segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Crónicas de Baptista Bastos

Crónicas do jornalista e escritor Baptista Bastos, publicadas no jornal “Diário de Notícias”, abordando a política de austeridade e fome imposta ao povo português pelo governo do PSD/CDS-PP e a conciliação, para não se dizer colaboração, do outro partido principal do establishment. Juntamos uma outra, escrita um pouco antes sobre o apelo à docilidade do povo, para a não revolta, por parte do responsável máximo da Igreja Católica (ICAR) portuguesa, D. José Policarpo. Crónicas oportunas atendendo ao tempo que atravessamos de promessas de mundos e fundos a metro, escondendo os partidos do regime que a política económica, e não só, é ditada inteiramente por Bruxelas.

Os dois do nosso drama

O chá das cinco de segunda-feira, entre Passos Coelho e António José Seguro, resultou no baço espectáculo "mediático" que tudo abrevia e a nada chega. O importante passou ao lado: o facto de a pontuação que separa o PS do PSD estar cada vez mais minguada, atentando-se, até, que, se a coligação continuar, registar-se-á "empate técnico", rigorosamente a derrota do socialismo chilre do triste Seguro. Não se exige, bem entendido, que o PS seja o que nunca foi, um partido "revolucionário"; mas assim, como está, também é de mais. Desesperantemente de mais.

Que separa ou diferencia o PS do PSD, neste momento crucial para a própria existência de Portugal como nação? Sem quase termos dado por isso, os dois partidos abreviaram, ou liquidaram por completo, os projectos iniciais, marcados por um conceito "reformista" da sociedade. O PSD, então PPD, demoliberal, desejava que se mexesse em alguma coisa, para que tudo ficasse mais ou menos na mesma. Não foi admitido na Internacional Socialista, et pour cause. O PS cantarolava o estribilho "partido socialista, partido marxista", até que Willy Brandt deu instruções para que a casa fosse posta em ordem. Apagaram-se símbolos (como o do punho esquerdo erguido, que cedeu o lugar à imagem da rosa) e desapareceram dos discursos oficiais expressões como "trabalhadores", "classe operária", substituídas por "classe média" e afins.

Seguro e Passos provêm de idêntica fornada. Este último ainda andou pelos comunistas pequeninos, mas pirou-se quando percebeu que não estava ali para mudar o mundo, sim para organizar a vidinha. O Seguro navegou nas águas mansas da jota, precavido, sempre sorrateiro e de soslaio, emboscado para quando a oportunidade surgisse. É um embuste de si próprio, porque produto de uma época que se ludibria a si mesma. Ambos nascidos da "era do vazio" ou da "insignificância." Passos muitíssimo mais perigoso porque muito astuto e obcecado. Seguro mais tolo porque mais claramente vaidoso e irresoluto.

A política, quando o é, e estes dois senhoritos nada têm que ver com ela - a política é constituída por todas as formas de filiação social. Não se reduz, como os dois senhoritos, e outros mais o fazem, à prática de mero exercício de poder, cujo valor intrínseco está associado a zonas de interesses. A política, na expressão mais nobre, corresponde a conveniências comuns, que apenas divergem nos modos de acção. Finalmente, a política é um acto de cultura porque acto de relacionamento. Se submetêssemos tanto Passos como Seguro à mais modesta sabatina de conhecimento geral, talvez não ficássemos muito surpreendidos com o grau de ignorância revelado. Não é grave por aí além; só o é porque ambos governam ou ambicionam governar um povo. Neste caso, infelizmente, nós. O nosso drama reside nos dois.

Original no "DN", 24 de Março de 2014

Limpa, suja ou encardida?

Uma pessoa de recta consciência não pode deixar de se indignar, com nojo e abominação, ante o cerimonial em que o inexcedível Passos Coelho anunciou a "saída limpa" da nossa subalternidade. A comunicação social e os comentadores estipendiados usaram, como na Idade Média, tubas e atabales de regozijo perante tão fausto acontecimento. E o primeiro-ministro, useiro e vezeiro em manter com a verdade uma relação conflituosa, disse a um país perplexo a seguinte bojarda: "A liberdade de decisão foi reconquistada."

A simulação da realidade brada aos céus. Portugal continuará, por mais algumas décadas, sob vigilância apertada, e a gulodice daqueles indicados nossos "credores" não se apaziguará. Os portugueses não sabem a quem devem dinheiro; mas, parafraseando a frase imortal daquele banqueiro impante, agressivo e tolo, lá que devem, devem.

Continuamos, pois, imersos na miséria, na fome e no desespero sem esperança. Um pequeno grupo de burocratas ignorantes prosseguirá na tarefa infame de dar ordens a quem quer que esteja no Governo. Nada sabe da nossa história, da nossa cultura, das idiossincrasias que, apesar de tudo, nos diferenciam. Um deles fez uma declaração comovente: iria voltar a Portugal, como turista, por causa dos pastéis de nata de Belém! A rede foi estendida com sagaz competência, e as estruturas do capitalismo tornaram-se cada vez mais vorazes, porque não confrontadas com um antagonismo competente e sólido. O "socialismo democrático" é uma desgraça por toda a Europa; há governos que o são sem estar avalizados pelo voto, como acontece em Itália. A indigência moral, política e ideológica da "esquerda moderada" abriu caminho à avalancha da extrema-direita, cuja soberba começa a ser assustadora.

Os partidários desta política, caso de Passos Coelho e dos que tais, presos na insanidade de um suicídio colectivo, já não constituem uma decepção permanente porque tornaram "natural" a aberração histórica sob a qual vivemos. Manifesta--se uma ofensiva ampliada contra o ideal democrático, e a sub-reptícia proposta de despersonalização ética, substituída pela ordem que inculca a ideia da desnecessidade de governos eleitos. O "Estado mínimo" e a entrega da representatividade política e social aos privados, tão do agrado da catequese neoliberal, não encontra resposta nos partidos "socialistas", os mais próximos de uma confrontação urgente e fundamental.

Hollande é um desgraçado sem tino, que colocou nas funções de primeiro-ministro um direitinha contumaz. Nós, por cá, tudo mal ou embezerrado. Os reforços de Jorge Coelho e José Sócrates, assomados para socorrer António José Seguro da flexibilidade demonstrada, não chegam para "dar a volta" a um partido que perdeu há muito as distintivas de "esquerda."

(Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo acordo ortográfico)

DN, 11 de Maio de 2014

D. Policarpo não está cá

D. José Policarpo, cardeal-patriarca de Lisboa, disse, em Fátima, ser contra as manifestações populares, as quais, assim como as revoluções, nada resolvem. A frase é inquietante, proferida por quem é: um homem culto, conhecedor da História e dos movimentos sociais que explicam e justificam as modificações políticas. Mais: numa altura em que o País vive uma crispação inédita, onde a fome, a miséria e a angústia estão generalizadas, as palavras de D. Policarpo não são, somente, insensatas - colocam o autor no outro lado do coração das coisas.

Diz, ainda, o solene purpurado: "Até que ponto é que nós construímos uma saúde democrática, com a rua a dizer como se deve governar?" Não contente com a afirmação adianta, sem hesitar e sem pejo: "O que está a acontecer é uma corrosão da harmonia democrática, [sic] da nossa Constituição e do nosso sistema constitucional."

D. Policarpo deve saber que a legalidade do voto não legitima acções de dissolução, como as praticadas, diariamente, por este Governo, contra as populações, contra a Constituição, contra as normas mais elementares do viver democrático. Deve também saber que a rua possui o poder de corrigir, com o protesto, a insolência de quem se julga detentor do direito absoluto. "Vamos cumprir o nosso rumo, custe o que custar", na expressiva vocação totalitária do primeiro-ministro, é, isso sim, "uma corrosão da harmonia democrática." E D. Policarpo, que parece crer em alguns absurdos, acredita, seriamente, que os portugueses vivem, mesmo, nessa benfazeja e bendita concórdia? Só assim se justificaria a enormidade das suas declarações.

O pacifismo e a magnitude das últimas manifestações podem e devem ser interpretados como uma insubmissão de dissidência, e repúdio pela maneira como somos conduzidos e governados. No fundo, a rua é o lógico prolongamento de um mal-estar que o cardeal parece dramaticamente ignorar ou omitir. Ele não gosta da rua, e está no seu direito. Mas já não é de seu direito condenar aqueles que recusam a servidão imposta por esta "harmonia democrática", quando ela é tripudiada por um Governo que exerce o poder nas raias da ilegalidade, como o asseveram o Tribunal Constitucional e muitos outros constitucionalistas.

Sabe-se que D. Policarpo sempre foi muito recatado em condenar os desmandos do poder. Ele é mais das meigas coisas celestinas do que das asperezas terrenas. Assim, serviu-se, acaso excessivamente, ao longo dos anos, de metáforas mimosas para não dizer o que dele se esperava: a clareza do verbo e a argumentação qualitativa do requisitório evangélico. Desta vez, porém, a frase foi desprovida de adornos. E, com irada exacerbação, deu amparo e continuidade às ideias e aos processos do poder, vituperando aqueles que, legitimamente, o contestam.

Valha-o Deus!

DN, 12 Outubro de 2012 

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Qual o mais mentiroso?

 A propósito do recente debate entre Santos e Montenegro, considerado, pelos paineleiros e outros comentadores avençados, como o alfa e o ómega quanto à decisão de voto para aqueles cidadãos eleitores ainda indecisos. Este duo faz-nos lembrar um outro existente em 2011, aquando das eleições (5 de Junho de 2011) que levaram ao poder a coligação PSD/CDS-PP, e que o poeta Manuel António Pina bem retratou nas suas crónicas publicadas na altura no “JN”. As crónicas são as seguintes:

E Sócrates mentia

Diz-se que a política é a arte de fazer escolhas. Passos Coelho fez as suas: o assalto fiscal à classe média e aos mais vulneráveis da sociedade. E em breve o veremos a anunciar a capitalização da Banca com os recursos espoliados a pensionistas e trabalhadores. Tem toda a legitimidade para impor as suas escolhas aos portugueses porque os portugueses o elegeram. Só que os portugueses elegeram-no com base em pressupostos e garantias falsos, que ele repetiu à exaustão antes e durante a campanha eleitoral.

Agradecendo a Ricardo Santos Pinto, recordem-se algumas das garantias com que Passos Coelho foi eleito: "Se vier a ser primeiro-ministro, a minha garantia é que a [carga fiscal] será canalizada para os impostos sobre o consumo e não sobre o rendimento das pessoas"; "Dizer que o PSD quer acabar com o 13.º mês é um disparate"; "O PSD acha que não é preciso fazer mais aumentos de impostos, do nosso lado não contem com mais impostos"; "O IVA, já o referi, não é para subir"; "Eu não quero ser primeiro-ministro para proteger os mais ricos"; "Que quando for preciso apertar o cinto, não fiquem aqueles que têm a barriga maior a desapertá-lo e a folgá-lo"; "Tributaremos mais o capital financeiro, com certeza que sim"; "Não podem ser os mais modestos a pagar pelos que precisam menos"...

E ainda: "Nós não dizemos hoje uma coisa e amanhã outra".

2011-10-17

*

Não havia novo Governo?

O OE para 2012 deixou-me confuso pois estava convicto de que havia mudado o Governo e era agora Passos Coelho o primeiro-ministro. De facto, Sócrates é que lançava "exigências adicionais sobre aqueles que sempre são sacrificados" e atacava "os alicerces básicos do Estado Social" (Passos Coelho), "tratando os portugueses à bruta dizendo-lhes 'Não há outra solução', indo buscar dinheiro a quem não pode", motivo por que "[precisávamos] de um Governo não socialista em Portugal" (Passos Coelho de novo).

Ora o Orçamento é só um rol de "exigências adicionais sobre aqueles que sempre são sacrificados" e ataques aos "alicerces básicos do Estado Social". O Governo "olha para rendimentos acima de pouco mais de mil euros dizendo 'Aqui estão os ricos de Portugal', eles que paguem a crise" (ainda Passos Coelho), deixando de fora, por lapso, as grandes fortunas e os 7 mil milhões de dividendos que por aí se distribuem anualmente.

O único dos "25 mais ricos" que pagará a crise é o mais rico deles, o trabalhador Américo Amorim, que irá esfalfar-se mais meia hora por dia sem remuneração (por isso me pareceu vê-lo, de cartaz na mão, no meio dos "indignados"). Felizmente emprega na sua Corticeira 3 300 outros trabalhadores, que irão dar-lhe 1 650 horas diárias de trabalho gratuito, equivalentes a 206 trabalhadores de borla. Poderá assim despedir 206 dos que não se contentam com ter trabalho e ainda querem salário.

2011-10-18

*

Mãos ao ar!

No país que já era o mais desigual da Europa Ocidental, o que o Governo de Passos Coelho faz, com o OE para 2012, é um verdadeiro assalto fiscal às classes médias ("suicídio assistido" lhe chama o economista e professor do ISCTE Sandro Mendonça) e aos mais pobres, enquanto poupa aos sacrifícios "para todos" bens de luxo como jóias, casas sumptuosas ou carros de alta cilindrada; as próprias subvenções vitalícias aos políticos escapariam se alguns media, JN incluído, não tivessem denunciado ontem o caso.

A consultora PwC fez as contas e concluiu que, se os contribuintes de baixos rendimentos verão em 2012 a carga fiscal agravada em relação a 2011, os de maiores rendimentos vê-la-ão, em contrapartida, amplamente reduzida. Citada pela edição online do "Expresso", a consultora apurou que contribuintes solteiros com rendimentos inferiores a 1500 euros irão pagar em 2012 mais 8% de IRS do que em 2011 enquanto os que auferem 3 000 ou mais pagarão... menos 8,9%. E o mesmo com os contribuintes casados: rendimentos até 2 500 euros (casais onde só um ganha) vêm agravado o IRS, ao passo que rendimentos de, por exemplo, 6 000 euros pagarão... menos 5,2%; e, do mesmo modo, casais com dois titulares a ganhar até 2 000 euros pagarão mais e os que ganharem acima disso pagarão menos.

Já toda a gente tinha percebido mas é sempre instrutivo verificar que os especialistas (e os números) corroboram o sentimento geral.

2011-10-19 

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Um regime político adequado (“que se lixem as eleições!”) a uma economia de saque

  

Relembrar o governo de má memória de Passos Coelho/Portas que recapitalizou os bancos, sob o alto patrocínio do Presidente da República, o Silva de Boliqueime – crónica de Agosto de 2012:

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) veio fazer alguns reparos ao governo quanto às políticas seguidas ultimamente, reparos que valem quase como directivas, o que bem revela a natureza do destinatário, lacaio na verdade acepção do termo. Assim, a OCDE considera que:

o estado (governo) deve aumentar os salários dos funcionários públicos altamente qualificados, aumentando o leque salarial (o que pensam os sindicatos do sector sobre o assunto?), assim como os deve reter não deixando que passem para o sector privado;

a falta de produtividade está ligada aos “baixos níveis de educação” (sobre isto o que diz o ministro Crato, que se prepara para despedir mais de 20 mil professores depois das férias?);

critica as interferências nas PPP (contudo, o estado vai assumir parte das garantias dadas pelos bancos privados portugueses junto do Banco Europeu de Investimento, ganha a banca e ganha o BEI);

o governo deve aceitar a falência de autarquias;

o alargamento da “suspensão” (roubo) dos subsídios de férias e 13º mês ao sector privado é uma “solução razoável”, (defende, por sua vez, o economista-chefe da OCDE responsável por Portugal, David Haugh – até há um responsável nesta organização pelo país!).

Estes reparos completam e reforçam as imposições do memorando da troika, ou seja, austeridade a dobrar e reformas profundas de todo a estrutura económica e administrativa do país. O Código do Trabalho que vai entrar em vigor, hoje, dia 1 de Agosto, irá baixar os custos do trabalho em 5% e aumentar o desemprego. Objectivo: Portugal, a China da Europa.

Cá dentro, os banqueiros também botam faladura sobre a inconstitucionalidade dos cortes dos dois salários aos trabalhadores do estado (os do Banco de Portugal estão isentos!) e aos pensionistas. O presidente do BPI, Fernando Ulrich, um dos banqueiros que mais opina nos media, teve o desplante de classificar a decisão do TC de "negativa", "perigosa" e "inaceitável". Logo a seguir veio Nuno Amado, o presidente do banco (BCP) que mais prejuízos apresentou, clamar que foi "uma decisão muitíssimo infeliz". Faltou conhecer a opinião de Ricardo Salgado, do omnipresente BES em todas as trafulhices ou operações financeiras menos claras, para o ramalhete ficar completo.

Que se lixem as eleições!

Os bancos não têm apenas enormes responsabilidades na crise como têm sido os maiores beneficiários da maior parte dos sacrifícios que, a pretexto dela, vêm sendo impostos ao povo português. Mas a banca (ou a classe mais parasitária da sociedade) quer mais do que a "ajuda" ao seu funcionamento, quer também uma Constituição "sua", já que a Constituição da República se revela, pelos vistos, "negativa", "perigosa", "inaceitável" e "muitíssimo infeliz" para os seus interesses. Querem um regime político à medida e esse regime não é outro senão uma democracia musculada ou um fascismo suave, ou seja, um regime onde se lixem as eleições – como desabafou o “nosso” primeiro.

Este senhor Coelho foi quem anunciou, em Janeiro, no Parlamento que 2012 seria o "ano de viragem económica para o país". Ora, o ano de 2012 tem-se mostrado que, afinal, é o ano de viragem mas para pior: o desemprego aumentou, em número dificilmente quantificável, com maior predominância para o desemprego jovem que já vai nos 45%, a receita do IVA e de outros impostos sobre o consumo no primeiro semestre do ano foi 5,2 por cento inferior à do mesmo período de 2011 e, ao contrário da lógica que esteve subjacente ao pedido de “ajuda” à troika, a dívida pública portuguesa cresceu mais 26 mil milhões em relação a Março de 2011.

Com certeza que este não é o “bom caminho” para o povo português, tem sido é o bom caminho para os banqueiros que vão embolsar metade do montante dos 78 mil milhões de euros (a outra metade é para o serviço da dívida) e ainda se queixam que estão a pagar juros elevados, como não deixou de se lamentar o chefe mafioso do BES ainda há pouco.

O governo vendido do PSD/CDS/PP comprometeu-se, depois da visita ao nosso país do presidente do BEI, Werner Hoyer, a assumir a parte do esforço dos bancos comerciais nas parcerias público-privadas, aliviando-os assim desse encargo, com a alegação de que seria também vantajoso para os cofres do estado já que permitirá, não se sabe como, reduzir os encargos com o financiamento das PPP. A questão estará mais no facto do BEI ser um dos principais financiadores de Portugal, com uma exposição superior a 25 mil milhões de euros, havendo assim interesse e especialmente numa altura de crise e retracção do crédito, que seja o estado a arcar com mais esta responsabilidade. Se o ano de 2012 está a ser mau para o povo português, embora excelente para os banqueiros, o ano de 2013 será péssimo para os mesmos de sempre.

O ano de 2013 será um ano de aumento inaudito dos sacrifícios para os trabalhadores e para o povo português e a revolta não será uma surpresa, e é a pensar nesta forte eventualidade que sectores da classe dominante se vêm demarcando das políticas do governo, assim se compreende as reacções de algumas figuras importantes da hierarquia da igreja. O apoio ao governo celerado PSD/CDS/PP está a restringir-se cada vez mais à pequena elite dos banqueiros e a algumas franjas da burguesia mais reacionária e mais dependente das ajudas do estado, ou seja, este governo é cada vez mais o governo do sector rentista da burguesia, a parcela mais parasita e inútil da classe dominante, e para se poder manter terá de transformar esta democracia numa democracia ainda mais formal e repressiva.

É neste contexto que se deve compreender as palavras do senhor Coelho e não no sentido de que está a fazer tudo a bem do” país”, sacrificando para isso a popularidade eleitoral. O “país” para o governo do senhor Coelho e para os partidos e direita é o país dos banqueiros, e o senhor Coelho está disposto a tudo fazer para os salvar, mesmo à custa da sua pessoa que será, mais cedo do que se espera, colocada na prateleira, que talvez nem seja tão dourada como a do senhor Pinto de Sousa. É o que se pode dizer de um idiota político, um idiota útil para os banqueiros, mas que não deixa de ser menos perigoso para o povo português, e é gente desta estirpe que geralmente traz o fascismo. Tudo sob o alto patrocínio do Presidente da República, o senhor Silva de Boliqueime.

Este governo deve ser derrubado quanto antes e o seu tempo de vida não deverá ir muito para além das férias, chegar até ao fim do ano será mau para nós, povo português. Trata-se de uma urgência.

01 de Agosto 2012

sábado, 10 de fevereiro de 2024

A polícia insurrecta e o fim do estado de direito

Os polícias irão desencadear um golpe de estado e afastar de vez o PS do governo ainda antes das eleições do dia 10 de Março? Ou, melhor ainda, impedir que as eleições se realizem sequer, por desnecessárias, criando um governo com a AD e o Chega de nomeação presidencial? Este é o ponto da situação, graças ao oportunismo político do PS de querer controlar a PJ e o SIS com uma prebenda discriminatória em vez de um salário base digno, como todos os funcionários públicos. O governo mal dirigido por Costa, outra coisa não seria de esperar, abriu a caixa de pandora: os agentes da PSP e da GNR (que não é precisamente uma polícia) também se acham com o direito ao bónus, a seguir, e caso o consigam, os militares, que são todos mercenários e não conscritos, também virão reivindicar o mesmo, já que ir para a guerra é um sério e real risco.

Estabilidade à la carte

Estamos a assistir à degradação, já em passo de marcha acelerada, da democracia saída do golpe militar de 25 de Abril, que o rei/presidente Marcelo fez o favor de dar uma mãozinha com a demissão do governo PS/Costa a fim de o substituir por um outro formalmente de direita, tendo já prometido que poderá proceder a terceira dissolução da Assembleia da República se assim o entender… a instabilidade, tão esconjurada pelos estrénuos defensores do “estado de direito e democrático”, são os que mais se esforçam para a instituir. Se a economia não reanimar, parece que não irá acontecer este ano de 2024 e para o ano as incertezas são mais que muitas, então estará instalado o ambiente propício à intriga, traições e baixa política dentro do regime, como já se está a assistir, e, muito possivelmente, ao golpe de estado que salvificamente irá colocar a malandragem na ordem. Os populismo servem para este fim.

Na campanha eleitoral, que vai em fase avançada e com os debates coreografados ao ínfimo pormenor, fala-se dos engodos para caçar o voto aos incautos e aos ainda crédulos, aumentos salariais e diminuição de IRS e IRC, mas não se discute questões importantes, verdadeiramente cruciais para o cidadão comum ou para o próprio regime, para além das mais imediatas, salários, saúde, educação e segurança social. Por que não falar da conscrição ou voluntariado para o serviço militar? Justiça e segurança, democratização da justiça e das polícias, estruturas que foram herdadas do fascismo e que continuam incólumes ou quase, por que razão o poder judicial é o único que não é escrutinado pelo voto do cidadão? E o que pensam os partidos sobre estes temas? Ou como combater a corrupção de forma e eficaz, para além de declarações vagas e ocas, como acabou de fazer o chefe do PSD, “esquecendo-se” que, caso o combate fosse sério e desejado, mais de metade dos dirigentes do seu partido, incluindo muito provavelmente ele próprio, não escaparia da prisão?

Sobre as reivindicações policiais, ainda nenhum partido da oposição, incluindo os mais de direita, se comprometeu a satisfazê-las tal como são apresentadas pelas organizações sindicais respectivas se por hipótese venha a ser governo, quanto muito qualquer deles fica pela promessa apaziguadora e politicamente correcto do “diálogo”. O PS, escudando-se na “falta de legitimidade” do governo por se encontrar em gestão, dá agora a entender que nada irá prometer, mas, conhecendo-se o oportunismo deste partido, ninguém se admire que à última da hora deixe a porta entreaberta ao acordo, porque serão mais uns poucos milhares de votos caso vença as eleições e venha a formar de novo governo. A intransigência será então mais de forma do que de facto.

O controlo das polícias e a luta pelo poder

Por carga de água os partidos se “preocupam” tanto com as reivindicações policiais? O cerne da questão encontra-se, para além de poderem vir arrecadar mais alguns votos (aqui encontram-se até os partidos da esquerda dita “mais radical”) ou do desejo de infernizar a vida ao PS dificultando-lhe a vitória no próximo dia 10 de Março, na ansia de controlo das forças policiais. O PS controla a PJ e o SIS, faltar-lhe-á a PSP e a GNR, estas por sua vez estarão a ser usadas pelo PSD e restante direita para a desestabilização e para enfraquecer o PS, daí este partido à última da hora e de forma inesperada, como já referimos, venha a tirar uma carta da manga e resolva a questão a seu favor. Para já assistimos a um braço de ferro, talvez mais aparente do que real (a política nacional encontra-se em nível cada vez mais rasteiro e mais mediático do que nunca) entre o governo e as associações representativas das polícias. Em suma, é a manipulação das forças policiais para a disputa partidária pelo pote e, em situação de tensão social, como instrumento dócil na repressão dos trabalhadores.

Entretanto, vai-se assistindo à refrega entre o governo, via ministro da Administração Interna, e os sindicatos das polícias, com o endurecimento das posições de ambos os lados. O ministro acusa os sindicatos de quererem “boicotar as eleições” e “colocar em causa o estado de direito”, e os sindicatos, via sindicalista belicoso, indignam-se com as palavras do dito e, não fazendo por menos, ameaçam com processo em tribunal por “difamação” contra ministro, primeiro-ministro e “todos os comentadores” que apoiaram as palavras governamentais. Relembrar que o sindicalista em causa, aparentemente fazendo eco de opinião mais geral, foi mais longe na ameaça, que mais tarde teve a arte (talvez aconselhado pelo advogado) de emendar para “alerta”, de que as reivindicações não sejam satisfeitas facilmente se poderá chegar a uma situação de descontrolo, com a eventual possibilidade de os denominados “movimentos inorgânicos” virem a dirigir o processo. Os sindicatos dos polícias, ao que parece, fazem o mal e caramunha.

Fica claro aos olhos de qualquer cidadão que estes protestos surgem em momento mais que oportuno, e em política as coisas nunca surgem por acaso, se acontecem é porque foram planeadas. Estas lutas, agricultores, polícias, a que se juntam já as polícias municipais e bombeiros sapadores e voluntários, tantos uns e outros directamente dependentes dos municípios, custe o que custar, visam malhar no PS. Só que há um pequeno problema, o PS ainda é o partido que melhores garantias dá a Bruxelas/Alemanha na aplicação das directivas impostas pelo grande capital financeiro europeu. E coisa que os partidos, que andam entretidos em debates televisivos a endrominar o eleitor, devem entender é que quem manda na chafarica à beira-mar plantada ainda é Bruxelas; o resto será apenas conversa fiada, como dizem os brasileiros, para boi dormir.

Cartoon de Cristina Sampaio (Facebook) - Cristina Sampaio: “Recebi ameaças e mensagens de ódio às dezenas por causa deste cartoon. O sentido de humor está a perder-se completamente” … “Nós estamos a criticar o racismo na polícia. Estamos a chamar a atenção para um problema”.  “O Sindicato Nacional da Carreira de Chefes (SNCC) da Polícia de Segurança Pública (PSP) apresentou uma queixa-crime contra os autores de um cartoon sobre polícia e racismo, e também contra a RTP, por o ter emitido.” (Agência Lusa, 08.07.2023). … que não deu em nada.

Economia e o descontentamento social

A situação económica do país não é tão risonha como o PS a pinta, não nos cansamos de enfatizar este ponto, e é o estado do capitalismo nacional, ou seja, a situação dos lucros da burguesia indígena que, em última análise, determina a estabilidade da política, cada vez mais rasca, cá do burgo. A subida do PIB de 2,3% do PIB é enganadora porque a queda do dito foi brutal no tempo da pandemia, a maior de toda a UE, de forma que qualquer subida mais significativa será sempre grande em termos percentuais. A pobreza tem aumentado, é grande o número das famílias de trabalhadores que reduzem as despesas, “quatro em cada dez consumidores cortaram na ida ao restaurante” ou “Portugal está entre os 11 países da OCDE que registaram quebras no rendimento real per capita dos agregados no 3.º trimestre de 2023” ou “mais de 251 mil portugueses obrigados a ter dois empregos”. A própria classe média (que vota ao centro, que tem dado a vitória ora ao PS, ora ao PSD) encontra-se em estado apressado de proletarização, os médicos e professores estão na primeira linha, o salário médio não aumenta, e facilmente é aliciada pelos ditos “populismos”.

E é para aproveitar esta tendência, e simultaneamente dando-lhe mais força, que o establishment, através do seu aparelho de propaganda (toda a imprensa mainstream) promove aos píncaros partidos e organização de extrema direita, dentro ou fora das polícias, manifestações racistas e xenófobas, como aconteceu recentemente com a pretensa “anti-islamização”, chegando-se a usar um criminoso de delito comum, já com cadastro, como dirigente e agitador. Facilmente, embora com alguma demagogia, se possa fazer a ligação entre umas e outras, sabendo-se que o racismo e a xenofobia abundam entre as forças policiais, indo um pouco para além do reflexo do que existe no seio da sociedade portuguesa, ainda moldada por meio século de fascismo e colonialismo; ideias estas que não despareceram de todo neste também meio século de democracia algo manhosa. Não deixa de ser irónico observar a ascensão do fascismo, agora mais polido e “democratizado”, cinquenta anos depois do 25 de Abril. É iniludivelmente sinal de senilidade precoce desta democracia.

As polícias serão reformáveis?

E ainda quanto às manifestações dos polícias, não deixa igualmente de ser confrangedor constatar que agentes de autoridade, para defender reivindicações corporativas, sejam os primeiros a infringir as leis, a começar pela apresentação de “oportunos” atestados médicos até ao desafio da autoridade do estado. Pergunta-se: qual agora a autoridade ou moralidade desta gente em obrigar o cidadão comum a respeitar essas mesmas leis? Os polícias, que agora saem à rua a protestar, terão alguma autoridade para reprimir alguma greve ou manifestação dos trabalhadores? Os polícias ainda estarão lembrados ou já se esqueceram da repressão e boicote às greves dos estivadores e dos camionistas de transportes de matérias perigosas? Os agentes da PSP e da GNR, que andaram a multar a torto e a direito os cidadãos que não acataram as imposições ridículas e prepotentes impostas pelo governo PS, através dos confinamentos sanitários, ainda têm coragem e vergonha de quererem por ventura o apoio do povo português? Estas são algumas das muitas questões sobre as quais os polícias e as suas organizações deverão reflectir.

O PS, ao contrário do PSD que reprimiu as manifestações dos “secos e molhados” e que terá feito algumas reformas (pequenas) quanto ao tipo de direcção da PSP e GNR, poderia aproveitar, no próximo governo, avançar com a reforma de todos os corpos policiais: quanto à GNR, poderia simplesmente dissolvê-la, o povo agradeceria, seria uma maneira de apagar da memória a triste GNR do fascismo, entretanto poderia criar uma polícia florestal e do meio ambiente, com o ressuscitar dos antigos guarda-rios; acabar com as polícias municipais, que foram paridas como protecção dos presidentes da câmaras e que não possuem uma direcção nacional e que se limitam a passar multas. Reduzia assim o número de polícias existentes no país, que inexplicavelmente rivalizam em número com as forças armadas, e aproximar o número total de polícias em Portugal da média europeia, que são 300 por 100 mil cidadãos e não os actuais 450. Há polícias a mais no país, mas há médicos, professores e enfermeiros, e outros técnicos necessários ao desenvolvimento social e económico do país, a menos.

Os economistas do sistema dizem que os trabalhadores portugueses têm fraca produtividade, justificando assim os baixos salários praticados entre nós, e então o que dizer da produtividade dos cerca cem mil polícias e militares de um país, um dos mais pobres de toda a União Europeia, que nem está em guerra com nenhum outro? Só se a guerra é contra os trabalhadores e o povo português?

Foto (CM) – Idoso a descansar depois de ter ido buscar comida a uma cantina social e que a PSP, depois da polémica surgida no Facebook, nega que o tivesse multado, mas sim dois homens que se encontravam perto sem máscara e sem distanciamento social. No entanto, o balanço do estado de emergência (Fevereiro de 2021): “Mais de 13 mil contraordenações levantadas desde Janeiro, mais que em todo o ano de 2020”, “PSP abre inquérito por dúvidas no uso da força em ação policial no Barreiro - A intervenção policial registou-se devido a um ajuntamento de pessoas a consumir bebidas alcoólicas na via pública”, “Crimes, Figueira da Foz: PSP deteve homem sem máscara”, “PSP multa surfista resgatado na praia em Cascais”, “GNR encerrou restaurante em Ílhavo com cinco pessoas no interior”, “Brigadas covid da PSP: 810 pessoas multadas em 48 horas, 92 por não terem máscara”. 

Imagem de destaque: “Policial português agride fotógrafa da AFP” (Patricia de Melo Moreira, fotojornalista da Agência France-Press) 

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quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

O Atentado Contra o Rei de Portugal

 

Artigo escrito por Lenine a propósito do atentado perpetrado contra o rei D. Carlos e o príncipe herdeiro, publicado no jornal clandestino Prolétari a 03 de Março de 1908, revelando o significado político deste acto conspirativo e a situação de extrema decadência e isolamento político em que se encontrava a monarquia portuguesa.

A imprensa burguesa, mesmo a de tendência mais liberal e mais “democrática”, não poderia deixar de cair na moral dos Cem-Negros (1) nas suas considerações sobre o homicídio do aventureiro português.

Veja-se, por exemplo, o que a propósito do assunto diz o enviado especial de um dos melhores jornais democráticos burgueses da Europa, o “Jornal de Frankfurt”. Começa ele por descrever, num tom meio sério meio prazenteiro, de que maneira a matilha dos jornalistas, tal como cães farejando a presa, se precipitaram sobre Lisboa a partir do anúncio dessa notícia sensacional. “Encontrei-me de súbito” – escreve o nosso personagem – “numa carruagem-cama em companhia dum célebre jornalista de Londres, que se pôs logo a perorar sobre a sua experiência em tais matérias. De resto, era por virtude dessa mesma experiência que ele tinha já sido enviado a Belgrado, pelo que podia muito justamente considerar-se como um correspondente especial de casos de regicídio”.

Sim, porque o que acaba de acontecer ao rei de Portugal é, com toda a propriedade, um “acidente de trabalho”...

Mas que possa haver correspondentes profissionais para descrever as “desventuras” profissionais de Suas Majestades, os reis, isso não deve de modo algum surpreender-nos...

Porém, por mais obsessivo que seja em tais correspondentes o aspecto sensacionalista, vulgar e barato, a verdade nem por isso deixa de abrir frequentemente o seu caminho. “Um negociante, com loja no mais movimentado bairro comercial da cidade” contou ao correspondeste do “Jornal de Frankfurt” a coisa seguinte:

– “Desde que tive conhecimento do sucedido, pus a bandeira a meia-haste. Mas imediatamente os meus clientes e as pessoas das minhas relações acorreram a interpelar-me sobre se eu tinha perdido o juízo ou se queria liquidar as minhas amizades. Perguntei-lhes se eles não achavam que as pessoas, de qualquer maneira, experimentavam um sentimento de comiseração. Você, meu caro senhor, não pode imaginar as coisas que eu ouvi! Não tive outro remédio senão esconder a bandeirinha”.

Ao reproduzir este relato, o correspondente liberal especulava da seguinte maneira:

“Um povo por natureza tão bondoso e tão gentil como o povo português passou aparentemente por uma péssima escola, para que tivesse podido aprender a odiar tão sem piedade e até ao túmulo. E se isto é a verdade – e é indubitavelmente a verdade, pelo que, se eu a calasse, estaria a deformar uma verdade histórica –, se não são apenas semelhantes manifestações mudas que condenam a vítima coroada. Se qualquer pessoa pode escutar a cada passo, mesmo entre os defensores da ordem, injúrias dirigidas ao morto, é natural que se queira ir ao fundo deste raro encadeamento de circunstâncias que tornaram a tal ponto anormal a mentalidade do povo. Porque um povo que denega mesmo à morte o velho direito sagrado de resgatar todos os pecados terrestres, ou já degenerou moralmente ou está em presença de condições susceptíveis de provocar um sentimento incomensurável de ódio, capazes de obscurecer toda a tentativa de uma apreciação justa e imparcial”.

Oh, senhores hipócritas liberais! Por que não proclamais vós, então, a degenerescência moral desses sábios e escritores franceses que continuam a adiar e a insultar freneticamente não só os homens que fizeram o Comuna de 1871, mas inclusive os que fizeram 1793; não apenas os combatentes da revolução proletária, mas mesmo os combatentes de revolução burguesa? Que o povo suporte com bonomia todos os excessos, infâmias e brutalidades de que é vítima por parte dos meliantes coroados, eis o que parece “normal” e “moral” aos olhos dos “democratas” lacaios da burguesia “actual”.

De outro modo – continua o correspondente (quer dizer, de outro modo que não em razão de condições excepcionais) – “não poderia compreender-se o facto de que um jornal monárquico, logo sobre o acontecimento, use para falar das vítimas populares inocentes palavras impregnadas de um sentimento de tristeza que não usa para falar do próprio rei. Assiste-se desde já à nítida criação de legendas que envolverão os assassinos numa auréola de glória. Enquanto que, em quase todos os atentados, os partidos políticos se apressam geralmente em desembaraçar-se dos assassinos, os republicanos portugueses não dissimulam a honra e glória que sentem por que tenham saído das suas fileiras os mártires e os heróis do 1º de Fevereiro”...

O democrata burguês, sob o efeito de um zelo excessivo, mostra-se pronto a qualificar de “legenda revolucionária” o respeito que os cidadãos portugueses experimentam por aqueles que se sacrificaram para fazer desaparecer um rei que escarnecia da Constituição!

O correspondente de um outro jornal burguês, o “Corriere della Sera” de Milão, relata a ferocidade da censura portuguesa depois do regicídio. O governo não deixa passar os telegramas das agências noticiosas. Vê-se que os ministros e os reis, afinal, não se distinguem absolutamente nada por aquela “bonomia” que os honestos burgueses tanto gostariam de ver nas massas populares! Pois se é a guerra, utilizemos métodos militares – raciocinam com correcção os meliantes portugueses que ocuparam o lugar do rei assassinado. As dificuldades de comunicação não são inferiores às do tempo de guerra. É-se obrigado a expedir as notícias por uma outra via que não a telegráfica, primeiro pelo correio até Paris (talvez para um endereço particular) e, dai fazê-las seguir depois para Milão. “Mesmo na própria Rússia – escreve o correspondente a 7 de Fevereiro – a censura nunca foi, ainda que nos períodos revolucionários mais ardentes, tão apertada quanto o é em Portugal na hora actual”.

“Certos jornais republicanos – dá a saber o mesmo correspondente a 9 de Fevereiro – escrevem hoje, dia dos funerais do rei, tais coisas que eu definitivamente não ouso reproduzir no meu telegrama”.

A comunicação do dia 8 de Fevereiro, chegada ao seu destino já depois da correspondência precedente, reproduzia no entanto o que o jornal “O País” escrevia a propósito dos funerais:

“São levados hoje a enterrar os restos mortais de dois monarcas, vã poeira de uma monarquia em ruínas, monarquia que só se tem mantido pelos privilégios e pela traição, e que através dos seus crimes desonrou e manchou dois séculos da nossa História”.

“Evidentemente, é um jornal republicano que escreve isto – esclarece o correspondente – mas o aparecimento de um artigo comportando semelhantes termos no dia das exéquias do rei, é suficientemente eloquente”.

Por nossa parte, limitar-nos-emos a salientar que há apenas uma única coisa a lamentar: o facto de que o movimento republicano em Portugal não tenha, de modo suficientemente resoluto e público, feito justiça em relação a todos os patifes. Lastimamos que o assassinato do rei de Portugal testemunhe ainda a existência manifesta dum traço de terror conspirativo, isto é, impotente, que pela sua própria natureza não permite atingir o seu objectivo final, enquanto o terror autêntico, nacional, verdadeiramente regenerador, aquele terror que tornou a revolução francesa célebre, se revelou por agora extremamente fraco. Não é impossível, porém, que o movimento republicano português venha ainda a adquirir uma grande amplitude. As simpatias do proletariado socialista sempre irão para o lado dos republicanos contra a monarquia. Todavia, não se conseguiu até agora em Portugal mais que assustar a monarquia pelo assassinato de dois monarcas, quando a questão está em aniquilá-la.

Em todos os parlamentos da Europa, os socialistas exprimiram, cada um à sua maneira e na medida das suas possibilidades, a sua simpatia pelo povo e pelos republicanos portugueses, assim como os representantes das classes dirigentes expressaram o seu desgosto, reprovaram o assassinato do aventureiro e comunicaram a sua simpatia aos sucessores dele. Certos socialistas expuseram sem ambiguidades a sua opinião no seio dos parlamentos, e outros abandonaram as salas das sessões no momento em que eram proferidas declarações de simpatia para com a monarquia “atingida na sua carne”. No parlamento belga, Vandervelde (2), escolheu uma via “intermédia”, que é a pior, obrigando-se a dizer que honrava “todos os mortos”, isto é, tanto o rei como os assassinos. Estamos convencidos que Vandervelde será, entre os socialistas do mundo inteiro, o único a proceder assim.

A tradição republicana enfraqueceu-se consideravelmente entre os socialistas da Europa. Compreende-se que assim seja e, até certo ponto, justifica-se, precisamente na medida em que a proximidade da revolução socialista retira todo o significado prático à luta por uma república burguesa. Não obstante, sucede frequentemente que o abrandamento da propaganda republicana não tem como contrapartida o reforço da aspiração à vitória total do proletariado, mas sim um abaixamento da compreensão das tarefas revolucionárias da classe operária em geral. Não era sem fundada razão que Engels, ao criticar em 1891 o Projecto de Programa de Erfurt mostrava, com todas as suas últimas energias, aos operários alemães a importância da luta pela República, a necessidade de que esta luta se inscrevesse igualmente na ordem do dia do proletariado na Alemanha (3).

Quanto a nós, na Rússia, a luta pela República tem um alcance prático imediato. Só os mais desprezíveis dos oportunistas pequeno-burgueses, do género dos socialistas-populistas ou do “social-democrata” Malichevski (consultar, a este propósito, o “Prolétari” (4) nº 7) podiam extrair da experiência da revolução russa a conclusão de que a luta pela República tenha sido na Rússia relegada para segundo plano. Muito pelo contrário, a experiência da nossa revolução provou precisamente que a luta pelo aniquilamento da monarquia está na Rússia indissoluvelmente ligada à luta pela terra para os camponeses e pela liberdade para todo o povo. Por seu lado, a experiência da contra-revolução russa precisamente provou que, se a luta pela liberdade não tiver por alvo a monarquia, não chega sequer a ser uma luta, mas cobardia e inconsistência pequeno-burguesas ou, para dizer tudo e sem rodeios, um logro do povo por parte dos patifes do parlamentarismo burguês.

Notas:

1) Cem-Negros – bandos monárquicos criados na Rússia pela polícia czarista, destinados a combater o movimento revolucionário. Os Cem-Negros assassinaram operários e outros revolucionários das massas, atacaram intelectuais progressistas e organizaram perseguições contra os judeus.

2) Emilio Vandervelde (1866-1938) – revisionista e oportunista, que foi um dos dirigentes do Partido Operário belga e presidente do bureau político da II Internacional. Durante a Primeira Guerra Mundial imperialista defendeu posições social-chauvinistas e fez parte do Governo burguês da Bélgica.

3) Ver a obra de Engels “Crítica do Projecto de Programa Social-democrata de 1891” e a obra de Marx e Engels “Crítica dos Programas de Gotha e de Erfurt”.

4) Prolétari (O Proletário) – jornal clandestino bolchevique, órgão central do Partido Operário Social-democrata Russo, fundado e dirigido por Lenine. O artigo de Lenine “O Atentado Contra o Rei de Portugal” saiu no número 22, segunda série, de 3 de Março de 1908, numa altura em que o jornal era impresso em Genebra, na Suíça, e, depois introduzido na Rússia. Por essa época, Lenine vivia no exílio em Genebra.