quinta-feira, 15 de abril de 2021

Capitalismo, corrupção e estado policial

Prostitutas, 1934 - Henri Cartier Bresson

O rei-presidente resolveu enfrentar o amigo Costa quanto a aprovação das leis dos apoios sociais a pequenos empresários e subsidio de risco a funcionários públicos, consideradas anti-constitucionais pelo dito primeiro-ministro e por alguns juristas arregimentados, tentando ganhar apoios entre a pequeno-burguesia arruinada pelas medidas económicas, apresentadas de combate à pandemia e tomadas pelo governo PS. Com o aparente recuo de Costa, Marcelo, depois de preparar o populacho e os partidos invertebrados com o traseiro assentado no Parlamento, anuncia o 15º estado de emergência/excepção, limitando-se a mudar data no papel, sabendo de antemão (como acaba de acontecer) que pode contar com os votos dos partidos de sempre. Em relação à perpetuação do estado de excepção, com a alegação da segurança sanitária dos cidadãos, que morrem cada vez mais à medida que o SNS vai sendo arruinado, todos os partidos parlamentares estão unidos (o voto contra é inócuo quando se sabe antecipadamente que é derrotado).

A intenção de maior repressão psicológica sobre os cidadãos comuns, ainda antes da repressão pura e dura, com o o objectivo de fazer aceitar uma política de maior austeridade e exploração, sempre com a justificação do combate à pandemia, é por demais notória. Só não vê quem não quer. Primeiro vieram com a história do Rt, índice de transmissibilidade, não satisfeitos, agora, é o índice de “incidência vizinha”, para justificar os confinamentos locais, já que Marcelo avisou que era tempo do Governo procurar outras medidas para o controlo da dita pandemia antes que o povo se revolte. Claro que são indicadores “científicos” apresentados por “especialistas” cuja “especialidade” e “ciência” estão na razão directa do dinheiro que recebem dos grandes laboratórios farmacêuticos e outros grandes grupos económicos ou dos tachos e mordomias oferecidas pelo Governo ou da vaidade e gosto de protagonismo pessoais.

Antes da vacinação, as vacinas foram apresentadas como o remédio milagroso, do qual dependeria não só a sagrada “imunidade de grupo” como também a abertura da economia, estando cerca de 85% dos idosos com mais de 80 anos vacinados com pelo menos uma das duas doses, estes ainda estão impedidos de sair de casa ou dos lares, mantendo a prisão domiciliária, embora o único crime que cometeram é o de serem velhos e improdutivos neste sistema económico capitalista. Continua-se a agitar o medo para, no imediato, obrigar a que o maior número possível de portugueses seja vacinado. As vacinas, como qualquer outra mercadoria, terão de ser consumidas para que os lucros de dezenas de milhares de milhões de dólares e de euros estejam garantidos para a denominada “Big Pharma”, assim como para os vendedores de testes e dos diversos equipamentos. As comissões de governantes, de especialistas, de políticos do poder e outros rentistas e parasitas terão igualmente de estar garantidas.

Na mesma proporção directa do enriquecimento de quem vende as vacinas, testes e equipamentos para o putativo combate à pandemia ou cuidados de saúde que o SNS está vedado em fornecer ao cidadão, por estar em encerramento parcial, o povo português está em empobrecimento acelerado. A acumulação e concentração da riqueza num pequeno e cada vez menor número de pessoas é mais que evidente. Ainda há pouco veio a público um dos tais estudos sobre realidade social que toda a gente conhece e muita gente farta de saber pelo facto que a vive e sente todos os dias: “O F e os 3 D da pobreza: família, desemprego, divórcio e doença - A pobreza em Portugal, trajectos e quotidianos". Assim, são identificados quatro perfis de pobres no país: reformados, precários, desempregados e trabalhadores. Já não era novidade para ninguém que a pobreza incide mais sobre estes quatro grupos sociais e que ter um emprego fixo, com o salário certo ao fim do mês, não é garantia nenhuma para não ser pobre – os próprios já o sabem desde há muito. Como o Governo sabe muito bem, embora tente ignorar a realidade, que uma pensão de fome é o seguro, certo e sabido, para que um trabalhador, após uma vida de exploração, tenha a certeza de um resto de vida de fome e miséria; sendo até melhor que morra para aliviar o orçamento da Segurança Social que este governo, ou outro que venha, prepara para entregar às grandes companhias de seguro ou fundos de investimento.

Os números, quando não manipulados pelos governos, não enganam:

Portugal é cada vez mais um país com uma economia baseada em baixos salários: o custo hora da mão de obra em Portugal era menos de metade do custo hora da Zona Euro e pouco acima de metade da União Europeia (2020); entre 2010 e 2020, o poder de compra da remuneração base média mensal dos trabalhadores de todas as Administrações Públicas (Central, Local e Regional) diminuiu, em média, 10%; o stock de capital (investimento) por empregado era apenas 57,7% da média dos países da União Europeia e 50,8% dos da Zona Euro, e a previsão para 2021 é de agravamento desta relação;

Portugal é o país do trabalho precário: é maciço o recurso a trabalho precário para suprir necessidades permanentes da Administração Pública, incluindo do SNS, é o Governo/Estado que dá o exemplo pela negativa; num ano, entre Dezembro de 2019 e Dezembro de 2020, o número de trabalhadores com contratos a prazo nas Administrações Publicas aumentou em 20,6% (+15.306 trabalhadores), sendo a subida de 22,4% na Administração Central (+14.967); no mesmo período, a taxa de precariedade aumentou de 10,6% para 12,6% em todas as Administrações Públicas, e de 12,5% para 15% na Administração Central; despedimento quase certo de 1883 enfermeiros contratados a prazo, cujo contrato termina este mês de Abril;

Portugal é o país onde as desigualdades económicas e sociais não cessam: entre 2008 e 2019, o total de “ordenados e salários”, recebidos pelos trabalhadores, foi inferior ao “excedente bruto de exploração”, recebido pelos donos do Capital, em 149.957 milhões de euros, o que agravou enormemente a repartição da riqueza criada no país pelos trabalhadores (entre 2008 e 2019, a parte do Trabalho no PIB diminuiu de 36,5% (65.454 milhões euros) para 35% (74.640 milhões euros), e a do Capital aumentou de 40,6% (72.757 milhões de euros) para 41% (87.468 milhões de euros); esta desproporção na forma como é repartida a riqueza (PIB) ainda se torna mais clara quando se compara o número de trabalhadores com o número de donos do Capital, segundo o INE, “Trabalhadores por conta própria como empregadores”, estes, no fim do ano de 2020, eram apenas 222,6 mil (4,6% do emprego total) que se apropriavam de 41% do PIB, enquanto o número de trabalhadores assalariados eram 4.044.800 (83,2% do emprego total) que recebiam apenas 35% desse mesmo PIB, criado apenas por eles, produtores de mais-valia. (Números apresentados por Eugénio Rosa nos três últimos estudos).

A pretexto da pandemia, o governo PS/Costa compromete-se a recapitalizar as principais empresas em 3% do PIB, nos próximos anos – para a tal “recuperação económica”, Bruxelas dixit – ou seja, mais de 6 mil milhões de euros por ano. Estes milhões, por sua vez, pagos com austeridade redobrada: mais desemprego, já esperado logo que terminem os lay-off às empresas, salários mais baixos (nominais e reais) e mais precariedade. E os casos anunciados não se fazem esperar: “Dona do Correio da Manhã (Cofina Media) avança com despedimento coletivo de 26 trabalhadores”; “Greve na Panasqueira contra proposta de aumento de 11 cêntimos por dia”; “Fruta, combustíveis e saúde mais caros após um ano de Covid”; “Pobreza. Há pessoas que não compram medicamentos ou cortam na comida”. E como resultado de uma maior pobreza, outros indicadores se ressentem: “Número de nascimentos no primeiro trimestre de 2021 regista valor mais baixo desde 2015 - No primeiro trimestre de 2021 nasceram 18226 bebés, menos 2898 (13,7%) do que em igual período de 2020”. Enquanto a pobreza e a miséria no seio povo crescem a olhos vistos, o governo PS/Costa prepara-se para enterrar mais 600 milhões no Novo Banco, que não seguiu o alerta para processar grandes devedores por “gestão danosa”, e de igual modo para compensar os eventuais prejuízos (?!) reclamados pelos CTT com a alegação da pandemia da covid-19.

O governo, como fiel e zeloso executor dos interesses e negócios dos diversos sectores das elites nacionais e dos ditames dos bancos europeus e demais capital internacional via Bruxelas, para além de não ter pela frente a oposição parlamentar ainda vai contando com o apoio, umas vezes declarado, outras mais comedido e disfarçado, da dita “esquerda parlamentar”. Esta não se cansa de manifestar o seu apoio à política de confinamento dos cidadãos saudáveis (prisão domiciliária), como forma única de combater a pseudo pandemia (na realidade, simples epidemia, como tantas outras), e de defesa dos interesses dos grandes grupos económicos que vão vendo aumentar substancialmente os seus lucros. É o PCP que, através de artigos do “Avante” ou das intervenções do seu patético secretário geral ou de organizações por si directamente controladas, não se cansa de reivindicar mais vacinas e vacinações melhor programadas, nunca colocando em causa a eficácia das ditas e dos possíveis efeitos adversos ou da legalidade dos contratos feitos pela Comissão Europeia e, por acrescento, do governo português. A posição do BE apenas se distingue da do PCP na questão de se abster, em vez de votar contra, quanto a renovação dos estados de emergência. Ambos se juntam na defesa dos interesses do grande capital apesar de constantemente encheram a boca de proclamações contra o dito. A pandemia (que irá justificar tudo e mais alguma coisa para aumentar a exploração dos trabalhadores), em apenas um ano, trouxe mais riqueza para os mais ricos (a “Forbes” elenca uma lista de 40 multimilionários que viram aumentar substancialmente a sua riqueza) e aumentou o número de multimilionários em mais 493, a nível global. Entre uns e outros encontram-se muitos ligados ao sector da Saúde (o negócio do século!). Ao mesmo tempo que a fome no mundo aumentou (eclodiu em pelo menos 25 países em desenvolvimento, de acordo com a FAO/ONU) e entre 25% a 36% das pequenas e médias empresas poderão “fechar completamente” (falir) nos 132 países que foram objecto de pesquisa efectuada pelo International Trade Center/OCDE.

O governo Costa/PS vai pondo as barbas de molho; o Marcelo vai preparando o terreno para garantir o futuro político após o mandato que ora iniciou, não tardará em arranjar um partido; a corrupção do bloco central é coisa incontornável e marca do regime democrático burguês parido pelo golpe militar do 25 de Abril (autarca do PSD é suspeita de “crimes de corrupção passiva e activa, prevaricação, peculato, abuso de poder, todos de titular de cargo político agravado e de crime de corrupção activa" e deputado do PS é investigado por participação nas negociatas), o PS vai mostrando que é um bando de gente cobarde, sem princípios nem vergonha («Fernando Medina sobre a Operação Marquês: actos de Sócrates “corroem o funcionamento da vida democrática”»), a justiça é usada para perseguir os adversários políticos, atropelando todas as leis e princípios de igualdade entre cidadãos e liberdades e garantias do indivíduo, e quando o juiz não se põe a favor do frete é também linchado em praça pública, com jornalista da televisão do militante nº1 do PSD a pedir a cabeça, com o recadeiro presidencial a verberar «Este juiz "é um perigo à solta"» ou com o chefe do “principal partido da oposição”: "O Regime está doente e a Justiça o pior exemplo", como tanto um como o outro não pertencessem a um partido que foi governo, só ou acompanhado, em metade dos 47 anos de democracia da extorsão e da risota (esta gente, enquanto nos assalta, goza com a nossa cara!).

Enquanto se confirma que “Portugal sem grandes avanços na prevenção da corrupção no Parlamento e nos tribunais” e na tal “Europa dos cidadãos”, como gostam de dizer os xuxas, revisonistas e bloquistas, “Mais corrupção e mais violência” e “Chocante facilidade com que redes criminosas compram pessoas", o governo por cá vai concentrando os meios policiais (“Resolução do Conselho de Ministros que passa competência policial para PSP e GNR foi publicada em Diário da República nesta quarta-feira. Sindicato do SEF fala em “golpe de Estado” e exige aprovação pelo Parlamento”), reforçando os poderes do Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, aumentando a vigilância sobre o cidadão (“Vídeo-vigilância da Cidade Universitária à espera de luz verde desde Junho”) e defendendo os cães de guarda (“Caso SEF: Ministério Publico deixa cair acusação de homicídio aos inspetores que terão agredido Ihor Homeniuk”).

O regime vai-se musculando... e a velha toupeira vai fazendo o seu trabalho.

terça-feira, 13 de abril de 2021

O estado de excepção - Auctoritas e potestas

 

Roma - Manifestação de pequenos empresários contra o estado de emergência e o confinamento (Reuters)
por Giorgio Agamben

Do estado de excepção efectivo em que vivemos não é possível o regresso ao Estado de direito, visto que estão agora em questão os próprios conceitos de «estado» e de «direito»”

É talvez possível neste ponto virarmo-nos para trás e olhar o caminho percorrido até aqui para tirar alguma conclusão provisória da nossa indagação sobre o estado de excepção. O sistema jurídico do Ocidente apresenta-se como uma estrutura dupla, formada por dois elementos heterogéneos e, no entanto, coordenados: um, normativo, e jurídico em sentido estrito - que podemos aqui inscrever por comodidade na rubrica potestas - e outro, anómico e meta jurídico - a que podemos chamar auctoritas.

O elemento normativo precisa do anómico para poder aplicar-se mas, por outro lado, a auctoritas só pode afirmar-se numa relação de validação ou de suspensão da potestas. Enquanto decorre da dialéctica entre estes dois elementos em certa medida antagónicos, mas funcionalmente conexos, a vetusta morada do direito é frágil e na sua tensão para a manutenção da sua própria ordem está sempre já em processo de ruína e corrupção. O estado de excepção é o dispositivo que deve, em última instância, articular e manter unidos os dois aspectos da máquina jurídico-política, instituindo um limiar de indecidibilidade entre nomos e anomia, entre vida e direito, entre auctoritas e potestas. Funda-se sobre a ficção essencial pela qual a anomia - sob a forma da auctoritas, da lei viva ou da força-de-lei - ainda está em relação com a ordem jurídica e o poder de suspender a norma engrena directamente na vida. Enquanto os dois elementos permanecerem relacionados, mas conceptualmente, temporalmente e subjectivamente distintos - como na Roma republicana na oposição entre senado e povo ou na Europa medieval entre poder espiritual e poder temporal - a sua dialéctica - embora fundada numa ficção - pode ainda de algum modo funcionar. Mas quando tendem a coincidir numa só pessoa, quando o estado de excepção, em que ambas se ligam e se confundem, se torna a regra, então o sistema jurídico-político transforma-se numa máquina letal.

O objectivo desta indagação - sob a urgência do estado de excepção «em que vivemos» - era trazer à luz a ficção que governa este arcanum imperii por excelência do nosso tempo. Aquilo que a «arca» do poder contém no seu centro é o estado de excepção - mas este é essencialmente um espaço vazio, no qual uma acção humana sem relação com o direito tem defronte uma norma sem relação com a vida.

Isto não significa que a máquina, com o seu centro vazio, não seja eficaz; pelo contrário, aquilo que pretendemos mostrar foi precisamente que ela continuou a funcionar quase sem interrupção a partir da Primeira Guerra Mundial, passando pelo fascismo e o nacional-socialismo, até aos nossos dias. O estado de excepção alcançou mesmo, hoje, a sua máxima extensão planetária. O aspecto normativo do direito pode assim ser impunemente obliterado e contraditado por uma violência governamental que, ignorando, no estrangeiro, o direito internacional, e produzindo, no interior, um estado de excepção permanente, pretende todavia estar ainda a aplicar o direito.

Não se trata, naturalmente, de repôr o estado de excepção dentro dos seus limites temporal e espacialmente definidos, para reafirmar o primado de uma norma e de direitos que, em última instância, têm nele o seu próprio fundamento. Do estado de excepção efectivo em que vivemos não é possível o regresso ao Estado de direito, visto que estão agora em questão os próprios conceitos de «estado» e de «direito». Mas se é possível tentar deter a máquina, expôr a sua ficção central, é porque entre violência e direito, entre a vida e a norma não há qualquer articulação substancial. Ao lado do movimento que procura mantê-los a todo o custo ligados, há um contra-movimento que, operando em sentido inverso no direito e na vida, procura sempre separar aquilo que foi artificial e violentamente ligado. Isto é, no campo de tensão da nossa cultura agem duas forças opostas: uma que institui e põe e outra que desactiva e depõe. O estado de excepção é o seu ponto de máxima tensão e, ao mesmo tempo, aquilo que, coincidindo com a regra, ameaça hoje torná-los indestrinçáveis. Viver no estado de excepção significa fazer a experiência de ambas estas possibilidades e, no entanto, separando sempre as duas forças, tentar incessantemente interromper o funcionamento da máquina que está a conduzir o Ocidente para a guerra mundial.

Auctoritas e potestas in “Estado de Excepção” de Giorgio Agamben, 2003

In Os Barbaros