quarta-feira, 21 de julho de 2021

A reconversão capitalista em Portugal: milhões, vacinas, despedimentos e repressão

 

A reconversão capitalista no nosso país vai ser feita através dos fundos agora aprovados pelo Ecofin, 16,6 mil milhões de euros, para sectores que interessam aos grandes países capitalistas da UE, principalmente a Alemanha, actividades de fraco valor acrescentado, exploração de matérias primas, com o lítio à cabeça, assente em salários miseráveis, e para corrupção de políticos e diversos lobistas. Reconversão que, em tempo de crise e incerteza prolongadas, é sempre acompanhada pela limitação das liberdades, direitos e garantias dos cidadãos; agora, justificada pela pandemia e por meio de instrumentos de pseudo-protecção sanitária, o certificado digital covid, pela censura da net e troca de informação de dados pessoais dos cidadãos entre os estados da União, e, se necessário, repressão aberta dos trabalhadores através das policias e tribunais. E com o PS, como agente de negócios e cabo de esquadra do grande capital, a não apenas abrir o caminho ao fascismo/populismo, mas a ser ele próprio o agente que aplica o fascismo.

Despedimentos em massa

No início da presidência portuguesa da União, Ursula von der Leyen anunciou com pompa e circunstância, e ao lado do pau-mandado Costa, que o plano (PRR) “irá mudar profundamente a economia portuguesa”, afirmação repetida recentemente, e que “vai fazer com que Portugal saia mais forte” da crise e “vai ajudar a construir um melhor futuro para Portugal, para o povo português e para a UE”. Para a UE talvez, para o povo português não o vai ser de certeza. Para nós, será mais desemprego, salários mais baixos; em suma, mais fome, no sentido literal do termo, mais privações e mais miséria. E os factos, mais que previsíveis, estão aí:

Despedimento colectivo de 124 trabalhadores na TAP (será o início de uma vaga de despedimentos colectivos em Portugal iniciada exactamente pelo governo PS); Altice justifica despedimento de 246 trabalhadores com “revolução tecnológica”; milhares de despedimentos, disfarçados de “mútuo acordo” e de “reformas antecipadas” são esperados na banca (centenas de trabalhadores manifestam-se junto da Assembleia da República); mais despedimentos são esperados em sectores do turismo, restauração e transportes, os sectores mais afectados pela crise, taxa de desemprego jovem cresce quatro vezes mais que a média nacional, o que está dentro da lógica. Com mais desemprego, os salários baixam já por si, não será necessário vir o BCE, repetindo o Centeno, seu representante em Portugal, avisar que “pode ser necessário travar aumentos salariais”. Nada de novo, é a concentração capitalista.

A concentração capitalista

Ainda há pouco dias, um dos homens mais ricos do mundo, Warren Buffett, em entrevista para a CNBC e no seu estilo desbocado, não esteve com meias palavras: "a pandemia ainda não acabou e haverá outra, nós sabemos isso”. Ou seja, a pandemia foi providencial e outras do género virão, mais vírus, “ameaça nuclear, química, biológica e agora cibernética, cada uma delas tem possibilidades terríveis", acrescenta Buffett. Conhecido por outras afirmações aparentemente chocantes: “na luta de classes, os ricos estão a ganhar” ou “os meus trabalhadores pagam mais impostos do que eu”, o velho capitalista completa o raciocínio: "o impacto económico tem sido algo extremamente desigual e muitas centenas de milhares ou milhões de pequenas empresas têm sido terrivelmente prejudicadas, mas a maioria das grandes empresas têm-se saído muito bem". Enquanto milhares de pequenas empresas foram forçadas a fechar as suas portas, os grandes retalhistas e gigantes do comércio eletrónico receberam esses clientes, e esclarece: "A pandemia ainda não acabou” … Ou como a pandemia faz parte do arsenal de instrumentos para a condução de maior concentração de riqueza e de maior pauperização do povo. Fala quem sabe.

A crise do capitalismo é iniludível e o velho impérios dá voltas de cão para impedir a decadência imparável: “O PIB do primeiro trimestre do ano passado caiu 31,4% nos EUA, algo sem precedentes desde a Grande Depressão”, uma queda de 20 triliões de dólares. E a inflação chegou aos 5,8%, o que não acontecia desde 2008. A inflação não será apenas no centro do mundo capitalista, mas na Europa, para onde os EUA enviam a crise, como aconteceu em 2007/8 com os subprimes, e serão os países da periferia, os elos mais fracos da cadeia capitalista, a arcar com o peso integral da referida crise. Em Portugal: “Preço dos combustíveis em máximos desde 2012”; “O preço ao consumidor subiu à volta de 20% nos últimos 12 meses”; “Preços da energia sobrecarregam orçamentos familiares”. No entanto, no topo da pirâmide social, surgiram “mais 19 mil milionários portugueses em ano de pandemia”. E como bem diz Warren Buffett, de cima dos seus 90 anos (fala a experiência!), "a pandemia ainda não acabou…”

A inflação como instrumento de pauperização dos trabalhadores

O aumento dos combustíveis irá necessariamente reflectir-se no preço dos principais bens essenciais da população. A estratégia anunciada pelo Banco Central Europeu (BCE) de manter a inflação a 2% será apenas para controlo dos salários. A inflação sempre foi um mecanismo utilizado pelos capitalistas para recuperar o que dão aos trabalhadores em consequência das suas lutas. Também não é por acaso que os patrões que tiveram de aumentar o salário mínimo aos trabalhadores acham que as compensações dadas pelo governo são insuficientes, querem fazer da medida um negócio lucrativo. Enquanto os trabalhadores ficam mais pobres, as “transferências para paraísos fiscais aumentaram na pandemia”, cerca de 6500 empresas e 5200 particulares fizeram transferências para contas em off-shores, foram perto de 6,8 mil milhões de euros que voaram em 2020, um valor que supera em 14,30% o de 2019. O que mostra que por parte dos trabalhadores não basta lutar, a luta é somente um meio, terá de se destruir este sistema económico de salariato. O capitalismo é indubitavelmente o sistema de gatunagem legal, e o PS um dos seus agentes.

A burguesia nacional, toda ela, está neste momento a salivar pelos muitos milhões que aí vêm; vai-se organizando, é a Business Roundtable Portugal, são os chefes das diversas organizações patronais e invectivarem o governo para escolher entre a economia e a saúde, como referiu o presidente da Confederação do Turismo, diga-se de passagem, com alguma razão, porque se trata também de pequenos e médios empresários. O dinheiro que aí vem não é a custo zero e acaba por ser necessário para evitar o afundamento da burguesia indígena, uma burguesia rentista e subsídio-dependente, e do capitalismo nacional em termos imediatos. “A Comissão anunciou que iria emitir cerca de 80 mil milhões de euros em obrigações de longo prazo”; a Comissão Europeia vai contrair empréstimos nos mercados de capitais até 750 mil milhões de euros a preços de 2018, ou até cerca de 800 mil milhões de euros a preços correntes (empréstimos de cerca de 150 mil milhões de euros por ano, em média, entre 2021 e 2026). Ou seja, vai aos bancos buscar dinheiro a taxa de juros positiva enquanto estes o vão buscar a taxa negativa. Conclusão, os estados endividam-se para salvar os principais bancos europeus. É o grande capital financeiros internacional que, no fim da linha, ganha por último.

Portugal um país cada vez mais endividado

Com se torna evidente para todos, Portugal sairá da crise (se chegar a sair!) mais endividado do que estava, com a agravante de quando entrou já era um dos mais endividados da UE. Com a lábia aprendida com o mentor e seu antecessor na pasta, vem o ministro das Finanças dizer que “Portugal não voltará à austeridade”, querendo apagar a realidade de que o país, ou melhor, os trabalhadores e o povo português nunca deixaram de estar em austeridade. E, não satisfeito com o despudor, acrescenta que “mal tocou nas reservas e tem cerca de 2,8 mil milhões por gastar”, sucedendo assim ao “rei das cativações”, repetindo que “não vê necessidade de um Orçamento retificativo”, mantendo a saúde e a educação, por exemplo, em subfinanciamento. Simultaneamente, acena com o cheque de 2,1 mil milhões de euros, que deverá vir ainda este mês de Julho, para a recapitalização das empresas, mas não de todas. O governo, por sua vez, não se cansa de alardear que dos 16,6 mil milhões de euros da “bazuca”, só 2,7 mil milhões serão em forma de empréstimo e que os restantes 13,9 mil milhões serão subvenções a fundo perdido, uma outra tanga porque os bancos, e os ricos, não dão nada a ninguém porque então não seriam bancos nem ricos. Todo este dinheiro, que irá beneficiar as grandes empresas e grandes capitalistas, será pago na íntegra pelo povo português e com língua de palmo. Não haja ilusões quanto a este ponto!

Perante a falência eminente de muitas empresas, o governo PS diz que vai “garantir 25% do crédito sob moratória às empresas dos sectores mais afectados pela pandemia” (sempre a providencial “pandemia”!) a partir de 30 de Setembro, data do fim das moratórias para empresas e famílias, sendo as primeiras as mais endividadas (cerca de 25 mil milhões de euros), só que não será para todas as empresas, as maiores terão a preferência, embora o governo não abra completamente o jogo, tal como a ministra da Agricultura. Esta ave-rara, que deve perceber tanto de agricultura como nós percebemos de lagares de azeite, tentou encobrir, em entrevista realizada há pouco tempo, que serão as grandes empresas agrícolas que irão receber o grosso dos milhões, ou seja e ao contrário do que disse, são somente 7% os beneficiários da PAC (Política Agrícola Comum), os grandes latifundiários e empresários e o agronegócio, onde predomina empresas estrangeiras, que irão receber 70% das verbas; os outros 93%, as pequenas empresas familiares, receberão apenas 30%. Será a concentração capitalista no campo, com a intensificação do cultivo intensivo com a degradação e exaustão dos terrenos e assente em mão-de-obra imigrante tremendamente sobre-explorada. E vem o governo com a história da “reconversão verde”, mais outra treta!

Quanto à recuperação económica que o governo dá como certa em 2022, outros falam só em 2023 com o regresso do turismo aos níveis de 2019, uma coisa mais que incerta, o chefe da diplomacia da UE vem cautelosamente anunciar que “o mundo como um todo” não vai superar a pandemia antes de 2023, ligando a crise económica à dita “pandemia”, uma maneira ardilosa de ocultar as verdadeiras causas da crise económica, justificar as medidas dos governos e, à pala do combate à covid-19, pressionar a mais rápida vacinação da população, a contento das grandes multinacionais farmacêuticas, e simultaneamente reforçar o controlo das populações a fim de se sujeitarem ao processo de empobrecimento em curso e às medidas de austeridade a redobrar, que serão lançadas em breve a fim de pagar os dinheiros da “bazuca”. Calcula-se que em Portugal, atendendo ao endividamento das empresas e à garantia parcelar do prolongamento das moratórias por parte do governo, entre 25 a 40% das pequenas e médias empresas irão para a falência nos próximos dois anos; é a concentração capitalista e a proletarização de grande parte da pequena-burguesia.

Certificado Digital Covid como instrumento de discriminação e repressão social

O primeiro Costa, depois de aparentemente ter levado o puxão de orelhas da Merkel por ter deixado entrar no país os hooligans ingleses, pôs logo em prática o certificado digital covid como forma de apressar a vacinação, que parecia estar atrasada no Algarve e na Grande Lisboa, e ver como os portugueses iriam reagir à imposição de um controlo que faz inveja à Alemanha nazi, quando começou a proibir a entrada dos judeus nos restaurantes para depois os enfiar nos campos de concentração para o aniquilamento final. A manobra não deixa de ser tosca, primeiro confinaram-se os concelhos aos fins de semana onde a vacinação não progredia por renitência dos visados, quando o atraso foi recuperado e o negócio passou a andar mais de vento em popa, aplicou-se o certificado digital à experiência aos fins de semana para se comer em restaurantes ou para ir para o hotel. Verifica-se que as pessoas não estão muito agradadas com a ideia, preferem comer nas esplanadas e os donos dos restaurantes também estão pouco interessados em exercer uma função, que lhes é interdita por lei, de certificação de um acto de diagnóstico clínico, que deve ser feito exclusivamente por pessoal especializado de saúde. Várias ilegalidades cometidas pelo governo PS, não havendo sequer estado de emergência que pudesse dar alguma cobertura legal. Temos o governo PS e o Costa como fascistas no seu melhor. Com a agravante que nenhuma organização de classe dos trabalhadores da saúde, ordem ou sindicato, tenha vindo denunciar a situação e indignar-se com a prepotência.

O governo, tal como a imprensa corporativa e mercenária por 15 milhões de euros, gosta de dar uma imagem invertida da realidade, assim, e mais uma vez, veio um moço de recados, o presidente dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS), afirmar que os "Certificados (digitais) querem alargar liberdades e não restringi-las", como se os portugueses ainda tivessem de agradecer aos carcereiros o facto de ficarem ainda em prisão, desta feita, uma prisão ignóbil, impedidos de uso dos seus direitos mais elementares, no entanto, disfarçada de contenção sanitária. Esta ditadura sanitária, cujo móvel é exclusivamente político, é na verdade uma ditadura fascista disfarçada, porque ainda as botas cardadas não saíram dos quartéis, mas será tudo uma questão de tempo. “O Certificado Digital Covid vai permitir o acesso a eventos de natureza cultural, desportiva, corporativa ou familiar" disse o crápula, discurso reforçado pelo chefe Costa. O partido dito “socialista” e o seu chefete não apenas estão a abrir à entrada do fascismo puro e duro em cena, a ditadura directa da burguesia sem intermediários, como eles próprios já o praticam. O PS, para além do seu papel já histórico de bombeiro da luta de classes, é agora, no primeiro quartel do século XXI, a encarnação do fascismo. Não será admiração que nas próximas eleições haja um sector da pequena-burguesia mais temerosa que vote no original e não na cópia e se assista à assunção ao poder da direita troglodita e fascista, à semelhança do que aconteceu na Alemanha em 1933.

O apodrecimento do parlamentarismo e o fim da democracia burguesa

O regime de democracia parlamentar burguesa apodrece. Costa já nomeou um grupo de trabalho para estudar as alterações legislativas para que possa decretar os estados de confinamento sem ser necessário o estado de emergência. O PSD concorda com a ideia e quer ir mais longe, sugerindo mais outra alteração à Constituição da República, quer que o internamento de pessoa contagiante possa ser feito sem decisão judicial, como também tornar a vacinação obrigatória (a televisão do sócio nº1 do PSD já está a fazer a campanha) para benefício das grandes multinacionais, desejando talvez ter parte nas comissões que estas já terão enviado para os corruptos cá do sítio, e para dobrar os recalcitrantes que ousam lutar pela defesa dos seus direitos, liberdade e garantias que, ainda, estão consagrados na Lei Fundamental da República - será o estilhamento do dito "Estado de Direito e Democrático".

Enquanto isso, são os membros do próprio governo que mais se têm esforçado por desacreditar o regime perante os olhos do povo português: um carneiro, secretário-geral adjunto do PS, diz que salários dos autarcas são baixos, para justificar a dificuldade que o seu partido teve em arranjar candidatos paras as próximas eleições autárquicas. Ora, esta gente ainda não se sente saciada com o roubo que tem feito aos trabalhadores deste país, quer mais, como 5000 euros mensais arrecadados pelos parasitas parlamentares fosse coisa pouca. Era bom que, em vez de se diminuir o número de deputados da Assembleia da República, como pretende o chefe do PSD, se aumentasse e se alterasse o sistema eleitoral para que os pequenos partidos pudessem eleger os seus representantes em plano de igualdade com os demais, e o salário de cada deputado nunca deveria, assim como o dos autarcas, exceder o salário médio nacional que ronda os 1300 euros mensais. Assim se veria quem está disposto realmente a servir a causa pública.

Lutar pelo derrube do governo PS e por alternativa ao capitalismo

O povo português deve unir-se na luta contra o governo PS, repudiar a sua política de austeridade económica que, aliás, nunca deixou de existir, e de repressão encoberta ou declarada, como seja o já famigerado Certificado Digital Covid, a Carta Portuguesa dos Direitos Humanos na Era Digital, com o seu celerado artigo 6º, documento que foi aprovado por todos os partidos com assento no Parlamento (o PC, com a consciência pesada, veio a terreiro dizer que foi contra o referido artigo, apesar de também ter aprovado o documento na sua redacção final!), o Registo de Identificação dos Passageiros (PNR, na designação inglesa), já em vigor nos países da União Europeia e que permite às forças de segurança (repressivas) de cada país ter acesso aos dados pessoais de todos os passageiros de avião durante 5 anos (na teoria), uma mega base de dados gerida centralmente pela UE/Alemanha, política esta já seguida pelo governo dito português com a suspeitosa entrega de dados dos cidadãos em sites do SNS para exploração comercial da Google e de outras marcas ligadas à publicidade.

As medidas de confinamento sem base científica devem ser repudiadas, denunciar os intentos repressivos e fascistas do governo PS, Portugal é o país da União Europeia com mais restrições neste momento sem que haja um aumento de óbitos “por” ou “com” covid. Os casos de “infecção” são uma fraude (como denunciou a seu tempo o presidente do Conselho Nacional de Saúde, Henrique Barros) para justificar repressão sanitária com fins políticos, e a “quarta vaga” não passa de uma farsa (como denunciou Professor de Saúde Pública, Jorge Torgal, porque os ditos “elevados números de infecção” são irrelevantes quando se compara o número de mortes com covid com os por outras doenças), servem para o aumento da compra de vacinas e provento dos políticos envolvidos directamente no negócio da vacinação. A Big Pharma gasta cerca de 20 milhões na corrupção dos mandantes de Bruxelas e muito provavelmente alguns outros com os de cá.

São os trabalhadores bancários, das telecomunicações, da Galp, dos transportes que se manifestam contra o desemprego e pelo aumento geral dos salários; são os empresários de diversão noturna e da restauração que se manifestam contra a falência mais que certa. E outros sectores se juntarão se compreenderem que há a necessidade de uma estratégia comum para derrubar as intenções do governo PS, e o próprio, que dança consoante a música tocada por Bruxelas, como agora se viu, e mais uma vez, com a questão do certificado digital que, caso tenham força para isso, será institucionalizado como controlo dos trabalhadores, discriminando os trabalhadores que se manifestem insubmissos dentro de cada país e como controlo nas fronteiras a fim de impedir a entrada aos trabalhadores indesejados, embora alegando o combate ao “terrorismo”.

Esta altura, em que o governo insiste em mais medidas de repressão sobre o povo, alegando defesa da saúde de todos, o que é um sofisma, seria uma boa oportunidade para a realização de uma greve geral a nível nacional, já que tanto gostam de confinamentos. Não seria apenas ao fim de semana e em alguns concelhos, seria em todo o território nacional e em todos os sectores de actividade… e seria, desta vez a sério, a bem da saúde pública do povo português. Um degrau para seguir no caminho pelo fim do capitalismo, que nos mata de diversas formas, e criar uma economia que tenha como prioridade a satisfação das necessidades de cada um dos cidadãos, sob a gestão de um regime político em que todos os órgãos de governação sejam livremente eleitos e revogáveis a todo o momento e que nenhum dos seus membros possa auferir mais do que o salário mensal médio do trabalhador – como nos ensinou a Comuna de Paris

sexta-feira, 16 de julho de 2021

Cidadãos de segunda classe


 por Giorgio Agamben

Como acontece toda vez que um regime despótico de emergência é estabelecido e as garantias constitucionais são suspensas, o resultado é, como aconteceu com os judeus sob o fascismo, a discriminação de uma categoria de homens, que automaticamente se tornam cidadãos de segunda classe. Este é o objetivo de criar o chamado passe verde . Que se trata de uma discriminação baseada em crenças pessoais e não de uma certeza científica objetiva é comprovado pelo fato de que no campo científico ainda persiste o debate sobre a segurança e eficácia das vacinas, que, segundo a opinião de médicos e cientistas que ali não há razão para ignorar, eles foram produzidos rapidamente e sem testes adequados.
Apesar disso, aqueles que mantiverem sua convicção livre e fundamentada e se recusarem a se vacinar serão excluídos da vida social. Que a vacina se transforme assim numa espécie de símbolo político-religioso com o objetivo de criar discriminação entre os cidadãos fica evidente na declaração irresponsável de um político, que, referindo-se aos que não se vacinam, disse, sem perceber que estava usando um jargão fascista: “vamos eliminá-los com o passe verde ”. O "cartão verde" constitui aqueles que não o possuem em portadores de uma estrela amarela virtual.
Este é um fato cuja gravidade política não pode ser exagerada. O que se torna um país em que uma classe discriminada é criada? Como aceitar viver com cidadãos de segunda classe? A necessidade de discriminar é tão antiga quanto a sociedade e certamente formas de discriminação também estiveram presentes em nossas sociedades ditas democráticas; mas que essas discriminações factuais sejam sancionadas por lei é uma barbárie que não podemos aceitar.

Em Quodlibet

A instalação do Medo

(Um texto premonitório de 2017)

por Rui Zink

O homem de fato-macaco azul-escuro distribui as ferramentas no chão. Agora a mulher sabe que se chama "Sousa” – ou que, pelo menos, é esse o seu nome de guerra. Algumas das ferramentas têm um ar sinistro, outras nem tanto. A mulher não reconhece um par delas. Outras reconhece ou, pelo menos, são parecidas com ferramentas que reconhece.

O bem-falante explica:

- A senhora está a sentir-se hesitante, não é? É bom sinal, é sinal de que a instalação do medo já começou. Sabe, minha senhora, isto da instalação tem uma parte física e uma parte meta física.

A mulher assente.

- Ou seja, não nos cabe só a nós instalar o medo, é preciso também que haja, da parte dos concidadãos, um estado de disponibilidade mental ( eu diria mesmo moral) para aceitar o medo. É como um sinal. Não só é importante que a emissão do sinal seja forte, é também conveniente que à chegada o seja.

A mulher assente.

O bem -falante abre as mãos, eloquente:

- A senhora se calhar pensava que para a emissão ser forte a recepção, qual polo negativo, devia ser fraca. Mas não. Isto da instalação do medo não só é para o bem de todos, também só é possível com a colaboração de todos.

O homem continua a falar, mas o Sousa começa a usar um berbequim e o ruído torna difícil a audição das palavras.

A mulher acena com a cabeça, o que mais pode fazer?

O ruído é tanto que a mulher só ouve fiapos:

- … não é só no nosso país... é essa a questão... uma palavra a dizer.

O berbequim pausa. O Sousa levanta-se, carrancudo.

- Tenho mesmo de ir à carrinha.

O bem-falante suspira, contrariado.

- Lamento, minha senhora. Parece que há um problema de material. Mas é uma boa notícia para a tua bexiga, hem, ó Sousa?

O Sousa sai e desce as escadas.

- Se quiser pode usar o elevador – diz a mulher.

O bem-falante, cujo nome a mulher repara que ainda não sabe, abana a cabeça.

- Obrigado, minha senhora, mas o meu colega é da velha escola e prefere ir pelas escadas. Não se dá bem em espaços confinados. Efeitos secundários da profissão. As pessoas não notam, mas nós por vezes respiramos vapores... Sobretudo o pessoal da assistência técnica. Não se preocupe, ele é muito competente, o nosso Sousa.

- Os senhores trabalham juntos faz muito tempo?

- Na instalação do medo? Ou antes?

A mulher nada diz. A verdade é que perguntou por perguntar, não por real curiosidade. O que ela quer é que se vão dali embora, o mais rápido possível. Para evitar chatices.

- Não somos amigos, se é a isso que se refere. Até porque há diferenças de escalão e uma das coisas importantes na instalação do medo é o respeito pelas hierarquias. Cada um saber qual o seu lugar, entende? Não haver cá misturas. Para não criar confusões. Quando cada um sabe o seu lugar, as coisas funcionam melhor, percebe? E é para isso que aqui estamos, no fundo. Para a sociedade funcionar melhor.

-Estou a ver.

-Por isso temos de dar o exemplo. Mas o Sousa é um funcionário exemplar, e posso responder pela qualidade do seu trabalho. Vai ver, não tarda nada fica aqui com uma instalação que é uma categoria. Já leu o folheto, não é verdade?

-Bem... Por alto.

O tom dele sobe um tudo-nada de tom:

-Mas sabe que era para ler, não sabe? Para adiantar ser-

viço...

-Sei, mas...

Ele aproxima-se mais dela. Quase boca a boca:

- Como quando uma mulher fica sozinha com um desconhecido enquanto o colega foi buscar corda para a amarrar, a pretexto de ir ao carro buscar material.

A mulher estremece.

O bem-falante continua:

-Um desconhecido que a vai talvez...

A mulher arregala os olhos.

O bem-falante continua:

- Não será adequado que, para adiantar serviço, ela vá vestir uma roupa mais confortável, ou vá talvez mesmo tirando a roupa, e pondo-se numa posição mais adequada?

A mulher consegue dizer:

- Mas... e se ela quiser resistir?

- Resistir? Resistir a quê? Ela é uma mulher, ele é um homem, ele é mais forte que ela, está armado, ela está sozinha em casa, cometeu o erro (crasso) de lhes abrir a porta, e agora está indefesa. E o colega ( o amigo, o cúmplice, o sequaz) está a chegar, já se ouvem os passos nas escadas, os grunhidos, são grunhidos de antecipação, misto de cansaço, enfado e libido e tensão acumulados, e a mulher sabe que não tem qualquer hipótese, ela sabe que está perdida, que está nas mãos dele, que é apenas um joguete nas mãos deles, que o que quer que sinta será apenas para gáudio deles. Dor, prazer, tudo não passa de um jogo, ela não passará (durante as próximas horas) de uma escrava (um utensílio) para ser usada a bel-prazer.

A mulher recua. Mas não há para onde recuar, já está encostada à parede, e o visitante respira quase por cima dela.

- Nessa situação, uma situação que em tudo pode ser idêntica ou semelhante a esta, não será o mais sensato, não será de facto ainda o mais sensato, ela ir adiantando serviço, colaborando o mais dócil possível com os seus potenciais algozes, na esperança (vã, mas apesar de tudo esperança) de a sua submissão merecer da parte deles alguma réstia de piedade?

A respiração dele está mesmo agora por cima do rosto dela. É desagradável. Não porque ele tenha mau hálito. Mas, sobretudo, por não o ter.

- Uma mulherzinha que abre a porta a desconhecidos? E os deixa penetrar (na soleira da porta) sob o pretexto de que vêm fazer uma simples instalação? Essa mulher insensata não estará a pedi-las? Será acaso culpa de mais alguém se lhe acontecer alguma coisa, se os homens lhe fizerem coisas, se se se? Acaso não estará ela, no fundo, a desejar aquilo que receia?

O bem-falante faz uma pausa. A mulher parece sem voz.

O bem-falante ri:

- Estou a brincar. Havia de ver a sua cara, minha senhora. Se quiser, vá ver-se ao espelho.

A mulher abana a cabeça. Sabe que está lívida. Não precisa de um espelho para saber isso. Espelho, espelho meu, haverá alguém mais pálido do que eu?

O bem-falante faz um tom condescendente:

- Vê? Ainda não completámos a instalação e já a senhora se encontra nesse estado. É para ver a eficácia dos nossos métodos, o poder da nossa tecnologia, a qualidade dos nossos produtos.

A mulher recupera o fôlego:

- Eu não estava com medo...

O bem-falante sorri:

- Claro que estava. Para quê dizer o contrário? A senhora não negue à partida uma ciência que desconhece.

A mulher nada diz. O bem-falante ri, autossatisfeito:

- Mas é verdade que convosco é estranho. Desculpe que lhe diga, minha senhora, as mulheres são sempre um bocado estranhas. Para nós, homens, pelo menos. Não sei se para si vocês são estranhas. Suponho que aí até pode ser o contrário.

Batem à porta.

- Deve ser o Sousa. A menos que a senhora esteja à espera de visitas inesperadas. Olhe que não estamos em tempos bons para isso.

- Pode ser o carteiro...

- É verdade. Ou o canalizador. A senhora não estava à espera do canalizador? Por causa do problema na casa de banho?

A mulher nada diz.

- Mas eu aposto singelo contra dobrado que é o Sousa.

E é. O Sousa. Vem com cara de poucos amigos. A mesma cara de poucos amigos com que descera as escadas.

O bem-falante exubera:

- Vê como eu tinha razão? Não é para me gabar, minha senhora, mas nós temos sempre razão. É, por assim dizer, a nossa sina.

Porto Editora, 2017