quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Economia desigual e guerra à porta

Evandro Teixeira, 1964
 

Dez anos depois das grandes manifestações, as maiores que se realizaram depois do 25 de Abril, superando as manifestações do 1º de Maio de 1974, que juntaram, segundo a imprensa, mais de 2 milhões de pessoas e que prenunciaram o fim do governo de Passos Coelho/PSD/PP, o governo do PS, chefiado por António Costa, dá mostras de que vai seguir as mesmas pisadas para enfrentar a crise da economia capitalista nacional e, com certeza, irá provocar as mesmas ou mais tormentosas reacções por parte do povo português. E, muito provavelmente, marcarão o fim não só do governo socialista como do próprio partido, à semelhança do que aconteceu com o PS francês e o PS grego.

Antes de se conhecer o já badalado “Acordo de Rendimentos e Competitividade” fácil será imaginar o que sairá do ventre da aventesma: diminuição do IRC compensado com aumento dos impostos para quem trabalha (IRS), situação que não será muito diferente da tentativa da descida da TSU por parte do governo PSD/PP; recapitalização das empresas com dinheiros públicos a pretexto da mal amanhada “crise energética” – que, por sua vez, mais não é que a crise da economia capitalista – e na linha da “crise pandémica”. Para fazer adormecer o trabalhador desatento e o cidadão comum incauto, o governo irá remendar com mais um subsídio de “125 euros” e mais um 50% de um mês de pensão que não chegará para cobrir metade da inflação. Em relação aos salários, os patrões não comeram as palavras: só admitem aumentos de 2,8% em 2023.

Portugal país mais desigual

Neste país cada vez mais desigual: Portugal tem o maior agravamento da pobreza em 2021 e passa a oitavo pior da UE, com 2,3 milhões de pobres; entre os 62 milhões de milionários em todo mundo, 159 mil são portugueses, com a riqueza global a somar, no final de 2021, 465 biliões de euros. Destes, 45,6% eram propriedade de 1% das pessoas, o que representa mais 1,7% do que em 2020. Não fugindo à regra, a acumulação e concentração de riqueza faz-se na mesma proporção entre nós, basta olhar para o aumento dos lucros das principias empresas portugueses, embora algumas tenham a sede em paraísos fiscais, e para o aumento dos rendimentos de quem trabalha. Prevê-se que os funcionários públicos possam perder, em média, até 284 euros por mês, contando com o aumento de 2% para 2023, muito abaixo da inflação que será este ano de 7,4% (?); aumentos estes que são sempre uma referência para o sector privado.

Não é preciso ter um mestrado ou doutoramento em economia para se perceber, qualquer merceeiro ou dona de casa o sabe por experiência de vida, que, baixando os custos, no caso os do trabalho, e aumentando as receitas com o aumento descontrolado do preço das mercadorias, qualquer empresa terá garantido não só os lucros como o aumento dos mesmos. Esta é a dinâmica, e faz parte da sua essência, da economia dos capitalistas, e para assegurar este objectivo que o governo dito “socialista” e o seu chefete se desdobram em malabarismo para sossegar as hostes dos “empresários de sucesso” nacionais, conciliar estes interesses com os ditames de Bruxelas e comprar a paz social. Diga-se de passagem que se trata de uma tarefa assaz difícil e com a agravante de estarmos perante uma elite gananciosa e insaciável.

As grandes empresas estão em primeiro lugar

Depois da promessa da linha de crédito bonificado de 600 milhões de euros e de os 1,4 mil milhões de apoio terem sido considerados como insuficientes e virem tarde, os nossos empreendedores, na sua maioria (89%), clamam por mais. E a descida “transversal” do IRC, como o outro Costa (ministro da Economia) prometeu, não chega, reivindicam agora que o “excedente orçamental” (6,8 mil milhões, proveniente do aumento da colecta devido à inflação) lhes seja enfiado nos bolsos. Como o ramo é verde há que carregar, o capitalista frustrado chefe da CIP considera como certa a descida de 21 para 19% do IRC, apesar de esta medida não constar nem do programa eleitoral do PS nem do programa do governo aprovado no Parlamento. Só que Costa, industriado por Bruxelas, já foi explícito: as medidas de apoio foram até ao máximo permitido por Bruxelas; uma restrição que, segundo o nosso-primeiro, não é política nem financeira, mas “legal”. Parece que ainda há boa gente que não percebeu o que move realmente o governo e o chefe da comandita: as grandes empresas estão em primeiro, a saúde e a segurança social, por exemplo, serão privatizadas mas a favor dos grandes interesses financeiros, de preferência, internacionais.

Costa, sempre o Costa, diz que Portugal apoiará a proposta de Bruxelas para taxar em 33% os lucros excessivos das empresas de combustíveis fósseis, mas di-lo, e irá fazê-lo, a contra-gosto, porque o seu coração está do lado das grandes empresas e não das pequenas ou médias nacionais. E a razão é simples: para as grandes poderem continuar a crescer, e a crescer de forma infinita na lógica do capitalismo, as restantes terão de ser devoradas. Nenhum pequeno ou até médio empresário nacional se iluda porque a descida o IRC irá ser pouco “transversal”, e o secretário dos Assuntos Fiscais já se apressou de anunciar que o “choque fiscal não é a panaceia para resolver os nossos problemas”, contradizendo, assim, o ministro da Economia e do (tão cobiçado) PRR. Não será só a ganância que faz mexer os dirigentes das associações patronais, nomeadamente da CIP e da AEP, mas a incerteza do quinhão que lhes será destinado. É a União Europeia, que tanto desejaram e ainda defendem, lhes deitará a pazada de terra em cima do caixão.

Crise com destino imprevisível

E o futuro não se mostra lá muito risonho para as nossas elites compradoras e parasitas: “A economia portuguesa deverá contrair 0,3% em 2023, segundo a estimativa feita por especialistas da Allianz Trade, acionista da Companhia de Seguro de Créditos (COSEC)”. Por sua vez, o Eurostat confirma inflação de 9,1%, na Zona Euro, e de 10,1%, na UE, no mês de Agosto, e Portugal acima da média com 9,4%, inflação homóloga, pelo terceiro mês consecutivo. Lagarde admite inflação acima da meta por mais tempo. Parece ser uma recessão oportuna, porque se isto é benéfico para as grandes empresas, não o será para as pequenas, cuja produção se dirige maioritariamente para o mercado interno, na medida que haverá uma redução enorme do mercado por força da forte diminuição do poder de compra dos trabalhadores e dos comuns cidadãos nacionais. As falências em catadupa não se farão esperar nos próximos dois anos; 2023 será mau e 2024 será péssimo.  Por outro lado, as grandes empresas poderão ficar descansadas no que diz respeito aos apoios do estado: “Elétricas com falta de liquidez nos mercados futuros terão auxílio estatal” ou “Ministro das Finanças assume que litígios com Lone Star podem obrigar a mais dinheiro no Novo Banco”.

Outro guru do capitalismo reconhece que recessão será "longa e feia", quase que dando a entender que a recessão terá sido insuflada à medida, o sistema já aprendeu a tirar proveito das suas próprias e inevitáveis crises. No quadro de afundamento generalizado das economias europeias (défice na balança comercial da Zona Euro bate 34 mil milhões de euros em Julho), com as dos países mais ricos à cabeça, causado pela própria dinâmica do capitalismo, mas também agravado pelo política dos Estados Unidos de lançar a União Europeia na guerra da Ucrânia, que se verá sem o acesso à energia barata fornecida pela Rússia e sem o apoio das próprias empresas norte-americanas. Nestas questões não há solidariedade, mas somente interesses (negócios): “Barões do petróleo e gás dos EUA recusam apoio extra à Europa”. A Velha Europa encontra-se em maus lençóis, de nada lhe valendo o mantra dos direitos humanos e da tradição judaico-cristã; não haverá Nossa Senhora de Fátima nem santo que a socorra. A sua implosão é incontornável e estará por momentos.

A revolução proletária reentra na ordem do dia

As burguesias europeias temem a velha toupeira, que vem fazendo silenciosamente o seu trabalho, com a corrida aos armamentos que servirão não só para a guerra inter-imperialista mas para reprimir internamente as revoltas operárias e populares que inevitavelmente irão ocorrer e que já se fizeram anunciar. Guterres acaba de alertar para o perigo do “Inverno de descontentamento global”, a revolução mundial preocupa o imperialismo. “Descontentamento global” que poderá ser bem maior e mais ameaçador que as manifestações e os pretensos “dias de luta” já publicitados pelas principais centrais sindicais europeias para a primeira metade do próximo mês de Outubro. A manobra, apressada e tosca, de “desdiabolizar” os partidos neo-nazis e catapultá-los para o governo como “democráticos” e “civilizados, como garantia da preservação do domínio burguês e capitalista, já aconteceu na Suécia, e irá acontecer na Itália fazendo fé nas sondagens, e não deixa de revelar uma situação de pânico por parte das elites. Será em modo mais soft do que aconteceu na Ucrânia, o primeiro país da Europa onde os neo-nazis ocuparam lugares governamentais.

Em Portugal, com a constante promoção e regozijo de toda a imprensa mainstream nacional, somos matraqueados com o caudilho dos fascistas indígenas a declarar que ainda será o primeiro-ministro de Portugal, e, em caso de desespero e de último recurso, tudo se pode esperar da nossa inútil elite. Ao acontecer a revolta, esta será reprimida, mas não abafada, irá escalar para a revolução. O preço a pagar é que poderá ser elevado, no entanto, será o resultado inevitável de se ter feito uma revolução castrada, uma revolução com flores. A roda da história não pára e em tempo de guerra inter-imperialista a revolução proletária e comunista reentra na ordem do dia!

terça-feira, 13 de setembro de 2022

Psicopolítica

 

Por Byung-Chul Han

CRISE DA LIBERDADE

Ditadura da transparência

O neo-liberalismo transforma o cidadão em consumidor. A liberdade do cidadão cede ante a passividade do consumidor. O votante, enquanto consumidor, não tem um interesse real pela política, pela configuração ativa da comunidade. Não está disposto nem capacitado para a ação política comum. Limita-se a reagir de forma passiva à política, protestando e queixando-se, do mesmo modo que o consumidor perante as mercadorias e os serviços que lhe desagradam. Os políticos e os partidos também seguem esta lógica do consumo. Têm de fornecer. É assim que degradam em fornecedores que têm de satisfazer os votantes enquanto consumidores ou clientes.

A transparência que se exige hoje dos políticos é tudo menos uma reivindicação política. Não se exige transparência perante os processos políticos de decisão, pelos quais nenhum consumidor se interessa. O imperativo da transparência serve sobretudo para expor os políticos, para os desmascarar, para os transformar em objeto de escândalo. A reivindicação da transparência pressupõe a posição de um espectador que se escandaliza. Não é a reivindicação de um cidadão com iniciativa, mas a de um espectador passivo. A participação tem lugar sob a forma de reclamação e de queixa. A sociedade da transparência, habitada por espectadores e consumidores, funda uma democracia de espectadores.

A autodeterminação informativa é uma parte essencial da liberdade. Já na sentença do Tribunal Constitucional da Alemanha sobre o recenseamento nacional, em 1984, se afirma o seguinte:

Uma ordem social e a respetiva ordem jurídica nas quais o cidadão não pudesse saber quem são os que detêm saber a seu respeito, bem como o quê, quando e em que ocasião tem lugar esse saber, seriam incompatíveis com o direito à autodeterminação informativa.

Não obstante, tratava-se de uma época em que se cria que era necessário encarar o Estado como uma instância de dominação que arrebatava informação aos cidadãos contra a vontade destes. Essa época ficou de há muito para trás. Hoje expomo-nos por completo sem qualquer tipo de coação ou de prescrição. Prestamos na rede todo o tipo de dados e de informações sem saber a quem, nem ao quê, nem em que ocasião ou que lugar cabe esse saber a nosso respeito. Esta perda de controle representa uma crise da liberdade que deve ser tomada a sério. Dados a quantidade e o tipo de informação que são lançados indiscriminada e voluntariamente na rede, o conceito de proteção de dados torna-se obsoleto.

Estamos a caminho da época da psicopolítica digital. Avançamos na via que leva de uma vigilância passiva a um controle ativo. O que nos precipita numa crise da liberdade de alcance máximo, pois que afeta agora a própria vontade livre. O Big Data é um instrumento psicopolítico extremamente eficaz que permite adquirir um conhecimento integral da dinâmica inerente à sociedade da comunicação. Trata-se de um conhecimento de dominação, que permite intervir na psique e condicioná-la a um nível pré-reflexivo.

A abertura do futuro é constitutiva da liberdade de ação. Todavia, o Big Data permite fazer prognósticos sobre o comportamento humano. O futuro torna-se assim predizível e controlável. A psicopolítica digital transforma a negatividade da decisão livre na positividade de um estado de coisas. A própria pessoa positiviza-se em coisa – quantificável, mensurável e controlável. Mas nenhuma coisa é livre. Sem margem para dúvida, a coisa é mais transparente do que a pessoa. O Big Data anuncia o fim da pessoa e da vontade livre.

Todos os dispositivos e todas as técnicas de dominação engendram objetos de devoção que são introduzidos tendo em vista submeter. Que materializam e estabilizam a dominação. "Devoto" significa "submisso". O smartphone é um objeto digital de devoção, ou até mesmo um objeto de devoção do digital em geral. Enquanto aparelho de subjetivação funciona como o rosário, que é também, no seu manejo, uma espécie de telemóvel. Um e outro servem para o exame e o controle de si. A dominação aumenta a sua eficácia ao delegar em cada um a sua vigilância. O Gosto é o ámen digital. Quando clicamos no Gosto, submetemo-nos a uma estrutura de dominação. O smartphone é não só um aparelho de vigilância eficaz, mas também um confessionário móvel. O Facebook é a igreja, a sinagoga global (literalmente, a congregação) do digital.

PODER INTELIGENTE

O poder tem formas de manifestação muito diferentes, A mais indireta e imediata exterioriza-se como negação da liberdade. Esta toma os poderosos capazes de imporem a sua vontade também por meio da violência contra a vontade dos submetidos ao poder. O poder não se limita, contudo, a quebrar a resistência e a forçar à obediência: não tem de adquirir necessariamente a forma de uma coação. O poder que depende da violência não representa o poder supremo. O simples facto de que surja uma vontade e se oponha ao poderoso dá testemunho da fraqueza do seu poder. O poder está precisamente aí onde não é tematizado. Quanto maior é o poder, mais silenciosamente age. O poder   sem remeter em termos ruidosos para si próprio.

O poder pode, sem dúvida, exteriorizar-se como violência ou repressão. Mas não é nesta que repousa. Não recorre necessariamente à exclusão, à proibição, à censura. E não se opõe à liberdade. Pode até usá-la. É só na sua forma negativa que o poder se manifesta como violência negadora que quebra a vontade e nega a liberdade. Hoje o poder adquire cada vez mais uma forma permissiva. Na sua permissividade, ou até na sua amabilidade, depõe a sua negatividade e oferece-se como liberdade.

O poder disciplinar é completamente dominado pela negatividade. Articula-se de forma inibitória e não permissiva. Devido à sua negatividade, o poder disciplinar não pode descrever o regime neoliberal, no brilho da sua positividade. A técnica de poder própria do neoliberalismo adquire uma forma subtil, flexível, inteligente e escapa a toda a visibilidade. O sujeito submetido não tem sequer consciência da sua submissão. A estrutura da dominação mantém-se totalmente oculta aos seus olhos. Daí que se suponha livre.

Tolhendo os homens de forma violenta através de preceitos e de proibições, o poder disciplinar é ineficaz. A técnica de poder que cuida que os homens se submetam por si próprios às estruturas da dominação é radicalmente mais eficaz. O seu propósito é ativar, motivar, otimizar e não obstar ou submeter. A sua eficácia particular deve-se ao facto de não agir proibindo e subtraindo, mas consentindo e satisfazendo. Em vez de tomar os homens submissos, visa tomá-los dependentes.

O poder inteligente, amável, não opera frontalmente contra a vontade dos sujeitos submetidos, mas antes orienta em seu favor essa vontade. É mais afirmativo do que negador, mais sedutor do que repressor. Esforça-se por gerar emoções positivas e por explorá-las. Seduz em vez de proibir. Não enfrenta o sujeito, concede-lhe facilidades.

O poder inteligente adapta-se à psique em vez de a disciplinar e submeter a coações e a proibições. Não nos impõe qualquer forma de silêncio. Pelo contrário: exige que partilhemos, participemos, comuniquemos as nossas opiniões, necessidades, desejos e preferências -ou seja, que contemos as nossas vidas. Este poder amável é mais poderoso do que o poder repressivo. Escapa a toda a visibilidade. A presente crise da liberdade consiste em que estamos perante uma técnica de poder que não nega ou submete a liberdade, mas antes a explora. A decisão livre é eliminada em favor da livre escolha entre ofertas diversas.

O poder inteligente, que se mostra livre e amável, que estimula e seduz, é mais eficaz do que o poder que classifica, ameaça e prescreve. O clicar Gosto é o seu sinal. Submetemo-nos à estrutura do poder consumindo e comunicando, ou até clicando Gosto. O neoliberalismo é o capitalismo do "Gosto". Distingue-se substancialmente do capitalismo do século xx, que operava por meio de coações e de proibições disciplinares.

O poder inteligente lê e avalia os nossos pensamentos conscientes e inconscientes. Aposta na organização e na otimização de si realizadas de modo voluntário. Não tem, assim, qualquer resistência a superar. Trata-se de uma dominação que não requer grande esforço, ou violência, uma vez que simplesmente sucede. Visa dominar procurando agradar e gerando dependências. A advertência seguinte é inerente ao capitalismo do Gosto: protege-me daquilo que quero.

O BIG BROTHER AMÁVEL

"Novilíngua" é a língua ideal no Estado vigilante de Orwell. A sua missão é pôr totalmente de lado a "velha língua". A novilíngua tem como único objetivo restringir o espaço do pensamento. Todos os anos o número de palavras diminui, ao mesmo tempo que o espaço da consciência se reduz. Syme, um amigo do protagonista Winston, entusiasma-se pela beleza da aniquilação das palavras. Os delitos de pensamento deverão tomar-se impossíveis através da eliminação do vocabulário da novilíngua das palavras que a comissão desses delitos requer. Eliminar-se-á também, do mesmo modo, o conceito de liberdade. Aqui encontramos já uma diferença de substância em relação ao pan-ótico digital, que se caracteriza por um uso excessivo da liberdade. O traço característico da atual sociedade de informação seria não a eliminação, mas a multiplicação das palavras.

O espírito da Guerra Fria e a negatividade da hostilidade dominam o romance de Orwell. O país está em estado de guerra permanente. Julia, a amante de Winston, supõe que as bombas que caem diariamente sobre Londres são lançadas pelo próprio partido do Big Brother a fim de manter os homens subjugados pelo medo e pelo terror. O "inimigo do povo" chama-se Ernrnanuel Goldstein. Dirige uma rede conspirativa que, de forma clandestina, visa a queda do govemo. O Big Brother está em guerra ideológica com Goldstein. Os ecrãs emitem os "dois minutos de ódio"contra Goldstein. E no "Ministério da Verdade", que é na realidade um ministério da mentira, o passado é submetido a um controle que o adequa à ideologia. A psicotécnica aplicada no Estado vigilante de Orwell é a lavagem do cérebro por meio de eletrochoques, a privação de sono, o isolamento, as drogas e a tortura corporal. E o "Ministério da Abundância" (em novilíngua: "Mindância") garante que não haja suficientes bens de consumo. Engendra uma escassez artificial.

O Estado vigilante de Orwell, com os seus ecrãs e as suas câmaras de tortura, distingue-se substancialmente do pan-ótico digital, com a internet, o smartphone e o Google Glass, em que dominam a aparência da liberdade da comunicação ilimitadas. Aqui não se tortura, mas fazem-se tweets ou posts. Não existe qualquer misterioso "Ministério da Verdade". A transparência e a informação substituem a verdade. A nova conceção do poder não consiste no controle do passado, mas no controle psicopolítico do futuro.

A técnica de poder do regime neoliberal não é proibitiva, protetora ou repressiva, mas prospetiva, permissiva e projetiva. O consumo não é reprimido, mas maximizado. Não se gera escassez, mas abundância, ou até mesmo excesso de positividade. Somos encorajados a comunicar e a consumir. O princípio da negatividade, que é constitutivo do Estado vigilante de Orwell, cede o seu lugar ao princípio da positividade. As necessidades não são reprimidas, mas estimuladas. Em vez de confissões extraídas por meio da tortura, tem lugar uma exposição voluntária. O smartphone substitui a câmara de tortura. O Big Brother tem uma aparência amável. A eficácia da sua vigilância reside na sua amabilidade.

O Big Brother benthamiano é invisível, mas omnipresente na cabeça dos reclusos. Estes interiorizaram-no. No pan-ótico digital ninguém se sente realmente vigiado ou ameaçado. Daí que o termo "Estado vigilante" não caracterize adequadamente o pan-ótico digital. Neste, sentimo-nos livres. É precisamente esta liberdade sentida, ausente no Estado vigilante de Orwell, que constitui um problema.

O pan-ótico digital serve-se da exposição voluntária dos reclusos. A revelação de si e a auto-exploração seguem a mesma lógica. A liberdade é objeto de exploração constante. No pan-ótico digital não existe esse Big Brother que extrai de nós informações, contra a nossa vontade. Somos nós, pelo contrário, que por nossa própria iniciativa nos expomos e desnudamos.

No lendário anúncio da Apple que, em 1984, cintilava no ecrã durante a Super Bowl, aquela aparece como uma figura libertadora contra o Estado vigilante de Orwell. Numa grande sala, trabalhadores sem vontade e apáticos escutam, olhando para o ecrã, o discurso fanático do Big Brother. Uma mulher que corre irrompe na sala, perseguida pela polícia do pensamento. Avança sem hesitar e transporta um grande martelo, que cinge contra os seios bamboleantes. Carrega decididamente sobre o Big Brother e arremessa ferozmente o martelo contra o ecrã que explode. Os homens despertam da sua apatia. Ouve-se uma voz anunciar: " A 24 de janeiro, a Apple Computer lançará o Macintosh. E verás então porque é que 1984 não será como 1984". Ao contrário do que sustenta a mensagem da Apple, o ano de 1984 não assinala o fim do Estado vigilante de Orwell, mas o começo de uma nova sociedade de controle que supera sobejamente a sua eficiência. Comunicação e controle coincidem na totalidade. Cada um de nós é o pan-ótico de si próprio.

O CAPITALISMO DA EMOÇÃO

(…)

Esta enumeração de referências a diversas teorias sociológicas sobre a emoção deixa por explicar em absoluto a conjuntura presente da emoção. Acresce que Illouz não opera qualquer distinção conceptual entre sentimento, emoção e afeto. A "indiferença" e a "culpa" não são sequer um afeto ou uma emoção. Somente teria sentido falar do sentimento de culpa.

Illouz não consegue ver que a conjuntura presente da emoção se deve, em última instância, ao neoliberalismo. O regime neoliberal pressupõe as emoções como recursos para aumentar a produtividade e o rendimento. A partir de um determinado nível de produção, a racionalidade, que representa o meio da sociedade disciplinar, depara com os seus limites. A racionalidade é percebida como coação, como obstáculo. De súbito, tem efeitos rígidos e inflexíveis. Substituindo-a, entra em cena a emocionalidade, que tem curso paralelamente ao sentimento de liberdade, da livre realização da personalidade. Ser livre acaba por significar dar livre curso às emoções. O capitalismo da emoção serve-se da liberdade. A emoção é celebrada como uma expressão da subjetividade livre. A técnica de poder neoliberal explora essa subjetividade livre.

A objetividade, a generalidade, bem como a permanência são distintivas da racionalidade. Esta opõe-se, assim, à emocionalidade que é subjetiva, situacional e volátil. As emoções surgem com a mudança dos estados, com as mudanças da perceção. Pelo contrário, o curso da racionalidade é paralelo à duração, à constância e à regularidade. Dá preferência às relações estáveis. A economia neoliberal, que em vista do aumento da produção destrói permanentemente a continuidade e constrói a instabilidade, impele a emocionalização do processo produtivo. Do mesmo modo, a aceleração da comunicação favorece a sua emocionalização, uma vez que a racionalidade é mais lenta do que a emocionalidade. A racionalidade é, de certa maneira, sem velocidade. Daí que o impulso acelerador conduza à ditadura da emoção.

O capitalismo do consumo introduz emoções para estimular a compra e engendrar necessidades. O emotional design modela emoções, configura modelos emocionais para maximizar o consumo. Em última instância, hoje não consumimos coisas, mas sim emoções. As coisas não se podem consumir infinitamente - as emoções, em contrapartida, sim. As emoções estendem-se para lá do valor de uso. Com elas, abre-se um novo campo de consumo cujo carácter é infinito.

Para o nosso funcionamento, na sociedade disciplinar, as emoções são sobretudo um estorvo. Daí que seja necessário eliminá-las. A "ortopedia concertada" da sociedade disciplinar visa criar uma máquina sem sentimento a partir de uma massa informe. As máquinas funcionam melhor quando se desconectam totalmente das emoções ou dos sentimentos.

Último aspeto, mas não menos importante: a conjuntura presente da emoção está condicionada pelo novo modo de produção imaterial, no qual a interação em termos de comunicação adquire permanentemente maior importância. Hoje, não se procura apenas a competência cognitiva, mas também a emocional. Devido a este desenvolvimento, emprega-se a totalidade da pessoa no processo de produção. Nesta ordem de ideias, um documento da Daimler-Chrysler declara:

Uma vez que os elementos do comportamento assumem um papel importante no modo como se cumprem, as avaliações correspondentes terão também em conta a competência social e emocional do trabalhador39.

Hoje, exploram-se o social, a comunicação e até mesmo o próprio comportamento. Empregam-se as emoções como "matérias-primas" em vista da otimização da comunicação. A Hewlett-Packard, por exemplo,

é uma empresa em que se respira um espírito de comunicação, um forte espírito de inter-relacionamento, em que as pessoas comunicam e se aproximam umas das outras. Trata-se de uma relação afectiva 40.

Está a produzir-se uma mudança de paradigma ao nível da direção da empresa. As emoções são cada vez mais relevantes. Substituindo a gestão racional, entra em cena a gestão emocional. O gestor atual afasta-se do princípio do comportamento racional. Assemelha-se cada vez mais a um orientador motivacional. A motivação está ligada à emoção. O movimento associa-as. As emoções positivas são o fermento que permite o reforço da motivação.

As emoções são performativas na medida em que evocam ações determinadas. As emoções, enquanto inclinações, representam a base energética e até mesmo sensorial da ação. São reguladas pelo sistema límbico, que é também a sede dos impulsos. Constituem um nível pré-reflexivo, semi-inconsciente, corporalmente instintivo da ação, do qual não temos consciência explícita. A psicopolítica neoliberal apodera-se da emoção para exercer influência sobre as ações a este nível pré-reflexivo. Atinge o fundo do indivíduo através da emoção. Assim, a emoção representa um meio extremamente eficiente de controle psicopolítico do indivíduo.

BIG DATA

O registo total da vida

Hoje, cada clicar de tecla e cada palavra que introduzimos no motor de busca ficam registados. A totalidade da nossa vida é objeto de reprodução na rede digital. O nosso hábito digital proporciona uma representação extremamente exata da nossa pessoa, da nossa alma - uma representação talvez mais precisa ou completa do que a imagem que fazemos de nós próprios.

O número de endereços web é praticamente ilimitado. Assim, torna-se possível dotar cada objeto de uso de um endereço na internet. As coisas transformam-se por si próprias em fornecedores ativos de informação. Informam sobre a nossa vida, sobre as nossas ocupações, sobre os nossos hábitos. A extensão da internet das pessoas, web 2.0, à internet das coisas, web 3.0, é o culminar da sociedade de controle digital. A web 3.0 torna possível um registo total da vida. São também vigiadas doravante as coisas que usamos diariamente.

Estamos apanhados numa memória total de tipo digital. O pan-ótico benthamiano é desprovido de um sistema de registo eficaz. Existe apenas um "livro de normas" que regista as punições efetuadas e os seus motivos. A vida dos presos não é registada. Com efeito, permanece oculto para o Big Brother o que realmente os presos pensam ou desejam. Por contraste com o Big Brother, que omite talvez demasiado, o Big Data nada omite. O que basta para tornar o pan-ótico digital mais eficaz do que o benthamiano.

Nas eleições americanas, o big data e o data mining revelam-se como um ovo de Colombo. Os candidatos acedem a uma visão de 360 graus sobre os eleitores. Recolhem-se enormes quantidades de dados, que se comparam e inter-relacionam, permitindo produzir perfis muito exatos. Acede-se assim uma imagem da vida privada e à própria psique dos eleitores. Através da introdução do microtargeting, podem-se endereçar aos eleitores mensagens personalizadas e, portanto, influenciá-los. O microtargeting como práxis da microfísica do poder é uma psicopolítica movida por dados. Do mesmo modo, os algoritmos inteligentes permitem fazer prognósticos sobre o comportamento dos eleitores e otimizar a alocução. As alocuções individualizadas pouco se distinguem dos anúncios personalizados. Votar e comprar, o Estado e o mercado, o cidadão e o consumidor, assemelham-se cada vez mais. O microtargeting transforma-se em práxis geral da psicopolítica.

O recenseamento demográfico, que representa uma praxis biopolítica da sociedade disciplinar, fornece um material que se pode explorar demográfica, mas não psicologicamente. A biopolítica impede um acesso subtil à psique. A psicopolítica digital, pelo contrário, é capaz de atingir processos psíquicos em termos prospetivos. Talvez seja muito mais rápida do que a vontade livre. Pode antecipar-se-lhe. A capacidade de prospeção da psicopolítica digital significaria o fim da liberdade 56.

O inconsciente digital

O Big Data talvez torne legíveis os desejos dos quais não estamos explicitamente conscientes. Numa situação concreta, podemos desenvolver inclinações que escapam à nossa consciência. É frequente não sabermos sequer porque sentimos de súbito uma necessidade específica. Há no facto de uma mulher, numa determinada semana da gravidez, sentir o desejo de determinado produto uma correlação da qual ela não está consciente. A mulher compra simplesmente o produto em causa sem saber porquê. Isso é assim. Este isso-é-assim aproxima-se possivelmente do isso freudiano, que escapa ao eu consciente. Nesta perspetiva, o Big Data faria do isso um eu suscetível de ser psicopoliticamente explorado. Se o Big Data proporcionasse acesso ao reino inconsciente das nossas ações e inclinações, seria pensável uma psicopolítica que interviesse na profundidade da nossa psique e a explorasse.

Segundo Walter Benjamin, a câmara de cinema permite o acesso ao "inconsciente ótico":

Com o grande plano aumenta-se o espaço, com o ralenti o movimento adquire novas dimensões. (…) Assim se toma compreensível que a natureza da linguagem da câmara seja diferente da do olho humano, Diferente, principalmente, porque em vez de um espaço preenchido conscientemente pelo homem, surge um outro preenchido inconscientemente. (…) Em geral, o ato de pegarmos num isqueiro ou numa colher é-nos familiar, mas mal sabemos o que se passa entre a mão e o metal ao efetuarmos esses gestos, para não falarmos de como neles atua a nossa flutuação de humor, Aqui, a câmara intervém com os seus meios auxiliares, os seus "mergulhos" e subidas, as suas interrupções e isolamentos, os seus alongamentos e acelerações, as suas ampliações e reduções, A câmara leva-nos ao inconsciente ótico, tal como a psicanálise ao inconsciente das pulsões 57.

Podemos estabelecer uma analogia entre o Big Data e a câmara de cinema. O data mining, como uma lupa digital, aumentaria as ações humanas.

A microfísica do Big Data tornaria visíveis átomos, quer dizer microações que escaparam à consciência. O Big Data revelaria padrões de comportamento coletivos dos quais o indivíduo não é consciente. Seria assim possível o acesso ao inconsciente coletivo. Por analogia com o "inconsciente Ótico", poderíamos chamar inconsciente digital à estrutura microfísica ou micropsíquica. A psicopolítica digital seria então capaz de se apoderar do comportamento das massas a um nível que escapa à consciência.

Big Deal

O Big Data surge não só sob a forma de Big Brother como também sob a de Big Deal. O Big Data é um grande negócio. Os dados pessoais são completamente capitalizados e comercializados. Hoje, os homens são tratados e comercializados como pacotes de dados suscetíveis de exploração económica. Os próprios seres humanos são transformados em mercadoria. O Big Brother e o Big Deal aliam-se. Fundem-se o Estado vigilante e o mercado.

A empresa de dados Acxiom opera comercialmente com dados pessoais de cerca de 300 milhões de cidadãos americanos -o que significa praticamente a totalidade daqueles. Acxiom conhece melhor do que o FBI os cidadãos americanos. A empresa agrupa os indivíduos, distribuindo-os por 70 categorias. E oferece-os como mercadorias nos seus catálogos. Os que têm escasso valor económico são designados waste, ou seja, "lixo". Os consumidores portadores de um valor de mercado superior encontram-se no grupo Shooting star. São dinâmicos, têm entre 36 e 45 anos, levantam-se cedo para fazer footing, não têm filhos, são casados, gostam de viajar e da série de televisão Seinfeld.

O Big Data dá lugar a uma sociedade de classes digital. Os indivíduos classificados na categoria "lixo" pertencem à classe inferior. O crédito é negado aos que exibem uma pontuação baixa. Além do pan-ótico, entra aqui em cena o Banótico 58 59. O pan-ótico vigia os residentes no sistema de reclusão. O banótico é um dispositivo que, para as banir, identifica como não desejadas e exclui as pessoas distantes ou hostis em relação ao sistema. O pan-ótico clássico serve para disciplinar. O banótico ocupa-se da segurança e da eficácia do sistema.

O banótico digital identifica como lixo os homens desprovidos de valor económico. O lixo é qualquer coisa que se deverá eliminar:

São supérfluos, lixo humano, os rejeitados pela sociedade, numa palavra: refugo. Refugo é tudo aquilo que não é útil. Aos amontoados de refugo pertence tudo aquilo que é irrecuperável, inutilizável. De facto, o contributo mais significativo que o refugo pode fazer é sujar e bloquear os espaços que, de outro modo, poderiam ser utilizados para produzir lucros. O fim último do Banótico é garantir que o refugo é separado do produto dotado de valor e encaminhado para o transporte para o vazadouro do lixo 60.

Notas:

39. Citado em A. Gorz, Wissen, Wert und Kapital. Zur Kritik der Wissensokonomie, Zufique, Rotpunktverlag, 2004, p. 20.

40. Citado em E. Illouz. Gefiihle in Zeiten des Kapitalismus. Frankfurt. 2007. p. 39. o registo total da vida X.

56. É para este aspeto do Big Data que remetem Viktor Mayer-Schõnberger e Kenneth Cukier. Cf. V. Mayer-Schõnberger e K. Cukier, Big Data. Die Revolution, die unser Leben veriindern wird, Munique, Redline, 2013, p. 203.

57. w. Benjamin, "Das Kunstwerk" em Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit, Frankfurt, 1963, p. 36. ["A Obra de Arte na Época da Sua Reprodutibilidade Técnica", Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, tradução de Maria Luz Moita, MariaAmélia Cruz e Manuel Alberto, prefácio de T. w. Adorno, Lisboa, Relógio D' Água, 1992, pp. 104-105. (N. T.)]

58. Cf. z. Bauman e D. Lyon, Daten, Drohnen, Disziplin. Ein Gespriich iiber fliichtige (jberwachung, Berlim, Suhrkamp, 2013, pp. 83 e sgs.

59. Neologismo destinado a traduzir a conjunção do "ótico" com o "banimento" (ou ~xclusão) presente no original alemão sob a forma de Bannoptikum, que conjuga dois lermos equivalentes. (N. T.)

50. Ibid., pp. 86 e sgs.

Psicopolítica, Byung-Chul Han. Relógio D’Água, 2015 

sexta-feira, 2 de setembro de 2022

“Quem quer mudança de política tem de derrubar o Governo” – Costa dixit

 

Imagem: Um gigante judeu em casa com os pais no Bronx – Diane Arbus, 1970

A silly season acabou, começou a época da caça ao ministro por parte da oposição e dos diversos lóbis que se encontram descontentes com a insuficiência da parte que lhes tem cabido no saque ao erário público e aos bolsos dos incautos cidadãos portugueses. E o momento que marca o fim da estação, que nem fui tão tola como isso, foi indubitavelmente a demissão, no início da noite, da ministra da Saúde, Marta Temido, que não esperou pelo raiar do dia para apresentar o pedido de desistência. Parece que o zelo e a fidelidade ao chefe não compensaram.

São azares da vida e da política e a reacção de Costa dá a entender que as razões ficarão, pelo menos para já, no limbo da dúvida e tudo o que se diga poderá passar por simples pretextos e especulação. Contudo, fica-se com a ideia de que a campanha, que começou em Junho, de ataque e de descredibilização do SNS já fez uma baixa, mas o objectivo não será só este. Praticamente todo o Verão foi atravessado pela feroz campanha onde os media corporativos, incluindo a estação televisiva pública, e a ordem dos médicos, com o seu inenarrável bastonário a assumir o papel de chefe da oposição ao governo, desempenharam (e ainda continuam na demonização da ministra) um papel relevante.

Ouvir as declarações dos diversos figurantes da trágico-comédia, desde o já referido bastonário/médico/acumula/público/privado, que chegou a ameaçar com a greve total e ilegal de "há risco de haver urgências sem médicos para trabalhar", ou a cavaquista bastonária dos enfermeiros, aos dirigentes dos sindicatos quer de médicos e enfermeiros, para além dos patrões directos do negócio, não há dúvidas de que existe unanimidade quanto à privatização da saúde no país, poderá haver alguma diferença apenas no que toca ao grau. E assim será, independentemente da figura de substituição, se o povo português não lutar contra o crime.

Torna-se claro que o cepo das marradas é o governo, acabar de vez com o SNS, com a entrada em força de todos os lóbis da indústria da doença no sector da saúde em Portugal, é uma parte da estratégia. Iremos ter um “sistema” em vez de um serviço, cujos lucros estão mais do que garantidos, a clientela é certa, a que acrescenta os clientes estrangeiros que virão para cá fazer turismo de saúde. Negócio mais lucrativo?, provavelmente só a indústria do armamento ou do tráfico de droga. Quanto ao governo a estratégia é clara, empurrá-lo para uma política abertamente neo-liberal, de capitalismo selvagem, à moda da troika; a seguir à privatização da saúde virá a privatização dos dinheiros da Segurança Social e o mote já foi dado: “Pensões de velhice sofrem dura penalização e valem apenas 38% do salário daqui a 48 anos”. Objectivo final, acabar com o próprio PS.

Este assalto ao SNS, sob o alto patrocínio de Marcelo o rei/presidente, deve ser visto no contexto da grave, profunda e arrastada crise económica que o país atravessa, juntamente com toda a União Europeia e o mundo global capitalista, sem meio de desaparecer ou sequer esbater, e à qual se encontra indissociável a guerra na Ucrânia e o confronto entre as diversas principais potências capitalistas. A dura realidade é incontornável: “A alimentação, habitação e energia, restaurantes e hotéis são os produtos e serviços cujos preços mais aumentaram entre Janeiro e Julho, variando, respetivamente, 11,47%, 12,92% e 13,08%, segundo o Índice de preços do INE”, ou “Material escolar está 16,5% mais caro este ano do que em 2021”. Aumentos, todos eles, na casa dos dois dígitos, falar em inflação desceu de 9,1% para 9% não deixa de ser irónico. E vamos lá ver como vão ser os aumentos do gás no próximo dia 1 de Outubro!

Mas o panorama torna-se dramático se olharmos para uma Alemanha, o país mais rico da UE, mas à custa do empobrecimento dos restantes e em particular dos mais periféricos: “A inflação na Alemanha subiu para o nível mais elevado em quase meio século, o que dá força para o Banco Central Europeu (BCE) anunciar um grande aumento das taxas de juro no próximo mês” – os países mais endividados que se acautelem. E o índice (harmonizado) de preços no consumidor aumentou para 8,8% em Agosto, depois a subida inesperada para 8,5% em Julho, de acordo com o gabinete de estatísticas alemão; ou seja, a pior situação em cerca de 50 anos. A crise é anterior à guerra e á pandemia, estas servem de justificação para as medidas austeritárias e para a própria crise, tiveram somente o condão de a expor mais ao vivo; no entanto: “PIB da Zona Euro perde 1,1% sem gás russo em 2023”. Será o descalabro.

Se passarmos para a velha e velhaca Albion, que saiu da União Europeia para levar a cabo as suas fantasias imperiais mas às costas dos EUA, então entrou-se em situação de fome declarada: “supermercados do Reino Unido estão a eliminar datas de validade dos alimentos”. E de revolta generalizada, com o regulador britânico a aumentar em 80% preço máximo da energia, desculpando-se com o boicote russo no fornecimento do gás e do petróleo, o que já provocou diversas e persistentes greves em diversos sectores, transportes, recolha do lixo, correios e portos, cujos trabalhadores exigem aumentos salariais que cubram a perda do poder de compra, que vai já em 10,1% no mês de Julho. E mais: surge o movimento "Don't Pay" ("Não Pagues") que pretende mobilizar no mínimo um milhão de pessoas a não pagarem as contas de energia (gás e eletricidade) a partir do dia 1 de Outubro.

Por cá os trabalhadores, manietados pelos sindicatos reformistas, vão olhando para o governo do PS/Costa como um paizinho que eventualmente andará distraído e que poderá salvar o país dos que trabalham da miséria e da fome. Só que será a “espera de Godot”, esperar pelo que nunca virá, nem prometeu. Se a miséria, por enquanto encoberta, vai aumentando com os pedidos de ajuda alimentar a subir – a Cáritas prevê maior pressão nos pedidos e diminuição da qualidade alimentar –, o estado/governo PS abdica de mais de 25% da receita fiscal: “em 2021, os benefícios fiscais atingiram um valor superior a 13 mil milhões de euros, cerca de 26,4% dos impostos cobrados”. Conclusão: o povo empobrece, os ricos não pagam impostos. E o chefe dos grandes patrões não come as palavras: “Caminhamos de facto para a recessão”. E o Saraiva presidente da CIP acrescenta ainda, quanto ao possível acordo salarial: "não pensem que as empresas são vacas leiteiras". Se os patrões não estão dispostos a abrir os cordões à bolsa para pagar melhor aos trabalhadores, contudo (os senhorios) regozijam com “rendas das casas vão aumentar 5,43% em Janeiro”.

Por parte dos partidos da “oposição” as posições são lastimáveis e Costa como que goza, na sua sobranceria, afirmando que “quem quer mudança de política tem de derrubar o Governo”, afastando uma remodelação alargada, mostra-lhes a sua incapacidade e até covardia política. É à direita e é à esquerda. Na direita nem vale a pena falar. Do outro lado, com uma Catarina Martins que se limita a repetir as palavras do funcionário da família Rothschild à frente do governo francês: "chegou o fim da época da abundância”, para justificar a miséria e a fome que serão impostas à classe operária e ao povo franceses ao mesmo tempo que se multiplicam os lucros das grandes corporações, com as do sector energético à cabeça (Total Energies quase triplica o lucro somando 70,4 mil milhões de dólares entre Abril e Junho, subida de 69% na comparação anual), ou com um PCP hesitante, virar-se contra o governo ou perder as benesses do regime, Costa poderá dormir descansado.

Se o governo de Herr Costa é forte com os fracos, por outro lado, é fraco e subserviente com os fortes. Foi vê-lo a joelhar-se perante os ditames da Nato no aniversário da “independência” da Ucrânia, assessorado pelo amorfo ministro dos Negócios Estrangeiros e coadjuvado pelo grande “patriota” Marcelo, que nem coragem teve para cumprir o serviço militar. É o que temos…. até um dia em que o governo Costa/PS seja descartado por Bruxelas por já imprestável… ou derrubado pelo povo, na rua.