terça-feira, 28 de março de 2023

O 18 de Brumário de Louis Bonaparte

 

Karl Marx

No umbral da Revolução de Fevereiro, a república social apareceu como uma frase, como uma profecia. Nas jornadas de junho de 1848 foi afogada no sangue do proletariado de Paris, mas ronda os subsequentes atos da peça como um fantasma. A república democrática anuncia o seu advento. A 13 de junho de 1849 é dispersada juntamente com sua pequena burguesia, que se pôs em fuga, mas que na corrida se vangloria com redobrada arrogância. A república parlamentar, juntamente com a burguesia, apossa-se de todo o cenário; goza a vida em toda a sua plenitude, mas o 2 de dezembro de 1851 a enterra sob o acompanhamento do grito de agonia dos monarquistas coligados: "Viva a República!"

A burguesia francesa rebelou-se contra o domínio do proletariado trabalhador; levou ao poder o lúmpen proletariado tendo à frente o chefe da Sociedade de 10 de Dezembro. A burguesia conservava a França resfolegando de pavor ante os futuros terrores da anarquia vermelha; Bonaparte descontou para ela esse futuro quando, a 4 de dezembro, fez com que o exército da ordem, inspirado pela aguardente, fuzilasse em suas janelas os eminentes burgueses do Bulevar Montmartre e do Bulevar des Italiens. A burguesia fez a apoteose da espada; a espada a domina. Destruiu a imprensa revolucionária; sua própria imprensa foi destruída. Colocou as reuniões populares sob a vigilância da polícia; seus salões estão sob a Guarda Nacional democrática; sua própria Guarda Nacional foi dissolvida. Impôs o estado de sítio; o estado de sítio foi-lhe imposto. Substituiu os júris por comissões militares; seus júris são substituídos por comissões militares. Submeteu a educação pública ao domínio dos padres; os padres submetem-na à educação deles. Desterrou pessoas sem julgamento; está sendo desterrada sem julgamento. Reprimiu todos os movimentos da sociedade através do poder do Estado; todos os movimentos de sua sociedade são reprimidos pelo poder do Estado. Levada pelo amor à própria bolsa, rebelou-se contra seus políticos e homens de letras; seus políticos e homens de letras foram postos de lado, mas sua bolsa está sendo assaltada agora que sua boca foi amordaçada e sua pena quebrada. A burguesia não se cansava de gritar à revolução o que Santo Arsênio gritou aos cristãos: Fuge, tace, quíesce! (Foge, cala, sossega!) Agora é Bonaparte que grita à burguesia: Fuge, tace, quiesce!

A burguesia francesa há muito encontrara a solução para o dilema de Napoleão: Dans cinquante ans l'Europe sera republicaine ou cosaque!(26) Encontrara a solução na république cosaque. Nenhuma Circe, por meio de encantamentos, transformara a obra de arte que era a república burguesa, em um monstro. A república não perdeu senão a aparência de respeitabilidade. A França de hoje já estava contida, em sua forma completa, na república parlamentar. Faltava apenas um golpe de baioneta para que a bolha arrebentasse e o monstro saltasse diante dos nossos olhos.

Por que o proletariado de Paris não se revoltou depois de 2 de dezembro?

A queda da burguesia mal fora decretada; o decreto ainda não tinha sido executado. Qualquer insurreição séria do proletariado teria imediatamente instilado vida nova à burguesia, a teria reconciliado com o exército e assegurado aos operários uma segunda derrota de junho.

A 4 de dezembro, o proletariado foi incitado à luta por burgueses e vendeiros. Naquela noite, várias legiões da Guarda Nacional prometeram aparecer, armadas e uniformizadas na cena da luta. Burgueses e vendeiros tinham tido notícia de que, em um de seus decretos de 2 de dezembro, Bonaparte abolira o voto secreto e ordenava que marcassem "sim" ou "não", adiante de seus nomes, nos registros oficiais. A resistência de 4 de dezembro intimidou Bonaparte. Durante a noite mandou que fossem colocados cartazes em todas as esquinas de Paris, anunciando a restauração do voto secreto. O burguês e o vendeiro imaginaram que haviam alcançado seu objetivo. Os que deixaram de comparecer na manhã seguinte foram o burguês e o vendeiro.

Por meio de um coup de main durante a noite de 1o. para 2 de dezembro Bonaparte despojara o proletariado de Paris de seus dirigentes, os comandantes das barricadas. Um exército sem oficiais, avesso a lutar sob a bandeira dos montagnards devido às recordações de junho de 1848 e 1849 e maio de 1850, deixou à sua vanguarda, as sociedades secretas, a tarefa de salvar a honra insurrecional de Paris. Esta Paris, a burguesia a abandonara tão passivamente à soldadesca, que Bonaparte pôde mais tarde apresentar zombeteiramente como pretexto para desarmar a Guarda Nacional o medo de que suas armas fossem voltadas contra ela própria pelos anarquistas!

Cest le triomphe complet et définitif du Socialisme!(27) Assim caracterizou Guizot o 2 de dezembro. Mas se a derrocada da república parlamentar encerra em si o germe da vitória da revolução proletária, seu resultado imediato e palpável foi a vitória de Bonaparte sobre o Parlamento, do Poder Executivo sobre o Poder Legislativo, da força sem frases sobre a força das frases. No Parlamento a nação tornou a lei a sua vontade geral, isto é, tornou sua vontade geral a lei da classe dominante. Renuncia, agora, ante o Poder Executivo, a toda vontade própria e submete-se aos ditames superiores de uma vontade estranha, curva-se diante da autoridade. O Poder Executivo, em contraste com o Poder Legislativo, expressa a heteronomia de uma nação, em contraste com sua autonomia. A França, portanto, parece ter escapado ao despotismo de uma classe apenas para cair sob o despotismo de um indivíduo, e, o que é ainda pior, sob a autoridade de um indivíduo sem autoridade. A luta parece resolver-se de tal maneira que todas as classes, igualmente impotentes e igualmente mudas, caem de joelhos diante da culatra do fuzil.

Mas a revolução é profunda. Ainda está passando pelo purgatório. Executa metodicamente a sua tarefa. A 2 dezembro concluíra a metade de seu trabalho preparatório; conclui agora a outra metade. Primeiro aperfeiçoou o poder do Parlamento, a fim de poder derrubá-lo. Uma vez conseguido isso, aperfeiçoa o Poder Executivo, o reduz a sua expressão mais pura, isola-o, lança-o contra si próprio como o único alvo, a fim de concentrar todas as suas forças de destruição contra ele. E quando tiver concluído essa segunda metade de seu trabalho preliminar, a Europa se levantará de um salto e exclamará exultante: Belo trabalho, minha boa toupeira!

Esse Poder Executivo, com sua imensa organização burocrática e militar, com sua engenhosa máquina do Estado, abrangendo amplas camadas com um exército de funcionários totalizando meio milhão, além de mais meio milhão de tropas regulares, esse tremendo corpo de parasitas que envolve como uma teia o corpo da sociedade francesa e sufoca todos os seus poros, surgiu ao tempo da monarquia absoluta, com o declínio do sistema feudal, que contribuiu para apressar. Os privilégios senhoriais dos senhores de terras e das cidades transformaram-se em outros tantos atributos do poder do Estado, os dignitários feudais em funcionários pagos e o variegado mapa dos poderes absolutos medievais em conflito entre si, no plano regular de um poder estatal cuja tarefa está dividida e centralizada como em uma fábrica. A primeira Revolução Francesa, em sua tarefa de quebrar todos os poderes independentes - locais, territoriais, urbanos e provinciais - a fim de estabelecer a unificação civil da nação, tinha forçosamente que desenvolver o que a monarquia absoluta começara: a centralização, mas ao mesmo tempo o âmbito, os atributos e os agentes do poder governamental. Napoleão aperfeiçoara essa máquina estatal. A monarquia legitimista e a monarquia de julho nada mais fizeram do que acrescentar maior divisão do trabalho, que crescia na mesma proporção em que a divisão do trabalho dentro da sociedade burguesa criava novos grupos de interesses e, por conseguinte, novo material para a administração do Estado. Todo interesse comum (gemeinsame) era imediatamente cortado da sociedade, contraposto a ela como um interesse superior, geral (allgemeins), retirado da atividade dos próprios membros da sociedade e transformado em objeto da atividade do governo, desde a ponte, o edifício da escola e a propriedade comunal de uma aldeia, até as estradas de ferro, a riqueza nacional e as universidades da França. Finalmente, em sua luta contra a revolução, a república parlamentar viu-se forçada a consolidar, juntamente com as medidas repressivas, os recursos e a centralização do poder governamental. Todas as revoluções aperfeiçoaram essa máquina, em vez de a destruir (N1). Os partidos que disputavam o poder encaravam a posse dessa imensa estrutura do Estado como o principal espólio do vencedor.

Mas sob a monarquia absoluta, durante a primeira Revolução, sob Napoleão, a burocracia era apenas o meio de preparar o domínio de classe da burguesia. Sob a Restauração, sob Luís Filipe, sob a república parlamentar, era o instrumento da classe dominante, por muito que lutasse por estabelecer seu próprio domínio.

Unicamente sob o segundo Bonaparte o Estado parece tornar-se completamente autônomo. A máquina do Estado consolidou a tal ponto a sua posição em face da sociedade civil que lhe basta ter à frente o chefe da Sociedade de 10 de Dezembro, um aventureiro surgido de fora, glorificado por uma soldadesca embriagada, comprada com aguardente e salsichas e que deve ser constantemente recheada de salsichas. Daí o pusilânime desalento, o sentimento de terrível humilhação e degradação que oprime a França e lhe corta a respiração. A França se sente desonrada.

E, não obstante, o poder estatal não está suspenso no ar. Bonaparte representa uma classe, e justamente a classe mais numerosa da sociedade francesa, os pequenos (Parzellen) camponeses.

Assim como os Bourbons representavam a grande propriedade territorial e os Orléans a dinastia do dinheiro, os Bonapartes são a dinastia dos camponeses, ou seja, da massa do povo francês. O eleito do campesinato não é o Bonaparte que se curvou ao Parlamento burguês, mas o Bonaparte que o dissolveu. Durante três anos as cidades haviam conseguido falsificar o significado da eleição de 10 de dezembro e roubar aos camponeses a restauração do Império. A eleição de 10 de dezembro de 1848 só se consumou com o golpe de Estado de 2 de dezembro de 1851.

Os pequenos camponeses constituem uma imensa massa, cujos membros vivem em condições semelhantes mas sem estabelecerem relações multiformes entre si. Seu modo de produção os isola uns dos outros, em vez de criar entre eles um intercâmbio mútuo. Esse isolamento é agravado pelo mau sistema de comunicações existente na França e pela pobreza dos camponeses. Seu campo de produção, a pequena propriedade, não permite qualquer divisão do trabalho para o cultivo, nenhuma aplicação de métodos científicos e, portanto, nenhuma diversidade de desenvolvimento, nenhuma variedade de talento, nenhuma riqueza de relações sociais. Cada família camponesa é quase auto-suficiente; ela própria produz inteiramente a maior parte do que consome, adquirindo assim os meios de subsistência mais através de trocas com a natureza do que do intercâmbio com a sociedade. Uma pequena propriedade, um camponês e sua família; ao lado deles outra pequena propriedade, outro camponês e outra família. Alguma dezenas delas constituem uma aldeia, e algumas dezenas de aldeias constituem um Departamento. A grande massa da nação francesa é, assim, formada pela simples adição de grandezas homólogas, da mesma maneira que batatas em um saco constituem um saco de batatas. Na medida em que milhões de famílias camponesas vivem em condições econômicas que as separam umas das outras, e opõem o seu modo de vida, os seus interesses e sua cultura aos das outras classes da sociedade, estes milhões constituem uma classe. Mas na medida em que existe entre os pequenos camponeses apenas uma ligação local e em que a similitude de seus interesses não cria entre eles comunidade alguma, ligação nacional alguma, nem organização política, nessa exata medida não constituem uma classe. São, consequentemente, incapazes de fazer valer seu interesse de classe em seu próprio nome, quer através de um Parlamento, quer através de uma Convenção. Não podem representar-se, têm que ser representados. Seu representante tem, ao mesmo tempo, que aparecer como seu senhor, como autoridade sobre eles, como um poder governamental ilimitado que os protege das demais classes e que do alto lhes manda o sol ou a chuva. A influência política dos pequenos camponeses, portanto, encontra sua expressão final no fato de que o Poder Executivo submete ao seu domínio a sociedade.

A tradição histórica originou nos camponeses franceses a crença no milagre de que um homem chamado Napoleão restituiria a eles toda a glória passada. E surgiu um indivíduo que se faz passar por esse homem porque carrega o nome de Napoleão, em virtude do Code Napoléon,(28) que estabelece: La recherche de la paternité est interdite.(29) Depois de 20 anos de vagabundagem e depois de uma série de aventuras grotescas, a lenda se consuma e o homem se torna imperador dos franceses. A Ideia fixa do sobrinho realizou-se porque coincidia com a Ideia fixa da classe mais numerosa do povo francês.

Mas, pode-se objetar: e os levantes camponeses na metade da França, as investidas do exército contra os camponeses, as prisões e deportações em massa de camponeses?

A França não experimentara, desde Luís XIV, uma semelhante perseguição de camponeses "por motivos demagógicos".

É preciso que fique bem claro. A dinastia de Bonaparte representa não o camponês revolucionário, mas o conservador; não o camponês que luta para escapar às condições de sua existência social, a pequena propriedade, mas antes o camponês que quer consolidar sua propriedade; não a população rural que, ligada à das cidades, quer derrubar a velha ordem de coisas por meio de seus próprios esforços, mas, pelo contrário, aqueles que, presos por essa velha ordem em um isolamento embrutecedor, querem ver-se a si próprios e suas propriedades salvos e beneficiados pelo fantasma do Império. Bonaparte representa não o esclarecimento, mas a superstição do camponês; não o seu bom-senso, mas o seu preconceito; não o seu futuro, mas o seu passado; não a sua moderna Cevènnes, mas a sua moderna Vendée.

"O 18 de Brumário de Louis Bonaparte". K. MARX - (Capitulo VII. Escrito entre dezembro de 1851 a março de 1852)

segunda-feira, 20 de março de 2023

A crise económica mobiliza a tropa - Viva a caserna!

 

A crise económica a nível interna e mundial vai-se agravando, poderemos dizer, sem grande margem de erro, o capitalismo agoniza. A seguir à falência de três bancos norte-americanos mais duzentos estarão em lista de espera na terra do Tio Sam, se fizermos fé na notícia avançada pela imprensa mainstream. A crise financeira, apenas um dos aspectos da crise global, irá arrastar toda a União Europeia – causa e efeito da guerra na Ucrânia.

Como consequência, a política vai-se crispando, em França, o governo Macron governa por decreto, aprovando a subida da idade de reforma a arrepio do Parlamento, e, em Portugal, vão surgindo os candidatos a candidato a Bonaparte. Um almirante de água doce, a pretexto de conter uma pretensa rebelião da marinhagem, inicia a sua campanha à presidência da República, rodeado de toda a imprensa doméstica que desde há algum tempo o tem trazido ao colo, perante a estupefacção de alguma opinião pública e do silêncio de um governo cada vez mais acossado.

Os assuntos do dia, ultimamente, têm sido a “revolta” dos marinheiros com a promoção do “almirante sem medo” e o mandado de captura de Putin pelo TPI (Tribunal Penal Internacional). O primeiro desilustra a democracia parlamentar burguesa que vigora entre nós com o endeusamento de um oficial da tropa que traga ordem ao país, acabe com o regabofe das greves, e resolva problemas que a classe política venal descuida, como seja um pequeno navio da armada comprado em segunda mão e que já deveria ter sido desmantelado atendendo há idade. O segundo descredibiliza ainda mais um órgão já irrelevante, a ONU, fazendo lembrar a antiga Sociedade das Nações.

O incidente será pretexto para o governo passar a partir de agora a investir a sério no armamento, numa política belicista de agrado de Bruxelas e da Nato, e o “raspanete” dado pelo almirante perante as câmaras de televisão tem como fim deixar o aviso de que insubordinações não são de tolerar, não vá o diabo tecê-las e a soldadesca, juntamente com o povo indignado, possa um dia destes revoltar-se contra os oficiais, contra os políticos corruptos e ser ela a colocar na ordem toda uma elite, esta sim, a verdadeira responsável pelo descalabro da nação!

Alguma classe média gosta de fardas, terá muito provavelmente sonhos eróticos, gosta da ordem e da disciplina, o que, diga-se de passagem, também não desagrada à elite indígena que nunca viu com bons olhos este excesso de liberdade e de direitos do reviralho depois do 25 de Abril. E com a crise económica já instalada desde há quinze anos, crise que se tem mantido em banho-maria durante este tempo pelos governos do PS & Costa, e ameaçando com nova tempestade, todos os cuidados serão poucos e um militar viria mesmo a calhar.

Por sinal, o militar que agora se coloca em bicos de pés até é alto, fala grosso, mas, ao que parece, a coragem não será a sua melhor qualidade. Depois de arengar à tropa e ameaçar com penas e degredos os (in)subordinados revoltosos ter-se-á apercebido, ou alguém lhe terá dito, que se tinha excedido, o que lhe poderá estragar a imagem pública, veio então retratar-se negando que tivesse dado algum raspanete aos marinheiros. Aliás, este tipo de comportamento está na personalidade dos candidatos a Bonaparte, por exemplo, Luís Bonaparte, era um vadio e um chulo, conseguiu o poder com o ajuda de uma organização de marginais e lúmpenes, a sociedade 1º de Dezembro, e o preço foram uns quartilhos de aguardente.

Os comentadores e paineleiros do regime logo reagiram: uns alertaram para as possíveis revoltas que poderão aí vir por força da crise; outros indignaram-se com a falta de jeito do tropa que, se quer ser candidato a algum cargo político, deve primeiro despir a farda; ainda outros acham exagero o empolamento da insubordinação; em suma, todos se preocupam com a solidez e esperança de vida do regime que para o ano faz meio século de existência. E, coisa que não dizem mas percebe-se bem, preocupam-se mais com o tacho e mordomias pessoais que este regime lhes ofereceu.

A imagem dada pelo navio, com uma das duas máquinas avariada, a outra a perder óleo, e o casco a meter água, é mais a imagem do país e do regime político do que propriamente da armada portuguesa. E a situação terá sido empolada porque, ignomínia das ignomínias!, os marinheiros recusaram-se a vigiar um navio russo que passava ao largo e em águas internacionais, mas que, nas palavras do “nosso” almirante de alcaixa, andaria a vasculhar os cabos submarinos. E grave porque qual seria, no seu limitado e casernático entendimento, a opinião dos “aliados” (Nato) de Portugal?

Assim se vê que as ideias de militares profissionais não se diferenciam muito das dos nossos políticos: primeiro está a subserviência ao estrangeiro (Bruxelas e Nato); depois, no seio do povo português deve prevalecer a repressão, a arbitrariedade, obedece quem deve e manda quem pode, e com a crise económica em mais uma outra vaga, desta feita mais tormentosa, os portugueses devem baixar a cerviz e aceitar as privações derivadas de mais aumentos dos preços na alimentação, na habitação, nos combustíveis, em tudo o que é essencial à sobrevivência; ao mesmo tempo, bancos, gasolineiras e hipermercados acumulam lucros declaradamente pornográficos.

Se é notícia que «A crise financeira vem asfixiando a classe média: quase metade das famílias portuguesas têm dificuldade em pagar a casa e a alimentação» ou o «Número de despedimentos coletivos cresce quase 56% em Janeiro», não deixa de ser grotesco ouvir «A presidente executiva (CEO) da Sonae, Cláudia Azevedo, avisou hoje que, num "mercado aberto e mundial" como o alimentar, a fixação de preços máximos "dá sempre mau resultado" e resultaria em "prateleiras vazias" nos supermercados». Perante a arrogância e ameaça de fome para o povo, e se o governo fosse de esquerda, há muito que os preços teriam sido tabelados, e agora o grupo Sonae seria nacionalizado e a oligarca enviada à justiça.

Ao contrário do que afirmam os (ditos) responsáveis políticos e financeiros nacionais bem como os de Bruxelas (Eurogrupo), a crise financeira que se reiniciou nos EUA e que estalou na Europa com o Credit Suisse irá alastrar-se como fogo em palha seca por todo o continente europeu. Não se entende que haja gente que negue a possibilidade de contaminação de Portugal, que é um país periférico, de economia aberta, sem soberania monetária ou económica em áreas essenciais como a alimentação, com mais de metade da banca nas mãos do capital espanhol e europeu, como pode ficar imune à calamidade? Costa parece querer repetir a triste figura de Cavaco Silva antes do BES estoirar.

Se o governo possui maioria absoluta, pode e deve governar até o fim do mandato e irá fazê-lo; contudo, não é por este facto que sente acossado e não consegue esconder o nervosismo, é pela possível revolta social. Para acelerar o nervosismo e eventualmente o fim precoce, Marcelo, sofrendo de incontinência verbal e de descontrole do impulso, vai “picando” o governo, agarra agora a aplicação dos dinheiros do PRR como arma de arremesso e na expectativa de virem a ser a tábua de salvação da economia nacional falida – em breve irá para o terreno controlar a aplicação do programa. Marcelo preocupa-se: «quer rapidez na suspensão de padres e na privatização da TAP», a sua alma de beato e de vendilhão do país ao estrangeiro sente-se atormentada.

Marcelo, como primeiro-ministro frustrado, defende que «novas formas de luta “têm de ser previstas na lei”» quanto à luta dos professores que ameaça fugir ao controlo da cordata CGTP. A obrigatoriedade de as pessoas ficarem em casa em situação de incêndio e o facto de a proposta do Governo que revoga leis covid estar parada há seis meses são a expressão dos tiques caceteiros do PS que, na primeira oportunidade, irá carregar violentamente contra a luta dos professores bem como todas as que teimem em perturbar a boa ordem burguesa, se falhar, então, virá o sr. almirante no seu navio a meter água e com a máquina a peidar-se pôr ordem na malta insubordinada.

Convém lembrar quem é que nomeou o almirante para o cargo de CEMA, eventualmente como recompensa da boa execução da campanha de vacinação – cujos  efeitos nefastos se encontram sob investigação das autoridades judiciais alemãs e com o governo alemão a disponibilizar-se em indemnizar as vítimas das injecções –, e que já o deveria ter demitido mal ocorreu o incidente do navio avariado. Costa manter-se-á no poder enquanto conseguir manter o povo na ordem, garantir a paz social, e fazer passar a política dimanada de Bruxelas, porque sabe que Marcelo não tem coragem de usar outra vez a “bomba atómica” da dissolução da Assembleia da República, e aqui os partidos da oposição têm mais medo de outras eleições antecipadas do que o diabo da cruz.

Neste país cheio de políticos e de tropas cheios de coragem e ardor combativo, prontos para a guerra, ficamos admirados que o “comandante supremo” das forças armadas tenha livrado à tropa graças a cunha do papá, porque possivelmente teria medo da disciplina militar e de ir combater para o África, à semelhança do que aconteceu com quase todos os homens da sua idade, e ficamos de boca aberta quando o ministro dos negócios estrangeiros, que terá conseguido o cargo também por cunha do paizinho, venha como mata-mouros tenebroso ameaçar que caso o presidente russo venha a Portugal (fazer o quê?) será imediatamente detido – o homem um dias destes ganhará algum prémio pelas asneiras que diz, o anúncio extemporâneo e indevido do presidente Lula vir discursar na Assembleia da República no 25 de Abril  ficará para a história do anedotário da II República. Terá tanto de altura como de incompetência e de burrice, é o mínimo que se poderá dizer.

O bonapartismo será sempre o regime político de ditadura do grande capital sem grandes arrebiques democráticos, um regime abertamente autoritário, seja o protagonista civil ou militar, defenderá acima de tudo os interesses do grande capital financeiro mais do que os interesses da burguesia nacional, será levado para o poder pelos votos da pequena-burguesia assustada com a crise económica, mas ainda mais pela revolução proletária que inevitavelmente se avizinhará – Luís Bonaparte foi em França  o candidato dos camponeses arruinados, o Salvador-da-Pátria português será o candidato da classe média empobrecida e proletarizada.

sábado, 18 de março de 2023

A COMUNA DE PARIS

 

(escrito em 2006 mas actual)

«...o velho mundo torce-se com convulsões de raiva à vista da bandeira vermelha, símbolo da República de Trabalho, a drapejar sobre os Paços do Conselho».

(Karl Marx, a Guerra Civil em França, 1871)

Passam 135 anos sobre a primeira experiência da classe operária na tomada do poder político à velha classe exploradora, a burguesia. E a melhor, com certeza a única, forma de conhecer o que foi a Comuna de Paris e a sua importância para o proletariado moderno é ler a obra de Marx, a "Guerra Civil em França", escrita dois dias após o esmagamento dos revoltosos pelas tropas pretorianas do governo de Versalhes.

Por parte dos comunistas, e possivelmente outros revolucionários que têm a Comuna por referência, e por parte de intelectuais marxistas tem sido norma retirar da experiência da Comuna de Paris as ilações, e salientá-las com particular ênfase, da tomada do poder político e a destruição da velha máquina do estado burguesa e a sua substituição por uma outra diferente. Achamos nós que também é de interesse expor mais à luz outros aspectos um pouco mais esquecidos.

A abolição do exército permanente e da polícia, a dissolução e a expropriação das igrejas, a abertura gratuita das escolas ao povo, libertando-as da ingerência da Igreja e do Estado, o despojamento das prerrogativas e privilégios de todos os funcionários públicos que passaram a ser eleitos e revogáveis a qualquer momento (e não "num curto prazo de tempo" como refere um autor revisionista do sitio do PCP sobre a Comuna), sendo responsáveis perante o povo e auferindo um salário de operário, se são medidas usualmente enaltecidas pelos marxistas, a pouca violência que acompanhou a tomada do poder político, em contraste com a selvajaria praticada pelo governo de Versalhes, e o carácter abertamente internacionalista da Comuna deverão ser postas em relevo.

Marx não se cansa de referir que a Comuna derramou pouco sangue dos seus inimigos e que foi quase constante a sua posição defensiva perante os ataques da burguesia reaccionária francesa que não hesitou em aliar-se ao invasor prussiano para esmagar a revolução e destruir Paris. Marx não deixa de exclamar a sua indignação: «mas a execução pela Comuna dos sessenta e quatro reféns, com o arcebispo de Paris à cabeça!», para logo denunciar a barbárie: «a burguesia e o seu exército tinham restabelecido um costume que tinha já há muito desaparecido da prática da guerra, a execução dos prisioneiros desarmados; este hábito brutal foi depois mais ou menos seguido aquando da repressão de todos os levantamentos populares na Europa…!»).

Contabilizaram-se 30 mil fuzilados, 100 mil prisioneiros, 36 mil revoltosos julgados em conselho de guerra, 13440 condenações, 270 a pena de morte e os restantes deportados, a burguesia não teve contemplações perante os que ousaram «tocar no privilégio governamental» e tal como Sila na velha Roma: «o mesmo massacre em massa, executado a sangue frio; a mesma negligência no massacre, quanto à idade e sexo; o mesmo sistema de tortura dos prisioneiros as mesmas proscrições mas desta vez de uma classe inteira; a mesma caça selvagem aos chefes refugiados, com receio que um só possa escapar; as mesmas denúncias por inimigos políticos e particulares; a mesma indiferença perante o massacre de pessoas inteiramente estranhas à luta…».

Se a burguesia não olhou a meios na perfídia, na mentira e na intriga para derrotar a Comuna, ela, burguesia, fez uma coisa que muitos comunistas e alguns "teóricos da revolução" esqueceram, foi internacionalista. A burguesia, ou Thiers e “seus cachorros”, como diz Marx, recorreu à traição aliando-se abertamente ao inimigo do povo francês: a Prússia. «A capitulação de Paris, entregando à Prússia não só Paris mas toda a França, encerrou a longa série de intrigas e de traições que os usurpadores do 4 de Setembro, tinham iniciado com o inimigo, como Trochu em pessoa o dissera na mesma tarde; por outro lado, ela dava o sinal para a guerra civil que com a ajuda da Prússia eles iam agora iniciar contra a República e Paris...».

Mas a este internacionalismo da burguesia, em que uma das burguesias nacionais não tem pejo em alienar a independência do seu país a uma outra (o que demonstra que a verdadeira pátria do burguês, já na segunda metade do século dezanove, é a do dinheiro) para esmagar o seu verdadeiro inimigo que é classe operária revoltosa, o proletariado francês opôs um internacionalismo que constitui engulho aos actuais "partidos comunistas" e outras pretensas "vanguardas" e "educadores" dos operários.

«Se a Comuna era, pois, a representação verdadeira de todos: os elementos sãos da sociedade francesa – Marx não deixa de afirmar –, ela era ao mesmo tempo um governo operário, e, a este título, na sua qualidade de audacioso campeão da emancipação do trabalho, internacional no pleno sentido da palavra, aos olhos do exército prussiano que tinha anexado à Alemanha duas províncias francesas, a Comuna anexava à França os trabalhadores todo o mundo». São numerosos os cidadãos estrangeiros, operários, revolucionários, que lutam na barricada da Comuna de Paris, oferecendo abnegadamente o seu esforço e a sua vida, polacos, russos, húngaros e alemães; destacando-se, entre outras, figuras como Elizabeth Dmitrieff, uma das grandes mulheres revolucionárias do século XIX, que tem 20 anos quando está a lutar de fuzil na mão nas barricadas das ruas de Paris, regressando mais tarde à Rússia e depois injustamente esquecida, ou Frank Keller, mais tarde dirigente importante do movimento operário húngaro. «A Comuna fez dum operário alemão o seu ministro do trabalho», coisa impensável para os nossos nacionalistas partidos ditos “comunistas”.

Mais do que nunca que os comunistas neste início de século, contrariando frontalmente a prática instituída em todo o século XX, terão que cultivar, em teoria e em prática, o mais aberto e acérrimo internacionalismo proletário, unindo numa mesma luta os operários de todo o mundo, porque esta será indubitavelmente uma das condições essenciais para derrotar uma classe exploradora que há muito vem praticando o seu internacionalismo e numa época em que a globalização capitalista terá atingido praticamente o seu fim. Esta é uma das ilações a retirar do sacrifício do proletariado e do povo de Paris.

Sacrifício que nunca terá sido em vão, «... este espantoso acontecimento prova não, como o pensa Bismarck, o esmagamento definitivo duma nova sociedade ascendente, mas a desagregação completa da velha sociedade burguesa; o mais alto esforço de heroísmo de que a velha sociedade ainda é capaz é uma guerra nacional; e está agora provado que ela é uma pura mistificação dos governos, destinada a retardar a luta das classes, e que é posta de lado, logo que esta luta de classe desencadeia uma guerra civil»; e pondo a claro o carácter internacionalista deste confronto entre as duas classe mais importantes da sociedade, Marx conclui: «o domínio da classe não pode pois dissimular-se sob um uniforme nacional, os governos nacionais não são senão um só contra o proletariado!».

A Comuna de Paris foi derrotada há 135 anos, mas o seu exemplo deixou um rasto indelével que permitiu mais tarde um salto ainda maior na luta emancipador do Trabalho contra o Capital que foi a Revolução Bolchevique na Rússia; mesmo derrotada, os seus efeitos foram devastadores por toda a Europa, a consciência de classe dos operários e dos revolucionários teve um enorme avanço, países fechados no seu conservadorismo e sem uma classe operária numerosa e aguerrida, como Portugal, não conseguiram fugir à sua influência: a "Geração de Setenta" e as "Conferências do Casino" são o exemplo e o resultado directo de tal acontecimento.

As experiências posteriores da classe operária para manter o poder político na Rússia e na China, e no sentido de impedir que novas burguesias o usurpassem, fracassaram igualmente; o que não impede, bem pelo contrário, atendendo ao fosso cada vez maior entre a classe capitalista e a classe dos produtores, de considerarmos como inteiramente válidas e actuais as palavras de Marx: «A Paris operária, com a sua Comuna, será sempre celebrada como o glorioso intróito duma sociedade nova; a recordação dos seus mártires conservar-se-á piedosamente no grande coração da classe operária; aos seus exterminadores, a história pregou-os já ao eterno pelourinho, e nem sequer todas as preces dos seus padres os conseguirão remir».

28 de Maio 2006

www.jornalcomunista.org

 

quarta-feira, 15 de março de 2023

ECCE HOMO – Como se chega a ser o que se é

 

Friedrich Nietzsche

Ao chegar a este ponto não posso já adiar a verdadeira resposta à pergunta: como se chega a ser o que se é? Atinge-se deste modo a obra-prima da arte da conservação de si mesmo – a arte do egoísmo… Se admitimos, com efeito, que tanto a tarefa como o motivo ou o propósito dela são bem nossos, ou próprios de nós, não haverá nenhum perigo em defrontar a tarefa. Chegar a ser o que se é, isto leva a supor que não se tem dúvida alguma a respeito do que se é. Considerados deste ponto de vista, os erros que na vida praticamente assumem sentido e valor próprios. Por vezes seguimos caminhos de nenhures, atrasamo-nos, mostrando o nosso «desinteresse» ou seriedade, e empreendemos, não raro, tarefas que estão para além da nossa própria missão. Assim se mostra uma grande sabedoria, e ainda a suprema sabedoria: ali onde o «nosce te ipsum» seria a receita para um homem se perder, para esquecer-se de si próprio, para se desconhecer e diminuir, chega a ser, afinal, a razão mesma de existir. Exprimindo-me em termos morais: o amor ao próximo, a vida ao serviço dos outros e de outra causa, podem ser meios seguros de conservar o egoísmo mais consistente. Este é o caso excepcional em que, contra a minha regra e a minha convicção, tomo partido pelos instintos «desinteressados» : eles trabalham aqui ao serviço do egoísmo e do exclusivo interesse pessoal.

Cumpre conservar isenta toda a superfície da consciência – a consciência é uma superfície – do contacto de qualquer dos grandes imperativos. Cuidado com as grandes palavras! Cuidado com as grandes atitudes! É nítido o risco de que o instinto «se compreenda» demasiado depressa a si próprio. Entretanto, a ideia organizadora, a «ideia» que tende a dominar, vai surgindo, crescendo, nas profundidades, começa a ordenar-se, leva-nos após si, pouco a pouco, por caminhos laterais e desviados, suscita discretas disposições e possibilidades que um dia se revelarão como meios indispensáveis a alcançar o fim autêntico – coloca em série todas as potências requeridas antes de fazer surgir a nota dominante e imperiosa que dá a «meta», o «fim», o «sentido».

Considerada neste aspecto, é a minha vida simplesmente maravilhosa. Para a tarefa da transmutação dos valores requeriam-se faculdades tais que nunca se reuniram num só indivíduo e, sobretudo, também, faculdades opostas que entre si não se perturbassem ou destruíssem. Hierarquia das faculdades, distância, arte de distinguir sem opor, nada misturar, nada «conciliar», prodigiosa multiplicidade que, no entanto, é o contrário de um caos – tal foi a condição preliminar, o estrénuo e secreto labor e dom artístico do meu instinto. Sua superior garantia mostrou-se tão forte, que eu em momento algum suspeitei do que se preparava em mim, surgindo todas as minhas faculdades um dia amadurecidas e na última perfeição.

Não tenho memória de que me haja alguma hora aplicado com esforço fosse ao que fosse, não se encontra na minha vida sinal de luta: sou o contrário de uma natureza obstinada. «Querer» uma coisa, «esforçar-se» por uma coisa, ter diante dos olhos um «fim», um «propósito», são estados que por própria experiência não conheço. Neste mesmo momento lanço o olhar para o meu porvir – como quem contempla um mar em calmaria: desejo algum nele se encrespa. Não quero de forma alguma que qualquer coisa, seja o que for, seja diferente do que é; eu próprio não quero ser diferente do que sou… E assim sempre vivi. Não tenho desejos. Sou alguém que aos quarenta e quatro anos pode dizer que nunca buscou «honras», «mulheres» ou «dinheiro»! Não digo que estas coisas me tenham sempre faltado. Assim, por exemplo, fui um dia professor da Universidade; nunca, de longe sequer, pensara sê-lo, pois tinha apenas vinte e quatro anos quando o fui. Assim, dois anos antes, fui um dia filólogo: no sentido de que o meu primeiro trabalho filológico, uma iniciação em todo o sentido, foi solicitado por Ritschl para ser publicado no seu Museu Renano. Ritschl, e digo-o com veneração, foi o único sábio de génio que até hoje encontrei. Possuía aquela agradável depravação... que distingue os que nascemos na Turíngia, e que torna até simpático um alemão: para chegar à verdade preferimos muita vez os caminhos ínvios. Não pretendo, de modo algum, com estas palavras, diminuir o meu mais próximo compatriota, o «maligno» Leopoldo de Ranke...

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Por que motivo contar – perguntar-se-á – todas estas pequenas coisas, que são, segundo o modo de ver tradicional, indiferentes? E dir-se-á que, ao fazê-lo, me prejudico a mim próprio, e tanto mais quando estou destinado a grandes empresas. Responde-se: estas pequenas coisas, alimentação, lugar, clima, divertimentos – toda a casuística do egoísmo – são muito mais importantes do que tudo quanto já se concebeu e imaginou. E é aqui precisamente que importa alterar doutrina. O que até agora a humanidade tomou a sério, não é realidade, é pura imaginação, ou, para me exprimir com mais rigor, são mentiras derivadas de instintos de seres enfermiços, e de tendências profundamente nocivas: todas as ideias de «Deus, alma, virtude, pecado, além, verdade, vida eterna»... Supôs-se, no entanto, ver neles a grandeza da natureza humana, a sua «divindade»… Todos os problemas da política, da organização social, da educação, foram completamente falseados pelo facto de que se tomaram por grandes homens os homens mais nocivos, e se ensinou a desprezar as «pequenas» coisas, ou seja os assuntos fundamentais da vida. Pois bem, se comparo comigo os homens que até hoje foram considerados os primeiros, encontro evidentes diferenças. Eu não incluo estes pretensos «primeiros» nem sequer entre os homens em geral: são para mim o rebotalho da humanidade, produtos da doença e do instinto de vingança: não passam de monstros funestos, e no fundo incuráveis, que se vingam da vida. Eu quero ser o contrário deles: o meu privilégio é ter a maior agudeza para discernir todos os sinais dos instintos sãos. Não tenho, qualquer indício de morbidez; nem sequer nos tempos da minha grave doença estive doente. É inútil procurar em mim sinal de fanatismo. Não poderá assacar-se-me em momento algum da minha vida uma atitude arrogante ou patética. O patético do gesto não pertence à grandeza; o que carece de imponência é falso… Cuidado com os homens impressionantes!

A vida decorreu para mim suave, e mais suave ainda quando de mim exigia o mais difícil. Quem me viu nos setenta dias deste Outono, em que, sem interrupção, escrevi coisas de primeira ordem, coisas tais que ninguém pode imitar – ou ensinar – na plena responsabilidade dos milénios que virão depois, não pôde assinalar o mínimo desequilíbrio, mas antes uma frescura e serenidade superabundantes. Nunca comi com mais prazer, nunca dormi melhor.

Não conheço outra maneira de ocupar-me dos grandes problemas do que jogo tal é, como condição de grandeza, o pressuposto essencial! A contensão, o rosto sombrio, o aspecto rígido, são objecções contra um homem e também contra a sua obra!... Não se devem ter nervos!... Também a incapacidade de viver solitário constitui objecção; eu, na verdade, sofri apenas «da multidão». Em idade extremamente juvenil, tinha sete anos, sabia já que nunca uma palavra podia ferir-me. Ninguém me viu nunca em tais circunstâncias magoado. Hoje, ainda, se para todos mostro serena afabilidade, mantenho sempre a mesma consideração para com os humildes: no que não há sequer grão de orgulho, de secreto desprezo. Quando desprezo, o desprezado logo o adivinha; pelo simples de existir, não mais, encho de turbação todos os que têm mau sangue nas veias… A minha fórmula de grandeza do homem é «amor fati»: não pretender ter nada diversos do que se tem, nada antes, nada depois, nada por toda a eternidade. A Necessidade não existe apenas para suportar-se – todo o idealismo é mentira em face da Necessidade – mas para que a amemos… 

 

segunda-feira, 6 de março de 2023

Portugal, país de brandos costumes?

 

Idoso a ser multado por se encontrar a comer em espaço público, durante o confinamento “sanitário” - Imagem da imprensa e colhida no face.

Vem do tempo da outra senhora a crença de que Portugal é um país habitado por um povo dócil e pacífico, sem grandes conflitos ou ódios no seu seio, um mito que foi criado por Salazar, estando registado em diversos discursos, aparecendo com mais relevo em 1932-1933 e em entrevista encenada com António Ferro, mais tarde director do SPN (Secretariado da Propaganda Nacional): “A violência, processo directo e constante da ditadura fascista, não é aplicável, por exemplo, ao nosso meio, não se adapta à brandura dos nossos costumes…”, querendo assim justificar a relativa fraca repressão durante o Estado Novo. O mito continuou depois do 25 de Abril, com a “Revolução dos Cravos”, uma revolução sem sangue, apontando-se o facto aos “brandos costumes” e não à existência de uma reduzida e pouca reivindicativa classe proletária, directamente relacionada a nunca se ter realizado entre nós uma revolução industrial. No entanto, a realidade teima em contradizer a propaganda das elites.

Violência e corrrupção

Se passarmos uma ligeira olhadela pelos media corporativos nacionais, jornais ou televisões, rapidamente nos apercebemos que os acontecimentos mais em destaque não serão lá muito pacíficos, que na terra à beira mar plantada os costumes serão pouco brandos. Hoje, dia em que alinhavámos este texto, quatro temas sobressaem: violência doméstica, onde se inclui os maus tratos aos idosos; hipocrisia do clero católico perante os abusos sexuais de alguns dos seus funcionários; o desprezo a que são votadas as pessoas mais pobres por parte das autoridades, democraticamente eleitas; o encerramento gradual e paulatino dos principais serviços públicos, saúde e educação, com o simultâneo desrespeito com que são tratados os seus funcionários. Como pano de fundo são quase diárias as notícias sobre os casos de corrupção, de empresários privados e de responsáveis políticos, pontificando a paragona: «Portugal é o segundo país mais lesado por burlas com subsídios europeus. Os factos em investigação terão causado danos no valor de 2,9 mil milhões de euros. Pior que Portugal só a Itália, segundo relatório da Procuradoria Europeia referente a 2022».

O assunto que mais tem feito falar, e por ventura também indignar grande número de cidadãos comuns, é a complacência com que o clero católico, a começar pelos seus mais altos responsáveis, tem tratado a questão da pedofilia e da agressão sexual (nem todos serão pedófilos, mas psicopatas e totalmente criminosos) de alguns dos seus padres contra crianças e jovens; estes, na sua totalidade, provenientes de classes sociais mais baixas. No seu entender não haverá nem suspensões, ainda que temporárias, nem expulsões devido à inexistência de “factos comprovados, sujeitos a contraditório” que fundamentem as acusações; e nem haverá lugar a indemnizações a pagar pelos cofres da Igreja que, deve-se esclarecer, são recheados pelas contribuições dos crentes ingénuos e pelos financiamentos públicos a pretextos diversos: Misericórdias, IPSS, restauro de templos, financiamento de eventos inteiramente religiosos, estando também no centro das atenções e de muitos protestos a realização da Jornada Mundial da Juventude (católica), serão mais de 160 milhões de euros que sairão do erário público, como se o estado, que é laico de jure, fosse um estado religioso. O estatuto de representação institucional que a Igreja Católica possui em cerimónias oficiais públicas contradiz que o Estado português seja laico de facto. O poder, económico e político, confere à Igreja a impunidade e a arrogância: numa república confessional os costumes poderão ser tudo, mas brandos é que não são.

Violência e sociedade

A par da violentação do estado e dos cidadãos por parte do clero católico, assiste-se a uma prática de violência quase quotidiana sobre os cidadãos mais vulneráveis, muitas vezes mulheres e sempre os mais idosos, incluindo os que se encontram no desejável resguardo e segurança dos lares, todos eles privados e pagos a preço de ouro, com mensalidades que ultrapassam em muito o salário médio a vigorar entre nós. São os lares onde os idosos são tratados abaixo de cão, fome, falta de higiene, comidos pelas formigas, em abandono total; muitos dos idosos que faleceram em lares durante a putativa pandemia foi devido ao abandono, falta de comida e de medicação, porque direcções e até trabalhadores fugiram em pânico ou obrigados ao confinamento imposto pelo governo de Costa/PS, que de “sanitário” pouco tinha, seria mais de controlo e de repressão dos cidadãos em geral.

Em Portugal, assim como nos países católicos do sul da Europa, e ao contrário dos países mais ricos e luteranos do Norte, a tendência por parte de muitas famílias é atirar os idosos para os lares quando já dão muito trabalho e são de pouco utilidade, o mesmo acontece com os doentes crónicos “esquecidos” nos hospitais do SNS. É a mesma filosofia do estado/governo quando aumenta a idade da reforma aos trabalhadores, trabalhar até morrer, e persiste em manter reformas miseráveis de trezentos e pouco euros mensais. No início da pandemia, segundo a imprensa, haveria cerca de 6000 lares no país, dos quais cerca de 60%, ou seja, 3500, estariam ilegais; pergunta-se quantos já foram legalizados ou encerrados e no seu lugar criado uma rede pública e nacional de lares? Se isto não é violência, então o que será? Segundo o Estatuto do SNS, os sectores privado e social serão integrados no Sistema de Saúde, imaginem como será a sua gestão e funcionamento! Os médicos vão entrar greve, merecem, tal como os professores, todo o nosso apoio e solidariedade.

As notícias são diárias sobre os tais brandos costumes, situações que em alguns casos poderão estar ligadas à miséria económica e mental, mas existem de facto: «Filhos ameaçaram de morte mãe idosa nos Açores»; «Esgana a avó até à morte e vai deitar-se na cama. Um homem, de 32 anos, vivia em casa da avó de 78 anos, em Seia»; «Homem detido em Condeixa por violação e roubo de idosa de 81 anos. Um homem de 36 anos foi detido pela presumível autoria dos crimes de violação e roubo de uma mulher de 81 anos, em Condeixa-a-Nova»; «Agride mulher e é encontrado morto num poço. Um homem, de 52 anos, agrediu a mulher, de 61, com um martelo na cabeça, na quinta-feira, 2 de março, em Torres Novas». «Mulher agredida pelo marido fica em estado grave. Agressor entregou-se à PSP. Uma mulher de 28 anos foi hospitalizada em Mirandela, no final do dia de domingo, depois de ter sido agredida pelo marido». Estes títulos foram respigados de imprensa de hoje, dia 6 de Março de 2023 (D. C.), de um país que se presume ser europeu, da velha e civilizada Europa, um país com perto de mil anos, que desde 1986 faz parte dos países mais avançados da dita Europa, que “deu conhecer mundos ao mundo”; títulos retirados da imprensa séria e não do pasquim “CM” – antigamente, pensava-se que estas notícias saíam só no “Jornal do Crime” e eram inventadas.

Hipocrisia e violência

A hipocrisia será um dos principais predicados que impera na sociedade portuguesa, um nobre e tradicional sentimento, porque cultivado pelas classes dominantes e desde tempos imemoriais, e transmitido à populaça, as ideias não estão separadas por muralha da China entre as diferentes classes sociais, e a Igreja Católica ombreia com a classe política do poder: «O psiquiatra Daniel Sampaio negou esta segunda-feira que a Igreja tenha recebido uma lista com os nomes dos padres abusadores sem ter mais informações sobre os casos denunciados, descrevendo a postura dos bispos como um "atrasar do problema"»; no entanto, «Patriarcado de Lisboa promete agir com tolerância zero conforme “grito do Papa Francisco”. O bispo auxiliar de Lisboa Américo Aguiar prometeu hoje que o Patriarcado de Lisboa vai agir com “tolerância zero” perante alegados padres abusadores de menores». De igual modo, o partido que se diz “socialista” e vai espalhando umas medidas “comunistas” (diz a oposição de direita) para a habitação, embora os especuladores estejam cada vez mais ricos, a socialista câmara de Loures: «Bairro do Talude. Máquinas demoliram barracas onde viviam oito famílias em Loures». Eram pobres e de cor negra. Entretanto, sabe-se (ou confirma-se) que há: «Um Portugal lento, onde quase não há represálias para quem pratica discursos de ódio, é a principal queixa das vítimas entrevistadas pela agência Lusa». A hipocrisia anda sempre de mãos dadas com a violência.

Ah! Já agora, terá a Igreja Católica a ver alguma coisa com a Santa Inquisição, que condenou à morte na fogueira milhares de cidadãos porque eram do contra, ou não haverá “factos comprovados, sujeitos a contraditório”?! O mesmo se poderá dizer a respeito do Estado Novo, terá assassinado algum cidadão menos patriótico e respeitador dos tais “bons costumes” ou terá sido raro descuido de algum agente da PIDE menos bem preparado?! Haverá algum partido de extrema-direita em Portugal, já que os partidos que existem são todos  legais e aprovados pelo Tribunal Constitucional e a Constituição da República proíbe organizações fascistas, ou será somente intolerância dos partidos de esquerda e de alguns poucos cidadãos mais radicais?! Se repetirmos muitas vezes, talvez passem a verdade as palavras de Salazar: “A violência, processo directo e constante da ditadura fascista, não é aplicável, por exemplo, ao nosso meio, não se adapta à brandura dos nossos costumes…”. O mesmo se poderá dizer em relação a muitos aspectos do regime democrático burguês que saiu do útero do fascismo, ou não serão fascismo e democracia (burguesa) as duas faces da mesma moeda que é o poder do capital?!

PS: «UE (democrática) financia com mil milhões de euros compra conjunta de munições para a Ucrânia (nacionalista-integralista)» – na imprensa mainstream. Quem pagará? 

Giorgio Agamben: Nustérze o poscrà; Na anarquia, hoje

 Nustérze o poscrà

Aion cercado pelo zodíaco (wikipedia)

"Não acredito no amanhã, talvez depois de amanhã", escreveu Joseph Roth. Em que eu acredito? Nem amanhã, nem depois de amanhã – talvez in poscrà ou pescridde, como acho que dizem em apuliano no dia seguinte ao dia depois de amanhã. Mas na verdade eu prefiro acreditar em nustérze (na vanguarda) ou no dia antes da vanguarda. É a compreensão e o conhecimento do passado que faltam hoje, e não só para os mais novos. Mas talvez seja o tempo que falta, em todos os seus êxtases e formas, porque o futuro que os devorou ​​está vazio e já ninguém acredita nele, enquanto o presente é por definição inviável. O tempo de que precisamos, porém, não é nenhum dos dois: é aionou aeon, que os antigos retratavam como um jovem com asas nos pés apoiado em uma roda, que só pode ser agarrado por um tufo na frente da testa – a oportunidade – e, se você deixá-lo passar, você está perdido para sempre.

Aion é a cor do tempo, o tempo da vida e, como diz um provérbio mexicano, esse tempo especial nunca falha, ay mas tiempo que vida – talvez porque este tempo e a vida sejam a mesma coisa. É um tempo que não pode ser contado, que só pode ser expresso com advérbios e nunca com números: agora, já, sempre, agora, logo, tarde, ainda, nunca, poscrà… O problema é que não estamos mais vivos e a ocasião é precisamente aquela de tornar-se de novo ou tornar-se vivo ("tornar-se vivo", como dizem), para voltar no tempo, não importa como ou quando, se não hoje antes de ontem do que depois. À nossa volta existem apenas múmias, cadáveres que pretendem dirigir a sua própria exumação e atormentar-nos com decretos e notícias para nos fazer participar na sua sinistra cerimónia. É com essas múmias que temos que romper, só se as deixarmos para trás é possível que, nustérze o poscrà, o jovem alado venha em nossa direção com seu topete – e desta vez não, não vamos deixá-lo escapar.

2 de março de 2023

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Na anarquia, hoje

Se para quem se propõe a pensar a política, da qual ela é de algum modo o foco extremo ou o ponto de fuga, a anarquia nunca deixou de ser atual, assim também o é hoje também para a injusta e feroz perseguição a que um anarquista nas prisões italianas. No entanto, falar de anarquia, como também tem de ser feito, no plano da lei implica necessariamente um paradoxo, porque é no mínimo contraditório pedir que o Estado reconheça o direito de negar o Estado, tal como, se se pretende para levar o direito de resistência às suas últimas consequências, não se pode razoavelmente exigir que a possibilidade de guerra civil seja legalmente protegida.

Para pensar a anarquia hoje, será melhor nos colocarmos em uma perspectiva completamente diferente e questionarmos a maneira como Engels a concebia, quando censurava os anarquistas por quererem substituir o Estado pela administração. Na verdade, esta acusação esconde um problema político decisivo, que nem os marxistas nem talvez os próprios anarquistas colocaram corretamente. Um problema tanto mais urgente quanto testemunhamos hoje a tentativa de realizar de alguma forma paródica o que era para Engels o objetivo declarado da anarquia – e, isto é, não tanto a simples substituição da administração pelo estado, mas sim a identificação de Estado e administração numa espécie de Leviatã, que assume a máscara bem-humorada do administrador. Isso é o que Sunstein e Vermeule teorizam em um livro (Lei e Leviatã, Redimindo o Estado Administrativo) em que a governança, o exercício do governo, ultrapassando e contaminando os poderes tradicionais (legislativo, executivo, judiciário), exerce em nome da administração e de forma discricionária as funções e poderes que eles eram devidos.

O que é administração? Ministro, de onde deriva o termo, é o servo ou ajudante em oposição ao magister, o mestre, o detentor do poder. A palavra vem da raiz *men, que significa diminuição e pequenez. O ministro está para o magister como o menos está para o magis, o menos para o mais, o pequeno para o grande, o que diminui para o que aumenta. A ideia de anarquia consistiria, pelo menos segundo Engels, na tentativa de pensar um ministro sem magister, um servo sem mestre. Certamente uma tentativa interessante, pois pode ser taticamente vantajoso jogar o servo contra o mestre dessa forma, menos contra mais e pense em uma sociedade em que todos são ministros e ninguém é magister ou chefe. Em certo sentido, foi isso que Hegel fez, mostrando em sua notória dialética que o servo, em última análise, domina o mestre. No entanto, é inegável que as duas figuras-chave da política ocidental permanecem assim ligadas uma à outra numa relação incansável, da qual é impossível chegar ao fundo de uma vez por todas.

Uma ideia radical de anarquia só pode, portanto, libertar-se da dialética incessante do servo e do escravo, do ministro e do magister, para se colocar resolutamente na brecha que os divide. O tertium que aparece nessa lacuna não será mais administração ou estado, menos ou magis: será antes entre eles como um resto, o que expressa sua impossibilidade de coincidir. A anarquia é, antes de tudo, a negação radical não tanto do Estado, nem simplesmente da administração, mas da reivindicação do poder de fazer coincidir o Estado e a administração no governo dos homens. É contra essa pretensão que o anarquista luta, em última análise, em nome desse ingovernável, que é o ponto de fuga de toda comunidade entre os homens.

26 de Fevereiro de 2023

Giorgio Agamben

quodlibet

sábado, 4 de março de 2023

O Presidente e o Coronavírus

 

Imagem: Vasco Gargalo

Faz agora três anos que foi declarada a pandemia Covid-19 e a crónica era a seguinte:

Portugal vai entrar na fase dita “de mitigação” dentro de horas ou dias, disse a ministra; a OMS acaba de declarar que o surto do novo coronavírus atingiu o nível de pandemia; o Presidente Marcelo avisa que não pode haver crises no seu último ano de mandato, estando já em auto-quarentena por causa do vírus; o presidente da Assembleia da República continua a recusar que as reuniões do plenário sejam realizadas à porta fechada, contrariando as pressões do próprio partido e das outras bancadas; o primeiro-ministro Costa está em véspera de decretar o encerramento de todas as escolas do país, o que irá afectar uma população de 1,5 milhões de alunos; e o Tony Carreira adiou o concerto que estava previsto para este Sábado e que seria o primeiro após um longo interregno. O caso é sério!

O Presidente já declarou solenemente que não quer eleições antecipadas, nem crises em geral, por causa da estabilidade do regime político e da economia e, principalmente, coisa que não explicita, por estar não só em fim de mandato mas se encontrar em fase avançada de lançamento de recandidatura. Ter de dissolver a Assembleia da República, convocar eleições antecipadas e, eventualmente, propiciar maioria absoluta ao PS para poder governar a seu belo prazer, não era só um atentado à sua estratégia de algum controlo sobre o Governo, como lhe poderia estragar a imagem - basta o Covid-19! E a imagem vai-se promovendo com atitudes de disseminação de “afectos”, o que quer que isso seja, e de alguma humildade, falsa e mal disfarçada, com a sua auto-reclusão a propósito de conter a propagação do vírus, como mais exemplo para todo o bom português do que possuir alguma idade e ter sido submetido recentemente a pequena intervenção cardíaca. Considerar esta atitude de poltronice ou cobardia política, aliás, congruente com a sua personalidade, não passará de maledicência e de má-fé.

Esta pandemia parece que vem mesmo a calhar para as nossas elites, a nível interno; e para o grande capital, a nível mais global. Em termos de nós por cá, poderá ser um bom pretexto para o Governo PS/Costa agravar medidas de austeridade, uma austeridade que terá ficado em banho-maria com o a ida do PS para a esfera governativa, com alguma aceitação da opinião pública e, preocupação de todos os governos que temos tido depois do 25 de Abril, sem que o povo se revolte. Será uma boa desculpa para a desaceleração da economia, com a revisão da meta do PIB em baixa, contenção da despesa pública com a Saúde e a Educação e salários da Função Pública e reformas e aposentações e diversos subsídios sociais. A recapitalização da banca, de certeza, que não será prejudicada, o Novo Banco não deixará de receber o seu quinhão já prometido, e haverá sempre dinheiro para as empresas, ou através do Orçamento do Estado ou dos Fundos Europeus que, no fim da linha, será sempre o povo a pagar.

Se uma parte da economia vier a ressentir-se com a crise do coronavírus, nomeadamente o turismo, no entanto, outra se desenvolverá, seja laboratórios e farmácias a facturar, assim como clínicas e hospitais privados onde já devem estar com máquina de calcular nas mãos, ou super-mercados a ficarem num ápice com as prateleiras vazias, como já aconteceu em Madrid, devido ao alarmismo inculcado na opinião pública pelas televisões e aparições constantes e inadequadas de governantes. Os patrões mais afectados pela diminuição do negócio já receberam do Governo a garantia de que os lucros não diminuirão: luz verde para o lay-off, com os salários dos trabalhadores a serem pagos pela Segurança Social, ou seja, por eles próprios, e linha financeira de apoio que já vai em 200 milhões de euros, bem como outros benefícios fiscais. A nível global, a crise económica será mascarada com a pandemia, esta terá as costas largas para explicar as mazelas do capitalismo, com a paragem da produção a servir às mil maravilhas o velho problema da produção em excesso capitalista, um dos factores das crises cíclicas, que já são um estado permanente. E, pelo menos para já, não será necessário uma guerra a nível mundial.

Antes da declaração da crise e do aumento significativo do número de casos de infectados pelo coronavírus a nível mundial, os sinais de grave crise da economia capitalista a nível global já eram mais que evidentes. As economias da China, da Itália e da França já mostravam que se encontravam em queda: na China o índice PMI (Purchasing Manufacturing Index) do instituto Caixin/Markit teve a maior queda desde 2004; a Itália sofrera o seu 17º declínio mensal consecutivo na atividade manufactureira, com o governo a anunciar a injecção de 3,6 bilhões de euros na economia; e a actividade fabril a contrair-se, com o PMI industrial a cair 1,3 pontos, na França. A economia capitalista mundial já diminuíra para quase uma velocidade de perda (stall speed) de 2,5% ao ano, os EUA a crescer apenas 2% ao ano, apesar das medidas e fanfarronices do presidente Trump, e o conjunto da UE e o Japão apenas 1%. Lógico, e como reflexo, o índice Dow Jones de Wall Street experimentou a maior queda de sempre no dia 27 de Fevereiro, com uma perda acumulada superior a 15%. O FMI, no seu último relatório sobre a estabilidade financeira global, prevê a possibilidade de uma recessão tão ou mais severa quanto à de 2009, que resultaria em empresas com 19 triliões (10 elevado a 18) de dólares de dívida pendente mas com lucros insuficientes para lhe fazer face: uma bancarrota geral do capitalismo. Realidade que confirma uma das leis do capitalismo que é a tendência da taxa de lucro para zero. Ora, uma pandemia vem mesmo a calhar, o azar é se acontecerá o mesmo que ocorreu no século XIV com a peste negra, que terá ceifado entre 50 a 200 milhões de vidas humanas na Europa e na Ásia, e que marcou o fim da Idade Média e a ascensão da burguesia, é que esta agora poderá marcar o fim da burguesia e do seu sistema económica de exploração humana.

A pandemia do Covid-19 justificará também uma maior exploração sobre os trabalhadores, e sobre os povos em termos globais, e com uma maior manipulação da opinião pública, e inclusivamente dos próprios trabalhadores, como já se vê entre nós a respeito da greve dos trabalhadores do Hospital de Braga. Os trabalhadores deste hospital, mais precisamente os assistentes técnicos, limitam-se a reivindicar uma questão básica que é apenas beneficiar de um acordo coletivo de trabalho, questão que tem sido constantemente protelada pela administração que sempre actuou de má-fé. O Governo e os patrões, a começar pelo Estado, desde há muito que têm vindo a atacar um direito elementar dos trabalhadores, o direito à contratação colectiva, coisa que tem sido cada vez mais negada pelas sucessivas revisões da Lei do Trabalho; e agora, graças ao coronavírus, vai surgindo, pelo menos em alguma blogosfera e redes sociais, opinião favorável à criminalização dos trabalhadores e das suas organizações sindicais, porque se estarão a aproveitar de forma oportunista de uma situação má para o país, confundindo que em Portugal existem vários “países”, grosso modo, dois: o dos patrões e dos trabalhadores assalariados. As televisões têm sido os instrumentos de eleição para a intoxicação da opinião pública, simultaneamente vão aumentando as audiências, com maiores proventos da publicidade, isto é, vão lucrando com o mal dos outros, e não deixam de salientar a toda a hora a hipotética ineficiência do SNS, preparando o terreno para uma maior intervenção dos serviços privados de saúde, cujos acionistas não deixarão de enriquecer graças à ocasião.

Esta pandemia é a segunda declarada pela Organização Mundial de Saúde desde 2009, a primeira foi a famosa gripe das aves (H1N1 ou Gripe A), e depois daquela data já avançou com situações de “emergência internacional”, com o vírus Ébola (2013), com o ressurgimento da Poliomielite (2014) e com o Zika (2016). Isto mostra que o capitalismo, devido à sua própria natureza, só visando o lucro, é incapaz de promover a saúde das populações, e do indivíduo em particular se não fizer parte dos 1% dos detentores da riqueza, seja através da prevenção primária, isto é, da saúde que não dá dinheiro, seja por meio do tratamento (prevenção secundária) que, movendo-se na área da medicina curativa e da indústria farmacêutica, não gere as mais-valias desejadas. E a OMS mostra, de igual modo, que possui uma agenda ditada pelos grandes grupos económicos que dominam o sector da Saúde e pelas grandes potências capitalistas, tendo tardado a declarar a situação de pandemia e, ao que parece, também nada ter aprendido com as situações passadas, a começar pelas mais recentes.

Não deixa de ser curioso notar que é precisamente em países de capitalismo mais desenvolvido que se detetam maior número de infectados e de suspeitos de infecção: China, segunda potência económica mundial, foi onde a pandemia se terá iniciado; Coreia do Sul, um dos “tigres asiáticos”; Itália, Alemanha, França, Espanha, na dita “democrática e civilizada” União Europeia; e Irão, um dos considerados países do “eixo-do-mal”, que poderá ser a excepção. Países, quase todos eles, onde seria suposto as pessoas possuírem um elevado grau de Educação para a Saúde e Serviços de Saúde de topo. Ainda estamos para ver o que irá acontecer no país do Tio Sam onde a maioria do povo não tem acesso a Serviços de Saúde devido, entre outras razões, à inexistência de um SNS.

A pandemia do coronavírus servirá de argumentário para desculpabilizar a crise profunda e crónica do capitalismo e tentar justificar os meios para a minorar, uma crise com causas e mecanismos bem conhecidos, terá quanto muito contribuído para a destapar e antecipar. As medidas que vierem a ser postas em prática terão sempre um efeito perverso: contribuir para um maior agravamento do estado comatoso de toda a economia capitalista, desde os países mais desenvolvidos aos mais atrasados; agravamento que irá acontecer a breve trecho. A moeda tem sempre duas faces.

11 de Março 2020

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