quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

O ALIENISTA

 

Por Machado de Assis

… - Nada tenho que ver com a ciência; mas se tantos homens em que supomos juízo são reclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado não é o alienista?

Plus Ultra!

Era a vez da terapêutica. Simão Bacamarte, ativo e sagaz em descobrir enfermos, excedeu-se ainda na diligência e penetração com que principiou a tratá-los. Neste ponto todos os cronistas estão de pleno acordo: o ilustre alienista fez curas pasmosas, que excitaram a mais viva admiração em Itaguaí.

Com efeito, era difícil imaginar mais racional sistema terapêutico. Estando os loucos divididos por classes, segundo a perfeição moral que em cada um deles excedia às outras, Simão Bacamarte cuidou em atacar de frente a qualidade predominante. Suponhamos um modesto. Ele aplicava a medicação que pudesse incutir-lhe o sentimento oposto; e não ia logo às doses máximas, -graduava-as, conforme o estado, a idade, o temperamento, a posição social do enfermo. As vezes bastava uma casaca, uma fita, uma cabeleira, uma bengala, para restituir a razão ao alienado; em outros casos a moléstia era mais rebelde; recorria então aos anéis de brilhantes, às distinções honoríficas, etc. Houve um doente, poeta, que resistiu a tudo. Simão Bacamarte começava a desesperar da cura, quando teve idéia de mandar correr matraca, para o fim de o apregoar como um rival de Garção e de Píndaro.

- Foi um santo remédio, contava a mãe do infeliz a uma comadre; foi um santo remédio.

Outro doente, também modesto, opôs a mesma rebeldia à medicação; mas não sendo escritor, (mal sabia assinar o nome) não se lhe podia aplicar o remédio da matraca. Simão Bacamarte lembrou-se de pedir para ele o lugar de secretário da Academia dos Encobertos estabelecida em Itaguaí. Os lugares de presidente e secretários eram de nomeação régia, por especial graça do finado rei D. João V, e implicavam o tratamento de Excelência e o uso de uma placa de ouro no chapéu. O governo de Lisboa recusou o diploma; mas representando o alienista que o não pedia como prêmio honorífico ou distinção legítima, e somente como um meio terapêutico para um caso difícil, o governo cedeu excepcionalmente à súplica; e ainda assim não o fez sem extraordinário esforço do ministro de marinha e ultramar, que vinha a ser primo do alienado. Foi outro santo remédio.

- Realmente, é admirável! dizia-se nas ruas, ao ver a expressão sadia e enfunada dos dois ex-dementes.

Tal era o sistema. Imagina-se o resto. Cada beleza moral ou mental era atacada no ponto em que a perfeição parecia mais sólida; e o efeito era certo. Nem sempre era certo. Casos houve em que a qualidade predominante resistia a tudo; então, o alienista atacava outra parte, aplicando à terapêutica o método da estratégia militar, que toma uma fortaleza por um ponto, se por outro o não pode conseguir.

No fim de cinco meses e meio estava vazia a Casa Verde; todos curados! O vereador Galvão tão cruelmente afligido de moderação e equidade, teve a felicidade de perder um tio; digo felicidade, porque o tio deixou um testamento ambíguo, e ele obteve uma boa interpretação, corrompendo os juízes, e embaçando os outros herdeiros. A sinceridade do alienista manifestou-se nesse lance; confessou ingenuamente que não teve parte na cura: foi a simples vis medicatrix da natureza. Não aconteceu o mesmo com o Padre Lopes. Sabendo o alienista que ele ignorava perfeitamente o hebraico e o grego, incumbiu-o de fazer uma análise crítica da versão dos Setenta; o padre aceitou a incumbência, e em boa hora o fez; ao cabo de dois meses possuía um livro e a liberdade. Quanto à senhora do boticário, não ficou muito tempo na célula que lhe coube, e onde aliás lhe não faltaram carinhos.

- Por que é que o Crispim não vem visitar-me? dizia ela todos os dias.

Respondiam-lhe ora uma coisa, ora outra; afinal disseram-lhe a verdade inteira. A digna matrona não pôde conter a indignação e a vergonha. Nas explosões da cólera escaparam-Ihe expressões soltas e vagas, como estas:

-Tratante!... velhaco!... ingrato!... Um patife que tem feito casas à custa de unguentos falsificados e podres... Ah! tratante!...

Simão Bacamarte advertiu que, ainda quando não fosse verdadeira a acusação contida nestas palavras, bastavam elas para mostrar que a excelente senhora estava enfim restituída ao perfeito desequilíbrio das faculdades; e prontamente lhe deu alta.

Agora, se imaginais que o alienista ficou radiante ao ver sair o último hóspede da Casa Verde, mostrais com isso que ainda não conheceis o nosso homem. Plus ultra! era a sua divisa. Não lhe bastava ter descoberto a teoria verdadeira da loucura; não o contentava ter estabelecido em Itaguaí o reinado da razão. Plus ultra! Não ficou alegre, ficou preocupado, cogitativo; alguma coisa lhe dizia que a teoria nova tinha, em si mesma, outra e novíssima teoria.

- Vejamos, pensava ele; -vejamos se chego enfim à última verdade.

Dizia isto, passeando ao longo da vasta sala, onde fulgurava a mais rica biblioteca dos domínios ultramarinos de Sua Majestade. Um amplo chambre de damasco, preso à cintura por um cordão de seda, com borlas de ouro (presente de uma Universidade) envolvia o corpo majestoso e austero do ilustre alienista. A cabeleira cobria-lhe uma extensa e nobre calva adquirida nas cogitações quotidianas da ciência. Os pés, não delgados e femininos, não graúdos e mariolas, mas proporcionados ao vulto, eram resguardados por um par de sapatos cujas fivelas não passavam de simples e modesto latão. Vede a diferença: -só se lhe notava luxo naquilo que era de origem científica; o que propriamente vinha dele trazia a cor da moderação e da singeleza, virtudes tão ajustadas à pessoa de um sábio.

Era assim que ele ia, o grande alienista, de um cabo a outro da vasta biblioteca, metido em si mesmo, estranho a todas as coisas que não fosse o tenebroso problema da patologia cerebral. Súbito, parou. Em pé, diante de uma janela, com o cotovelo esquerdo apoiado na mão direita, aberta, e o queixo na mão esquerda, fechada, perguntou ele a si:

- Mas deveras estariam eles doidos, e foram curados por mim, -ou o que pareceu cura não foi mais do que a descoberta do perfeito desequilíbrio do cérebro?

E cavando por aí abaixo, eis o resultado a que chegou: os cérebros bem organizados que ele acabava de curar eram tão desequilibrados como os outros. Sim, dizia ele consigo, eu não posso ter a pretensão de haver-lhes incutido um sentimento ou uma faculdade nova; uma e outra coisa existiam no estado latente, mas existiam.

Chegado a esta conclusão, o ilustre alienista teve duas sensações contrárias, uma de gozo, outra de abatimento. A de gozo foi por ver que, ao cabo de longas e pacientes investigações, constantes trabalhos, luta ingente com o povo, podia afirmar esta verdade: - não havia loucos em Itaguaí; Itaguaí não possuía um só mentecapto. Mas tão depressa esta idéia lhe refrescara a alma, outra apareceu que neutralizou o primeiro efeito: foi a idéia da dúvida. Pois quê! Itaguaí não possuiria um único cérebro concertado? Esta conclusão tão absoluta não seria por isso mesmo errônea, e não vinha, portanto, destruir o largo e majestoso edifício da nova doutrina psicológica?

A aflição do egrégio Simão Bacamarte é definida pelos cronistas itaguaienses como uma das mais medonhas tempestades morais que têm desabado sobre o homem. Mas as tempestades só aterram os fracos; os fortes enrijam-se contra elas e fitam o trovão. Vinte minutos depois alumiou-se a fisionomia do alienista de uma suave claridade.

"Sim, há de ser isso", pensou ele.

Isso é isto. Simão Bacamarte achou em si os característicos do perfeito equilíbrio mental e moral; pareceu-lhe que possuía a sagacidade, a paciência, a perseverança, a tolerância, a veracidade, o vigor moral, a lealdade, todas as qualidades enfim que podem formar um acabado mentecapto. Duvidou logo, é certo, e chegou mesmo a concluir que era ilusão; mas sendo homem prudente, resolveu convocar um conselho de amigos, a quem interrogou com franqueza. A opinião foi afirmativa.

- Nenhum defeito?

- Nenhum, disse em coro a assembléia.

- Nenhum vício?

- Nada.

- Tudo perfeito?

- Tudo.

- Não, impossível, bradou o alienista. Digo que não sinto em mim essa superioridade que acabo de ver definir com tanta magnificência. A simpatia é que vos faz falar. Estudo-me e nada acho que justifique os excessos da vossa bondade.

A assembléia insistiu; o alienista resistiu; finalmente o Padre Lopes explicou tudo com este conceito digno de um observador:

- Sabe a razão por que não vê as suas elevadas qualidades, que aliás todos nós admiramos? É porque tem ainda uma qualidade que realça as outras: - a modéstia.

Era decisivo. Simão Bacamarte curvou a cabeça, juntamente alegre e triste, e ainda mais alegre do que triste. Ato contínuo, recolheu-se à Casa Verde. Em vão a mulher e os amigos lhe disseram que ficasse, que estava perfeitamente são e equilibrado: nem rogos nem sugestões nem lágrimas o detiveram um só instante.

- A questão é científica, dizia ele; trata-se de uma doutrina nova, cujo primeiro exemplo sou eu. Reúno em mim mesmo a teoria e a prática.

- Simão! Simão! meu amor! dizia-lhe a esposa com o rosto lavado em lágrimas.

Mas o ilustre médico, com os olhos acesos da convicção científica, trancou os ouvidos à saudade da mulher, e brandamente a repeliu. Fechada a porta da Casa Verde, entregou-se ao estudo e à cura de si mesmo. Dizem os cronistas que ele morreu dali a dezassete meses, no mesmo estado em que entrou, sem ter podido alcançar nada. Alguns chegam ao ponto de conjeturar que nunca houve outro louco, além dele, em Itaguaí; mas esta opinião, fundada em um boato que correu desde que o alienista expirou, não tem outra prova, senão o boato; e boato duvidoso, pois é atribuído ao Padre Lopes, que com tanto fogo realçara as qualidades do grande homem. Seja como for, efetuou-se o enterro com muita pompa e rara solenidade.

In “O Alienista”, 2005 

Ver também: o-alienista-resumo-e-analise

segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

O sangue que revitaliza o capitalismo e a justiça de classe

 

Os temas da corrupção e da justiça têm feito os títulos principais dos jornais e as aberturas dos noticiários, rivalizando com as notícias do aumento dos casos de infecção (ou dos testes?), do aparecimento da dita “nova variante” ómicron e da vacinação de reforço dos já vacinados e das crianças que não manifestam nem morrem por covid. Todos os defensores da ordem social e dos bons costumes se esforçam por provar que a corrupção é um acessório externo ao regime político e uma excrescência nociva ao bom funcionamento da economia que, por curiosidade, assenta na maximização dos lucros dos detentores do capital, ou seja, dos ricos. E que a justiça não funciona tão bem como seria de desejar porque ainda não houve tempo nem oportunidade para se fazer as reformas necessárias, esquecendo-se que o 25 de Abril ocorreu há quase 48 anos.

A demagogia do combate à corrupção

Não deixa de ser cómico que, em plena campanha eleitoral, os partidos da oposição façam juras de ir combater a corrupção e agora que é que será feita a tão falada reforma da justiça. O PS, ainda no governo e em vésperas do encerramento do Parlamento, anunciou e parece ter aprovado legislação que nada ou pouco acrescentará ao que já existia no que concerne ao putativo combate à corrupção. E quanto à justiça, o governo continua a usar o Ministério Público, com a PGR Lucília Gago à cabeça, no interesse da sua agenda política, nomeadamente eleitoral, e no sentido de encobrir os apaniguados e perseguir os inimigos, ou que estão mais a jeito para servir de bodes expiatórios, querendo provar que até quer combater a corrupção e que a justiça também funciona. E se não é tão célere como deveria ser, é porque luta com falta de meios, não será devido a responsabilidade própria; contudo, ninguém se assume como responsável por essa dita “falta” de meios.

Será neste sentido que se pode entender que o Ministério Público tenha constituído ex-governantes do PS, Mário Lino, Teixeira dos Santos e António Mendonça, como arguidos, passado mais de 10 anos; isto é, demasiado tarde para agora poder responsabilizá-los por corrupção ou abuso de poder ou, melhor dizendo, por gatunagem contra o povo português, deixando prescrever os crimes pelos quais são acusados. Calcula-se que o desfalque terá atingido, e estimando por baixo, os 40 mil milhões de euros pelas PPP rodoviárias, que é o valor que os bancos, incluindo o BEI (Banco Europeu de Investimento) – exactamente para onde o cavaleiro da cruzada anti-corrupção Cravinho foi colocado depois de realizado o negócio –, irão receber durante algumas décadas, garantindo um juro exorbitante, muito acima do negócio do petróleo, para não dizer da droga. As auto-estradas, onde se incluem as famigeradas SCUTs que se pagavam a elas próprias, não valem, e segundo estimativa do Eurostat, um quinto desse valor. Para se questionar: de quanto foram as comissões que esses ex-governantes do governo PS/Sócrates embolsaram, incluindo este último?

A farsa do estado de “direito e democrático”

Para fazer figura e em tempo de campanha eleitoral, o governo, ao mesmo tempo que esconde e de certo modo promove a corrupção, vê-se obrigado mostrar que está de alma e coração na cruzada moralista e que a justiça, apesar de perra, ainda funciona. O que explica o espectáculo a que estamos a assistir, porque outra coisa não se trata, da detenção do bankster Rendeiro na África do Sul, depois de a justiça portuguesa o ter deixado fugir e de muitos anos de litígio na barra dos tribunais, numa lentidão mais que suspeita, e do ex-ministro dos corninhos Pinho que fica em prisão domiciliária, num caso que já se arrasta desde 2009, data dos acontecimentos que deram origem a todo o processo, embora a denúncia dos factos tenha acontecido só em 2012. O ex-ministro, que nem é homem do partido, é acusado de corrupção, branqueamento de capitais e fuga ao fisco, no âmbito do caso EDP. Para além dele, foram acusados, pelo menos inicialmente, mais dois ex-gestores da EDP, António Mexia e João Manso Neto. As rendas excessivas recebidas pela EDP, com a eventual “distorção do mercado”, e os benefícios fiscais relacionados com a venda das centrais elétricas, que foram entregues a esta empresa a preço da uva mijona, serão escandalosos e lesivos do erário público. O Ministério Público fala em 1,2 mil milhões de euros de “prejuízos” para os cidadãos e de 4,5 milhões de euros de luvas recebidas pelo ex-responsável pela pasta da economia nacional por parte da EDP e do BES. Mas não é esta a função de um ministro de um governo burguês, fazer enriquecer os grandes acionistas à custa da pobreza dos cidadãos?

Não é motivo de admiração que o ex-banqueiro e o ex-ministro se tenham manifestado indignados, por se considerarem injustiçados e estarem a ser bodes expiatórios. Vendo bem as coisas, até poderão ter alguma razão. Rendeiro era o principal acionista do Banco Privado Português, mas não era o único, tinha como companhia Paulo Guichard e Salvador Fezas Vital que, juntamente com Rendeiro, foram absolvidos do crime de burla qualificada em 2015, e algumas figuras públicas e de grande influência política. Por exemplo, Pinto Balsemão, empresário dos media e senador do regime; José Miguel Júdice, advogado e comentador político; Jaime Antunes, economista ligado aos negócios e ao futebol, entre outros. Mas o interessante é que estes últimos, para além de não terem sido acusados, ainda puderam arvorar-se em vítimas, tendo o sócio nº1 do PSD recebido do estado 4 milhões de euros de indemnização. A vigarice pôde ser feita sem ninguém reparar, nem governantes nem a pessoa mais directamente responsável por este tipo de casos, Vítor Constâncio, à frente do Banco de Portugal nessa altura e ex-secretário-geral do PS. O homem não viu, não deu por nada e, como “castigo”, até foi nomeado para vice-presidente do BCE (Banco Central Europeu). No meio de toda a máfia, mais gente deveria estar no mocho ao lado de Rendeiro. Fica-se com a sensação de que esta justiça serve mais para absolver e encobrir do que para julgar e condenar, quando se trata de figurões da política e da economia.

O bloco central da corrupção

Situação semelhante se passou com o ex-ministro, será para perguntar: então o homem estava sozinho, não havia mais ministros? E, então, o primeiro-ministro Sócrates não sabia do que se passava num dos seus ministérios mais importantes, tendo sido ele próprio que terá convidado a figura para o governo? Devemos lembrar-nos que o actual primeiro-ministro Costa era então ministro da Administração Interna e o agora ministro dos Negócios Estrangeiros, se não estamos em erro, também era ministro dos Assuntos Parlamentares e mais tarde ministro da Defesa Nacional, também não deram por nada, nada? E depois com a coligação Paf/PSD/PP, também não tiveram tempo para travar os negócios e, pelo contrário, continuaram com o processo da privatização da EDP? Operação esta realizada sobre arranjo de cambalachos e tachos, envolvendo figuras importantes do PSD (Catroga ficará célebre com o seu vencimento de 40 mil euros mensais) e com certeza despudorada corrupção; aliás, como todas as privatizações. Falar na corrupção do PS teremos forçosamente de referir a corrupção do PSD. O episódio de duas figuras de destaque, uma do PS e outra do PSD, terem dedicado prefácio a livros de Rendeiro é mais do que simbólico. João Cravinho elogia: "Chegar mais alto pelo seu próprio mérito, com toda a limpeza, é também apontar caminhos aos outros". Em outro livro, David Justino não fica atrás no encómio: "João Rendeiro conhece bem os meandros da política e dos negócios". Os dois partidos do bloco central são bandos de salteadores que se têm alternado no saque e na exploração do povo português vai quase para meio século. É tempo demais!

O fenómeno da corrupção é endémico ao sistema capitalista e aos seus regimes políticos, sendo mais notório quando estes são mais democráticos, na medida em que há mais informação disponível. E é transversal a todas as actividades económicas ou sociais. É a corrupção nas Forças Armadas, envolvendo altas patentes na Força Aérea e no Exército; é na Justiça, com juízes condenados e expulsos da magistratura, e alguns outros vão passando pelo intervalo dos pingos, não se pode agitar muita as águas por estes sítios, lá se iria a honorabilidade; é no futebol, envolvendo os principais clubes e estando em causa muitas dezenas e até centenas de milhões de euros de corrupção, fraude, branqueamento de capitais e de fuga ao fisco. E são, porque não deixa de ser corrupção e de roubo ao erário público, as dívidas fiscais dos patrões que não pagam pura e simplesmente ou vão beneficiando de uns oportunos perdões fiscais, que a própria OCDE, no seu último relatório, não deixa de chamar a atenção. É o Tribunal de Contas que alerta para “o elevado valor de receita por cobrar” e mostra-se preocupado com a sustentabilidade das finanças públicas, porque, no final do ano passado, o Fisco tinha 22 mil milhões de euros de impostos de dívidas por cobrar e já em fase avançada em incumprimento. O que representa cerca de metade dos impostos que o Estado amealha anualmente, e terá crescido 882 milhões de euros só num ano!

A elite mais rica e o povo mais pobre

Se as elites vão enriquecendo e os seus funcionários no governo as vão imitando, usando todos os truques e expedientes mesmo que pouco legais e nada legítimos, o povo português vai empobrecendo, com especial destaque para as ditas “classes médias”, geralmente suporte principal do capitalismo e dos seus regimes políticos, sejam mais ou menos democráticos. O poder de compra em Portugal caiu 2,2 pontos percentuais em 2020 face a 2019, situando-se em 76,4% da média europeia. Claro que a “pandemia” é que leva com as culpas e não o capitalismo na sua ânsia do lucro e da concentração imparável: “Quase 230 mil portugueses caíram na pobreza em 2020. Pode ser um efeito transitório da pandemia?” ou “Covid baixa rendimento de 50% das famílias trabalhadoras mais pobres” - diz a imprensa mainstream. No entanto, ninguém pode negar que: “Mais de 38 mil famílias com habitação indigna identificadas em 124 municípios" e uma população que decresceu 2% e mais idosa, porque é o Censos 2021 que o diz. Perante a euforia do ministro das Finanças de que o PIB português irá disparar em 2022 para os 5,8%, Lagarde e Centeno já vieram refrear o entusiasmo: a primeira, com a suspensão da compra de “dívida pandémica”; o segundo, responsabilizando as medias restritivas decretadas para o putativo combate da pandemia, mais concretamente a nível do turismo e das viagens. Mas a razão será outra, a crise económica irá continuar, com o excesso de produção que o capital não consegue gerir, com a subida dos juros das dívidas pública e privada, com a mais que expectável inflação, que será elevada e por tempo indeterminado, porque outra forma dos capitalistas poderem recuperar os lucros.

Enquanto as nuvens se avolumam no horizonte, a ministra promete que o “PS faz aposta 'fundamental' na subida do salário médio” e Costa promete tirar da pobreza 660 mil pessoas, objectivo da “Estratégia Nacional de Combate à Pobreza”, um dos últimos diplomas aprovados pelo governo em modo propaganda eleitoral. Para perguntar: o que andou Costa a fazer durante estes 6 anos? Aonde chega a falta de vergonha da corja socialista?

Ah! Ficou-se também a saber que o vice-almirante herói nacional da vacinação admite a sua candidatura a Belém em 2026 (cem anos do golpe fascista de 28 de Maio).

18 de Dezembro 2021

Discurso na conferência de estudantes venezianos contra o passe verde em 11 de novembro de 2021 no Ca 'Sagredo

 

por Giorgio Agamben

Para começar, gostaria de retomar alguns pontos que tentei corrigir há alguns dias para tentar definir a transformação sub-reptícia, mas não menos radical, que está ocorrendo diante de nossos olhos. Acho que devemos primeiro perceber que a ordem jurídica e política em que acreditávamos que vivíamos mudou completamente. O operador desta transformação foi, como é evidente, aquela zona de indiferença entre o direito e a política que é o estado de emergência.

Quase vinte anos atrás, num livro que tentava fornecer uma teoria do estado de exceção, descobri que o estado de exceção estava se tornando o sistema normal de governo. Como sabem, o estado de exceção é um espaço de suspensão da lei, portanto um espaço anómico, mas que se afirma estar inserido no ordenamento jurídico.

Mas vamos examinar mais de perto o que acontece no estado de exceção. Do ponto de vista técnico, há uma separação da força de lei da lei no sentido formal. O estado de exceção define, ou seja, um "estado de direito" em que por um lado a lei está teoricamente em vigor, mas não tem força, não se aplica, está suspensa e, por outro, disposições e medidas que o fazem não tem força de lei adquirir força. Pode-se dizer que, no limite, o que está em jogo no estado de exceção é uma força de direito que flutua sem a lei. No entanto, esta situação é definida - quer o estado de exceção seja considerado interno ou qualificado, em vez disso, como externo à ordem jurídica - em qualquer caso se traduz numa espécie de eclipse da lei, em que, como em um eclipse astronómico, ele persiste, mas não emana mais sua luz.

A primeira consequência é a violação daquele princípio fundamental que é a segurança jurídica. Se o Estado, em vez de disciplinar um fenómeno, intervém graças à emergência, sobre esse fenómeno a cada 15 dias ou a cada mês, esse fenómeno não responde mais a um princípio de legalidade, visto que o princípio da legalidade consiste no fato de que O Estado dá a lei e os cidadãos confiam nessa lei e na sua estabilidade.

Este cancelamento da segurança jurídica é o primeiro facto que gostaria de chamar a vossa atenção, porque implica uma mudança radical não só na nossa relação com a ordem jurídica, mas no nosso próprio modo de vida, porque envolve viver num estado de ilegalidade normalizada.

O paradigma da lei é substituído pelo das cláusulas e fórmulas vagas, como "estado de necessidade", "segurança", "ordem pública", que sendo indeterminadas em si mesmas, necessitam de alguém que intervenha para as determinar. Não se trata mais de uma lei ou de uma constituição, mas de uma força de lei flutuante que pode ser assumida, como vemos hoje, por comissões e indivíduos, médicos ou especialistas totalmente alheios ao sistema jurídico.

Acredito que nos deparamos com uma forma do chamado estado dual - por meio do qual Ernst Fraenkel, num livro de 1941 que deveria ser relido, tentou explicar o estado nazi - que é tecnicamente um estado em que o estado de exceção não é nunca foi revogado. O estado dual é um estado em que o estado normativo (Normenstaat) é acompanhado por um estado discricionário (Massnahmestaat, um estado de medidas) e o governo dos homens e das coisas é o resultado de sua colaboração ambígua. Uma frase de Fraenkel é significativa nesta perspectiva: “Para sua salvação, o capitalismo alemão precisava não de um estado unitário, mas de um estado duplo, arbitrário na dimensão política e racional na económica”.

É na linhagem desse estado dual que devemos localizar um fenómeno cuja importância não pode ser subestimada e que diz respeito à mudança na própria figura do estado que se passa diante de nossos olhos. Refiro-me ao que os cientistas políticos americanos chamam de The Administrative State, que encontrou sua teorização no recente livro de Sunstein e Vermeule (C. Sunstein e A. Vermeule, Law and Leviathan, Redeeming the Administrative State). É um modelo de Estado em que a governação, o exercício do governo, ultrapassa a tradicional divisão de poderes (legislativo, executivo, judicial) e as agências não previstas na constituição exercem funções e poderes que pertenciam aos três poderes em nome da administração e de forma discricionária constitucionalmente competente. É uma espécie de Leviatã puramente administrativo, que deve atuar no interesse da comunidade, mesmo infringindo os ditames da lei e da constituição, a fim de garantir e orientar não a livre escolha dos cidadãos, mas o que Sunstein chama de navegabilidade - isto é, na realidade, a governabilidade - de suas escolhas. É o que acontece hoje com toda a evidência, quando vemos que o poder de decisão é exercido por comissões e sujeitos (médicos, economistas e especialistas) completamente alheios aos poderes constitucionais.

Por meio desses procedimentos factuais, a constituição é alterada de uma maneira muito mais substancial do que pelo poder de revisão fornecido pelos constituintes, até que se torne, como disse um discípulo de Marx, um Papier Stück, apenas um pedaço de papel. E é certamente significativo que essas transformações sejam modeladas na estrutura dual da governança nazi e que seja talvez o próprio conceito de "governo", de uma política como a "cibernética" ou a arte de governo que precisa ser questionada.

Já foi dito que o estado moderno prospera com base em premissas que não pode garantir. É possível que a situação que tentei descrever para vocês seja a forma como essa ausência de garantias atingiu sua massa crítica e que o Estado moderno, desistindo como é evidente hoje para garantir seus pressupostos, tenha chegado ao fim de sua história, e é esse fim que talvez estejamos experimentando.

Acredito que qualquer discussão sobre o que podemos ou devemos fazer hoje deve partir da constatação de que a civilização em que vivemos agora ruiu - ou, melhor, sendo uma sociedade baseada nas finanças - faliu. Que nossa cultura estava à beira da falência geral era evidente há décadas e as mentes mais claras do século XX diagnosticaram isso sem reservas. Não posso deixar de recordar com que força e com quanta consternação Pasolini e Elsa Morante, naqueles anos sessenta que agora parecem muito melhores do que o presente, denunciaram a desumanidade e a barbárie que viam crescer à sua volta. Hoje temos a experiência - certamente não agradável, mas talvez mais verdadeira do que as anteriores - de não estar mais no umbral, mas nesta falência intelectual, ética, religiosa, jurídica, política e económica, na forma extrema que tem sido tomada: o estado de exceção em vez da lei, informação em vez de verdade, saúde em vez de salvação e medicina em vez de religião, tecnologia em vez de política.

O que fazer em tal situação? A nível individual, é claro, para continuarmos tanto quanto possível fazendo bem o que tentamos fazer bem, mesmo que pareça não haver mais razão para fazê-lo, na verdade, por esta mesma razão para continuar. No entanto, não acho que isso seja suficiente. Hannah Arendt, numa reflexão que não podemos deixar de nos sentir próximos, porque se intitulava “Sobre a humanidade em tempos sombrios”, interrogava-se «até que ponto continuamos obrigados ao mundo e à esfera pública mesmo depois de dele expulsos ( foi o que aconteceu aos judeus no seu tempo) ou tivemos que nos afastar deles (como aqueles que escolheram o que com uma expressão paradoxal se chamou “emigração interna” na Alemanha nazista)».

Acho que é importante hoje não esquecer que se nos encontramos em situação semelhante é porque fomos forçados e que, portanto, é uma escolha que permanece política em qualquer caso, mesmo que pareça estar fora do mundo. Arendt apontou a amizade como o possível fundamento para uma política em tempos sombrios. Acredito que a indicação seja correta, desde que nos lembremos que a amizade - ou seja, o fato de sentir uma alteridade na própria experiência de existir - é uma espécie de mínimo político, um limiar que une e separa o indivíduo da comunidade. Isto é, enquanto nos lembrarmos de que estamos lidando com nada menos do que tentar estabelecer uma sociedade ou uma comunidade na sociedade em todos os lugares. Ou seja, diante da crescente despolitização dos indivíduos, redescobrindo o princípio radical de uma renovada politização da amizade.

Parece-me que vocês, alunos, começaram a fazer isso criando sua própria associação. Mas vocês devem estendê-lo cada vez mais, porque a própria possibilidade de viver de forma humana vai depender disso.

Para concluir, gostaria de me dirigir aos alunos que aqui estão presentes e que hoje me convidaram para falar. Gostaria de lembrar algo que deveria ser a base de todo estudo universitário e que, por outro lado, não é mencionado na universidade. Antes de viver num país e num estado, os homens têm sua casa vital numa língua e acredito que somente se formos capazes de investigar e entender como essa casa vital foi manipulada e transformada, poderemos entender como as transformações são questões políticas e jurídicas que temos diante de nossos olhos.

A hipótese que pretendo sugerir é, ou seja, que a transformação da relação com a linguagem é a condição de todas as demais transformações da sociedade. E se não o percebemos é porque a linguagem, por definição, permanece oculta naquilo que nomeia e nos dá a entender. Como disse certa vez um psicanalista que também foi um pouco filósofo: "o que se diz fica esquecido no que se quer dizer com o que se diz".

Estamos acostumados a ver a modernidade como aquele processo histórico que começa com a revolução industrial na Inglaterra e com a revolução política na França, mas não nos perguntamos que revolução na relação dos homens com a linguagem tornou possível o que Polanyi chamou de Grande Transformação.

É certamente significativo que as revoluções das quais nasceu a modernidade foram acompanhadas, senão precedidas, por uma problematização da razão, isto é, daquilo que define o homem como um animal que fala. Ratio vem de reor, que significa "contar, calcular, mas também falar no sentido de rationem reddere, dar conta". O sonho da razão, que se tornou deusa, coincide com uma "racionalização" da linguagem e com a experiência da linguagem que nos permite dar conta e governar plenamente a natureza e, ao mesmo tempo, a vida do ser humano.

E o que é o que hoje chamamos de ciência, senão uma prática de linguagem que tende a eliminar qualquer experiência ética, poética e filosófica da palavra no falante para transformar a linguagem em um instrumento neutro de troca de informações? Se a ciência nunca pode responder à nossa necessidade de felicidade, é porque, em última análise, pressupõe não um ser falante, mas um corpo biológico enquanto mudo. E como deve ser transformada a relação do falante com sua linguagem, para que, como está acontecendo hoje, falhe a própria possibilidade de distinguir a verdade da mentira? Se hoje médicos, juristas, cientistas aceitam um discurso que renuncia a questionar a verdade, talvez seja porque - quando não eram pagos para isso - na sua língua já não conseguiam pensar - isto é, mantêm-se em suspenso (o pensamento fica travado) - mas apenas para calcular.

Naquela obra-prima da ética do século XX que é o livro de Hannah Arendt sobre Eichmann, Arendt observa que Eichmann era um homem perfeitamente racional, mas que era incapaz de pensar, isto é, de interromper o fluxo do discurso que dominava sua mente e que ele não podia questionar, mas apenas executar como uma ordem.

A primeira tarefa que temos pela frente é, portanto, redescobrir uma relação nascente e quase dialetal, isto é, poética e pensante com a nossa linguagem. Só assim poderemos sair do impasse que a humanidade parece ter tomado e que provavelmente levará à extinção - se não física, pelo menos ética e política. Redescobrindo o pensamento como um dialeto impossível de formalizar e formatar.

 https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-intervento-al-convegno-degli-studenti-veneziano- 


domingo, 5 de dezembro de 2021

A Bancarrota e o fascismo podem estar ao virar da esquina

 Albino engolidor de espadas num carnaval - Diane Arbus

 O estado de calamidade

O governo PS/Costa depois de ter sido demitido e ficando em modo de gestão ainda teve fôlego para decretar o estado de calamidade, aproveitando a Lei de Bases da Protcção Civil, mas que vai muito mais longe do que esta lei permite. Instituiu-se um novo estado de emergência, embora um pouco mais mitigado, que irá vigorar até à Primavera do ano que vem. A entrada em vigor a partir de 1 de Dezembro poderá ter algum significado, porque foi nesta data que os traidores do país, os Migueis de Vasconcelos, foram defenestrados.

Mas o mais grave foi o facto da Assembleia da República se ter demitido da sua principal função, legislar, para passar um cheque em branco ao governo para este legislar como bem entender, com a alegação do combate à “quinta vaga” da pandemia e “a bem da saúde” dos portugueses. O aval foi aprovado, como seria evidente, pelos votos do próprio PS e de uma excrescência “não inscrita”, os pro-fascistas, numa de democracia que lhes proporciona as devidas circunstâncias, foram os únicos que se opuseram, as restantes “forças” políticas, como sói dizer-se, manifestaram somente a fraqueza, aprovando pela abstenção. 

O governo, pelo menos até à tomada de posse do próximo, irá legislar em ditadura pela razão da dita “casa de democracia” ter encerrado e, com a agravante, depois de se demitir do seu poder. Será mais do que um governo de "gestão", um governo com poderes reforçados e de inteira confiança, a ocasião obriga, do PR Marcelo.

É o próprio bastonário da Ordem dos Advogados, pessoa que poderá sofrer de algum conservadorismo, que logo alertou para a possível inconstitucionalidade da medida de estado de calamidade. “O estabelecimento de restrições ou mesmo suspensões dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, através de simples resoluções do Conselho de Ministros” e “que nem sequer são sujeitos a promulgação pelo Presidente da República” poderão ser inconstitucionais pela razão de que “o art. 19º, nº1, da Constituição refere que “os órgãos de soberania não podem, conjunta ou separadamente, suspender o exercício dos direitos, liberdades e garantias, salvo em caso de estado de sítio ou de estado de emergência, declarados na forma prevista na Constituição”.

Ora, este atentado aos direitos e liberdade dos cidadãos tem sido recorrente e poderá ser considerado o “novo normal”, que muita gente temerosa vai aceitando, massacrada pela propaganda da imprensa, nomeadamente a televisiva. Tivemos o estado de calamidade durante todo o Verão, com uma leve suspensão parcial depois de Setembro, para agora continuar a pretexto do aumento desmesurado de “novas infecções”, que na realidade são mais “infecções” de testes PCR+ do que propriamente de doentes. Agora, já pouco interessa falar do número de mortes, mesmo que estas sejam resultantes de outras doenças, mas fazer render os números fictícios que dependem mais do número efectivo de testes realizados diariamente: cerca de 118 mil, ou seja, mais do dobro dos realizados no mesmo período do ano passado. O número de casos de “infecção” (não de doença efectiva) depende unicamente do número de testes realizados e não devido a um agravamento real da pandemia. O facto de cerca de 90% da população se encontrar vacinada também pouco releva. A medida é abertamente política.

O fascismo ao virar da esquina pela mão da social-democracia

O objectivo desta 5ª vaga do medo é dobrar a vontade de resistência dos trabalhadores e obnubilar o raciocínio de qualquer pessoa, e a dita luta contra a pandemia é o melhor argumento. O constante noticiar do número de casos pela Europa e o aparecimento da “nova variante” Ómicron (como se uma das principais características dos vírus não fosse a sua capacidade de se mutar rapidamente, e então os coronavírus são os mais ágeis, razão pela qual ainda não se ter erradicado os coronavírus da vulgar gripe e apesar de haver vacinas há mais de dez anos), é precisamente criar um fascismo brando, já denominado de fascismo sanitário.

A notícia de que alguns países do centro da Europa, Áustria e Alemanha, precisamente onde nasceu e medrou o nazismo e que nunca foi completamente erradicado no pós-guerra, apenas ficou em banho-maria, irão tornar a vacina obrigatória a partir de 1 de Fevereiro. Medida que deve ser entendida, não somente como uma forma de aumentar a venda das vacinas (cujas comissões são mais que cobiçadas por todos os envolvidos no negócio, desde Comissão Europeia a governos locais e outros lóbis do negócio da Big Pharma), mas para impor o já referido “novo normal”.

E por que só em Fevereiro? É porque se teme a reacção popular contra uma medida que é essencialmente política, pouco ou nada sanitária, e entretanto vai-se apalpando o terreno, que já mostrou que não estará muito pelos ajustes, com as grandes manifestações ocorridas recentemente. A perspectiva de uma guerra civil na Europa é mais que uma hipótese, sendo um reflexo e simultaneamente um factor de aceleração da implosão da própria União Europeia. Num tempo em que nunca se acumularam como agora os factores de um confronto militar entre os principais blocos capitalistas na Europa e no mundo, a hipótese não é descabida.

O fascismo está a ser instituído a pretexto da pandemia e a pequena-burguesia, com mais medo da revolução comunista do que do fascismo e não dando ainda conta de que a sua ruína e subsequente desaparecimento são inevitáveis em capitalismo, vai dando o apoio a estas medidas ditas sanitárias; quando chegarem as botas cardadas e os tanques já será demasiado tarde para acordar e reagir. Os partidos do establishment, e não somente o que está directamente instalado no pote, são todos responsáveis pela instalação do medo nesta primeira fase, e do fascismo puro e duro, a seguir. Marcelo ficou satisfeito com as medidas, pudera!, e, contrariando o que lhe vai na alma, desabafou recentemente que a questão da vacinação obrigatória seria (agora, porque há eleições) inadequada.

A bancarrota económica

A dívida das empresas e dos cidadãos particulares é superior à dívida pública e esta se tem aumentado ultimamente foi pelas simples razão de que o estado, através dos governos PS e PSD/CDS/PP, assumiu a dívida de muitas delas, principalmente dos bancos nacionais e estrangeiros, estes por meio da dívida soberana. Os "12 mil milhões de euros em incentivos às empresas" já prometidos pelo ministro Siza Vieira mais não serão que uma panaceia porque nem a gota de água chegam para colmatar uma dívida de cerca de 400 mil milhões de euros. Com o estado português sobre-endividado, a terceira dívida pública na UE e só ultrapassada pela da Itália e da Grécia, já não conseguirá funcionar como garantia de recapitalização da falida economia nacional. Daí a Comissão Europeia manter Portugal “sob vigilância por desequilíbrios macroeconómicos” e exija a apresentação do Orçamento de Estado pouco tempo após a tomada de posse do próximo governo.

Parece que o governo ainda em funções, mas em profundo estado de desagregação, com o ministro Cabrita a pedir agora a demissão e passado pouco tempo da ministra da saúde se ter humilhado a pedir desculpa por palavras que nem dissera perante o lóbi dos barões da classe médica, já há algum tempo que não oferecia condições para fazer respeitar os “acordos” e os ditames impostos por Bruxelas e de interesse do capital. Pelo estado de bancarrota iminente do capitalismo nacional e pelo aumentar da revolta social que já se vislumbra, com greves na rodoviárias com adesão de 100% em algumas empresas e onda de despedimentos em massa que poderá começar na Autoeuropa com ida para o desemprego de 900 trabalhadores, por força da diminuição da produção em 53.000 automóveis em 2022, um governo mais musculado será necessário. A crise capitalista é indubitavelmente uma crise de super-produção, enquanto os trabalhadores são mergulhados na privação e na pobreza.

O governo em modo campanha eleitoral anunciou o auxílio às empresas em cerca de 100 milhões de euros para aguentarem o aumento miserável, e já decretado, do salário mínimo para 705 euros mensais. No entanto, os patrões pedem (exigem) sempre mais, como o decretar do estado de calamidade, o teletrabalho foi “aconselhado” e, de imediato, mais de 60% das empresas já se manifestaram contra o pagamento das despesas do teletrabalhador. Pouco se importam, governo e patrões, de que o país seja mais precário, com um quarto dos trabalhadores a ganhar salário mínimo, sendo sobretudo as mulheres e os jovens os mais explorados. Sem perspectivas de futuro, é natural que uma parte substancial se disponha a emigrar e abandonar um país que os não acarinha, bem pelo contrário. Sem juventude e sem mão-de-obra qualificada e vivendo uma situação de grave crise económica, temos num país sem futuro, tout court, Porque a economia é capitalista e com a agravante de ser gerido por uma classe profundamente corrupta e lacaia.

Já aqui disséramos que Portugal é o país com mais perda de democracia devido à pandemia em toda a União Europeia e o que menos apoiou os cidadãos e as pequenas e médias empresas, cujo risco de falência irá redobrar com as novas restrições. E esta perda de democracia visa conseguir impor aos trabalhadores reformas que há muito o grande capital reclama, desde mais alterações nas leis do trabalho, cuja pequena reversão proposta na Assembleia da República foi chumbada pelos votos de PS e PSD, preparando uma possível reedição do famigerado bloco central, à privatização, pelo menos parcial, do SNS e da Segurança Social. Assim se percebe as palavras da ministra do Trabalho, Solidariedade e SS quanto à pretensa sustentabilidade da Segurança Social (SS) que exigirá “novas fontes de financiamento". Aqui o mote foi dado e na vizinha Espanha o governo considerado “o mais progressista da história” já avançou para a reforma que prevê cortes substanciais das pensões e a sua privatização. Bruxelas assim exige, e o capitalismo necessita de invadir e dominar todas as actividades humanas para poder sobreviver.

Jerónimo de Sousa não conseguiu conter-se e deu mais uma de ingenuidade, na melhor das hipóteses: "O PS já está a virar o bico ao prego e ainda não houve eleições". Pois, é que o PS foi criado com uma missão, a de lançar Portugal na então CEE, ou IV Reich, como se queira; ou seja, transformá-lo num simples länder, depois de ter ajudado a sabotar o princípio de revolução que se esboçara em 1974/5, continuando depois na senda de defender caninamente os interesses do grande capital financeiro. E, pelo caminho, aproveitando a sua ainda maior base social de apoio, comprar a paz social, negócio de que o PCP tem sido um bom sócio, desmobilizando as lutas dos operários e restante povo trabalhador e, por necessário, trazer pela mão o fascismo desde que esta democracia não consiga continuar a iludir os trabalhadores.

Ainda uma possível saída de governo presidencial

O trabalho de boicote às lutas de quem trabalha será sempre uma tarefa inglória, porque o agravamento das contradições desta economia que nos suga até ao tutano alimenta constantemente a revolta. Há dois escolhos contra os quais esbarram os economistas burguesas, incluindo os mais social-democratas, a inflação e a dívida pública e privada. Quanto à primeira, que eles tentam desvalorizar como temporária e pouco expressiva, apesar dos factos indicarem o contrário: “Subida de 27,4% nos preços da energia coloca a taxa de inflação na zona euro em 4,9%, o valor mais alto da série de 25 anos deste indicador”; “Preços sobem 5,6% em Espanha, a maior taxa de inflação desde 1992” e “Subida de preços na cadeia de produção vai refletir-se no cabaz”. Energia e alimentação são dois itens que farão agravar as condições de vida de forma inaudita dos trabalhadores. Em relação à dívida, aí, os tais economistas já não consegue fazer a ilusão nem disfarçar o incómodo.

Será esta situação difícil e sem solução imediata à vista que fará com que o resultado das próximas eleições de Janeiro seja incerto, e até lá muita coisa poderá acontecer. Se os resultados não deferirem muito dos de 2019, o mais provável poderá ser como solução imediata o governo de bloco central PS/PSD. Sempre instável e provisório, dependendo da dita recuperação económica e da distribuição dos dinheiros da bazuca, mas que poderá desembocar num governo de iniciativa presidencial. E tem sido neste sentido, embora o disfarce, que o PR/Rei tem apostado ultimamente.

Ninguém se admire que se adopte entre nós uma solução idêntica à encontrada na Itália, um governo não eleito, não respondendo ao Parlamento, este esvaziado de conteúdo não só de facto como de direito, e liderado por um tecnocrata de inteira confiança do Banco Central Europeu, ou seja, da alta finança europeia. E quem melhor se encontra neste momento para a função? Nada menos que um Centeno, que já declarou que as políticas do governo terão de ser escrutinados pelo BCE. Uma solução semelhante à italiana, Draghi homem de mão do maior banco de investimento do mundo Goldman Sachs e ex-presidente do BCE, e à francesa, embora eleito Macron foi funcionário querido da família mais rica do planeta, os Rothschild. E quando Marcelo sair ninguém melhor que um Américo Tomaz pós-moderno, o vice-almirante das picas, para completar o ramalhete na figura de PR que não chateie, já que o poder estará inteiramente concentrado no primeiro-ministro.

Num mundo e numa Europa à beira da guerra inter-imperialista, falta saber se o capitalismo acaba sozinho ou arrastará na derrocada toda a humanidade.