(Um texto premonitório de 2017)
por Rui Zink
O homem de fato-macaco azul-escuro distribui as ferramentas no chão. Agora a mulher sabe que se chama "Sousa” – ou que, pelo menos, é esse o seu nome de guerra. Algumas das ferramentas têm um ar sinistro, outras nem tanto. A mulher não reconhece um par delas. Outras reconhece ou, pelo menos, são parecidas com ferramentas que reconhece.
O bem-falante
explica:
- A senhora está a
sentir-se hesitante, não é? É bom sinal, é sinal de que a instalação do medo já
começou. Sabe, minha senhora, isto da instalação tem uma parte física e uma
parte meta física.
A mulher assente.
- Ou seja, não nos
cabe só a nós instalar o medo, é preciso também que haja, da parte dos
concidadãos, um estado de disponibilidade mental ( eu diria mesmo moral) para aceitar
o medo. É como um sinal. Não só é importante que a emissão do sinal seja forte,
é também conveniente que à chegada o seja.
A mulher assente.
O bem -falante
abre as mãos, eloquente:
- A senhora se
calhar pensava que para a emissão ser forte a recepção, qual polo negativo,
devia ser fraca. Mas não. Isto da instalação do medo não só é para o bem de
todos, também só é possível com a colaboração de todos.
O homem continua a
falar, mas o Sousa começa a usar um berbequim e o ruído torna difícil a audição
das palavras.
A mulher acena com
a cabeça, o que mais pode fazer?
O ruído é tanto
que a mulher só ouve fiapos:
- … não é só no
nosso país... é essa a questão... uma palavra a dizer.
O berbequim pausa.
O Sousa levanta-se, carrancudo.
- Tenho mesmo de
ir à carrinha.
O bem-falante
suspira, contrariado.
- Lamento, minha
senhora. Parece que há um problema de material. Mas é uma boa notícia para a
tua bexiga, hem, ó Sousa?
O Sousa sai e
desce as escadas.
- Se quiser pode
usar o elevador – diz a mulher.
O bem-falante,
cujo nome a mulher repara que ainda não sabe, abana a cabeça.
- Obrigado, minha
senhora, mas o meu colega é da velha escola e prefere ir pelas escadas. Não se
dá bem em espaços confinados. Efeitos secundários da profissão. As pessoas não
notam, mas nós por vezes respiramos vapores... Sobretudo o pessoal da
assistência técnica. Não se preocupe, ele é muito competente, o nosso Sousa.
- Os senhores
trabalham juntos faz muito tempo?
- Na instalação do
medo? Ou antes?
A mulher nada diz.
A verdade é que perguntou por perguntar, não por real curiosidade. O que ela
quer é que se vão dali embora, o mais rápido possível. Para evitar chatices.
- Não somos
amigos, se é a isso que se refere. Até porque há diferenças de escalão e uma
das coisas importantes na instalação do medo é o respeito pelas hierarquias.
Cada um saber qual o seu lugar, entende? Não haver cá misturas. Para não criar confusões.
Quando cada um sabe o seu lugar, as coisas funcionam melhor, percebe? E é para
isso que aqui estamos, no fundo. Para a sociedade funcionar melhor.
-Estou a ver.
-Por isso temos de
dar o exemplo. Mas o Sousa é um funcionário exemplar, e posso responder pela
qualidade do seu trabalho. Vai ver, não tarda nada fica aqui com uma instalação
que é uma categoria. Já leu o folheto, não é verdade?
-Bem... Por alto.
O tom dele sobe um
tudo-nada de tom:
-Mas sabe que era
para ler, não sabe? Para adiantar ser-
viço...
-Sei, mas...
Ele aproxima-se
mais dela. Quase boca a boca:
- Como quando uma
mulher fica sozinha com um desconhecido enquanto o colega foi buscar corda para
a amarrar, a pretexto de ir ao carro buscar material.
A mulher
estremece.
O bem-falante
continua:
-Um desconhecido
que a vai talvez...
A mulher arregala
os olhos.
O bem-falante
continua:
- Não será
adequado que, para adiantar serviço, ela vá vestir uma roupa mais confortável,
ou vá talvez mesmo tirando a roupa, e pondo-se numa posição mais adequada?
A mulher consegue
dizer:
- Mas... e se ela
quiser resistir?
- Resistir?
Resistir a quê? Ela é uma mulher, ele é um homem, ele é mais forte que ela,
está armado, ela está sozinha em casa, cometeu o erro (crasso) de lhes abrir a
porta, e agora está indefesa. E o colega ( o amigo, o cúmplice, o sequaz) está
a chegar, já se ouvem os passos nas escadas, os grunhidos, são grunhidos de
antecipação, misto de cansaço, enfado e libido e tensão acumulados, e a mulher
sabe que não tem qualquer hipótese, ela sabe que está perdida, que está nas
mãos dele, que é apenas um joguete nas mãos deles, que o que quer que sinta
será apenas para gáudio deles. Dor, prazer, tudo não passa de um jogo, ela não
passará (durante as próximas horas) de uma escrava (um utensílio) para ser usada
a bel-prazer.
A mulher recua.
Mas não há para onde recuar, já está encostada à parede, e o visitante respira
quase por cima dela.
- Nessa situação,
uma situação que em tudo pode ser idêntica ou semelhante a esta, não será o
mais sensato, não será de facto ainda o mais sensato, ela ir adiantando
serviço, colaborando o mais dócil possível com os seus potenciais algozes, na
esperança (vã, mas apesar de tudo esperança) de a sua submissão merecer da
parte deles alguma réstia de piedade?
A respiração dele
está mesmo agora por cima do rosto dela. É desagradável. Não porque ele tenha
mau hálito. Mas, sobretudo, por não o ter.
- Uma mulherzinha
que abre a porta a desconhecidos? E os deixa penetrar (na soleira da porta) sob
o pretexto de que vêm fazer uma simples instalação? Essa mulher insensata não
estará a pedi-las? Será acaso culpa de mais alguém se lhe acontecer alguma
coisa, se os homens lhe fizerem coisas, se se se? Acaso não estará ela, no
fundo, a desejar aquilo que receia?
O bem-falante faz
uma pausa. A mulher parece sem voz.
O bem-falante ri:
- Estou a brincar.
Havia de ver a sua cara, minha senhora. Se quiser, vá ver-se ao espelho.
A mulher abana a
cabeça. Sabe que está lívida. Não precisa de um espelho para saber isso.
Espelho, espelho meu, haverá alguém mais pálido do que eu?
O bem-falante faz
um tom condescendente:
- Vê? Ainda não
completámos a instalação e já a senhora se encontra nesse estado. É para ver a
eficácia dos nossos métodos, o poder da nossa tecnologia, a qualidade dos
nossos produtos.
A mulher recupera
o fôlego:
- Eu não estava
com medo...
O bem-falante
sorri:
- Claro que
estava. Para quê dizer o contrário? A senhora não negue à partida uma ciência
que desconhece.
A mulher nada diz.
O bem-falante ri, autossatisfeito:
- Mas é verdade
que convosco é estranho. Desculpe que lhe diga, minha senhora, as mulheres são
sempre um bocado estranhas. Para nós, homens, pelo menos. Não sei se para si vocês
são estranhas. Suponho que aí até pode ser o contrário.
Batem à porta.
- Deve ser o
Sousa. A menos que a senhora esteja à espera de visitas inesperadas. Olhe que
não estamos em tempos bons para isso.
- Pode ser o
carteiro...
- É verdade. Ou o
canalizador. A senhora não estava à espera do canalizador? Por causa do
problema na casa de banho?
A mulher nada diz.
- Mas eu aposto
singelo contra dobrado que é o Sousa.
E é. O Sousa. Vem
com cara de poucos amigos. A mesma cara de poucos amigos com que descera as
escadas.
O bem-falante
exubera:
- Vê como eu tinha
razão? Não é para me gabar, minha senhora, mas nós temos sempre razão. É, por
assim dizer, a nossa sina.
Porto Editora,
2017
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