quarta-feira, 15 de março de 2023

ECCE HOMO – Como se chega a ser o que se é

 

Friedrich Nietzsche

Ao chegar a este ponto não posso já adiar a verdadeira resposta à pergunta: como se chega a ser o que se é? Atinge-se deste modo a obra-prima da arte da conservação de si mesmo – a arte do egoísmo… Se admitimos, com efeito, que tanto a tarefa como o motivo ou o propósito dela são bem nossos, ou próprios de nós, não haverá nenhum perigo em defrontar a tarefa. Chegar a ser o que se é, isto leva a supor que não se tem dúvida alguma a respeito do que se é. Considerados deste ponto de vista, os erros que na vida praticamente assumem sentido e valor próprios. Por vezes seguimos caminhos de nenhures, atrasamo-nos, mostrando o nosso «desinteresse» ou seriedade, e empreendemos, não raro, tarefas que estão para além da nossa própria missão. Assim se mostra uma grande sabedoria, e ainda a suprema sabedoria: ali onde o «nosce te ipsum» seria a receita para um homem se perder, para esquecer-se de si próprio, para se desconhecer e diminuir, chega a ser, afinal, a razão mesma de existir. Exprimindo-me em termos morais: o amor ao próximo, a vida ao serviço dos outros e de outra causa, podem ser meios seguros de conservar o egoísmo mais consistente. Este é o caso excepcional em que, contra a minha regra e a minha convicção, tomo partido pelos instintos «desinteressados» : eles trabalham aqui ao serviço do egoísmo e do exclusivo interesse pessoal.

Cumpre conservar isenta toda a superfície da consciência – a consciência é uma superfície – do contacto de qualquer dos grandes imperativos. Cuidado com as grandes palavras! Cuidado com as grandes atitudes! É nítido o risco de que o instinto «se compreenda» demasiado depressa a si próprio. Entretanto, a ideia organizadora, a «ideia» que tende a dominar, vai surgindo, crescendo, nas profundidades, começa a ordenar-se, leva-nos após si, pouco a pouco, por caminhos laterais e desviados, suscita discretas disposições e possibilidades que um dia se revelarão como meios indispensáveis a alcançar o fim autêntico – coloca em série todas as potências requeridas antes de fazer surgir a nota dominante e imperiosa que dá a «meta», o «fim», o «sentido».

Considerada neste aspecto, é a minha vida simplesmente maravilhosa. Para a tarefa da transmutação dos valores requeriam-se faculdades tais que nunca se reuniram num só indivíduo e, sobretudo, também, faculdades opostas que entre si não se perturbassem ou destruíssem. Hierarquia das faculdades, distância, arte de distinguir sem opor, nada misturar, nada «conciliar», prodigiosa multiplicidade que, no entanto, é o contrário de um caos – tal foi a condição preliminar, o estrénuo e secreto labor e dom artístico do meu instinto. Sua superior garantia mostrou-se tão forte, que eu em momento algum suspeitei do que se preparava em mim, surgindo todas as minhas faculdades um dia amadurecidas e na última perfeição.

Não tenho memória de que me haja alguma hora aplicado com esforço fosse ao que fosse, não se encontra na minha vida sinal de luta: sou o contrário de uma natureza obstinada. «Querer» uma coisa, «esforçar-se» por uma coisa, ter diante dos olhos um «fim», um «propósito», são estados que por própria experiência não conheço. Neste mesmo momento lanço o olhar para o meu porvir – como quem contempla um mar em calmaria: desejo algum nele se encrespa. Não quero de forma alguma que qualquer coisa, seja o que for, seja diferente do que é; eu próprio não quero ser diferente do que sou… E assim sempre vivi. Não tenho desejos. Sou alguém que aos quarenta e quatro anos pode dizer que nunca buscou «honras», «mulheres» ou «dinheiro»! Não digo que estas coisas me tenham sempre faltado. Assim, por exemplo, fui um dia professor da Universidade; nunca, de longe sequer, pensara sê-lo, pois tinha apenas vinte e quatro anos quando o fui. Assim, dois anos antes, fui um dia filólogo: no sentido de que o meu primeiro trabalho filológico, uma iniciação em todo o sentido, foi solicitado por Ritschl para ser publicado no seu Museu Renano. Ritschl, e digo-o com veneração, foi o único sábio de génio que até hoje encontrei. Possuía aquela agradável depravação... que distingue os que nascemos na Turíngia, e que torna até simpático um alemão: para chegar à verdade preferimos muita vez os caminhos ínvios. Não pretendo, de modo algum, com estas palavras, diminuir o meu mais próximo compatriota, o «maligno» Leopoldo de Ranke...

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Por que motivo contar – perguntar-se-á – todas estas pequenas coisas, que são, segundo o modo de ver tradicional, indiferentes? E dir-se-á que, ao fazê-lo, me prejudico a mim próprio, e tanto mais quando estou destinado a grandes empresas. Responde-se: estas pequenas coisas, alimentação, lugar, clima, divertimentos – toda a casuística do egoísmo – são muito mais importantes do que tudo quanto já se concebeu e imaginou. E é aqui precisamente que importa alterar doutrina. O que até agora a humanidade tomou a sério, não é realidade, é pura imaginação, ou, para me exprimir com mais rigor, são mentiras derivadas de instintos de seres enfermiços, e de tendências profundamente nocivas: todas as ideias de «Deus, alma, virtude, pecado, além, verdade, vida eterna»... Supôs-se, no entanto, ver neles a grandeza da natureza humana, a sua «divindade»… Todos os problemas da política, da organização social, da educação, foram completamente falseados pelo facto de que se tomaram por grandes homens os homens mais nocivos, e se ensinou a desprezar as «pequenas» coisas, ou seja os assuntos fundamentais da vida. Pois bem, se comparo comigo os homens que até hoje foram considerados os primeiros, encontro evidentes diferenças. Eu não incluo estes pretensos «primeiros» nem sequer entre os homens em geral: são para mim o rebotalho da humanidade, produtos da doença e do instinto de vingança: não passam de monstros funestos, e no fundo incuráveis, que se vingam da vida. Eu quero ser o contrário deles: o meu privilégio é ter a maior agudeza para discernir todos os sinais dos instintos sãos. Não tenho, qualquer indício de morbidez; nem sequer nos tempos da minha grave doença estive doente. É inútil procurar em mim sinal de fanatismo. Não poderá assacar-se-me em momento algum da minha vida uma atitude arrogante ou patética. O patético do gesto não pertence à grandeza; o que carece de imponência é falso… Cuidado com os homens impressionantes!

A vida decorreu para mim suave, e mais suave ainda quando de mim exigia o mais difícil. Quem me viu nos setenta dias deste Outono, em que, sem interrupção, escrevi coisas de primeira ordem, coisas tais que ninguém pode imitar – ou ensinar – na plena responsabilidade dos milénios que virão depois, não pôde assinalar o mínimo desequilíbrio, mas antes uma frescura e serenidade superabundantes. Nunca comi com mais prazer, nunca dormi melhor.

Não conheço outra maneira de ocupar-me dos grandes problemas do que jogo tal é, como condição de grandeza, o pressuposto essencial! A contensão, o rosto sombrio, o aspecto rígido, são objecções contra um homem e também contra a sua obra!... Não se devem ter nervos!... Também a incapacidade de viver solitário constitui objecção; eu, na verdade, sofri apenas «da multidão». Em idade extremamente juvenil, tinha sete anos, sabia já que nunca uma palavra podia ferir-me. Ninguém me viu nunca em tais circunstâncias magoado. Hoje, ainda, se para todos mostro serena afabilidade, mantenho sempre a mesma consideração para com os humildes: no que não há sequer grão de orgulho, de secreto desprezo. Quando desprezo, o desprezado logo o adivinha; pelo simples de existir, não mais, encho de turbação todos os que têm mau sangue nas veias… A minha fórmula de grandeza do homem é «amor fati»: não pretender ter nada diversos do que se tem, nada antes, nada depois, nada por toda a eternidade. A Necessidade não existe apenas para suportar-se – todo o idealismo é mentira em face da Necessidade – mas para que a amemos… 

 

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