos e novos fascistas que se vão reunindo e juntando forças, recuperando velhos princípios e consignas, o governo já assumiu esses valores, quer na constituição do governo, quer na nomeação de algumas figuras cinzentas disfarçadas de “independentes” e de “tecnocratas”. O ministério da Cultura desapareceu, o Ensino Superior ficou diluído no super-ministério da Educação, e o detentor do cargo é um conhecido economista defensor do capitalismo selvagem e dos cortes permanentes dos subsídios salariais aos trabalhadores. O ataque por parte da elite mais conservadora contra os trabalhadores, começa pela cultura, os operários não precisam de ser cultos, basta-lhes saber ler e escrever, e não devem receber salários elevados. Em vez de bifes de lombo ou da vazia, comam hambúrgueres de larva de gafanhoto. O salário sempre foi o preço da reprodução da força de trabalho.

O ex-economista-chefe do BCP na secretaria de estado do Orçamento diz bem sobre o papel deste governo quanto à Economia, um braço do grande capital financeiro. O presidente da Associação Portuguesa de Bancos e reformado do Banco de Portugal, com uma pensão de cerca de 6 mil euros mensais aos 60 anos (2014), quando defendia que os trabalhadores deviam trabalhar mais tempo para ajudar as “gerações mais entaladas”, já veio propor algumas medidas para “desentalar” os patrões, redução do IRC para 15%, e os bancos, exigindo reunião com o novo/velho governo da AD para acabar com o “excesso da tributação extra”. Por outro lado, devemos salientar que a despesa pública com o setor financeiro ascende a 24,6 mil milhões de euros (2010 a 2023), mais de 9% do PIB (2023), e, só no ano passado, aumentou mais de 5,6% por causa da Parvalorem (BPN) e do Novo Banco; ou seja, o maior aumento em três anos (dados do INE). Com certeza que os bancos salivam por mais com este governo, o povo pagará a conta no final, e se não for a bem, será a mal, como nos tem habituado os governos com o PSD.

Se a nível interno é o que se vislumbra, então, quanto a política externa, ficamos suficientemente esclarecidos. O novel ministro dos Negócios Estrangeiros, colocando-se em bicos de pés e sem ter ingerido qualquer bebida alcoólica, presumimos, inchou o peito e criticou "algumas hesitações" do anterior Governo sobre a adesão da Ucrânia à União Europeia. A partir de agora, será sempre a bombar: quanto à Ucrânia e à guerra, Bruxelas ou a Nato/Otan dizem “mata”, o governo da AD dirá logo “esfola”. O regresso do serviço militar obrigatório (conscrição) está na ordem do dia, bem como o aumento, para além dos 2% do PIB, das despesas militares, sobretudo em armamento comprado aos EUA. Quanto à conscrição, a coisa irá ser feita com alguma cautela, de forma gradual, porque é tema pouco popular, principalmente entre a juventude. No entanto, na lógica do capitalismo, será considerada uma boa medida, porque irá “acabar” com o desemprego enviando-se os jovens para a guerra contra a Rússia. Não poderá ser para outro objectivo, já que Portugal não está sob ameaça iminente de invasão militar.

A falácia do combate à corrupção

No momento em que escrevemos esta linhas decorre no tribunal da Guarda um megaprocesso, mais um infindável, com 149 arguidos acusados de fraude com fundos comunitários na compra de maquinaria agrícola, envolvendo 136 testemunhas e 70 advogados. Lá para as calendas e se não houver umas amnistias pelo meio e umas prescrições no fim (os arguidos eram em maior número mas alguns já morreram) haverá um resultado previamente conhecido; os factos ocorreram entre 2010 e 2013, há mais de 10 anos. Sabe-se que estas fraudes com os fundos europeus superam os 70 milhões em apenas nos últimos três anos. Ora, com os cerca de 20 mil milhões de euros só do PRR, mais uns 30 mil milhões de outros projectos até 2027, será o fartar vilanagem! E vem a ministra da Justiça aventar o diálogo com os partidos sobre corrupção, quando todos eles se encontram metidos até aos gorgomilos nas negociatas ou com elas pactuam. Só poderá estar a gozar!

Os governantes ao prometer mundos e fundos ao eleitorado e, quando se vêm no governo, fazem o oposto, colocando em posição de quatro patas perante os interesses dos diversos lóbis indígenas e os ditames de Bruxelas, são isso mesmo, são políticos corruptos. Gente sem princípios que só olha para o umbigo, o mais importante é o protagonismo ou/e a conta bancária, é praticamente, e com raras excepções, o normal dentro dos vários governos que têm gerido os interesses do capital em Portugal desde o 25 de Abril. E dentro do actual governo há um pouco de tudo: desde um ex-ministro que assinou 300 despachos na última noite antes sair do governo beneficiando uns tantos grupos de interesses privados, agora é secretário de estado; passando por um ex-presidente de câmara a contas com a justiça por adjudicar serviços a uma empresa em pré-falência, sem equipamentos nem funcionários, no último dia de mandato; ou um ex-secretário de estado que propôs alteração à lei para facilitar a cunha da filha de um então ministro que não tinha média para entrar na faculdade; até ao actual ministro das Infraestruturas que está a ser investigado pela PJ quanto a corrupção na Câmara de Cascais e à campanha de candidatura à liderança do PSD, em 2020, quando era vice-presidente da autarquia.

O PSD para conquistar votos à direita e fazer concorrência ao irmão da extrema-direita entendeu assumir como prioridade este tema da corrupção, assim como outros, mas parece que vamos ter muitos casos e casinhos se conseguir manter-se no governo durante algum tempo. Para além dos ministros já com curriculum na praça e de conhecimento público, outros haverá que prometem uma auspiciosa carreira. E um deles poderá ser a titular da pasta da Saúde, que tudo fará para transformar o Serviço Nacional de Saúde em “Sistema”, onde caibam todos na gamela, desde clínicas privadas a santa casas da misericórdia, que pouca misericórdia terão com os nossos dinheiros. Esta ministra, quando bastonária da Ordem dos Farmacêuticos e durante a pandemia, geriu, juntamente com o então bastonário da Ordem dos Médicos e agora deputado da Nação, mais de 1,3 milhões de euros provenientes da indústria farmacêutica, utilizando uma conta pessoal. Será de esperar que o lóbi dos grandes laboratórios farmacêuticas esteja neste momento a pular de contente, sabendo-se que este ministério é um dos que mais dinheiro e interesses envolve. Será um maná!

Programa sempre no interesse do grande capital financeiro

Quando estávamos a finalizar esta crónica ficou-se a saber da entrega do programa do governo à Assembleia da República, não se conhecem pormenores, mas algumas “novidades”, que não espantam ninguém conhecendo-se a matriz dos partidos que o constituem, já fizeram manchete. A mais notória é o governo querer “revisitar” mudanças ao Código do Trabalho efectuadas pelo governo do PS/Costa, que já foram em benefício do patronato, mas como este quer mais haverá então de satisfazer a vontade e quanto antes: despedimentos mais baratos, salários mais baixos e indexados à “produtividade”, como se esta dependesse inteiramente dos trabalhadores e não da gestão da empresa ou de outros custos, que não o custo trabalho. O SNS será reduzido a um “sistema” que permita aos lóbis privados da saúde (doença) arrecadar lucros como de uma qualquer outra área de actividade económica se tratasse. Os “peritos” do Livro Verde da Sustentabilidade da Segurança Social, encomendado pelo governo PS, já vieram propor algumas alterações ao sistema de pensões, no sentido de garantir a “sustentação” da Segurança Social, ou seja, o velho mantra para que um dia destes os dinheiros, descontados pelos trabalhadores durante uma vida inteira, sejam entregues aos bancos e aos fundos de investimento privados. Entretanto os polícias, professores e oficiais de justiça irão levar “música” para que o programa seja aprovado no Parlamento.

O BE veio agora manifestar receio de o PS querer fazer “abertura à direita” por aceitar reunião com aquela força política só depois do debate de programa. O PCP já apresentara moção de rejeição ao governo e obteve como “solidariedade” do PS a não votação desta moção. O PS irá apresentar uma moção autónoma, irá abster-se, ninguém sabe. Mas conhecendo-se o que aconteceu com a eleição da segunda figura do estado, será sempre de admitir que, e apesar de o discurso de “esquerda” do actual chefe socialista, o PS tente o suicídio ao assumir-se como muleta do governo AD; ou seja, uma de partido “responsável” do regime, fazendo lembrar a hilariante “abstenção violenta, mas construtiva” do pusilânime José Seguro, enquanto “líder” da oposição do governo pafioso de Coelho/Portas, na negociação do OE-2012. Por vontade do PS, quase de certeza que este governo irá durar para além de Dezembro e, muito possivelmente, até ao fim do mandato. Terá sempre medo de ser penalizado em termos eleitorais pelo facto de eventualmente ser acusado de responsável pelo derrube do governo e não contribuir para a estabilidade, embora tenha sido vítima da desestabilização levada acabo por toda a direita e sob o alto patrocínio do PR Marcelo, que até condecorou o fundador da rede bombista que actuou durante o PREC mas sem que ninguém soubesse.

Quanto à questão da duração do governo AD dependerá somente da paciência dos trabalhadores e do povo português. Com certeza que as medidas incluídas no programa da legislatura ou no Plano de Estabilidade 2024-28, a ser apresentado na próxima segunda feira, irão desencadear uma resistência e uma revolta directamente proporcionais ao prejuízo que tragam para a vida das pessoas. E com uma agravante é que o PSD não possui a mesma arte do PS em comprar a paz social.

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