sexta-feira, 16 de julho de 2021

A instalação do Medo

(Um texto premonitório de 2017)

por Rui Zink

O homem de fato-macaco azul-escuro distribui as ferramentas no chão. Agora a mulher sabe que se chama "Sousa” – ou que, pelo menos, é esse o seu nome de guerra. Algumas das ferramentas têm um ar sinistro, outras nem tanto. A mulher não reconhece um par delas. Outras reconhece ou, pelo menos, são parecidas com ferramentas que reconhece.

O bem-falante explica:

- A senhora está a sentir-se hesitante, não é? É bom sinal, é sinal de que a instalação do medo já começou. Sabe, minha senhora, isto da instalação tem uma parte física e uma parte meta física.

A mulher assente.

- Ou seja, não nos cabe só a nós instalar o medo, é preciso também que haja, da parte dos concidadãos, um estado de disponibilidade mental ( eu diria mesmo moral) para aceitar o medo. É como um sinal. Não só é importante que a emissão do sinal seja forte, é também conveniente que à chegada o seja.

A mulher assente.

O bem -falante abre as mãos, eloquente:

- A senhora se calhar pensava que para a emissão ser forte a recepção, qual polo negativo, devia ser fraca. Mas não. Isto da instalação do medo não só é para o bem de todos, também só é possível com a colaboração de todos.

O homem continua a falar, mas o Sousa começa a usar um berbequim e o ruído torna difícil a audição das palavras.

A mulher acena com a cabeça, o que mais pode fazer?

O ruído é tanto que a mulher só ouve fiapos:

- … não é só no nosso país... é essa a questão... uma palavra a dizer.

O berbequim pausa. O Sousa levanta-se, carrancudo.

- Tenho mesmo de ir à carrinha.

O bem-falante suspira, contrariado.

- Lamento, minha senhora. Parece que há um problema de material. Mas é uma boa notícia para a tua bexiga, hem, ó Sousa?

O Sousa sai e desce as escadas.

- Se quiser pode usar o elevador – diz a mulher.

O bem-falante, cujo nome a mulher repara que ainda não sabe, abana a cabeça.

- Obrigado, minha senhora, mas o meu colega é da velha escola e prefere ir pelas escadas. Não se dá bem em espaços confinados. Efeitos secundários da profissão. As pessoas não notam, mas nós por vezes respiramos vapores... Sobretudo o pessoal da assistência técnica. Não se preocupe, ele é muito competente, o nosso Sousa.

- Os senhores trabalham juntos faz muito tempo?

- Na instalação do medo? Ou antes?

A mulher nada diz. A verdade é que perguntou por perguntar, não por real curiosidade. O que ela quer é que se vão dali embora, o mais rápido possível. Para evitar chatices.

- Não somos amigos, se é a isso que se refere. Até porque há diferenças de escalão e uma das coisas importantes na instalação do medo é o respeito pelas hierarquias. Cada um saber qual o seu lugar, entende? Não haver cá misturas. Para não criar confusões. Quando cada um sabe o seu lugar, as coisas funcionam melhor, percebe? E é para isso que aqui estamos, no fundo. Para a sociedade funcionar melhor.

-Estou a ver.

-Por isso temos de dar o exemplo. Mas o Sousa é um funcionário exemplar, e posso responder pela qualidade do seu trabalho. Vai ver, não tarda nada fica aqui com uma instalação que é uma categoria. Já leu o folheto, não é verdade?

-Bem... Por alto.

O tom dele sobe um tudo-nada de tom:

-Mas sabe que era para ler, não sabe? Para adiantar ser-

viço...

-Sei, mas...

Ele aproxima-se mais dela. Quase boca a boca:

- Como quando uma mulher fica sozinha com um desconhecido enquanto o colega foi buscar corda para a amarrar, a pretexto de ir ao carro buscar material.

A mulher estremece.

O bem-falante continua:

-Um desconhecido que a vai talvez...

A mulher arregala os olhos.

O bem-falante continua:

- Não será adequado que, para adiantar serviço, ela vá vestir uma roupa mais confortável, ou vá talvez mesmo tirando a roupa, e pondo-se numa posição mais adequada?

A mulher consegue dizer:

- Mas... e se ela quiser resistir?

- Resistir? Resistir a quê? Ela é uma mulher, ele é um homem, ele é mais forte que ela, está armado, ela está sozinha em casa, cometeu o erro (crasso) de lhes abrir a porta, e agora está indefesa. E o colega ( o amigo, o cúmplice, o sequaz) está a chegar, já se ouvem os passos nas escadas, os grunhidos, são grunhidos de antecipação, misto de cansaço, enfado e libido e tensão acumulados, e a mulher sabe que não tem qualquer hipótese, ela sabe que está perdida, que está nas mãos dele, que é apenas um joguete nas mãos deles, que o que quer que sinta será apenas para gáudio deles. Dor, prazer, tudo não passa de um jogo, ela não passará (durante as próximas horas) de uma escrava (um utensílio) para ser usada a bel-prazer.

A mulher recua. Mas não há para onde recuar, já está encostada à parede, e o visitante respira quase por cima dela.

- Nessa situação, uma situação que em tudo pode ser idêntica ou semelhante a esta, não será o mais sensato, não será de facto ainda o mais sensato, ela ir adiantando serviço, colaborando o mais dócil possível com os seus potenciais algozes, na esperança (vã, mas apesar de tudo esperança) de a sua submissão merecer da parte deles alguma réstia de piedade?

A respiração dele está mesmo agora por cima do rosto dela. É desagradável. Não porque ele tenha mau hálito. Mas, sobretudo, por não o ter.

- Uma mulherzinha que abre a porta a desconhecidos? E os deixa penetrar (na soleira da porta) sob o pretexto de que vêm fazer uma simples instalação? Essa mulher insensata não estará a pedi-las? Será acaso culpa de mais alguém se lhe acontecer alguma coisa, se os homens lhe fizerem coisas, se se se? Acaso não estará ela, no fundo, a desejar aquilo que receia?

O bem-falante faz uma pausa. A mulher parece sem voz.

O bem-falante ri:

- Estou a brincar. Havia de ver a sua cara, minha senhora. Se quiser, vá ver-se ao espelho.

A mulher abana a cabeça. Sabe que está lívida. Não precisa de um espelho para saber isso. Espelho, espelho meu, haverá alguém mais pálido do que eu?

O bem-falante faz um tom condescendente:

- Vê? Ainda não completámos a instalação e já a senhora se encontra nesse estado. É para ver a eficácia dos nossos métodos, o poder da nossa tecnologia, a qualidade dos nossos produtos.

A mulher recupera o fôlego:

- Eu não estava com medo...

O bem-falante sorri:

- Claro que estava. Para quê dizer o contrário? A senhora não negue à partida uma ciência que desconhece.

A mulher nada diz. O bem-falante ri, autossatisfeito:

- Mas é verdade que convosco é estranho. Desculpe que lhe diga, minha senhora, as mulheres são sempre um bocado estranhas. Para nós, homens, pelo menos. Não sei se para si vocês são estranhas. Suponho que aí até pode ser o contrário.

Batem à porta.

- Deve ser o Sousa. A menos que a senhora esteja à espera de visitas inesperadas. Olhe que não estamos em tempos bons para isso.

- Pode ser o carteiro...

- É verdade. Ou o canalizador. A senhora não estava à espera do canalizador? Por causa do problema na casa de banho?

A mulher nada diz.

- Mas eu aposto singelo contra dobrado que é o Sousa.

E é. O Sousa. Vem com cara de poucos amigos. A mesma cara de poucos amigos com que descera as escadas.

O bem-falante exubera:

- Vê como eu tinha razão? Não é para me gabar, minha senhora, mas nós temos sempre razão. É, por assim dizer, a nossa sina.

Porto Editora, 2017

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