quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

O ALIENISTA

 

Por Machado de Assis

… - Nada tenho que ver com a ciência; mas se tantos homens em que supomos juízo são reclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado não é o alienista?

Plus Ultra!

Era a vez da terapêutica. Simão Bacamarte, ativo e sagaz em descobrir enfermos, excedeu-se ainda na diligência e penetração com que principiou a tratá-los. Neste ponto todos os cronistas estão de pleno acordo: o ilustre alienista fez curas pasmosas, que excitaram a mais viva admiração em Itaguaí.

Com efeito, era difícil imaginar mais racional sistema terapêutico. Estando os loucos divididos por classes, segundo a perfeição moral que em cada um deles excedia às outras, Simão Bacamarte cuidou em atacar de frente a qualidade predominante. Suponhamos um modesto. Ele aplicava a medicação que pudesse incutir-lhe o sentimento oposto; e não ia logo às doses máximas, -graduava-as, conforme o estado, a idade, o temperamento, a posição social do enfermo. As vezes bastava uma casaca, uma fita, uma cabeleira, uma bengala, para restituir a razão ao alienado; em outros casos a moléstia era mais rebelde; recorria então aos anéis de brilhantes, às distinções honoríficas, etc. Houve um doente, poeta, que resistiu a tudo. Simão Bacamarte começava a desesperar da cura, quando teve idéia de mandar correr matraca, para o fim de o apregoar como um rival de Garção e de Píndaro.

- Foi um santo remédio, contava a mãe do infeliz a uma comadre; foi um santo remédio.

Outro doente, também modesto, opôs a mesma rebeldia à medicação; mas não sendo escritor, (mal sabia assinar o nome) não se lhe podia aplicar o remédio da matraca. Simão Bacamarte lembrou-se de pedir para ele o lugar de secretário da Academia dos Encobertos estabelecida em Itaguaí. Os lugares de presidente e secretários eram de nomeação régia, por especial graça do finado rei D. João V, e implicavam o tratamento de Excelência e o uso de uma placa de ouro no chapéu. O governo de Lisboa recusou o diploma; mas representando o alienista que o não pedia como prêmio honorífico ou distinção legítima, e somente como um meio terapêutico para um caso difícil, o governo cedeu excepcionalmente à súplica; e ainda assim não o fez sem extraordinário esforço do ministro de marinha e ultramar, que vinha a ser primo do alienado. Foi outro santo remédio.

- Realmente, é admirável! dizia-se nas ruas, ao ver a expressão sadia e enfunada dos dois ex-dementes.

Tal era o sistema. Imagina-se o resto. Cada beleza moral ou mental era atacada no ponto em que a perfeição parecia mais sólida; e o efeito era certo. Nem sempre era certo. Casos houve em que a qualidade predominante resistia a tudo; então, o alienista atacava outra parte, aplicando à terapêutica o método da estratégia militar, que toma uma fortaleza por um ponto, se por outro o não pode conseguir.

No fim de cinco meses e meio estava vazia a Casa Verde; todos curados! O vereador Galvão tão cruelmente afligido de moderação e equidade, teve a felicidade de perder um tio; digo felicidade, porque o tio deixou um testamento ambíguo, e ele obteve uma boa interpretação, corrompendo os juízes, e embaçando os outros herdeiros. A sinceridade do alienista manifestou-se nesse lance; confessou ingenuamente que não teve parte na cura: foi a simples vis medicatrix da natureza. Não aconteceu o mesmo com o Padre Lopes. Sabendo o alienista que ele ignorava perfeitamente o hebraico e o grego, incumbiu-o de fazer uma análise crítica da versão dos Setenta; o padre aceitou a incumbência, e em boa hora o fez; ao cabo de dois meses possuía um livro e a liberdade. Quanto à senhora do boticário, não ficou muito tempo na célula que lhe coube, e onde aliás lhe não faltaram carinhos.

- Por que é que o Crispim não vem visitar-me? dizia ela todos os dias.

Respondiam-lhe ora uma coisa, ora outra; afinal disseram-lhe a verdade inteira. A digna matrona não pôde conter a indignação e a vergonha. Nas explosões da cólera escaparam-Ihe expressões soltas e vagas, como estas:

-Tratante!... velhaco!... ingrato!... Um patife que tem feito casas à custa de unguentos falsificados e podres... Ah! tratante!...

Simão Bacamarte advertiu que, ainda quando não fosse verdadeira a acusação contida nestas palavras, bastavam elas para mostrar que a excelente senhora estava enfim restituída ao perfeito desequilíbrio das faculdades; e prontamente lhe deu alta.

Agora, se imaginais que o alienista ficou radiante ao ver sair o último hóspede da Casa Verde, mostrais com isso que ainda não conheceis o nosso homem. Plus ultra! era a sua divisa. Não lhe bastava ter descoberto a teoria verdadeira da loucura; não o contentava ter estabelecido em Itaguaí o reinado da razão. Plus ultra! Não ficou alegre, ficou preocupado, cogitativo; alguma coisa lhe dizia que a teoria nova tinha, em si mesma, outra e novíssima teoria.

- Vejamos, pensava ele; -vejamos se chego enfim à última verdade.

Dizia isto, passeando ao longo da vasta sala, onde fulgurava a mais rica biblioteca dos domínios ultramarinos de Sua Majestade. Um amplo chambre de damasco, preso à cintura por um cordão de seda, com borlas de ouro (presente de uma Universidade) envolvia o corpo majestoso e austero do ilustre alienista. A cabeleira cobria-lhe uma extensa e nobre calva adquirida nas cogitações quotidianas da ciência. Os pés, não delgados e femininos, não graúdos e mariolas, mas proporcionados ao vulto, eram resguardados por um par de sapatos cujas fivelas não passavam de simples e modesto latão. Vede a diferença: -só se lhe notava luxo naquilo que era de origem científica; o que propriamente vinha dele trazia a cor da moderação e da singeleza, virtudes tão ajustadas à pessoa de um sábio.

Era assim que ele ia, o grande alienista, de um cabo a outro da vasta biblioteca, metido em si mesmo, estranho a todas as coisas que não fosse o tenebroso problema da patologia cerebral. Súbito, parou. Em pé, diante de uma janela, com o cotovelo esquerdo apoiado na mão direita, aberta, e o queixo na mão esquerda, fechada, perguntou ele a si:

- Mas deveras estariam eles doidos, e foram curados por mim, -ou o que pareceu cura não foi mais do que a descoberta do perfeito desequilíbrio do cérebro?

E cavando por aí abaixo, eis o resultado a que chegou: os cérebros bem organizados que ele acabava de curar eram tão desequilibrados como os outros. Sim, dizia ele consigo, eu não posso ter a pretensão de haver-lhes incutido um sentimento ou uma faculdade nova; uma e outra coisa existiam no estado latente, mas existiam.

Chegado a esta conclusão, o ilustre alienista teve duas sensações contrárias, uma de gozo, outra de abatimento. A de gozo foi por ver que, ao cabo de longas e pacientes investigações, constantes trabalhos, luta ingente com o povo, podia afirmar esta verdade: - não havia loucos em Itaguaí; Itaguaí não possuía um só mentecapto. Mas tão depressa esta idéia lhe refrescara a alma, outra apareceu que neutralizou o primeiro efeito: foi a idéia da dúvida. Pois quê! Itaguaí não possuiria um único cérebro concertado? Esta conclusão tão absoluta não seria por isso mesmo errônea, e não vinha, portanto, destruir o largo e majestoso edifício da nova doutrina psicológica?

A aflição do egrégio Simão Bacamarte é definida pelos cronistas itaguaienses como uma das mais medonhas tempestades morais que têm desabado sobre o homem. Mas as tempestades só aterram os fracos; os fortes enrijam-se contra elas e fitam o trovão. Vinte minutos depois alumiou-se a fisionomia do alienista de uma suave claridade.

"Sim, há de ser isso", pensou ele.

Isso é isto. Simão Bacamarte achou em si os característicos do perfeito equilíbrio mental e moral; pareceu-lhe que possuía a sagacidade, a paciência, a perseverança, a tolerância, a veracidade, o vigor moral, a lealdade, todas as qualidades enfim que podem formar um acabado mentecapto. Duvidou logo, é certo, e chegou mesmo a concluir que era ilusão; mas sendo homem prudente, resolveu convocar um conselho de amigos, a quem interrogou com franqueza. A opinião foi afirmativa.

- Nenhum defeito?

- Nenhum, disse em coro a assembléia.

- Nenhum vício?

- Nada.

- Tudo perfeito?

- Tudo.

- Não, impossível, bradou o alienista. Digo que não sinto em mim essa superioridade que acabo de ver definir com tanta magnificência. A simpatia é que vos faz falar. Estudo-me e nada acho que justifique os excessos da vossa bondade.

A assembléia insistiu; o alienista resistiu; finalmente o Padre Lopes explicou tudo com este conceito digno de um observador:

- Sabe a razão por que não vê as suas elevadas qualidades, que aliás todos nós admiramos? É porque tem ainda uma qualidade que realça as outras: - a modéstia.

Era decisivo. Simão Bacamarte curvou a cabeça, juntamente alegre e triste, e ainda mais alegre do que triste. Ato contínuo, recolheu-se à Casa Verde. Em vão a mulher e os amigos lhe disseram que ficasse, que estava perfeitamente são e equilibrado: nem rogos nem sugestões nem lágrimas o detiveram um só instante.

- A questão é científica, dizia ele; trata-se de uma doutrina nova, cujo primeiro exemplo sou eu. Reúno em mim mesmo a teoria e a prática.

- Simão! Simão! meu amor! dizia-lhe a esposa com o rosto lavado em lágrimas.

Mas o ilustre médico, com os olhos acesos da convicção científica, trancou os ouvidos à saudade da mulher, e brandamente a repeliu. Fechada a porta da Casa Verde, entregou-se ao estudo e à cura de si mesmo. Dizem os cronistas que ele morreu dali a dezassete meses, no mesmo estado em que entrou, sem ter podido alcançar nada. Alguns chegam ao ponto de conjeturar que nunca houve outro louco, além dele, em Itaguaí; mas esta opinião, fundada em um boato que correu desde que o alienista expirou, não tem outra prova, senão o boato; e boato duvidoso, pois é atribuído ao Padre Lopes, que com tanto fogo realçara as qualidades do grande homem. Seja como for, efetuou-se o enterro com muita pompa e rara solenidade.

In “O Alienista”, 2005 

Ver também: o-alienista-resumo-e-analise

segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

O sangue que revitaliza o capitalismo e a justiça de classe

 

Os temas da corrupção e da justiça têm feito os títulos principais dos jornais e as aberturas dos noticiários, rivalizando com as notícias do aumento dos casos de infecção (ou dos testes?), do aparecimento da dita “nova variante” ómicron e da vacinação de reforço dos já vacinados e das crianças que não manifestam nem morrem por covid. Todos os defensores da ordem social e dos bons costumes se esforçam por provar que a corrupção é um acessório externo ao regime político e uma excrescência nociva ao bom funcionamento da economia que, por curiosidade, assenta na maximização dos lucros dos detentores do capital, ou seja, dos ricos. E que a justiça não funciona tão bem como seria de desejar porque ainda não houve tempo nem oportunidade para se fazer as reformas necessárias, esquecendo-se que o 25 de Abril ocorreu há quase 48 anos.

A demagogia do combate à corrupção

Não deixa de ser cómico que, em plena campanha eleitoral, os partidos da oposição façam juras de ir combater a corrupção e agora que é que será feita a tão falada reforma da justiça. O PS, ainda no governo e em vésperas do encerramento do Parlamento, anunciou e parece ter aprovado legislação que nada ou pouco acrescentará ao que já existia no que concerne ao putativo combate à corrupção. E quanto à justiça, o governo continua a usar o Ministério Público, com a PGR Lucília Gago à cabeça, no interesse da sua agenda política, nomeadamente eleitoral, e no sentido de encobrir os apaniguados e perseguir os inimigos, ou que estão mais a jeito para servir de bodes expiatórios, querendo provar que até quer combater a corrupção e que a justiça também funciona. E se não é tão célere como deveria ser, é porque luta com falta de meios, não será devido a responsabilidade própria; contudo, ninguém se assume como responsável por essa dita “falta” de meios.

Será neste sentido que se pode entender que o Ministério Público tenha constituído ex-governantes do PS, Mário Lino, Teixeira dos Santos e António Mendonça, como arguidos, passado mais de 10 anos; isto é, demasiado tarde para agora poder responsabilizá-los por corrupção ou abuso de poder ou, melhor dizendo, por gatunagem contra o povo português, deixando prescrever os crimes pelos quais são acusados. Calcula-se que o desfalque terá atingido, e estimando por baixo, os 40 mil milhões de euros pelas PPP rodoviárias, que é o valor que os bancos, incluindo o BEI (Banco Europeu de Investimento) – exactamente para onde o cavaleiro da cruzada anti-corrupção Cravinho foi colocado depois de realizado o negócio –, irão receber durante algumas décadas, garantindo um juro exorbitante, muito acima do negócio do petróleo, para não dizer da droga. As auto-estradas, onde se incluem as famigeradas SCUTs que se pagavam a elas próprias, não valem, e segundo estimativa do Eurostat, um quinto desse valor. Para se questionar: de quanto foram as comissões que esses ex-governantes do governo PS/Sócrates embolsaram, incluindo este último?

A farsa do estado de “direito e democrático”

Para fazer figura e em tempo de campanha eleitoral, o governo, ao mesmo tempo que esconde e de certo modo promove a corrupção, vê-se obrigado mostrar que está de alma e coração na cruzada moralista e que a justiça, apesar de perra, ainda funciona. O que explica o espectáculo a que estamos a assistir, porque outra coisa não se trata, da detenção do bankster Rendeiro na África do Sul, depois de a justiça portuguesa o ter deixado fugir e de muitos anos de litígio na barra dos tribunais, numa lentidão mais que suspeita, e do ex-ministro dos corninhos Pinho que fica em prisão domiciliária, num caso que já se arrasta desde 2009, data dos acontecimentos que deram origem a todo o processo, embora a denúncia dos factos tenha acontecido só em 2012. O ex-ministro, que nem é homem do partido, é acusado de corrupção, branqueamento de capitais e fuga ao fisco, no âmbito do caso EDP. Para além dele, foram acusados, pelo menos inicialmente, mais dois ex-gestores da EDP, António Mexia e João Manso Neto. As rendas excessivas recebidas pela EDP, com a eventual “distorção do mercado”, e os benefícios fiscais relacionados com a venda das centrais elétricas, que foram entregues a esta empresa a preço da uva mijona, serão escandalosos e lesivos do erário público. O Ministério Público fala em 1,2 mil milhões de euros de “prejuízos” para os cidadãos e de 4,5 milhões de euros de luvas recebidas pelo ex-responsável pela pasta da economia nacional por parte da EDP e do BES. Mas não é esta a função de um ministro de um governo burguês, fazer enriquecer os grandes acionistas à custa da pobreza dos cidadãos?

Não é motivo de admiração que o ex-banqueiro e o ex-ministro se tenham manifestado indignados, por se considerarem injustiçados e estarem a ser bodes expiatórios. Vendo bem as coisas, até poderão ter alguma razão. Rendeiro era o principal acionista do Banco Privado Português, mas não era o único, tinha como companhia Paulo Guichard e Salvador Fezas Vital que, juntamente com Rendeiro, foram absolvidos do crime de burla qualificada em 2015, e algumas figuras públicas e de grande influência política. Por exemplo, Pinto Balsemão, empresário dos media e senador do regime; José Miguel Júdice, advogado e comentador político; Jaime Antunes, economista ligado aos negócios e ao futebol, entre outros. Mas o interessante é que estes últimos, para além de não terem sido acusados, ainda puderam arvorar-se em vítimas, tendo o sócio nº1 do PSD recebido do estado 4 milhões de euros de indemnização. A vigarice pôde ser feita sem ninguém reparar, nem governantes nem a pessoa mais directamente responsável por este tipo de casos, Vítor Constâncio, à frente do Banco de Portugal nessa altura e ex-secretário-geral do PS. O homem não viu, não deu por nada e, como “castigo”, até foi nomeado para vice-presidente do BCE (Banco Central Europeu). No meio de toda a máfia, mais gente deveria estar no mocho ao lado de Rendeiro. Fica-se com a sensação de que esta justiça serve mais para absolver e encobrir do que para julgar e condenar, quando se trata de figurões da política e da economia.

O bloco central da corrupção

Situação semelhante se passou com o ex-ministro, será para perguntar: então o homem estava sozinho, não havia mais ministros? E, então, o primeiro-ministro Sócrates não sabia do que se passava num dos seus ministérios mais importantes, tendo sido ele próprio que terá convidado a figura para o governo? Devemos lembrar-nos que o actual primeiro-ministro Costa era então ministro da Administração Interna e o agora ministro dos Negócios Estrangeiros, se não estamos em erro, também era ministro dos Assuntos Parlamentares e mais tarde ministro da Defesa Nacional, também não deram por nada, nada? E depois com a coligação Paf/PSD/PP, também não tiveram tempo para travar os negócios e, pelo contrário, continuaram com o processo da privatização da EDP? Operação esta realizada sobre arranjo de cambalachos e tachos, envolvendo figuras importantes do PSD (Catroga ficará célebre com o seu vencimento de 40 mil euros mensais) e com certeza despudorada corrupção; aliás, como todas as privatizações. Falar na corrupção do PS teremos forçosamente de referir a corrupção do PSD. O episódio de duas figuras de destaque, uma do PS e outra do PSD, terem dedicado prefácio a livros de Rendeiro é mais do que simbólico. João Cravinho elogia: "Chegar mais alto pelo seu próprio mérito, com toda a limpeza, é também apontar caminhos aos outros". Em outro livro, David Justino não fica atrás no encómio: "João Rendeiro conhece bem os meandros da política e dos negócios". Os dois partidos do bloco central são bandos de salteadores que se têm alternado no saque e na exploração do povo português vai quase para meio século. É tempo demais!

O fenómeno da corrupção é endémico ao sistema capitalista e aos seus regimes políticos, sendo mais notório quando estes são mais democráticos, na medida em que há mais informação disponível. E é transversal a todas as actividades económicas ou sociais. É a corrupção nas Forças Armadas, envolvendo altas patentes na Força Aérea e no Exército; é na Justiça, com juízes condenados e expulsos da magistratura, e alguns outros vão passando pelo intervalo dos pingos, não se pode agitar muita as águas por estes sítios, lá se iria a honorabilidade; é no futebol, envolvendo os principais clubes e estando em causa muitas dezenas e até centenas de milhões de euros de corrupção, fraude, branqueamento de capitais e de fuga ao fisco. E são, porque não deixa de ser corrupção e de roubo ao erário público, as dívidas fiscais dos patrões que não pagam pura e simplesmente ou vão beneficiando de uns oportunos perdões fiscais, que a própria OCDE, no seu último relatório, não deixa de chamar a atenção. É o Tribunal de Contas que alerta para “o elevado valor de receita por cobrar” e mostra-se preocupado com a sustentabilidade das finanças públicas, porque, no final do ano passado, o Fisco tinha 22 mil milhões de euros de impostos de dívidas por cobrar e já em fase avançada em incumprimento. O que representa cerca de metade dos impostos que o Estado amealha anualmente, e terá crescido 882 milhões de euros só num ano!

A elite mais rica e o povo mais pobre

Se as elites vão enriquecendo e os seus funcionários no governo as vão imitando, usando todos os truques e expedientes mesmo que pouco legais e nada legítimos, o povo português vai empobrecendo, com especial destaque para as ditas “classes médias”, geralmente suporte principal do capitalismo e dos seus regimes políticos, sejam mais ou menos democráticos. O poder de compra em Portugal caiu 2,2 pontos percentuais em 2020 face a 2019, situando-se em 76,4% da média europeia. Claro que a “pandemia” é que leva com as culpas e não o capitalismo na sua ânsia do lucro e da concentração imparável: “Quase 230 mil portugueses caíram na pobreza em 2020. Pode ser um efeito transitório da pandemia?” ou “Covid baixa rendimento de 50% das famílias trabalhadoras mais pobres” - diz a imprensa mainstream. No entanto, ninguém pode negar que: “Mais de 38 mil famílias com habitação indigna identificadas em 124 municípios" e uma população que decresceu 2% e mais idosa, porque é o Censos 2021 que o diz. Perante a euforia do ministro das Finanças de que o PIB português irá disparar em 2022 para os 5,8%, Lagarde e Centeno já vieram refrear o entusiasmo: a primeira, com a suspensão da compra de “dívida pandémica”; o segundo, responsabilizando as medias restritivas decretadas para o putativo combate da pandemia, mais concretamente a nível do turismo e das viagens. Mas a razão será outra, a crise económica irá continuar, com o excesso de produção que o capital não consegue gerir, com a subida dos juros das dívidas pública e privada, com a mais que expectável inflação, que será elevada e por tempo indeterminado, porque outra forma dos capitalistas poderem recuperar os lucros.

Enquanto as nuvens se avolumam no horizonte, a ministra promete que o “PS faz aposta 'fundamental' na subida do salário médio” e Costa promete tirar da pobreza 660 mil pessoas, objectivo da “Estratégia Nacional de Combate à Pobreza”, um dos últimos diplomas aprovados pelo governo em modo propaganda eleitoral. Para perguntar: o que andou Costa a fazer durante estes 6 anos? Aonde chega a falta de vergonha da corja socialista?

Ah! Ficou-se também a saber que o vice-almirante herói nacional da vacinação admite a sua candidatura a Belém em 2026 (cem anos do golpe fascista de 28 de Maio).

18 de Dezembro 2021

Discurso na conferência de estudantes venezianos contra o passe verde em 11 de novembro de 2021 no Ca 'Sagredo

 

por Giorgio Agamben

Para começar, gostaria de retomar alguns pontos que tentei corrigir há alguns dias para tentar definir a transformação sub-reptícia, mas não menos radical, que está ocorrendo diante de nossos olhos. Acho que devemos primeiro perceber que a ordem jurídica e política em que acreditávamos que vivíamos mudou completamente. O operador desta transformação foi, como é evidente, aquela zona de indiferença entre o direito e a política que é o estado de emergência.

Quase vinte anos atrás, num livro que tentava fornecer uma teoria do estado de exceção, descobri que o estado de exceção estava se tornando o sistema normal de governo. Como sabem, o estado de exceção é um espaço de suspensão da lei, portanto um espaço anómico, mas que se afirma estar inserido no ordenamento jurídico.

Mas vamos examinar mais de perto o que acontece no estado de exceção. Do ponto de vista técnico, há uma separação da força de lei da lei no sentido formal. O estado de exceção define, ou seja, um "estado de direito" em que por um lado a lei está teoricamente em vigor, mas não tem força, não se aplica, está suspensa e, por outro, disposições e medidas que o fazem não tem força de lei adquirir força. Pode-se dizer que, no limite, o que está em jogo no estado de exceção é uma força de direito que flutua sem a lei. No entanto, esta situação é definida - quer o estado de exceção seja considerado interno ou qualificado, em vez disso, como externo à ordem jurídica - em qualquer caso se traduz numa espécie de eclipse da lei, em que, como em um eclipse astronómico, ele persiste, mas não emana mais sua luz.

A primeira consequência é a violação daquele princípio fundamental que é a segurança jurídica. Se o Estado, em vez de disciplinar um fenómeno, intervém graças à emergência, sobre esse fenómeno a cada 15 dias ou a cada mês, esse fenómeno não responde mais a um princípio de legalidade, visto que o princípio da legalidade consiste no fato de que O Estado dá a lei e os cidadãos confiam nessa lei e na sua estabilidade.

Este cancelamento da segurança jurídica é o primeiro facto que gostaria de chamar a vossa atenção, porque implica uma mudança radical não só na nossa relação com a ordem jurídica, mas no nosso próprio modo de vida, porque envolve viver num estado de ilegalidade normalizada.

O paradigma da lei é substituído pelo das cláusulas e fórmulas vagas, como "estado de necessidade", "segurança", "ordem pública", que sendo indeterminadas em si mesmas, necessitam de alguém que intervenha para as determinar. Não se trata mais de uma lei ou de uma constituição, mas de uma força de lei flutuante que pode ser assumida, como vemos hoje, por comissões e indivíduos, médicos ou especialistas totalmente alheios ao sistema jurídico.

Acredito que nos deparamos com uma forma do chamado estado dual - por meio do qual Ernst Fraenkel, num livro de 1941 que deveria ser relido, tentou explicar o estado nazi - que é tecnicamente um estado em que o estado de exceção não é nunca foi revogado. O estado dual é um estado em que o estado normativo (Normenstaat) é acompanhado por um estado discricionário (Massnahmestaat, um estado de medidas) e o governo dos homens e das coisas é o resultado de sua colaboração ambígua. Uma frase de Fraenkel é significativa nesta perspectiva: “Para sua salvação, o capitalismo alemão precisava não de um estado unitário, mas de um estado duplo, arbitrário na dimensão política e racional na económica”.

É na linhagem desse estado dual que devemos localizar um fenómeno cuja importância não pode ser subestimada e que diz respeito à mudança na própria figura do estado que se passa diante de nossos olhos. Refiro-me ao que os cientistas políticos americanos chamam de The Administrative State, que encontrou sua teorização no recente livro de Sunstein e Vermeule (C. Sunstein e A. Vermeule, Law and Leviathan, Redeeming the Administrative State). É um modelo de Estado em que a governação, o exercício do governo, ultrapassa a tradicional divisão de poderes (legislativo, executivo, judicial) e as agências não previstas na constituição exercem funções e poderes que pertenciam aos três poderes em nome da administração e de forma discricionária constitucionalmente competente. É uma espécie de Leviatã puramente administrativo, que deve atuar no interesse da comunidade, mesmo infringindo os ditames da lei e da constituição, a fim de garantir e orientar não a livre escolha dos cidadãos, mas o que Sunstein chama de navegabilidade - isto é, na realidade, a governabilidade - de suas escolhas. É o que acontece hoje com toda a evidência, quando vemos que o poder de decisão é exercido por comissões e sujeitos (médicos, economistas e especialistas) completamente alheios aos poderes constitucionais.

Por meio desses procedimentos factuais, a constituição é alterada de uma maneira muito mais substancial do que pelo poder de revisão fornecido pelos constituintes, até que se torne, como disse um discípulo de Marx, um Papier Stück, apenas um pedaço de papel. E é certamente significativo que essas transformações sejam modeladas na estrutura dual da governança nazi e que seja talvez o próprio conceito de "governo", de uma política como a "cibernética" ou a arte de governo que precisa ser questionada.

Já foi dito que o estado moderno prospera com base em premissas que não pode garantir. É possível que a situação que tentei descrever para vocês seja a forma como essa ausência de garantias atingiu sua massa crítica e que o Estado moderno, desistindo como é evidente hoje para garantir seus pressupostos, tenha chegado ao fim de sua história, e é esse fim que talvez estejamos experimentando.

Acredito que qualquer discussão sobre o que podemos ou devemos fazer hoje deve partir da constatação de que a civilização em que vivemos agora ruiu - ou, melhor, sendo uma sociedade baseada nas finanças - faliu. Que nossa cultura estava à beira da falência geral era evidente há décadas e as mentes mais claras do século XX diagnosticaram isso sem reservas. Não posso deixar de recordar com que força e com quanta consternação Pasolini e Elsa Morante, naqueles anos sessenta que agora parecem muito melhores do que o presente, denunciaram a desumanidade e a barbárie que viam crescer à sua volta. Hoje temos a experiência - certamente não agradável, mas talvez mais verdadeira do que as anteriores - de não estar mais no umbral, mas nesta falência intelectual, ética, religiosa, jurídica, política e económica, na forma extrema que tem sido tomada: o estado de exceção em vez da lei, informação em vez de verdade, saúde em vez de salvação e medicina em vez de religião, tecnologia em vez de política.

O que fazer em tal situação? A nível individual, é claro, para continuarmos tanto quanto possível fazendo bem o que tentamos fazer bem, mesmo que pareça não haver mais razão para fazê-lo, na verdade, por esta mesma razão para continuar. No entanto, não acho que isso seja suficiente. Hannah Arendt, numa reflexão que não podemos deixar de nos sentir próximos, porque se intitulava “Sobre a humanidade em tempos sombrios”, interrogava-se «até que ponto continuamos obrigados ao mundo e à esfera pública mesmo depois de dele expulsos ( foi o que aconteceu aos judeus no seu tempo) ou tivemos que nos afastar deles (como aqueles que escolheram o que com uma expressão paradoxal se chamou “emigração interna” na Alemanha nazista)».

Acho que é importante hoje não esquecer que se nos encontramos em situação semelhante é porque fomos forçados e que, portanto, é uma escolha que permanece política em qualquer caso, mesmo que pareça estar fora do mundo. Arendt apontou a amizade como o possível fundamento para uma política em tempos sombrios. Acredito que a indicação seja correta, desde que nos lembremos que a amizade - ou seja, o fato de sentir uma alteridade na própria experiência de existir - é uma espécie de mínimo político, um limiar que une e separa o indivíduo da comunidade. Isto é, enquanto nos lembrarmos de que estamos lidando com nada menos do que tentar estabelecer uma sociedade ou uma comunidade na sociedade em todos os lugares. Ou seja, diante da crescente despolitização dos indivíduos, redescobrindo o princípio radical de uma renovada politização da amizade.

Parece-me que vocês, alunos, começaram a fazer isso criando sua própria associação. Mas vocês devem estendê-lo cada vez mais, porque a própria possibilidade de viver de forma humana vai depender disso.

Para concluir, gostaria de me dirigir aos alunos que aqui estão presentes e que hoje me convidaram para falar. Gostaria de lembrar algo que deveria ser a base de todo estudo universitário e que, por outro lado, não é mencionado na universidade. Antes de viver num país e num estado, os homens têm sua casa vital numa língua e acredito que somente se formos capazes de investigar e entender como essa casa vital foi manipulada e transformada, poderemos entender como as transformações são questões políticas e jurídicas que temos diante de nossos olhos.

A hipótese que pretendo sugerir é, ou seja, que a transformação da relação com a linguagem é a condição de todas as demais transformações da sociedade. E se não o percebemos é porque a linguagem, por definição, permanece oculta naquilo que nomeia e nos dá a entender. Como disse certa vez um psicanalista que também foi um pouco filósofo: "o que se diz fica esquecido no que se quer dizer com o que se diz".

Estamos acostumados a ver a modernidade como aquele processo histórico que começa com a revolução industrial na Inglaterra e com a revolução política na França, mas não nos perguntamos que revolução na relação dos homens com a linguagem tornou possível o que Polanyi chamou de Grande Transformação.

É certamente significativo que as revoluções das quais nasceu a modernidade foram acompanhadas, senão precedidas, por uma problematização da razão, isto é, daquilo que define o homem como um animal que fala. Ratio vem de reor, que significa "contar, calcular, mas também falar no sentido de rationem reddere, dar conta". O sonho da razão, que se tornou deusa, coincide com uma "racionalização" da linguagem e com a experiência da linguagem que nos permite dar conta e governar plenamente a natureza e, ao mesmo tempo, a vida do ser humano.

E o que é o que hoje chamamos de ciência, senão uma prática de linguagem que tende a eliminar qualquer experiência ética, poética e filosófica da palavra no falante para transformar a linguagem em um instrumento neutro de troca de informações? Se a ciência nunca pode responder à nossa necessidade de felicidade, é porque, em última análise, pressupõe não um ser falante, mas um corpo biológico enquanto mudo. E como deve ser transformada a relação do falante com sua linguagem, para que, como está acontecendo hoje, falhe a própria possibilidade de distinguir a verdade da mentira? Se hoje médicos, juristas, cientistas aceitam um discurso que renuncia a questionar a verdade, talvez seja porque - quando não eram pagos para isso - na sua língua já não conseguiam pensar - isto é, mantêm-se em suspenso (o pensamento fica travado) - mas apenas para calcular.

Naquela obra-prima da ética do século XX que é o livro de Hannah Arendt sobre Eichmann, Arendt observa que Eichmann era um homem perfeitamente racional, mas que era incapaz de pensar, isto é, de interromper o fluxo do discurso que dominava sua mente e que ele não podia questionar, mas apenas executar como uma ordem.

A primeira tarefa que temos pela frente é, portanto, redescobrir uma relação nascente e quase dialetal, isto é, poética e pensante com a nossa linguagem. Só assim poderemos sair do impasse que a humanidade parece ter tomado e que provavelmente levará à extinção - se não física, pelo menos ética e política. Redescobrindo o pensamento como um dialeto impossível de formalizar e formatar.

 https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-intervento-al-convegno-degli-studenti-veneziano- 


domingo, 5 de dezembro de 2021

A Bancarrota e o fascismo podem estar ao virar da esquina

 Albino engolidor de espadas num carnaval - Diane Arbus

 O estado de calamidade

O governo PS/Costa depois de ter sido demitido e ficando em modo de gestão ainda teve fôlego para decretar o estado de calamidade, aproveitando a Lei de Bases da Protcção Civil, mas que vai muito mais longe do que esta lei permite. Instituiu-se um novo estado de emergência, embora um pouco mais mitigado, que irá vigorar até à Primavera do ano que vem. A entrada em vigor a partir de 1 de Dezembro poderá ter algum significado, porque foi nesta data que os traidores do país, os Migueis de Vasconcelos, foram defenestrados.

Mas o mais grave foi o facto da Assembleia da República se ter demitido da sua principal função, legislar, para passar um cheque em branco ao governo para este legislar como bem entender, com a alegação do combate à “quinta vaga” da pandemia e “a bem da saúde” dos portugueses. O aval foi aprovado, como seria evidente, pelos votos do próprio PS e de uma excrescência “não inscrita”, os pro-fascistas, numa de democracia que lhes proporciona as devidas circunstâncias, foram os únicos que se opuseram, as restantes “forças” políticas, como sói dizer-se, manifestaram somente a fraqueza, aprovando pela abstenção. 

O governo, pelo menos até à tomada de posse do próximo, irá legislar em ditadura pela razão da dita “casa de democracia” ter encerrado e, com a agravante, depois de se demitir do seu poder. Será mais do que um governo de "gestão", um governo com poderes reforçados e de inteira confiança, a ocasião obriga, do PR Marcelo.

É o próprio bastonário da Ordem dos Advogados, pessoa que poderá sofrer de algum conservadorismo, que logo alertou para a possível inconstitucionalidade da medida de estado de calamidade. “O estabelecimento de restrições ou mesmo suspensões dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, através de simples resoluções do Conselho de Ministros” e “que nem sequer são sujeitos a promulgação pelo Presidente da República” poderão ser inconstitucionais pela razão de que “o art. 19º, nº1, da Constituição refere que “os órgãos de soberania não podem, conjunta ou separadamente, suspender o exercício dos direitos, liberdades e garantias, salvo em caso de estado de sítio ou de estado de emergência, declarados na forma prevista na Constituição”.

Ora, este atentado aos direitos e liberdade dos cidadãos tem sido recorrente e poderá ser considerado o “novo normal”, que muita gente temerosa vai aceitando, massacrada pela propaganda da imprensa, nomeadamente a televisiva. Tivemos o estado de calamidade durante todo o Verão, com uma leve suspensão parcial depois de Setembro, para agora continuar a pretexto do aumento desmesurado de “novas infecções”, que na realidade são mais “infecções” de testes PCR+ do que propriamente de doentes. Agora, já pouco interessa falar do número de mortes, mesmo que estas sejam resultantes de outras doenças, mas fazer render os números fictícios que dependem mais do número efectivo de testes realizados diariamente: cerca de 118 mil, ou seja, mais do dobro dos realizados no mesmo período do ano passado. O número de casos de “infecção” (não de doença efectiva) depende unicamente do número de testes realizados e não devido a um agravamento real da pandemia. O facto de cerca de 90% da população se encontrar vacinada também pouco releva. A medida é abertamente política.

O fascismo ao virar da esquina pela mão da social-democracia

O objectivo desta 5ª vaga do medo é dobrar a vontade de resistência dos trabalhadores e obnubilar o raciocínio de qualquer pessoa, e a dita luta contra a pandemia é o melhor argumento. O constante noticiar do número de casos pela Europa e o aparecimento da “nova variante” Ómicron (como se uma das principais características dos vírus não fosse a sua capacidade de se mutar rapidamente, e então os coronavírus são os mais ágeis, razão pela qual ainda não se ter erradicado os coronavírus da vulgar gripe e apesar de haver vacinas há mais de dez anos), é precisamente criar um fascismo brando, já denominado de fascismo sanitário.

A notícia de que alguns países do centro da Europa, Áustria e Alemanha, precisamente onde nasceu e medrou o nazismo e que nunca foi completamente erradicado no pós-guerra, apenas ficou em banho-maria, irão tornar a vacina obrigatória a partir de 1 de Fevereiro. Medida que deve ser entendida, não somente como uma forma de aumentar a venda das vacinas (cujas comissões são mais que cobiçadas por todos os envolvidos no negócio, desde Comissão Europeia a governos locais e outros lóbis do negócio da Big Pharma), mas para impor o já referido “novo normal”.

E por que só em Fevereiro? É porque se teme a reacção popular contra uma medida que é essencialmente política, pouco ou nada sanitária, e entretanto vai-se apalpando o terreno, que já mostrou que não estará muito pelos ajustes, com as grandes manifestações ocorridas recentemente. A perspectiva de uma guerra civil na Europa é mais que uma hipótese, sendo um reflexo e simultaneamente um factor de aceleração da implosão da própria União Europeia. Num tempo em que nunca se acumularam como agora os factores de um confronto militar entre os principais blocos capitalistas na Europa e no mundo, a hipótese não é descabida.

O fascismo está a ser instituído a pretexto da pandemia e a pequena-burguesia, com mais medo da revolução comunista do que do fascismo e não dando ainda conta de que a sua ruína e subsequente desaparecimento são inevitáveis em capitalismo, vai dando o apoio a estas medidas ditas sanitárias; quando chegarem as botas cardadas e os tanques já será demasiado tarde para acordar e reagir. Os partidos do establishment, e não somente o que está directamente instalado no pote, são todos responsáveis pela instalação do medo nesta primeira fase, e do fascismo puro e duro, a seguir. Marcelo ficou satisfeito com as medidas, pudera!, e, contrariando o que lhe vai na alma, desabafou recentemente que a questão da vacinação obrigatória seria (agora, porque há eleições) inadequada.

A bancarrota económica

A dívida das empresas e dos cidadãos particulares é superior à dívida pública e esta se tem aumentado ultimamente foi pelas simples razão de que o estado, através dos governos PS e PSD/CDS/PP, assumiu a dívida de muitas delas, principalmente dos bancos nacionais e estrangeiros, estes por meio da dívida soberana. Os "12 mil milhões de euros em incentivos às empresas" já prometidos pelo ministro Siza Vieira mais não serão que uma panaceia porque nem a gota de água chegam para colmatar uma dívida de cerca de 400 mil milhões de euros. Com o estado português sobre-endividado, a terceira dívida pública na UE e só ultrapassada pela da Itália e da Grécia, já não conseguirá funcionar como garantia de recapitalização da falida economia nacional. Daí a Comissão Europeia manter Portugal “sob vigilância por desequilíbrios macroeconómicos” e exija a apresentação do Orçamento de Estado pouco tempo após a tomada de posse do próximo governo.

Parece que o governo ainda em funções, mas em profundo estado de desagregação, com o ministro Cabrita a pedir agora a demissão e passado pouco tempo da ministra da saúde se ter humilhado a pedir desculpa por palavras que nem dissera perante o lóbi dos barões da classe médica, já há algum tempo que não oferecia condições para fazer respeitar os “acordos” e os ditames impostos por Bruxelas e de interesse do capital. Pelo estado de bancarrota iminente do capitalismo nacional e pelo aumentar da revolta social que já se vislumbra, com greves na rodoviárias com adesão de 100% em algumas empresas e onda de despedimentos em massa que poderá começar na Autoeuropa com ida para o desemprego de 900 trabalhadores, por força da diminuição da produção em 53.000 automóveis em 2022, um governo mais musculado será necessário. A crise capitalista é indubitavelmente uma crise de super-produção, enquanto os trabalhadores são mergulhados na privação e na pobreza.

O governo em modo campanha eleitoral anunciou o auxílio às empresas em cerca de 100 milhões de euros para aguentarem o aumento miserável, e já decretado, do salário mínimo para 705 euros mensais. No entanto, os patrões pedem (exigem) sempre mais, como o decretar do estado de calamidade, o teletrabalho foi “aconselhado” e, de imediato, mais de 60% das empresas já se manifestaram contra o pagamento das despesas do teletrabalhador. Pouco se importam, governo e patrões, de que o país seja mais precário, com um quarto dos trabalhadores a ganhar salário mínimo, sendo sobretudo as mulheres e os jovens os mais explorados. Sem perspectivas de futuro, é natural que uma parte substancial se disponha a emigrar e abandonar um país que os não acarinha, bem pelo contrário. Sem juventude e sem mão-de-obra qualificada e vivendo uma situação de grave crise económica, temos num país sem futuro, tout court, Porque a economia é capitalista e com a agravante de ser gerido por uma classe profundamente corrupta e lacaia.

Já aqui disséramos que Portugal é o país com mais perda de democracia devido à pandemia em toda a União Europeia e o que menos apoiou os cidadãos e as pequenas e médias empresas, cujo risco de falência irá redobrar com as novas restrições. E esta perda de democracia visa conseguir impor aos trabalhadores reformas que há muito o grande capital reclama, desde mais alterações nas leis do trabalho, cuja pequena reversão proposta na Assembleia da República foi chumbada pelos votos de PS e PSD, preparando uma possível reedição do famigerado bloco central, à privatização, pelo menos parcial, do SNS e da Segurança Social. Assim se percebe as palavras da ministra do Trabalho, Solidariedade e SS quanto à pretensa sustentabilidade da Segurança Social (SS) que exigirá “novas fontes de financiamento". Aqui o mote foi dado e na vizinha Espanha o governo considerado “o mais progressista da história” já avançou para a reforma que prevê cortes substanciais das pensões e a sua privatização. Bruxelas assim exige, e o capitalismo necessita de invadir e dominar todas as actividades humanas para poder sobreviver.

Jerónimo de Sousa não conseguiu conter-se e deu mais uma de ingenuidade, na melhor das hipóteses: "O PS já está a virar o bico ao prego e ainda não houve eleições". Pois, é que o PS foi criado com uma missão, a de lançar Portugal na então CEE, ou IV Reich, como se queira; ou seja, transformá-lo num simples länder, depois de ter ajudado a sabotar o princípio de revolução que se esboçara em 1974/5, continuando depois na senda de defender caninamente os interesses do grande capital financeiro. E, pelo caminho, aproveitando a sua ainda maior base social de apoio, comprar a paz social, negócio de que o PCP tem sido um bom sócio, desmobilizando as lutas dos operários e restante povo trabalhador e, por necessário, trazer pela mão o fascismo desde que esta democracia não consiga continuar a iludir os trabalhadores.

Ainda uma possível saída de governo presidencial

O trabalho de boicote às lutas de quem trabalha será sempre uma tarefa inglória, porque o agravamento das contradições desta economia que nos suga até ao tutano alimenta constantemente a revolta. Há dois escolhos contra os quais esbarram os economistas burguesas, incluindo os mais social-democratas, a inflação e a dívida pública e privada. Quanto à primeira, que eles tentam desvalorizar como temporária e pouco expressiva, apesar dos factos indicarem o contrário: “Subida de 27,4% nos preços da energia coloca a taxa de inflação na zona euro em 4,9%, o valor mais alto da série de 25 anos deste indicador”; “Preços sobem 5,6% em Espanha, a maior taxa de inflação desde 1992” e “Subida de preços na cadeia de produção vai refletir-se no cabaz”. Energia e alimentação são dois itens que farão agravar as condições de vida de forma inaudita dos trabalhadores. Em relação à dívida, aí, os tais economistas já não consegue fazer a ilusão nem disfarçar o incómodo.

Será esta situação difícil e sem solução imediata à vista que fará com que o resultado das próximas eleições de Janeiro seja incerto, e até lá muita coisa poderá acontecer. Se os resultados não deferirem muito dos de 2019, o mais provável poderá ser como solução imediata o governo de bloco central PS/PSD. Sempre instável e provisório, dependendo da dita recuperação económica e da distribuição dos dinheiros da bazuca, mas que poderá desembocar num governo de iniciativa presidencial. E tem sido neste sentido, embora o disfarce, que o PR/Rei tem apostado ultimamente.

Ninguém se admire que se adopte entre nós uma solução idêntica à encontrada na Itália, um governo não eleito, não respondendo ao Parlamento, este esvaziado de conteúdo não só de facto como de direito, e liderado por um tecnocrata de inteira confiança do Banco Central Europeu, ou seja, da alta finança europeia. E quem melhor se encontra neste momento para a função? Nada menos que um Centeno, que já declarou que as políticas do governo terão de ser escrutinados pelo BCE. Uma solução semelhante à italiana, Draghi homem de mão do maior banco de investimento do mundo Goldman Sachs e ex-presidente do BCE, e à francesa, embora eleito Macron foi funcionário querido da família mais rica do planeta, os Rothschild. E quando Marcelo sair ninguém melhor que um Américo Tomaz pós-moderno, o vice-almirante das picas, para completar o ramalhete na figura de PR que não chateie, já que o poder estará inteiramente concentrado no primeiro-ministro.

Num mundo e numa Europa à beira da guerra inter-imperialista, falta saber se o capitalismo acaba sozinho ou arrastará na derrocada toda a humanidade.

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

A crise política e os “truques do Costa”

 

A Freak Show, A Reclamation (Diane Arbus)

Afiam-se as facas e contam-se as espingardas

Com a data marcada para as eleições legislativas, data que terá agradado mais a uns partidos do que a outros, o PS terá sido ainda assim o mais beneficiado, porque quanto mais depressa se realizarem, mais fácil será a vitória e, quiçá, a maioria absoluta tão desejada; o PCP e o BE não terão ficado desiludidos, apesar das críticas feitas a Marcelo. Nos principais partidos da direita tradicional, a disputa interna é intensa, embora nos últimos dias tenha amainado um pouco. PSD conta obter a vitória, que não importará ser por minoria, caso Rui Rio seja o chefe confirmado, na medida em que se encontra aberta a porta a um bloco central não formal; se for Rangel o líder escolhido, só importará a maioria absoluta, uma espécie de governo passista, mas sem o dito; este talvez um governo mais de afeição da nossa burguesia troglodita.

O que virá ainda não se sabe, nem a vitória de PS e Costa está garantida, porque as sondagens já mostraram o que valem na realidade quanto à previsão do vencedor da câmara de Lisboa. O certo é que Costa vai descendo no ranking da popularidade, dando o lugar dianteiro a Marcelo, que, sendo um dos principais instigadores da crise, soube enganar mais uma vez parte considerável da opinião pública, para além dos partidos. Faltará saber se a burguesia aposta de imediato num governo de maioria, suficientemente forte para esmagar a pés juntos a classe operária e o povo trabalhador ou ainda ficará pelo meio termo, que é um qualquer governo de minoria ou mesmo de bloco central, qualquer um destes será sempre um governo fraco, por estar mais exposto a fracturas e tricas internas, para fazer frente aos combates que se avizinham.

O governo PS/Costa continua a governar... e a fazer propaganda

O governo não foi demitido, encontra-se em funções, coisa que os partidos da oposição parlamentar e os media fazem por esquecer, para continuar a dar apoio à política seguida pelo PS. Assim se percebe as greves já agendadas e agora sucessivamente desconvocadas, com excepção das dos sindicatos da função pública ligados à CGTP que as mantêm para relembrar ao Costa que terá tudo a ganhar se no próximo governo, caso ganhe as eleições, não virar as costas ao parceiro que tanto fez pela geringonça.

O PCP, aproveitando-se do descontentamento dos trabalhadores, está disposto a vender, mais uma vez, a paz social desde que seja devidamente recompensado. Entretanto, sem meio de aprender, vai acusando Marcelo de ser “factor de instabilidade política”, que o PS quer maioria absoluta para "se libertar" da influência do PCP, que as eleições serão "tardias", não conseguindo esconder o receio de o PS não conseguir a vitória, e lá se irá a possibilidade de mais um arranjinho. O BE segue mais ou menos o mesmo guião, salientando a sua moderação e sentido de estado ao afirmar que recusa as guerras e que a crise política é "artificial, desnecessária e truque de Costa".

O Costa e o PS, como não quer a coisa, vão fazendo a sua propaganda eleitoral, utilizando o governo, e tentar acenar para os dois lados: para Bruxelas e para o povo eleitor, nomeadamente o do centro, a pequena-burguesia instável e que geralmente decide entre os dois partidos do establishment. Nesta última entrevista que deu, Costa foi claro, as medidas apresentadas pelos partidos auxiliares de marcha eram inaceitáveis, porque iam contra os interesses da burguesia nacional, no que concerne ao aumento do salário mínimo, e contra as imposições de Bruxelas, quanto à alteração do regime de aposentação – a política de salários miseráveis será para manter e a segurança social é para um dia destes ser privatizada. Para consumo interno, o governo irá proceder aos magros aumentos salariais de 0,9% na função pública e dos menos de 10 euros para as pensões maia baixas.

O próximo governo ficará sob controlo estrito do BCE

Quanto ao partido vencedor será aquele que tiver a confiança não exactamente da maioria do eleitorado, mas mais a que a burguesia nacional, sôfrega pelos dinheiros do PRR, e do directório de Bruxelas tiverem a seu respeito. O Orçamento terá de ser entregue até Março de 2022, diz Dombrovskis, o letão vice-presidente executivo da Comissão Europeia, e segundo as directivas impostas, de pouco importando que o ministro das finanças de nome Leão vir dizer que defende a revisão das regras orçamentais “amiga do crescimento”.

Se Bruxelas ainda não deu um sinal claro sobre a preferência quanto ao vencedor das eleições de 30 de Janeiro, e nem dará porque qualquer serve desde que respeite as regras impostas, ou seja, se disponibilize a ser lacaio; no entanto, por cá já houve indicações claras. Marcelo quer compromisso sólido para pelo menos dois anos; banqueiros regozijam com o fim da geringonça 2.0, apontando "vitalidade", "transformação" e "rejuvenescimento" na mudança de governo, consideradas importantes para o próximo ciclo político.

E como deverá ser esse ciclo político? Não será difícil entrever ao olharmos para os lucros já anunciados pela banca, “Bancos lucram mais de mil milhões até Setembro”, e que deverão continuar a crescer só que poderá haver um travão, é que se avizinha uma grave crise económica, ou seja, uma crise dentro da crise crónica actual que poderá colocar a economia em coma irreversível e, assim sendo, terá de haver um governo com mais músculo do que o actual. Claro que a cumulação do capital terá de ser feita à custa dos trabalhadores, a começar pelos do próprio sector: “O BPI alcançou lucros de 242 milhões de euros nos primeiros nove meses do ano; em Setembro tinha menos 84 trabalhadores e 47 balcões, em comparação com o mesmo período de 2020”. Concentração sob controlo directo da filial do Banco Central Europeu (BCE): “Centeno quer pôr Banco de Portugal a ganhar influência sobre políticas públicas e diz que vai 'fazer o que for preciso' para assegurar finanças públicas equilibradas”.

A China do Sul da Europa

A estratégia das elites nacionais, dentro da divisão europeia e internacional do trabalho e já parcialmente conseguida, é a de transformar Portugal na estância balnear das classes médias da Europa, agora em declínio com a retracção do turismo devido mais à crise económica do que propriamente à pandemia, e na China da Europa, com salários de fome e precariedade, embolsando as devidas comissões, como boa burguesia rentista e negreira que é desde as origens. A “reindustrialização” de que se fala é esta e não outra, independentemente dos sectores considerados e das “transições” em causa. E os dinheiros da bazuca servirão para este fim, para além, como é óbvio, do enriquecimento fácil e rápido das clientelas políticas dos partidos do poder.

Os factos a comprovar este conjunto de intenções são diversos: “Hotelaria aposta em Cabo Verde e Filipinas para resolver falta de mão-de-obra – Raul Martins, presidente da Associação da Hotelaria de Portugal, diz que uma solução para responder à falta de trabalhadores no sector passa por 'criar fluxos de importação' com países específicos”. E porque há “falta de mão-de-obra”? Porque os salários pagos aos trabalhadores portugueses são miseráveis e há empregos que, por isso, são recusados. Mas, em vez de aumentar os salários, os negreiros nacionais recorrem a trabalhadores que estão disposto a uma maior exploração e que, por sua vez, entram em competição com os nacionais, fazendo baixar ainda mais o preço da força de trabalho.

O economista Eugénio Rosa há muito que vem alertando para esta dura realidade: “Tem-se assistido nos últimos anos a uma grande preocupação política em aumentar o salário mínimo nacional, descurando a atualização dos salários dos trabalhadores mais qualificados, o que está a provocar fortes distorções salariais no país e a transformar Portugal num país em que cada vez mais trabalhadores recebem apenas o salário mínimo ou uma remuneração muito próxima.” O que faz com que os trabalhadores mais qualificados optem pela emigração, colocando em causa a tal famigerada “recuperação” e “modernização” económica do país.

“E - continua Eugénio Rosa - isto porque sem trabalhadores altamente qualificados essa modernização e inovação, esse crescimento económico e desenvolvimento será impossível. Para além disso, o país despende uma parte importante dos seus recursos em formar nas universidades jovens altamente qualificados que depois o abandonam e vão contribuir para o desenvolvimento de outros países, porque não encontram no seu país remunerações e condições de trabalho dignas”. Resumindo: o salário mínimo nacional está cada vez mais próximo do salário médio: “Portugal está a transformar-se num país de salários mínimos”. Ou seja, na China da Europa.

E quanto ao trabalho precário, até o campeão olímpico do remo não esteve com meias palavras: “Fernando Pimenta lamenta que maioria de atletas esteja a recibos verdes precários”. Assim se percebe que o “salário médio cai tanto nas grandes empresas como na função pública” e que foi “nos sectores com mais crescimento de emprego que as médias das folhas de vencimento mensal caíram no trimestre passado.” O quer dizer que a criação de novos empregos é feita na base de salários mais baixos, e é o estado/governo a dar o exemplo: “quando se olha para o emprego público, há registo de descida no salário médio habitual acompanhada de crescimento do emprego; as administrações públicas chegaram ao trimestre terminado em Setembro com 722,3 mil trabalhadores, sendo mais 15,4 mil que no mesmo período de 2020, ou mais 2,2%.”(DN, 12.Novembro).

E em relação ao investimento público que, em princípio, seria para dinamizar a economia e criar mais e melhores empregos, ficamos de igual modo esclarecidos por fonte insuspeita: “Comissão Europeia, Portugal na cauda do investimento público mesmo com fundos da UE”. No entanto, as vendas da Sonae crescem 4,7% até Setembro e superam cinco mil milhões de euros, as vendas da Corticeira Amorim sobem 12% para 637,1 milhões de euros e superam valores pré-pandemia, a EDP regista lucros de 510 milhões de euros até Setembro, e a “Dielmar tem ponto final: fábrica fecha e operários vão para desemprego”. A riqueza de uns é a pobreza, o desemprego e a fome de outros, geralmente, dos trabalhadores por conta de outrem; agora com mais um pormenor, o aumento das vendas das grandes superfícies comerciais indicia a ruína de muitos pequenos e médios comerciantes.

Os tempos mais próximos são de luta

Os tempos mais próximos são de luta, de combates ferozes entre as classes principais da sociedade, burguesia e classe operária, com a pequena-burguesia sem saber ao certo para que lado deve cair, sendo a tendência actual mais inclinada para a contra-revolução. Mas a ruína acelerada e sem marcha atrás dos pequenos empresários e o empobrecimento dos quadros intermédios que já não vislumbram a emigração como escape poderão inverter a deriva. Sem o apoio destes sectores, a revolução comunista não será viável nos tempos mais próximos, só que a revolução é uma velha toupeira e não envia convite para jantar.

14 Novembro de 2021

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

A crise política do senhor presidente (Os acordos e as desavenças pela disputa do pote II)

 

Burlesque Commedienne in Dressing Room (Diane Arbus)

Continuamos a assistir, como já tínhamos afirmado, a uma encenação onde cada actor principal representa o seu papel; haverá outros protagonistas que não passarão de figurantes. Agora, será mais o enredo de impor um governo de maioria absoluta, seja de cor rosa ou laranja, pouco interessará ao grande capital desde que imponha o programa necessário para a saída da crise em que o capitalismo se encontra atascado. Mas o mais provável, e por muito incrível que possa parecer, a maioria no final será do senhor presidente.

Ora, vejamos. Marcelo tem andado desde há algum tempo a aconselhar ao entendimento entre os partidos quanto à aprovação do OE-2022; assunto, no seu entendimento, de suprema importância devido à urgência de tirar a economia do charco, alegadamente devido à pandemia, e os milhões do PRR são mais que preciosos. O apelo foi sempre dirigido aos partidos da dita “geringonça”, nunca aos partidos da direita, nomeadamente, ao seu partido, o PSD, prevendo já o desacordo, aqueles ficariam como os maus da fita. Caso não houvesse entendimento, então teria de haver eleições antecipadas, com todos os custos daí advindos, porque ele, e nem ninguém, desejaria uma crise política e ainda por cima a seguir a uma crise “pandémica”.

No entretanto, o PS, o governo e o Costa, depois de terem apoiado a reeleição de Marcelo, foram com palmadinhas nas costas repetindo que o seu desejo também não era a instabilidade política e que o seu Orçamento era o melhor deste mundo, especialmente, para a dita “esquerda” e o seu eleitorado, que se presume que seja a maioria do povo português. No entanto, fazendo figas e tudo o mais para que o tal OE-2022 (que ficará na história da política pós-25 de Abril por ter sido o único cujo chumbo levou a eleições) fosse reprovado no Parlamento. A maneira como foi apresentado, a atitude de irredutibilidade de Costa perante as exigências apresentadas pelos outros dois partidos da geringonça informal, aliás, exigências que nem teriam grande repercussão em “custos” orçamentais, fica-se com a certeza de que a intenção do Costa era exactamente provocar eleições antecipadas, como tentativa de obter maioria absoluta. Costa e Marcelo são as duas figuras principais de uma ópera bufa, onde as restantes acabam por ser actores secundários ou meros figurantes. PCP e BE ficarão para a história como os idiotas úteis do regime.

Neste jogo de duplicidade, do mais abjecto oportunismo político, onde todos se voluntariam a desempenhar um papel formalmente contrário às suas intenções ocultas e interesses, assiste-se dentro de cada partido com acesso ao pote a disputas e ataques muito pouco dignificantes para os intervenientes. Dentro do dito “principal partido da oposição” e ainda o partido, pelo menos de origem, do presidente-rei Marcelo, temos o massacre diário nos media da realização ou não realização do “processo eleitoral interno” para mudança do chefe ainda antes das eleições; e no partido, que tradicionalmente é o parceiro da coligação da direita e que se diz “fundador da democracia portuguesa”, a preocupação é de adiar ou não o congresso para manter o actual líder. No geral e muito prosaicamente, é a luta encarniçada para se saber, caso a direita formal ganhe as eleições, quem será ministro e irá meter a mão no pote; para mais, um pote bem recheado com os dinheiros da já famigerada e tão cobiçada bazuca.

O último ponto da discórdia parecer o dia das eleições legislativas, se em Janeiro ou em Fevereiro. O PS e Costa querem-nas quanto mais depressa melhor, porque as autárquicas mostraram que os ventos estão a mudar e é agora ou nunca para se conseguir a tão almejada maioria absoluta. O PSD, com a direcção actual, pensa também o mesmo na justa medida de ser antes da possível mudança interna de chefes. O CDS idem, aspas, aspas. O BE manifesta-se impotente perante os acontecimentos, sempre pensou que a intransigência de Costa não passaria de bluff para ceder o menos possível.

E o PCP, a última coisa que queria era Orçamento chumbado e eleições antecipadas, pensando sempre que se estava a repetir a mesma farsa do ano passado, já que o OE-2022 não é muito diferente do OE-2021 e sabendo-se à partida que nem seria todo para ser aplicado, à semelhança dos anteriores, tanto fazia ter mais ou menos propostas da considerada “esquerda”. Os dirigentes deste partido não parecem ser pessoas particularmente inteligentes e perspicazes, não há maneira de aprender com o passado, que mostra que o apoio ao governo lhes é fatal em termos eleitorais; ou seja, o contrário do que é propagandeado pelos media. E, parecendo que não percebe nada do que se passa, Jerónimo ainda vem afirmar que deixa “a porta aberta a novos acordos”. Tal é o oportunista político e o apego ao pote, apesar do papel desta gente, como o do BE, ser o de recolher as migalhas que caem da mesa do repasto.

O PS já antes do chumbo do OE que anda em aberta campanha eleitoral, e agora o frenesim é bem patente com o ministro da Economia a defender eleições “o mais rapidamente possível”, para não comprometer metas do PRR. O Governo PS é aquele que garante a "estabilidade financeira", para que os capitalistas possam continuar a enriquecer enquanto o povo português vai empobrecendo, com a vantagem de assegurar a paz social; razão pela qual se deve chamar à colação o PCP e até o representante mais expressivo da pequena-burguesia urbana, o BE. E o PCP ainda vai mais longe, como tem sido a tradição de bom partido social-democrata que mandou há muito (para não dizer desde sempre) o socialismo e comunismo às urtigas, não se faz rogado: “Jerónimo de Sousa: Propostas do PCP não se traduzem em crise ou instabilidade". Como se vê, se o proletariado estiver à espera da instabilidade social necessária que conduza à revolução comunista, coisa que parece ainda constar nos estatutos deste partido e no símbolo da bandeira, poderá esperar sentado – uma espera de Godot.

Fica também claro que, com a queda do governo anunciada (atenção, o governo e assembleia da república ainda se encontram em funções!), é Marcelo que fica como maestro da ópera bufa e que será visto como o garante da estabilidade, embora seja tão responsável pela instabilidade da crise política como Costa e os outros protagonistas. Todos são responsáveis pelo chumbo do Orçamento, porque era necessário para a prossecução das respectivas agendas. Marcelo, como bom lacaio que é, e nada ficando a dever ao sócio do governo, irá juntar os conselheiros de Estado com a presidente do Banco Central Europeu (BCE), Christine Lagarde, para “discutirem a crise económica mundial (e europeia) e a crise política nacional”, onde a dissolução do Parlamento é o ponto fulcral. Será uma maneira de sossegar Bruxelas, principalmente, os credores do país representados pelo BCE, garantindo que a dívida continua a ser paga segundo os ditames usurários e que a subjugação do país ao grande capital financeiro será para manter, seja qual for o governo saído das próximas eleições.

Tudo leva a crer, e fazendo fé nos resultados das recentes eleições autárquicas, onde o PS perde nos grandes centros urbanos mas continua ainda com a maioria das autarquias, que os resultados das eleições, que quase de certeza se irão realizar em 16 de Janeiro, não irão diferir muito dos das eleições de 2019. E os impasses muito provavelmente se irão manter: nenhum partido terá maioria absoluta e as coligações serão efémeras e pouco credíveis. O que poderá levar a que, apesar de o PCP e o PV não se cansarem de vociferar que OE chumbado e viver de duodécimos não é nenhuma desgraça, Marcelo acabe por viabilizar um governo de iniciativa presidencial; um governo não eleito e que venha a legislar sem o concurso do Parlamento, como praticamente aconteceu com o actual governo a pretexto da pandemia e das medidas não sanitárias impostas para o seu alegado combate – um governo de ditadura, um pouco à semelhança do que aconteceu recentemente na Itália. Assim, o presidente-rei fará jus ao que a imprensa corporativa não se tem cansado de fazer passar para a opinião pública quanto ao presumível carácter do actual regime que será mais presidencialista do que parlamentar.

Ora, este endurecimento da democracia parlamentar burguesa em direcção a um regime de Bonapartismo ou de “fascismo brando”, isto é, sem golpe de estado e sem as tropas na rua, é o que acontece sempre quando a burguesia tem pela frente uma crise económica profunda, crónica e sem fim à vista. Fascização esta que está em marcha já há algum tempo, desde a declaração dos estados de excepção, decretados com a desculpa do combate à pandemia, ao mesmo tempo que se tem imposto medidas económicas de austeridade e que de outra maneira não teriam sido aceites pacificamente se não fosse com a justificação da defesa da “saúde de todos”. Mas a realidade irá demonstrar que ditaduras sanitárias, estados de excepção, passes verdes e vacinação obrigatória não serão suficientes para fazer vergar os trabalhadores no sentido de aceitar mais diminuição dos seus rendimentos, mais pobreza e miséria a troco de uma eventual mais saúde, o que até é contraditório porque sem dinheiro também não há saúde. Antecipadamente, sabe-se que este Inverno vai ser uma época de acrescidas privações, resultantes da carestia inaudita dos meios de sobrevivência, onde se inclui a alta dos preços da energia e dos combustíveis, por sua vez, consequência das contradições da propalada “transição energética e tecnológica” e que mais não são que as contradições do próprio capitalismo.

É perfeitamente compreensível que a crise política mais não é que o reflexo da crise a nível da economia; uma economia – será sempre bom salientá-lo – que é a de um capitalismo essencialmente rentista e subsídio-dependente, dentro de um quadro de subjugação ao grande capital europeu/euro, e que, por essas razões, sente mais profundamente a crise do capitalismo em geral. Como aliás se te comprovado no passado, é à custa de mais crise dos países periféricos e dependentes que os países capitalistas mais avançados tentam resolver as suas crises. Da mesma forma que os capitalistas tentam sair da crise à custa de maior exploração dos trabalhadores, porque não têm outra solução ou então o seu sistema implode e é o fim. A classe operária e o povo trabalhador não vão querer perecer com o capitalismo e outro mundo será necessário, mas para isso outras alternativas terão de ser encontradas em termos ideológicos e organizativos e que não passam pelos actuais partidos ditos “comunistas” ou “de esquerda”, demasiado comprometidos com o regime burguês e corrompidos pelo dinheiro e pelas outras delícias do capital. A revolução comunista necessita de outros protagonistas em termos de organização, para além das classes que querem quebrar as suas grilhetas.

31 Outubro 2021

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Os acordos e as desavenças pela disputa do pote

 

A ama para o lacaio: "Estou muito feliz por me encontrar com António Costa. Sei que posso contar com a sua experiência e dedicação", escreveu Ursula von der Leyen (Em "Dinheiro Vivo")

Os partidos e outros intervenientes e interessados na repartição do saque registado no documento do Orçamento de Estado para 2022 estão desavindos, mas só aparentemente. Muitas pessoas do povo ainda pensam que a origem dos seus principais problemas a nível colectivo se encontra no facto de os partidos e outros ditos “parceiros” não se entenderem, porque caso ponham as divergências de lado, os problemas se resolverão. Ora, na realidade, é o contrário que acontece.

Como diz o adágio popular, “enquanto o pau vai e vem, folgam as costas”, o não se entender permite algum alívio no apertar da tarraxa sobre os que trabalham e produzem; e se o escarcéu é grande, é porque o desentendimento é mais no que diz respeito à forma como o produto do saque é distribuído do que no roubo em si. E o que está a acontecer é que as nossas inúteis e rentistas elites acham que o que lhes cabe neste orçamento é pouco, e querem mais.

Assiste-se a um coro de lamúrias. Para a Ordem dos Contabilistas, a Proposta do Orçamento do Estado é "pouco virada" para as empresas; as consultoras financeiras acham que "para o setor empresarial, a proposta de orçamento pode ser curta"; o sector da restauração diz que OE2022 “pode ditar fim de muitas empresas”; um jornal dos negócios do capital diz que: “Mercado pede um OE com mais PRR e menos impostos”.

Parece o muro das lamentações, apesar do OE reservar 700 milhões para apoios covid às empresas, mais 200 milhões de subsídios a fundo perdido para “premiar postos de trabalho mantidos através do Incentivo à Normalização”, mais para além do já prometido e realizado. Não será por acaso que o ministro da Finanças veio culpar o vírus por 40 mil milhões de euros de défice, ou seja, 20% do PIB para o próximo orçamento, e que foi quase todo enfiado no bolso das grandes empresas e não apenas do sector farmacêutico e da saúde.

Mas, claro, como também popularmente se diz, “quem não chora não mama”, e os diversos abutres que sobrevoam o produto da exploração exercida sobre o povo não se cansam de grasnar. Não há saciedade possível para o apetite: dos 16.644 milhões de euros do PRR, cerca de 5 mil milhões são para apoios directos às empresas, onde se inclui a recapitalização, valor que, segundo Costa, pode chegar aos 7 mil e 200 milhões de euros. Ainda haverá a possibilidade de o governo pedir emprestado mais 2. 300 milhões. É o fartar vilanagem!

O bolo é demasiado apetitoso e as empresas estão à rasca, isto é, estão em grande medida falidas, porque falido se encontra o capitalismo nacional, cronica e estruturalmente subsidiário, e ainda mais depois da entrada na União Europeia e da adesão ao euro. Razão pela qual o Presidente-Rei Marcelo se esganiça a avisar: “Portugal não pode perder 'ocasião única e irrepetível' e que o país “quer (não há outro remédio!) entrar 'nos primeiros' no novo ciclo económico” e “esta não pode ser mais uma oportunidade perdida”. Não há saída para a burguesia nacional.

Pela gravidade da situação, Marcelo, hábil e experiente na intriga política, vai manobrando, avisando, em ameaça velada, que “o chumbo do OE muito provavelmente conduzirá a eleições antecipadas”. Mas, acreditando nos partidos e na democracia – diz, ele, embora saibamos que são coisas que nunca teve em grande consideração – o “Orçamento de Estado irá passar na Assembleia da República”. No entanto, pelo sim e pelo não, e cautelas e caldos de galinha não fazem mal a ninguém, Costa joga pela prudência, contando com a eventualidade de eleições antes do tempo, daí o ter destinado à dita “classe média” um alívio de 150 milhões em sede de IRS, porque é nesta faixa do eleitorado que se ganham ou se perdem eleições.

Enquanto vai tomando algum cuidado, por outro, Costa vai esticando a corda com os parceiros da geringonça informal, tentando comprometer o PCP e o BE na aprovação do OE, ao conceder algumas migalhas, como aconteceu no ano passado; migalhas, quer no que concerne a impacto orçamental, quer no aumento de custos do trabalho nas empresas. PCP e BE vão fazendo o choradinho dos pedintes, numa farsa pouco convincente, porque sabem que ninguém já se deixa enganar e que o claudicar será questão de tempo. A cobardia política é de sobra no enfrentamento ao governo e nas possíveis consequências a nível de resultados em eleições, pouco esperadas pelo eleitorado e completamente indesejáveis pelas elites famintas e impacientes. Como bem diz o comentador Marcelo: será uma perda de tempo.

Estamos a assistir , mais uma vez, a uma ópera bufa quanto a saber quem vai ou não aprovar a Orçamento de Estado de 2022; uma reprise que acontece todos os anos, e já lá vão uns 46. Só que, este ano, a representação tem como fundo cénico uma profunda e crónica crise capitalista a nível mundial e revestindo aspecto mais gravoso na União Europeia. E não é só a denominada “crise energética” que surge como escolho que poderá fazer naufragar a frágil nau catrineta portuguesa, porque esta será apenas uma das pontas do iceberg, é toda uma crise global do capitalismo que se trata. E, para lhe fazer frente, a burguesia parece conhecer uma só saída: reduzir custos, nomeadamente, os do trabalho, e aumentar o preço das mercadorias. A inflação que se avizinha não será nem baixa nem temporária, será, no mínimo, como alerta o FMI, “uma incerteza considerável”.

Bem prega o Frei Tomás Marcelo para que a subida de preços da energia não se prolongue, por prejudicar a economia, e o ex-Ronaldo das Finanças pôs a cabeça ao postigo do Banco de Portugal alertando para a subida do preço dos combustíveis “aparentemente descontrolada”, mas que espera vir a ser "temporária". Ora, para nada disto aponta os factos e os indícios; os primeiros são a dependência do país dos combustíveis fósseis, petróleo e gás natural, e os segundos são a possível irregularidade ou mesmo falha total de fornecimento do gás por parte da Argélia, devido ao conflito crescente com o vizinho Marrocos, e a impossibilidade das eólicas e fotovoltaicas poderem substituir a curto prazo a energia em falta.

Não é uma ideia absurda pensar-se que o próximo Inverno venha ser uma Inverno de frio e de fome para quem trabalha. Costa, em preventiva de esconjurar algum do descontentamento que se avoluma, decretou a descida de dois cêntimos no ISP da gasolina e um cêntimo no ISP do gasóleo. Continua a iludir a questão. No entanto, a electricidade e o gás natural estão já mais caros e ninguém é capaz de prever os aumentos futuros, e subindo o preço dos combustíveis aumentam todos os produtos de consumo em cadeia – 2, 5 ou 10%, ninguém sabe. Preparemo-nos para o pior.

A crise política de que fala Marcelo, será sempre o reflexo da crise económica mais geral, independentemente do OE ser ou não aprovado, à primeira ou à segunda vez, com duodécimos ou sem duodécimos. O PS tem desempenhado o papel que os PS desempenham por incumbência do capital, ser bombeiro da luta de classes quando o ou os partidos da burguesia se encontram por alguma razão mais fragilizados. Logo que o PSD, o ainda partido por excelência da burguesia indígena, resolva os seus problemas internos, o PS será descartado. A questão é que ainda não se sabe bem se o momento actual é o mais acertado para a defenestração do governo, mas pelo sim e pelo não, dentro do dito “principal partido da oposição” vão-se contando espingardas e a actual direcção nunca esteve tão ameaçada como agora. Não é por acaso também que as eleições internas não foram adiadas e o principal opositor actua e fala como as eleições legislativas fossem já amanhã. Tudo é incerto. Há uma certeza, contudo, no seio do bando a pressa de enfiar a mão no pote é indisfarçável.

Perante a impaciência e nervosismo do capitalismo, a posição dos diversos interlocutores e parceiros políticos é a de mais baixa e abjecta subserviência e oportunismo. Costa alinha totalmente pela política imposta por Bruxelas, o OE pode dar muitas voltas e os partidos da putativa oposição podem dizer o que quiserem, mas o Orçamento terá de ser o das "contas certas", vincando que nunca colocará em causa “credibilidade do país”, leia-se: a subserviência canina do governo. Costa não se cansa de alardear o seu espírito de lacaio, desde querer fazer do país um fornecedor de matérias primas para a famigerada “transição energética e tecnológica” da Europa capitalista, considera “as reservas de lítio em Portugal e Espanha oportunidades de desenvolvimento”, ao pedir uma “NATO mais solidária com consulta recíproca e sem 'crises de confiança'”. O resto da manada vai na cola, ninguém coloca em causa as imposições das “contas certas” por Bruxelas e muito menos a permanência de Portugal na União Europeia e no euro.

No mundo do trabalho, os sindicatos, numa prova de vida serôdia, vêm agora convocar greves para sacar mais umas migalhas, não usando denunciar a natureza de classe de um orçamento que, na essência, representa a extorsão de que são vítimas os trabalhadores e cuja preocupação é dar ao capital o maior quinhão e segunda a sua lógica. Em questões prática, como por exemplo nos despedimentos colectivos que irão disparar daqui para a frente, é a inépcia e a cobardia política: a Saint-Gobain Sekurit Portugal, que recebeu apoio financeiro no contexto da pandemia e teve lucros superiores a 1400 milhões de euros em 2020, anuncia despedimento de 130 trabalhadores. E na Função Pública, parece que 0,9% de aumento para os trabalhadores é suficiente, não contando com a depreciação do salário real em cerca de 10% nos últimos anos.

Quanto a intenção e objectivos das lutas propostas, ficamos conversados: Mário Nogueira, Secretário-geral da Federação Nacional dos Professores, ameaça com greve e manifestação nacional se Governo não negociar com professores. Notar bem: “ameaça” e “não negociar”. Pois não é com “ameaças” para “negociar” que se resolvem, em termos imediatos, os problemas mais prementes do povo trabalhador, e, ainda por cima, em tempo de profunda, continuada e sem solução à vista crise do capitalismo. O tempo é de luta e de rutura, de ir mais além: destruição da causa de todos os males do mundo do trabalho e do planeta, o capitalismo.

16 Outubro 2021