sábado, 30 de abril de 2022

1º de Maio em tempos de guerra

 

Todos querem a guerra, e todos são, entre nós, portugueses, os que alinham abertamente pela União Europeia, pela Nato/EUA, pela defesa das “putativas” democracia e liberdade que, na prática, são só para alguns e apenas em ocasiões que se coadunam com os interesses desta Europa Ocidental decadente e em rota apressada para o suicídio.

O Partido da Guerra

Quem ousa falar em paz e criticar o constante apelo ao armamento, justificado pelo apoio ao actual governo neo-nazi ucraniano, que foi colocado no poder graças ao golpe de estado de Maidan/2014 e financiado pelo Tio Sam com 5 mil milhões de dólares, recebe de imediato o estigma de se ser “agente da Rússia” ou “amigo de Putin”; à semelhança do que aconteceu quando o governo bolchevique assinou a tratado de Brest-Litovsk que trouxe a paz à martirizada Rússia, na I Guerra Mundial, tendo o partido Bolchevique e Lenine recebido o ferrete de “agentes da Alemanha”.

Nesta Europa, em profunda crise económica, social e moral, caminha-se, como sonâmbulos, para a III Guerra Mundial. A culpa, no final, será sempre da Rússia. E é neste mundo à beira da catástrofe que os proletários de todo o mundo comemoram o seu Dia de Luta do 1º de Maio. É de luta que se trata, de guerra, e não de festa.

Nesta orla marítima, debruçada sobre o Atlântico e fascinada pelas maravilhas (e dólares) dimanadas do outro lado do oceano, faz-se aberta e descaradamente a apologia da guerra: são os órgãos de propaganda mainstream que durante 24 horas por dia e sete dias por semana, tal como acontecera com a pandemia covídica e para continuar a disseminação do medo sobre os cidadãos  mais crédulos, que demonizam o “inimigo” russo, com o alastramento da xenofobia contra tudo o que cheira ao infiel; são as fracas consciência que engolem como verdades absolutas e sem direito a contraditória toda a propaganda recebida principalmente pelas televisões (60% dos portugueses não leram um livro no último ano, contra 90% que absorvem diariamente televisão); são os partidos políticos com assento parlamentar que louvam os neo-nazistas, instalados no poder ucraniano, como defensores da democracia e da liberdade. A normalização do fascismo e do nazismo ocorre tanto na imprensa como no Parlamento.

Entre todos os defensores da guerra, constituindo um verdadeiro partido, e merecendo uma referência à parte como o chefe do partido da guerra é o dito “chefe supremo” das Forças Armadas nacionais, que não se cansa de reivindicar mais dinheiro para uma dita” Defesa” do país. Chega a acusar o actual regime orçamental de “troika” serôdia, esquecendo-se de referir o mesmo para sectores mais importantes para vida e o bem-estar do povo português, como a saúde ou a Educação. O monárquico e beato Marcelo, não se lembrando que nem sequer cumpriu o serviço militar e nem mobilizado foi para a guerra do “Ultramar”, ao contrário do que aconteceu com os homens da sua geração, puxa agora pelo patriotismo.

Em tempo de fossilização do 25 de Abril e de comemoração do 1º de Maio pelos trabalhadores, o homenzinho, na sua pequenez de pouca seriedade intelectual e de fraca coragem política, surge agora como que “agarrem-me, que eu vou a eles!”; ele quer umas “Forças Armadas fortes unidas e motivadas, a nossa paz, a nossa segurança…”, mas a que “paz” e “segurança” se refere, às do povo português ou dele próprio e da classe social a que pertence e cujos interesses defende? Não sabemos, mas pelo passado histórico, ficamos desconfiados que será para a última hipótese.

Continuando numa de (fraco) patriotismo, el-rei Marcelo, que ultimamente tem andando por Espanhas em vassalagem, esclarece-nos sobre as “missões difíceis” que as Forças Armadas terão de cumprir, que tem sido até aqui o ir defender os interesses das grandes empresas europeias e americanas em países onde saqueiam os seus recursos naturais, desde África ao Extremo Oriente, ou outros interesses de natureza geo-estratégica. O alinhamento pelo imperialismo e pela guerra é que tem feito correr o PR.

A guerra é a continuação da política e da economia por outros meios

Por detrás da política encontra-se sempre a economia, e a economia capitalista no Ocidente não se encontra lá de muito boa saúde: “Economia dos EUA contraiu 1,4% no primeiro trimestre”; “Inflação na zona euro sobe para 7,5% em Abril”; “Inflação na Alemanha sobe para 7,4% em Abril, um máximo em 40 anos”; “A taxa de variação homóloga do Índice de Preços no Consumidor (IPC) terá aumentado para 7,2% em Abril, face aos 5,3% de Março, o valor mais alto desde março de 1993”, contrariando o discurso do governo que até há pouco tempo entre nós não haveria problemas já que tínhamos a taxa mais baixa da UE; “As exportações portuguesas de bens aumentaram 18,7% e as importações subiram quase o dobro, 36,6%, nos primeiros três meses de 2022, face ao mesmo período do ano passado”; “Mais de dez anos depois da crise financeira, Portugal é dos poucos países onde os apoios à banca continuam a pesar nas contas públicas, impacto acumulado foi superior a 10% do PIB”.

No entanto, e apesar da crise: “Biden pede mais 31 mil milhões de euros para ajudar Kiev” porque... "Não estamos a atacar a Rússia", ora, se estivessem!; a Alemanha já anunciou mais 100 mil milhões para o armamento; todos os países da Nato, ou seja, sob tutela dos EUA, já prometerem que irão respeitar os 2% do PIB para mais armas; e Costa, para se mostrar bom aluno, já considerou que, haja fundos estruturais (e mesmo que não haja), a meta imposta será atingida dentro de dois anos; para já cerca de 5800 militares irão ser promovidos. A guerra está na ordem do dia e o Tio Sam precisa também de vender mais armas.

Quem paga a crise económica e a guerra? A resposta é fácil de encontrar, os trabalhadores. Diz o Costa que “a austeridade não é o nosso ADN nem será a nossa estratégia”, mas reconhece, através de porta-voz, que existe “risco de os portugueses perderem poder de compra”. Quanto à solução, já foi peremptório: “cairíamos na ilusão do aumento do rendimento (para os trabalhadores com os possíveis aumentos salariais), que rapidamente seria comido pela subida da inflação”; na prática, os trabalhadores que aguentem. É o “aguentam, aguentam!” de Passos Coelho revisitado.

O objectivo é sempre permitir a acumulação capitalista

Costa, intencional e conscientemente, confunde o cu com as calças, é que o salário é também o preço de uma mercadoria que é a força de trabalho, vendida pelos trabalhadores para poderem sobreviver; se o salário não acompanha a subida das outras mercadorias que são necessárias à sobrevivência do trabalhador, este também não terá condições nem possibilidade para continuar a trabalhar – contradição insolúvel para o capitalismo. Afirmar que o aumento salarial vai contribuir para a subida da inflação em geral, como muita boa gente ignorante acredita, é não só dizer uma rematada mentira como querer esconder a verdadeira razão da mentira, e a razão é somente garantir a subida dos lucros dos patrões – a contradição entre acumulação capitalista e mercado-poder-de-compra-trabalhadores é outra contradição insanável.

Assim se compreende a farronca de Costa que, perante um cenário de inflação mais que certo e garantido, diz "o Governo agiu de forma rápida e identificou respostas para fazer face a esta crise". Ora, as “repostas” foi dar uma esmola de 60 euros às famílias mais carenciadas, que são mais que muitas, e um bolo às petrolíferas e gasolineiras com a descida do Imposto sobre Produtos Petrolíferos (ISP) que, sendo verdade, permitirá baixar a carga fiscal em 20 cêntimos por litro, mas, por outro lado, deixa campo aberto para que os patrões do sector enfiem nos bolsos parte desse desconto, isto é, aumentem os lucros. Aliás, tem sido esta a estratégia, até agora bem sucedida, de subsidiar com os impostos dos próprios trabalhadores algum pequeno aumento do seu rendimento enquanto faz multiplicar os rendimentos do capital.

Nesta luta de classes tem sido sempre a burguesia a ganhar e os trabalhadores a perder, geralmente são os partidos auto-denominados “socialistas” ou “sociais-democratas” que melhor têm cumprido esta tarefa de levar os trabalhadores a aceitar pacificamente a sua própria exploração; em Portugal, o revisionista PCP tem ajudado à festa, talvez para ser aceite no regime e não correr o risco da ilegalização, coisa que agora nunca esteve tão perto de poder vir a acontecer, sendo visível a dificuldade de manter a sua posição sobre a guerra, resvalando cada vez mais para o oportunista “nini”, nem uns nem outros.

A guerra está sempre presente

É o oportunismo político, comprovado na História e por mais do que uma vez, que leva partidos e dirigentes a acabar por defenderem a guerra imperialista e considerarem, no caso do PCP, que o socialismo ou o comunismo – a sociedade sem exploração e sem classes – podem ser alcançados pela via parlamentar, ou seja, pela via pacífica sem a necessidade de tomar o poder político à burguesia, como ela fez à nobreza, e desmontar o estado que mais não é que uma máquina de classe de repressão da elite possidente contra os escravos assalariados.

Estas ilusões de se querer defender a burguesia indígena na sua guerra “patriótica” ou da não necessidade de os trabalhadores tomarem o poder político à classe que os explora têm sido pagas com custos elevados e dolorosos. Desde o 25 de Abril, quando exigiram uma revolução e não um simples golpe de estado para não deixar tudo na mesma, mudando simplesmente os figurões ou as moscas, que os trabalhadores têm recuado sempre, perdendo a luta de classes, chegando agora a uma situação aparentemente sem saída. Para romper este impasse, os proletários de vanguarda têm que tomar nas suas próprias mãos as suas reivindicações de classe e comemorar o 1º de Maio como uma Dia de Luta, num espírito internacionalista, com a agravante de que a guerra imperialista está aí.

A reivindicação de aumento salarial geral para todos os trabalhadores, assim como a semana das 35 horas sem diminuição de salário, é a forma de repor no imediato o poder de compra de quem trabalha e num índice nunca inferior à taxa de inflação – são as reivindicações mais imediatas e susceptíveis de unir todas as camadas do povo que trabalha. Deixar essas reivindicações para a demagogia dos partidos de direita e de extrema-direita poderá ser fatal porque conduzirá à vinda de um putativo “salvador da Pátria”, como já aconteceu no passado.

A luta pela PAZ será o objectivo que unirá os trabalhadores a nível da Europa e do Mundo, em verdadeiro espírito internacionalista de fraternidade e de solidariedade. Os trabalhadores de todos os países devem dizer não à guerra mundial capitalista – a União Europeia e o capitalismo são sempre a guerra – e, caso esta aconteça, como tudo indica, devem não a temer e transformá-la em guerra civil revolucionário pela tomada do poder político, no sentido de uma sociedade onde todos sejam iguais e solidários. A situação que, nestes tempos bárbaros e de incertezas, se vive é de guerra declarada, porque também sempre foi de guerra a situação para onde a burguesia lançou os trabalhadores. A História da Humanidade foi sempre a história de luta de classes.

A Agonia do Cristianismo

 

Miguel de Unamuno

Chego à conclusão deste escrito, pois tudo neste mundo tem que se concluir, e talvez também no outro. Mas isto tem uma conclusão? É conforme o que se entenda por concluir. Se é concluir no sentido de acabar, então isto começa ao mesmo tempo que conclui; se é concluir no sentido lógico, então não; não conclui.

Escrevo esta conclusão fora da minha pátria, Espanha, dilacerada pela mais vergonhosa e estúpida tirania, pela tirania da imbecilidade militarista; fora do meu lar, da minha família, dos meus oito filhos – não tenho netos ainda –,  e sentindo em mim, com a luta civil, a religiosa. A agonia da minha pátria, que está a morrer, removeu na minha alma a agonia do cristianismo. Sinto simultaneamente a política elevada a religião, e a religião elevada a política. Sinto a agonia do Cristo espanhol, do Cristo agonizante. E sinto a agonia da Europa, da civilização a que chamamos cristã, da civilização greco-latina ou ocidental. E as duas agonias são uma só. O cristianismo mata a civilização ocidental, ao mesmo tempo que esta mata aquele. E vivem assim, matando-se.

E muitos crêem que nasce uma nova religião, uma religião de origem judaica e ao mesmo tempo tártara: o bolchevismo. Uma religião cujos dois profetas são Karl Marx e Dostoievski. Mas Dostoievski, não será cristão? Os Irmãos Karamazov, não será um Evangelho?

E entretanto dizem que esta França onde escrevo isto, de cujo pão agora como e bebo água que traz sais dos ossos dos seus mortos, que esta França se despovoa, e se vê invadida por estrangeiros, porque nela morreu a fome de maternidade e paternidade, porque nela já não se acredita na ressurreição da carne. Acredita-se na imortalidade da alma, na glória, na história? A trágica agonia da Grande Guerra deve ter curado muitos da sua fé na glória.

Aqui, a poucos passos de onde escrevo, arde continuamente, sob o Arco da Estrela – um arco de triunfo imperial! – a luz acesa sobre o túmulo do soldado desconhecido, daquele cujo nome não ficará na história. Se bem que, não será já um nome esse de desconhecido? Desconhecido não vale tanto como Napoleão Bonaparte? Junto desse túmulo foram rezar mães e pais que pensavam se aquele, o desconhecido, não seria o seu filho; mães e pais cristãos que acreditam na ressurreição da carne. E talvez tenham ido rezar também mães e pais incrédulos, e até mesmo ateus. E sobre esse túmulo o cristianismo ressuscita.

O pobre soldado desconhecido, talvez um crente em Cristo e na ressurreição da carne, talvez um incrédulo ou um racionalista, com fé na imortalidade da alma, na história, ou sem ela, dorme o último sono abrigado, não na terra, mas na pedra, sob os ingentes silhares de uma grande porta, que não se abre nem se fecha, e onde estão gravados, em letras, os nomes das glórias do Império. Glórias?

Não há muitos dias presenciei uma cerimónia patriótica: uma procissão cívica que desfilou diante desse túmulo do soldado desconhecido. Junto aos seus ossos, não enterrados, mas empedrados, o presidente da República da deusa França, com o seu Governo e uns quantos generais reformados e disfarçados de civis, todos eles abrigados debaixo das pedras que dizem com as suas letras as glórias sangrentas do Império. E o pobre soldado desconhecido talvez fosse um rapaz que tinha o coração e a cabeça cheios de história, ou talvez a odiasse.

Depois da procissão cívica ter ido embora, e de se terem retirado para os seus lares o primeiro magistrado da deusa França e os que o acompanhavam, depois de terminarem os gritos de nacionalistas e de comunistas, que se manifestaram durante a tarde, uma pobre mãe crente -crente na maternidade virginal de Maria  aproximou-se silenciosa e solitária do túmulo do filho desconhecido e rezou: «Venha a nós o vosso reino!», o reino de Deus, aquele que não é deste mundo. E depois: «Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco; bendita sois vós entre as mulheres e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus. Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós, pecadores, agora e na hora da nossa morte. Amen!» Jamais se rezou assim diante da Acrópole! E com essa mãe rezava toda a França cristã. E o pobre filho desconhecido, que ouvia – quem sabe? – aquela oração, sonhou, prestes a morrer, ressuscitar o seu lar lá no céu da sua pátria, no céu da sua doce França, e aquecer os séculos dos séculos da vida eterna com os beijos da sua mãe sob o beijo da luz da Mãe de Deus.

Junto ao túmulo do francês desconhecido, que é algo de mais sagrado que o francês médio, senti a agonia do cristianismo em França.

Há momentos em que uma pessoa imagina que a Europa, o mundo civilizado, está a passar por outro milénio que se aproxima do seu fim, o fim do mundo civilizado, da civilização, como os primitivos cristãos, os verdadeiros evangélicos, acreditavam que o fim do mundo se aproximava. E há quem cite a trágica expressão portuguesa: «Isto dá vontade de morrer.» 1 Tenho ganas de morrer.

E tenta-se estabelecer a sede da Sociedade das Nações dos Estados Unidos da Civilização em Genebra, à sombra de Calvino e de Jean-Jacques. E também de Amiel, que sorri tristemente olhando – de onde? – para essa obra de políticos. E sorri tristemente a sombra de Wilson, outro político cristão, outra contradição em carne e espírito. Wilson, o místico da paz, uma contradição tão grande como o foi o primeiro Moltke, o místico da guerra.

O furacão de loucura que varre a civilização numa grande parte da Europa parece que é uma loucura de uma origem a que os médicos chamariam específica. Muitos dos agitadores, dos ditadores, dos que arrastam os povos, são pré-paralíticos progressivos. É o suicídio da carne.

Há já quem acredite que é o mistério da iniquidade.

Deitemos outra vez os olhos a essa enraizada tradição que identifica o pecado bíblico dos nossos primeiros pais, o terem comido o fruto da árvore da ciência do bem e do mal, com o pecado da carne que quer ressuscitar. Mas a carne não se preocupou depois em ressuscitar, não se moveu pela fome e sede de paternidade e maternidade, mas pelo puro prazer, pela simples luxúria. A fonte da vida envenenou-se, e, com a fonte da vida, envenenou-se a fonte do conhecimento.

A Agonia do Cristianismo, Miguel de Unamuno. Livros Cotovia, 1991

sábado, 23 de abril de 2022

Em 2022, que 25 de Abril se comemora?

Abel Manta

Passados 48 anos após o derrube do regime fascista português, que alguns revisionistas da história defendem que não é fascismo por diferenças formais com a ditadura italiana, como as diferenças entre o actual regime português e o espanhol onde há uma monarquia, por exemplo, fossem de fundo e não o mesmo domínio e das mesmas elites capitalistas enfeudadas ao grande capital internacional (União Europeia), pouco haverá a comemorar relacionado com liberdades, direitos e garantias do cidadão.

Há dois anos, depois do governo Costa/PS versão 2.0 ter decretado o primeiro estado de emergência a pretexto do putativo combate à pandemia covid-19, já tínhamos denunciado o fim, de facto, da democracia parlamentar burguesa, embora esta se mantenha de jure; ou, em outra forma de descrever, a musculação deste regime democrático parlamentar burguês, cujo propósito é, como sempre foi historicamente, reprimir os trabalhadores e o povo em caso de ousarem lutar contra as medidas económicas de cada vez maior austeridade no sentido de fazer face à crise do sistema económico capitalista. Por detrás de tudo está a economia, ou melhor dizendo, os lucros dos capitalistas.

Neste quadro de fascização, cada vez menos disfarçado, agora com o governo PS/Costa versão 3.0, de maioria absoluta, coisa que na prática jamais precisou para governar por decreto, nestes dois anos de dita “pandemia”, como uma Assembleia da República inútil e ineficaz, dando esta sempre o aval cego a tudo o que o governo decidiu apesar de este ainda não ter maioria absoluta formal, veio agora cereja no topo do bolo. Já não será simplesmente um órgão inútil, mas apologista do fascismo, por enquanto em soft mode, fazendo-nos lembrar a antiga Assembleia Nacional de Salazar e de Caetano.

Na putativa “Casa da Democracia”, com um presidente, e segunda figura do estado, reaccionário e trauliteiro que sempre alinhou pelos interesses e ditames de Bruxelas e de Washington (lembremo-nos do apoio que deu ao Guaidó, agente da CIA na Venezuela, quando era ministro dos Negócios Estrangeiros!), com a presença de uma dúzia de arruaceiros da extrema-direita, um deles ex-bombista do tempo do PREC, assistiu-se ao aplaudir por parte de todos os elementos presentes, de pé e em pleno êxtase quase orgástico, de um chefe neonazi estrangeiro que, em nome do Ocidente e do Império, vai perseguindo os seus cidadãos que sejam do contra, ilegaliza partidos de oposição de esquerda, incluindo o partido comunista local com a prisão e o desaparecimento (assassinato) dos seus dirigentes, e, sem prurido e remorso, lançou o seu país numa guerra, cujo resultado será inevitavelmente catastrófico para todos os povos ucranianos. Um peão de brega do imperialismo e do capitalismo ocidental foi elevado a herói.

Para além dos encómios que a figura sinistra e tragicamente ridícula tem recebido de toda a imprensa mainstream nacional, bem como o nazi “batalhão” Azov que, pela mesma imprensa, foi elevado ao maior defensor das liberdades e democracia do mundo ocidental (de “todos nós”), apesar da ideologia francamente nazi e de se escudar atrás de crianças e de mulheres e assim evitar o seu rápido aniquilamento, mas que, pela mesmíssima e abjecta manobra de manipulação da opinião pública, estará a defender os civis. Exactamente o mesmo processo de inverter a realidade em relação a toda a guerra e à função e natureza do actual regime de Kiev, apresentado como soberano e independente e não como lacaio dos EUA e da UE. Os presentes apoiantes, na sessão referida da Assembleia da República, parecem ser uma cópia, embora mais esbatida, da camarilha actualmente reinante na Ucrânia, na justa medida em que defendem os interesses imperiais e a guerra.

O PR monárquico Marcelo não se cansa de assegurar ao neonazi trasvestido de democrata que Portugal apoiará a “luta do povo ucraniano” e Costa ainda vai mais longe: “cada dia de guerra é mais um dia de dor insuportável”. Imagine-se o homem a contorcer-se com dores pela infelicidade do povo ucraniano e tanto um como o outro, na prática, a defenderem a guerra; apesar de Marcelo ter fugido à tropa e nem ter ido sequer, como era sua obrigação como filhos família do fascismo, para a dita “Guerra do Ultramar”. O belicismo esteve bem evidente em todos os deputados e membros do governo presentes na audição do agente da guerra e alguns deles, que se dizem democratas, ainda foram mais longe que os jagunços do Chega.

A paz para esta gente é defender o alargamento da União Europeia a regimes corruptos, dar armamento pesado e mais dinheiro para continuar e intensificar a guerra, e no tempo em que o povo português está a entrar numa espiral de inflação de miséria dificilmente de prever: dívida das famílias, empresas e Estado subiu para os 777,4 mil milhões de euros em Fevereiro; preço das casas subiu 14% até Dezembro; FMI prevê retoma mais fraca e défice maior em Portugal; salários da função pública podem subir abaixo da inflação em 2023; Estado autorizado a endividar-se até 16,2 mil milhões de euros (OE2022). E o mais que ainda está para vir.

O deputado do Livre, mais papista que o papa, chega ao ponto de defender um "mecanismo de retenção dos pagamentos" à Rússia pelos combustíveis fósseis. Todos defendem mais armas e mais dinheiro para a guerra, o chefe do IL manifestou-se como o mais entusiasta na ideia, mas tanto os dirigentes do PSD com do BE, do Chega ou do PAN não ficaram atrás; e até o CDS quis dar prova de vida demonstrando o mesmo zelo belicista. Pode-se constatar que estes democratas da treta são unânimes em aplaudir o nazismo, agora disfarçado de defensor das liberdades, numa situação semelhante à de Portugal antes do 25 de Abril, talvez uma espécie de “Primavera” marcelista.

O deputado do Livre, já referido, sintetizou o sentimento de todos os presentes: “os valores que a Ucrânia defende na Europa são os valores de Abril”. Seria também interessante saber quem é que soprou aos ouvidos da sonsa deputada do PAN a ideia de convidar um retinto neonazi, promovido a democrata, aliás, como foram todos os fascista e pides nacionais, e, com a sua voz esganiçada e enganosa, não se cansa de defender o perdão da dívida do estado ucraniano, não se percebendo, então, porque não defende o mesmo em relação à dívida portuguesa. Seres mais lacaios do imperialismo e defensores da guerra será difícil de encontrar. Em resumo, o discursante foi ouvido como muito “prazer” e “honra” por todos os presentes. Foi um estranho “momento de se lutar pela paz”!

A par dos elogios ao agente ianque, um Guaidó escandinavo “democraticamente eleito”, todo o tempo foi para estigmatizar o PCP (partido pelo qual não nutrimos particular simpatia por há muito ter abandonado a bandeira do comunismo e da ditadura do proletariado, isto se alguma vez a empunhou), com a imprensa a ajudar à festa, considerado um quase fóssil ou moribundo em fase terminal, mas que, na questão em causa, ainda foi o que teve uma posição digna por anti-imperialista, embora muitas das vezes pouco consequente, como se constata pela posição em relação à União Europeia, a vassala por excelência dos EUA, e ao euro. Estes ataques poderão preparar outros mais bem graves, que poderão passar pela ideia que foi pensada no 25 de Novembro de 1975.

As posições de todos os partidos com assento no Parlamento, uns mais abertamente e outros mais disfarçadamente, é de quererem ilegalizar o PCP ou, no mínimo e para já, relegá-lo para uma posição de marginalidade ou de semi-clandestinidade. A seguir irão todos os partidos que possuam a sigla da aliança entre o proletariado e o campesinato ou que se oponham ao actual regime pelo lado do povo, assim como todas as opiniões que perfilharem as mesmas ideias da revolução proletária ou anti-imperialistas e anti-capitalistas; em suma, quem seja contra as guerras impostas pelo Império decadente. Estamos a assistir a um histerismo a favor da guerra que nos faz lembrar o período que antecedeu a I Guerra Mundial. Parece que esta gente quer a guerra, só que a guerra será agora nuclear.

Não o dizem abertamente, mas insinuam insistentemente: o que era bom era o antes do 25 de Abril, sem comunistas nem esquerdistas; à semelhança do que o corrupto (Pandora Papers) agente americano fez na Ucrânia. Como a república de Weimar, na Alemanha, ou a I República, em Portugal, nos ensinaram: a democracia parlamentar burguesa conduz sempre ao fascismo. Bertolt Brecht lembra-nos que: “Não há nada mais parecido a um fascista do que um burguês assustado”. E a nossa burguesia, em particular, está mesmo assustada. No próximo dia 25, com mais tempo de democracia do que fascismo (ao que dizem), não haverá nada a comemorar, a não ser o regresso subreptício do fascismo.

quinta-feira, 21 de abril de 2022

A REBELIÃO DAS MASSAS

 

Ortega y Gasset

Quem manda no mundo?


A civilização europeia – repeti mais de uma vez – produziu automaticamente a rebelião das massas. No seu anverso, o facto desta rebelião apresenta um cariz óptimo, já o dissemos: a rebelião das massas e o crescimento fabuloso da vida humana no nosso tempo são precisamente a mesma coisa. Mas o reverso do mesmo fenómeno é tremebundo; vista por essa face a rebelião das massas identifica-se totalmente com a desmoralização radical da humanidade. Vejamos agora esta a partir de novos pontos de vista.

*

A substância ou ídolo de uma época histórica resulta de variações internas – do homem e do seu espírito – ou externas – formais ou como que mecânicas. Entre estas últimas, a mais importante, quase sem dúvida, é a movimentação do poder. Mas este traz consigo uma movimentação do espírito.

Por isso, ao assomarmos a um tempo com ânimo de o compreendermos, umas das nossas primeiras perguntas deve ser esta: «Quem manda no mundo nessa altura?» Poderá ocorrer que nessa altura a humanidade esteja dispersa em vários troços sem comunicação entre si, que formem mundos interiores e independentes. No tempo de Milcíades, o mundo mediterrânico ignorava a existência do mundo extremo-oriental. Em tais casos teríamos que endereçar a nossa pergunta «Quem manda no mundo?» a todos os grupos de convivência. Mas a humanidade entrou toda, desde o século XVI, num processo gigantesco de unificação que nos nossos dias chegou ao seu termo insuperável. Já não há um troço de humanidade que viva à parte – não há ilhas de humanidade. Portanto, pode dizer-se desde aquele século que quem manda no mundo exerce, de facto, a sua influência autoritária em todo ele. Tal foi o papel do grupo homogéneo formado pelos povos europeus durante três séculos. A Europa mandava e, sob a sua unidade de mando, o mundo vivia com um estilo unitário, ou pelo menos progressivamente unificado.

Costuma denominar-se este estilo de vida de «Idade Moderna», nome cinzento e inexpressivo sob o qual se oculta esta realidade: a época da hegemonia europeia.

Por «mando» não se entende aqui primordialmente exercício de poder material, de coacção física. Porque aqui pretendemos evitar estupidezes; pelo menos as maiores e mais patentes. Ora bem: essa relação estável e normal entre homens que se chama «mando» não se apoia nunca na força, antes  pelo contrário; porque um homem ou grupo de homens exerce o mando, tem à sua disposição esse aparelho ou máquina social que se chama «força». Os casos em que à primeira vista parece ser a força o fundamento do comando, revelam-se, perante uma inspecção ulterior, como os melhores exemplos para confirmar aquela tese. Napoleão dirigiu uma agressão a Espanha, susteve esta agressão durante algum tempo, mas propriamente nem um só dia mandou em Espanha. E isso apesar de ter a força e precisamente porque tinha só a força. Convém distinguir entre um facto ou processo de agressão e uma situação de comando. O comando é o exercício normal da autoridade. Este baseia-se sempre na opinião pública – sempre, hoje como há dez mil anos, entre os Ingleses como entre os Botocudos. Nunca ninguém mandou na terra alimentando o seu mando essencialmente com outra coisa que não seja a opinião pública.

Ou julga-se que a soberania da opinião pública foi uma invenção feita pelo advogado Danton em 1789 ou por São Tomás de Aquino no século XIII? A noção dessa soberania terá sido descoberta aqui ou além, nesta data ou noutra; mas o  facto de a opinião pública ser a força radical que nas sociedades humanas produz o fenómeno de mandar, é coisa tão antiga e perene como o próprio homem. Assim, a gravitação é, na física de Newton, a força que produz o movimento. E a lei da opinião pública é a gravitação universal da história política. Sem ela, nem a ciência histórica seria possível. Por isso Hume sugere muito acutilantemente que o tema da história consiste em demonstrar como a soberania da opinião pública, longe de ser uma aspiração utópica, é o que sempre e a toda a hora pesou nas sociedades humanas. Pois até quem pretende governar com os janízaros depende da opinião destes e da que sobre eles tiverem os outros habitantes.

A verdade é que não se manda com os janízaros. Assim, Talleyrand a Napoleão: «Com as baionetas, sire, pode-se fazer tudo menos uma coisa: sentarmo-nos nelas.» E mandar não é gesto de arrebatar o poder, mas o seu calmo exercício. Em suma, mandar é sentar-se. Trono, cadeira, curul, banco azul, poltrona ministerial, sede. Contra o que supõe a óptica inocente e folhetinesca, o mando não é tanto questão de punhos quanto de nádegas bem assentes. O estado é, em definitivo, o estado da opinião: uma situação de equilíbrio, de estática.

O que se passa é que às vezes a opinião pública não existe. Uma sociedade dividida em grupos discrepantes, cuja força de opinião fica reciprocamente anulada, não dá lugar a que se constitua um mando. E como a Natureza tem horror ao vazio, esse vazio deixado pela força ausente de opinião, enche-se com a força bruta. Quando muito, pois, esta adianta-se como substituto daquela.

Por isso, se se quiser exprimir com toda a precisão a lei da opinião pública como lei de gravitação histórica, convém ter em conta esses casos de ausência e, então, chega-se a uma fórmula que é o conhecido, venerável e verídico lugar-comum: não se pode mandar contra a opinião pública.

Isto leva a darmo-nos conta de que o mando significa prepotência de uma opinião; portanto, de um espírito; que o mando não é, em última análise, outra coisa senão poder espiritual. Os factos históricos confirmam isto escrupulosamente. Todo o mando primitivo tem um carácter «sacro», porque se funda no religioso, e o religioso é a primeira forma sob a qual aparece sempre o que depois será espírito, ideia, opinião; em suma, o imaterial e ultrafísico. Na Idade Média reproduz-se em formato maior o mesmo fenómeno. O primeiro estado ou poder público que se forma na Europa é a Igreja, com o seu carácter específico e já nominativo de «poder espiritual». Da Igreja aprende o poder político que, também ele, não é originariamente mais do que poder espiritual, vigência de determinadas ideias, e cria-se o Sacro Império Romano. Deste modo lutam dois poderes igualmente espirituais que, não podendo diferenciar-se na substância – os dois são espírito – chegam ao acordo de se instalar cada um num modo do tempo: o temporal e o eterno. Poder temporal e poder religioso são identicamente espirituais; mas um é espírito do tempo – opinião pública intramundana e cambiante – ao passo que o outro é espírito de eternidade – a opinião de Deus, a que Deus tem sobre o homem e seus destinos.

Tanto faz, pois, dizer: em tal data manda o homem, tal povo ou tal grupo homogéneo de povos, como dizer: em tal data predomina no mundo tal sistema de opiniões – ideias, preferências, aspirações, propósitos.

Como deve entender-se este predomínio? A maior parte dos homens não tem opinião, e é preciso que esta lhe venha de fora à pressão, como o lubrificante entra nas máquinas. Por isso é preciso que o espírito – seja ele qual for – tenha poder e o exerça, para que as pessoas que não opinam – e são a maioria – opinem. Sem opiniões, a convivência humana seria o caos; menos ainda: o nada histórico. Sem opiniões a vida dos homens careceria de arquitectura, de organicidade. Por isso, sem poder espiritual, sem alguém que mande, e na medida em que isso faltar, o caos reina na humanidade. E, paralelamente, toda a movimentação de poder, toda a mudança de quem impera, é ao mesmo tempo uma mudança de opiniões e, consequentemente, nada mais nada menos que uma mudança de gravitação histórica.

Voltemos agora ao começo. Durante vários séculos mandou no mundo a Europa, um conglomerado de povos com espírito afim. Na Idade Média não mandava ninguém no mundo temporal. Foi o que se passou em todas as idades médias da história. Por isso representam sempre um caos relativo e uma relativa barbárie, um défice de opinião. São tempos em que se ama, se odeia, se anseia, se repugna, e tudo em grande escala. Mas, por outro lado, opina-se pouco. Tempos assim não carecem de encanto. Mas, nos tempos grandes, é da opinião que vive a humanidade, e por isso há ordem. Do outro lado da Idade Média, encontramos novamente uma época em que, como na Moderna, alguém manda, se bem que numa porção demarcada do mundo: Roma, a grande mandona. Ela pôs ordem no Mediterrâneo e arredores.

Nestas jornadas do pós-guerra começa-se a dizer que a Europa já não manda no mundo. Apercebemo-nos de toda a gravidade deste diagnóstico? Com ele anuncia-se uma movimentação do poder. Para onde se dirige? Quem vai suceder à Europa no mando do mundo? Mas estamos seguros que lhe vai suceder alguém? E se não fosse ninguém, que aconteceria?

“A Rebelião das Massas”. Ortega y Gasset, 1930

quinta-feira, 14 de abril de 2022

Estado de exceção e guerra civil

Goya, gravura da série “Desastres de la guerra”

Giorgio Agamben

Em livro publicado há alguns anos, Stasis. A guerra civil como paradigma político, procurei mostrar que na Grécia clássica a possibilidade - sublinho o termo "possibilidade" - da guerra civil funcionar como um limiar de politização entre o oikos e a polis, sem a qual a vida política teria sido inconcebível. Sem estase, a posição dos cidadãos na forma extrema de dissidência, a polis não é mais tal. Esta ligação constitutiva entre a stasis e a política era tão inevitável que mesmo no pensador que parecia ter baseado sua concepção de política na exclusão da guerra civil, isto é, Hobbes, ela permanece virtualmente possível até o fim.
A hipótese que gostaria de propor é então que, se chegamos à situação de despolitização absoluta em que nos encontramos, é justamente porque a própria possibilidade de stasis nas últimas décadas foi progressivamente e completamente excluído da reflexão política, também pela sua identificação sub-reptícia com o terrorismo. Uma sociedade na qual se exclui a possibilidade de guerra civil, isto é, da forma extrema de dissidência, é uma sociedade que só pode resvalar para o totalitarismo. Chamo totalitário um pensamento que não contempla a possibilidade de enfrentar a forma extrema de dissidência, ou seja, um pensamento que só admite a possibilidade de consentimento. E não é por acaso que é justamente pela constituição do consenso como único critério da política que as democracias, como ensina a história, caíram no totalitarismo.

Como muitas vezes acontece, o que foi removido da consciência ressurge em formas patológicas e o que está acontecendo ao nosso redor hoje é que o esquecimento e a desatenção à stasis andam de mãos dadas, como Roman Schnur observou num dos poucos estudos sérios sobre o assunto, com o desenrolar de uma espécie de guerra civil mundial. Não se trata apenas do fato, embora não despercebido, de que as guerras, como os juristas e cientistas políticos já notavam há algum tempo, não são mais formalmente declaradas e, transformadas em operações policiais, adquirem as características que costumavam ser atribuídas às guerras civis... O factor decisivo hoje é que a guerra civil, ao fazer um sistema com o estado de excepção, se transforma assim em instrumento de governo.
Se analisarmos os decretos e os dispositivos postos em prática pelos governos nos últimos dois anos, fica claro que eles visam dividir os homens em dois grupos opostos, entre os quais se estabelece uma espécie de conflito inevitável. Infectados e saudáveis, vacinados e não vacinados, equipados com greenpass e sem greenpass, integrados na vida social ou dela excluídos: em todo o caso, a unidade entre os cidadãos, como acontece numa guerra civil, falhou. O que aconteceu diante de nossos olhos sem que percebamos é que as duas formas limite do direito e da política foram usadas sem escrúpulos como formas normais de governo. E enquanto na Grécia clássica, a stasis, na medida em que marcou uma interrupção da vida política, não poderia por nenhuma razão ser ocultada e transformada em norma, torna-se hoje, como o estado de exceção, o paradigma por excelência do governo dos homens.

04-09-2022

(intervenção da comissão DUPRE)

Em quodlibet

segunda-feira, 11 de abril de 2022

O 25 de Abril de 2022 e a musculação do regime

 

Abel Manta

Discutiu-se (ou falou-se) na Assembleia da República o programa do governo PS, que venceu as legislativas com 42,50% e 2.302.601 votos, que mais não é do que a evolução na continuidade da política seguida pelo governo PS/Costa 2.0 sem os floreados que ainda existiam do acordo do governo da geringonça. Será a política que deverá enformar todo o Orçamento de Estado que, por ter sido chumbado, deu origem às eleições legislativas antecipadas. Não haverá problemas quanto à aprovação do dito Orçamento já atrasado uns meses mas que não deslustrará se tivesse aprovado no tempo devido. Governo de maioria absoluta continuará, como já acontecia, a secundarizar uma Assembleia que mais não será, por que já o era, um mero e inútil moinho de vento.

O convite feito pelas autoridades portuguesas ao chefe de estado da Ucrânia para discursar, tendo obtido o apoio da maioria dos partidos, na dita “Casa da Democracia”, e comunicado pela pessoa do PR, produto híbrido da antiga oligarquia fascista portuguesa, vem reforçar e esclarecer a natureza deste órgão de soberania nacional. Existe um velho ditado popular que diz: “diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és!”; ora, este adágio tanto se aplica ao ucraniano como ao português. Só faltará, como aconteceu no parlamento grego, que o dito “democrata”, peão de brega do imperialismo americano e europeu ocidental, se faça acompanhar por dois capangas neo-nazis. Não teremos dúvidas que serão fervorosamente aplaudidos quer pelos partidos seniores do regime quer pelos neófitos e onde se inclui o da extrema-direita oficial. Nada poderá espantar já que um dos novos deputados, que não foi eleito para a Presidência da Assembleia da República apenas por uma questão de decoro, é um ex-bombista do tempo do PREC. Não será por acaso que o convite ao neo-nazi ucraniano tenha sido feito pelo partido PAN, pelos vistos, partido muito amigo dos animais e não só.

Ficamos igualmente elucidados sobre a composição e o que faz mover uma Assembleia da República que possui um Presidente que, logo na primeira entrevista que deu aos media corporativos, não hesitou em afirmar que "a maior ameaça à democracia é a dos regimes autoritários", que é exactamente o caminho que desde há algum tempo, mais precisamente desde o primeiro estado de emergência, e pela mão do PS e de políticos deste jaez que o país está a ser lançado. Devemos relembrar que a figura, quando ex-ministro dos Negócios Estrangeiros, foi correr à pressa, mais papista que o Papa, reconhecer o agente da CIA Guaidó como presidente legítimo da Venezuela, quando os EUA preparavam um golpe de estado para depor o presidente democrática e legalmente eleito. Parece que é este o papel político desempenhado pelos ex-trotsquistas, moldados pela tese teórica da hipotética “revolução permanente”. Alguma diferença entre a personagem e a de um Guaidó será mera coincidência.

É neste quadro de maioria e poder absoluto do partido que foi fundado na Alemanha, em 1973 e pela Fundação Friedrich Ebert do partido social-democrata alemão de Willy Brandt, informador comprovado e remunerado pela CIA, e agora de novo no poder, que o PR Marcelo anuncia que vai medalhar todos os envolvidos no golpe/revolução do 25 de Abril. Serão todos, desde o Spínola que conspirou contra o novo regime, tendo sido obrigado a fugir para junto dos amigos franquistas pelo fracasso da tentativa do golpe de estado, sendo um dos operacionais o candidato a vice-presidente da AR já referido, aos que integrando a dita Junta de Salvação Nacional não participaram na revolução abrilista, por exemplo, Jaime Silvério Marques, que chegou a ser detido no dia 25 de Abril por contra-revolucionário, ou Galvão de Melo, oficial com ligações notórias aos fascistas recém-derrubados do poder. Será a forma marcelista de comemorar os 50 Anos do 25 de Abril, cujo comissário político é um homem de mão socialista e, ao que parece, versátil para toda a obra.

Por detrás desta União Nacional de Todos os Portugueses Honrados, encontra-se uma economia em rápida deterioração, com a elite nacional e esgadanhar-se por mais apoios e subsídios e com o povo a ser atirado para uma situação de miséria jamais vista. Atrás da política encontra-se a economia, e quando os trabalhadores mostram que poderão não continuar a aceitar a política da cenoura, então, logo se prepara a política do cacete, daí a musculação do regime, com o esvaziamento dos poderes da Assembleia da República e a concentração dos mesmos no executivo de maioria absoluta. O PR será um ajudante e apoiante do governo, assim ordena Bruxelas, e as quezílias presidenciais, para enfraquecimento do governo e eventual substituição por um outro mais de agrado pessoal, serão mais difíceis de urdir e levar a bom porto. Afirmar que o governo está refém do presidente, ou o contrário, ou que está refém do povo, porque foi uma parte do eleitorado que o escolheu, não passam de sofismas e de ilusões porque a realidade é que ele esta refém de Bruxelas, quem lhe dita as ordens é a Alemanha.

A situação económica do país (dos capitalistas) é deveras preocupante para o governo e para a nossa burguesia: a dívida, pública e privada, não pára de crescer, como já aqui salientamos, e o défice da balança comercial também não tem maneira de parar ou decrescer: 2.154 milhões de euros em Fevereiro, um aumento de 1.412 milhões de euros face ao mesmo mês de 2021 e mais 569 milhões de euros em relação a Fevereiro de 2020. Se as exportações aumentaram 20,3% em Fevereiro, as importações cresceram 42,3%; ou seja, a dependência ao exterior aumentou. E as causas são fáceis de encontrar, os principais parceiros económicos são os países da União Europeia, com a vizinha Espanha à cabeça, cada vez mais somos um prolongamento do mercado espanhol, e estamos obrigados a usar uma moeda forte, o euro, que é o marco alemão com outro nome, o que nos obriga a vender caro e comprar barato; razão que, por sua vez, nos impede de substituir as importações, ou pelo menos grande parte delas, pela produção nacional.

O país está cada vez mais refém de Bruxelas e da Alemanha, reduzido a um simples protetorado, como aconteceu em todo o século XIX e parte do século XX em relação à Grã-Bretanha. Teremos apenas passado de dono. As nossas elites pouco se importam desde que as comissões não deixem de correr para os bolsos (delas), o seu patriotismo é a sua conta bancária e ainda há gente chegada ao regime a querer falar de patriotismo ao diabolizar a Rússia na invasão à Ucrânia. Esquecem-se da História quando o país foi invadido sucessivas vezes, em que as elites fugiram e ficou o povo a lutar praticamente sozinho contra o invasor: séculos XIV, invasões leonesa e castelhana; XVI, perda da independência; XIX, invasões francesas. Agora e de repente, temos uma burguesia belicista que deseja uma III Guerra Mundial ao enviar material de guerra e tropas mercenárias para a Ucrânia ou para lá perto com o argumento de que o país (governo PS) tem de cumprir com as suas obrigações internacionais (Nato), pensando talvez que a guerra é lá longe e não nos atingirá. Puro engano: primeiro, porque as sanções económicas (guerra económica que sempre antecede e acompanha o confronto militar) vão-nos atingir mais a nós do que à Rússia, não deixando de ser caricato a notícia da necessidade premente de investimento chinês em Portugal (basta olhar para a EDP!); e numa guerra mundial, que será forçosamente nuclear, rapidamente a destruição será generalizada sem necessidade de colocação de tropas no terreno por parte do outro lado. A burguesia e o seu sistema de exploração encontram-se em fase terminal de existência e, ao que parece, não querem perecer sozinhos.

Na Europa Ocidental, de raízes judaico-cristãs, ao que dizem, mas com uma prática diametralmente oposta, relembremo-nos das cruzadas na Idade Média ou dos genocídios em África, Américas, Ásia e Oceânia, nos últimos 500 anos que leva a globalização, sobre os povos indígenas, alguns desses massacres ainda bem recentes, que terão assassinado algumas dezenas de milhões de seres humanos, assiste-se a uma fascização dos regimes auto-denominados de “democráticos” e da própria sociedade. É a propaganda desencabrestada contra os cidadãos que desalinham do discurso único oficial, primeiro contra os ditos “negacionistas” da pandemia, agora contra os “putanistas” da guerra da Ucrânia. É o reforço do aparelho legislativo a fim de facilitar a imposição dos estados de emergência e da limitação dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. É o aumento do poder e da impunidades das polícias, com alguns dos seus agentes a serem medalhados como heróis apesar de terem tido a infelicidade de morrer em rixas de rua com grupos rivais da mesma natureza – é quase diário as notícias de teor: “Dois militares da GNR estão entre os cinco detidos no âmbito de um inquérito, que investiga crimes de corrupção...” É o maior investimento na putativa Defesa, com as Forças Armadas a serem dotadas com mais de mil milhões de euros para a compra de material obsoleto aos principais produtores da morte no Ocidente.

E será um dia destes – ninguém se admire! – a ilegalização dos partidos, independentemente do ideário político, desde que sejam do contra, que será decretada e em nome da “liberdade” e da “democracia”. Em programas televisivos político-recreativos, há já alguém (arauto da guerra) a reivindicar a ilegalização do PCP que, a acontecer, só pode queixar-se de si próprio porque há muito que renegou o comunismo para aderir às delícias da democracia parlamentar burguesia e do capitalismo-com-direitos. A seguir irão o PCTP/MRPP e o BE e tudo que cheire a comunismo mesmo que formal, será apenas uma questão de tempo; poderão nomeadamente incluir um Chega mais radical para disfarçar, na lenga-lenga velha e relha de que os “radicais” ou as “extremas” são todos iguais sejam eles de esquerda ou de direita. É a guerra ao comunista que, aliás, nunca esteve parada.

E há ainda gente “arrependida”, flores de lapela da burguesia, que vem para as primeiras páginas dos principais jornais mainstream falar de “jornalismo independente” ou de “estado democrático e de direito”, como a liberdade ou a democracia não fossem de classe numa sociedade dividida em classes social e politicamente antagónicas. A pequena-burguesia já pressente o fim do maravilhoso mundo capitalista. Os campos políticos demarcam-se à medida que a luta de classes se intensifica e a velha toupeira vai fazendo o seu trabalho silencioso de sapa.

quinta-feira, 7 de abril de 2022

Indústria de mentiras e guerra imperialista

  

Por Domenico Losurdo

Joseph Goebbels costumava dizer que é mais fácil as pessoas engolirem uma grande mentira do que uma pequena. É um princípio que a CIA vem aplicando nos últimos anos com a invenção de falsos massacres que justificam guerras. O filósofo Domenico Losurdo analisa a surpreendente facilidade com que nos deixamos enganar.

Na história da indústria da mentira como parte integrante do aparato militar-industrial do imperialismo, o ano de 1989 marcou uma verdadeira virada. Nicolae Ceausescu continua no poder na Romênia. Como derrubá-lo? A mídia ocidental começou a divulgar massivamente informações e imagens do " genocídio " perpetrado em Timisoara pela própria polícia de Ceausescu.

OS CORPOS MUTILADOS

O que realmente aconteceu? Com base na análise de Guy Debord sobre a “sociedade do espetáculo”, um ilustre filósofo italiano, Giorgio Agamben, resumiu com maestria esse caso:

"Pela primeira vez na história da humanidade, cadáveres recentemente enterrados ou que ainda estavam nas mesas do necrotério foram desenterrados às pressas e mutilados para simular diante das câmaras de televisão o genocídio que pretendia legitimar um novo regime. O que o mundo inteiro tinha diante de seus olhos como a realidade real nas telas de televisão era a anti-verdade absoluta e, embora a falsificação fosse às vezes evidente, ainda assim foi autenticada como real pelo sistema mundial de media, para que ficasse claro que a o real foi a partir de então nada mais que um momento do movimento necessário do falso. A verdade e a falsidade tornaram-se assim impossíveis de distinguir uma da outra e o espetáculo só se legitimava pelo espetáculo.

Timisoara é, nesse sentido, o Auschwitz da sociedade do espetáculo. Foi mesmo dito que se depois de Auschwitz é impossível escrever e pensar como antes, depois de Timisoara não será mais possível olhar para uma tela de televisão da mesma maneira.» [ 1 ]

O ano de 1989 é o ano em que a passagem da sociedade do espetáculo ao espetáculo como técnica de guerra começou a se manifestar em escala planetária.

Várias semanas antes do golpe, ou seja, antes da " revolução Cinecittà " na Romênia [ 2 ], o triunfo da" revolução de veludo " ocorreu em Praga em 17 de novembro de 1989 com um slogan inspirado em Gandhi: « Amor e verdade » . Na realidade, a disseminação de informações falsas de que a polícia havia " matou brutalmente " um estudante desempenhou um papel importante. É o que nos revela, 20 anos depois e com satisfação, "um jornalista e líder dissidente, Jan Urban", protagonista dessa manipulação: sua " mentira» teve naquela época o mérito de despertar a indignação das massas e o colapso do regime, já enfraquecido [ 3 ].

Algo semelhante aconteceu na China. Em 8 de abril de 1989, Hu Yaobang, secretário do Partido Comunista Chinês (PCC) até janeiro de 1987, sofreu um ataque cardíaco no meio de uma reunião do Bureau Político e morreu uma semana depois. A multidão na Praça da Paz Celestial liga sua morte ao amargo conflito político que eclodiu no âmbito daquela reunião [ 4 ]. O falecido torna-se de certa forma vítima do sistema cuja derrubada é desejada.

Nos 3 casos, a invenção do crime e sua denúncia buscam despertar a onda de indignação necessária para favorecer o movimento de protesto. Essa estratégia encontra sucesso na Checoslováquia e na Roménia – países onde o regime socialista surgiu no calor do avanço do Exército Vermelho – mas fracassa na República Popular da China, fruto de uma grande revolução nacional e social. E o próprio fracasso se torna o ponto de partida para uma nova e ainda mais massiva guerra mediática, desencadeada por uma superpotência que não tolera a existência de rivais reais ou potenciais. Essa guerra dos media ainda está acontecendo. Mas a verdade é que o momento que define a virada da história é, antes de tudo, Timisoara, «o Auschwitz da sociedade do espetáculo».

«DAR PUBLICIDADE A BEBÊS» E O CORMORANT

Dois anos depois, em 1991, estourou a primeira Guerra do Golfo. Um jornalista americano teve a coragem de revelar como se desenrolou “ a vitória do Pentágono sobre os media”, ou seja, a “ derrota maciça dos media implementada pelo governo dos EUA ” [ 5 ].

Em 1991, a situação não era nada fácil para o Pentágono – nem para a Casa Branca. Era preciso convencer de que a guerra era necessária para uma população que ainda tinha em mente a memória do Vietname. O que fazer? Vários subterfúgios vão reduzir drasticamente as chances de jornalistas falarem diretamente com soldados ou reportarem diretamente das linhas de frente. Na medida do possível, tudo deve ser filtrado: o fedor da morte e, sobretudo, o sangue, o sofrimento e as lágrimas da população civil não devem invadir as casas dos cidadãos dos Estados Unidos – nem dos habitantes do resto do mundo – ao contrário do que aconteceu durante a Guerra do Vietname.

Mas o problema central e mais difícil de resolver é outro: como demonizar o Iraque de Saddam Hussein, que anos antes havia ganhado mérito – aos olhos dos próprios Estados Unidos – ao atacar o Irã nascido da Revolução Islâmica e antiamericana de 1979? e proselitismo no Oriente Médio? O processo de demonização não teria sido difícil se a vítima [de Saddam Hussein -Kuwait-] fosse um [país] angelical. Mas a operação não seria fácil. E não apenas por causa da repressão implacável no Kuwait contra todas as formas de oposição. Havia coisas muito piores: os piores empregos eram para imigrantes, vítimas de uma "escravidão de fato" que tinha conotações de sadismo. Casos de " Sérvios expulsos, queimados, cegos ou espancados até a morte» não desperte a menor emoção [ 6 ].

Mas foi feito! Generosa ou fabulosamente paga, uma agência de publicidade resolve tudo… denunciando que os soldados iraquianos cortam as “orelhas” dos kuwaitianos que resistem. Mas o clímax desta campanha ainda estava por vir: os invasores invadiram um hospital " tirando 312 recém-nascidos de suas incubadoras e deixando-os congelando até a morte no chão do hospital no Kuwait " [ 7]. Repetida ad nauseam pelo presidente Bush pai, reafirmada pelo Congresso, endossada pela imprensa mais autorizada e até pela Anistia Internacional, essa informação horrível, e também detalhada, não poderia deixar de provocar uma enorme onda de indignação: Saddam Hussein era o novo Hitler, fazer a guerra contra ele era não apenas necessário, mas também urgente e aqueles que se opunham ou não pareciam convencidos tinham que ser considerados como cúmplices mais ou menos conscientes do novo Hitler. Claro, essa informação era uma mentira cuidadosamente fabricada e espalhada. Foi exatamente por isso que a agência de publicidade ganhou seu dinheiro.

A reconstrução desse caso aparece num capítulo do livro já aqui referido, com um título apto: «Dar publicidade aos recém-nascidos» [ 8 ]. A verdade é que os recém-nascidos não foram os únicos que receberam publicidade. No início das operações de guerra, uma foto de um cormorão se afogando em petróleo de poços que o Iraque havia explodido foi espalhada pelo mundo. Verdade ou manipulação? Foi Saddam quem causou a catástrofe ecológica? Existem biguás nessa região do mundo e nessa estação do ano? A onda de indignação, autêntica e cuidadosamente manipulada, varreu os últimos sinais racionais de resistência.

FABRICAÇÃO DE FALSO VERDADEIRO, TERRORISMO DE INDIGNAÇÃO E DESLIGAMENTO DE GUERRA

Voltemos no tempo até a dissolução, ou melhor, o desmembramento da Iugoslávia. Contra a Sérvia, que historicamente havia sido protagonista do processo de unificação daquele país multiétnico, ondas sucessivas de bombardeios mediáticos foram desencadeadas uma após a outra – nos meses anteriores aos verdadeiros bombardeios. Em agosto de 1998, dois jornalistas, um americano e um alemão, “relataram a existência de valas comuns com 500 corpos de albaneses, incluindo 430 crianças, nos arredores de Orahovac, onde ocorreram intensos combates. Outros jornais ocidentais pegaram a história e deram ampla circulação. Mas era tudo falso, como mostra uma missão de observação da União Europeia». [ 9 ]

Mas isso não coloca em crise a fábrica de falsidades. No início de 1999, os media ocidentais começaram a perseguir a opinião pública internacional com fotos de cadáveres empilhados no fundo de uma cova e às vezes decapitados e mutilados. As explicações e artigos que acompanhavam essas imagens proclamavam que eram civis albaneses desarmados massacrados pelos sérvios. Mas:

“O massacre de Racak é aterrorizante, com mutilações e cabeças decepadas. Um cenário ideal para despertar a indignação da opinião pública internacional. Mas algo parece estranho nas características desse massacre. Os sérvios costumam matar sem mutilar [...] Como nos mostra a guerra na Bósnia, as denúncias de barbaridades cometidas com os corpos, vestígios de tortura, decapitações, são uma arma de propaganda muito utilizada [...] Talvez não sejam os sérvios mas os guerrilheiros albaneses que mutilaram os corpos”. [ 10 ].

Ou talvez os cadáveres das vítimas de um dos inúmeros confrontos tenham sido submetidos a um tratamento adicional, para dar a impressão de execuções a sangue frio e um desencadeamento de fúria bestial, imediatamente atribuída ao país que a OTAN queria bombardear [ 11 ].

A configuração do Racak foi apenas o clímax de uma campanha de desinformação teimosa e implacável. Alguns anos antes, o bombardeio do mercado de Sarajevo havia permitido que a OTAN se apresentasse como o corpo moral supremo, que não podia tolerar que as " atrocidades " sérvias ficassem impunes. Hoje podemos ler, mesmo no jornal italiano  Corriere della Sera, que " foi uma bomba de origem bastante duvidosa que provocou o massacre em Sarajevo, desencadeando a intervenção da OTAN " [ 12]. Com este precedente, Racak agora nos parece uma espécie de reedição de Timisoara, uma reedição que durou vários anos. No entanto, mesmo antes desse caso, outros sucessos já haviam sido registrados. O ilustre filósofo que havia denunciado em 1990 " o Auschwitz da sociedade do espetáculo " ocorrido em Timisoara, juntou-se ao coro dominante 5 anos depois, criticando de maneira maniqueísta " o súbito deslizamento das classes dominantes ex-comunistas para racismo mais extremo (como na Sérvia, com o programa de “limpeza étnica”) » [ 13 ]. Depois de ter analisado a trágica falta de diferenciação entre " verdade e falsidade "» no quadro da sociedade do espectáculo, Agamben acabou por confirmá-la involuntariamente, aceitando expeditamente a versão (ou seja, a propaganda de guerra) difundida pelo «sistema mediático mundial», que ele próprio designara anteriormente como a principal fonte de manipulação. Depois de ter denunciado a redução do «verdadeiro» a «um momento do necessário movimento do falso», redução implementada pela sociedade do espetáculo, Agamben limitou-se a dar uma aparência de profundidade filosófica a esse «verdadeiro» reduzido precisamente a «um momento do movimento necessário do falso».

Por outro lado, um elemento da guerra contra a Iugoslávia nos remete, mais do que Timisoara, à primeira Guerra do Golfo: o papel das relações públicas.

«Milosevic é um homem esquivo, não gosta de publicidade, não gosta de se mostrar nem de fazer discursos públicos. Parece que na época dos primeiros anúncios da dissolução da Iugoslávia, Ruder&Finn, a empresa de relações públicas que trabalhava para o Kuwait em 1991, veio até ele para propor seus serviços. E eles a colocaram na rua. Em vez disso, Ruder&Finn foi contratado pela Croácia, os muçulmanos da Bósnia e os albaneses do Kosovo em troca de 17 milhões de euros por ano, para proteger e promover a imagem dos três grupos. E fez um excelente trabalho! James Harf, diretor da Ruder&Finn Global Public Affairs, declarou […] em uma entrevista: “Conseguimos igualar, na opinião pública, sérvios e nazistas […] Somos profissionais. Temos um trabalho a fazer e o fazemos. Não somos pagos para nos dedicarmos à moral”» [ 14 ].

Agora vamos olhar para a segunda Guerra do Golfo. Nos primeiros dias de fevereiro de 2003, o secretário de Estado norte-americano, Colin Powell, mostrou ao Conselho de Segurança da ONU as imagens dos laboratórios móveis de produção de armas químicas e biológicas que o Iraque supostamente possuía. Algum tempo depois, o primeiro-ministro britânico Tony Blair reforçou a dose: Saddam Hussein não só tinha essas armas, mas já havia traçado planos para usá-las e poderia ativá-las “em 45 minutos”. E novamente vinha o espetáculo que, mais do que o prelúdio da guerra, constituía em si mesmo o primeiro ato de guerra, com a advertência contra um inimigo que a raça humana devia liquidar a todo custo.

Mas o arsenal de mentiras usado ou a ser usado foi muito além. Em seu esforço para "desacreditar o líder iraquiano aos olhos de seu próprio povo", a CIA pretendia "divulgar um documento filmado em Bagdad revelando que Saddam era gay. O vídeo deveria mostrar o ditador iraquiano tendo uma relação sexual com um menino. Tinha que dar a impressão de ter sido filmado com uma câmara escondida, como se fosse uma gravação clandestina”. Eles também estudavam "a possibilidade de interromper as transmissões da televisão iraquiana com uma edição extraordinária - falsa - do noticiário da televisão em que seria anunciado que Saddam havia renunciado e que todo o poder havia passado para as mãos de seu filho, o temido e odiado Dia” [ 15 ].

O mal devia ser denunciado e estigmatizado, enquanto o bem devia aparecer em todo o seu esplendor. Em dezembro de 1992, fuzileiros navais dos EUA desembarcaram na costa de Mogadíscio. Para ser mais preciso, eles desembarcaram lá duas vezes, mas a repetição da operação não se deveu a dificuldades militares ou logísticas. Era preciso mostrar ao mundo que, além e antes mesmo de ser uma formação militar de elite, os fuzileiros navais dos Estados Unidos eram uma organização caridosa e caridosa que levava esperança e sorrisos ao povo somali, vítima da miséria e da fome. A repetição do show de desembarque visava corrigir detalhes e defeitos errôneos. Um jornalista que testemunhou o evento explicou:

«Tudo o que está acontecendo na Somália e o que vai acontecer nas próximas semanas é um  show militar-diplomático […] Realmente, uma nova era na história da política e da guerra começou naquela estranha noite em Mogadíscio […] “ A Operação Esperança ” foi a primeira operação militar que não foi apenas filmada ao vivo para câmaras de televisão, mas também pensada, construída e organizada como um  programa de televisão » [ 16 ].

Mogadíscio era a contraparte de Timisoara. Alguns anos depois de ter encenado a representação do Mal (o comunismo que finalmente estava em colapso), foi encenada a representação do Bem (o Império Americano que emergiu do triunfo obtido na guerra fria). Os elementos que compõem o espetáculo de guerra e que determinam seu sucesso estão agora claros.

Fonte: VoltaireNet

terça-feira, 5 de abril de 2022

O mito de Sísifo

 

Alberto Camus

Os deuses tinham condenado Sísifo a empurrar sem descanso um rochedo até ao cume de uma montanha, de onde a pedra caia de novo, em consequência do seu peso. Tinham pensado, com alguma razão, que não há castigo mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança.

A acreditar em Homero, Sísifo era o mais ajuizado e o mais prudente dos mortais. No entanto, segundo outra tradição, tinha tendências para a profissão de bandido. Não vejo nisto a menor contradição. As opiniões diferem sobre os motivos que lhe valeram ser o trabalhador inútil dos infernos. Censura-se-lhe, de início, certa leviandade para com os deuses. Revelou os segredos deles. Egina, filha de Asopo, foi raptada por Júpiter. O pai espantou-se com esse desaparecimento e queixou-se dele a Sísifo. Este, que estava ao corrente do rapto, propôs a Asopo contar-lhe o que sabia, com a condição de ele dar água à cidadela de Corinto. Aos raios celestes, preferiu a bênção da água. Por tal foi castigado nos infernos. Homero conta-nos também que Sísifo havia acorrentado a Morte. Plutão não pôde suportar o espectáculo do seu império deserto e silencioso. Enviou o deus da guerra, que soltou a Morte das mãos do seu vencedor.

'Diz-se ainda que, estando Sísifo quase a morrer, quis, imprudentemente, pôr à prova o amor de sua mulher. Ordenou-lhe que lançasse o seu corpo, sem sepultura, para o meio da praça pública. Sísifo encontrou-se nos infernos. E ai, irritado com uma obediência tão contrária ao amor humano, obteve de Plutão licença para voltar à terra e castigar a mulher. Mas, quando viu de novo o rosto deste mundo, sentiu inebriadamente a água e o sol, as pedras quentes e o mar, não quis regressar à sombra infernal. Os chamamentos, as cóleras e os avisos de nada serviram. Ainda viveu muitos anos diante da curva do golfo, do mar resplandecente e dos sorrisos da terra. Foi necessário uma ordem dos deuses. Mercúrio veio pegar no audacioso pela gola e, roubando-o às alegrias, levou-o à força para os infernos, onde o seu rochedo já estava pronto.

Já todos compreenderam que Sísifo é o herói absurdo. É-o tanto pelas suas paixões como pelo seu tormento. O seu desprezo pelos deuses, o seu ódio à morte e a sua paixão pela vida valeram-lhe esse suplício indizível em que o seu ser se emprega em nada terminar. É o preço que é necessário pagar pelas paixões desta terra. Não nos dizem nada sobre Sísifo nos infernos. Os mitos são feitos para que a imaginação os anime. Neste, vê-se simplesmente todo o esforço de um corpo tenso, que se esforça por erguer a enorme pedra, rolá-la e ajudá-la a levar a cabo uma subida cem vezes recomeçada; vê-se o rosto crispado, a face colada à pedra, o socorro de um ombro que recebe o choque dessa massa coberta de barro, de um pé que a escora, os braços que de novo empurram, a segurança bem humana de duas mãos cheias de terra. No termo desse longo esforço, medido pelo espaço sem céu e pelo tempo sem profundidade, a finalidade está atingida. Sísifo vê então a pedra resvalar em poucos instantes para esse mundo inferior de onde será preciso trazê-la de novo para os cimos. E desce outra vez à planície.

É durante este regresso, esta pausa, que Sísifo me interessa. Um rosto que sofre tão perto das pedras já é, ele próprio, pedra! Vejo esse homem descer outra vez, com um andar pesado mais igual, para o tormento cujo fim nunca conhecerá. Essa hora que é como uma respiração e que regressa com tanta certeza como a sua desgraça, essa hora é a da consciência. Em cada um desses instantes em que ele abandona os cumes e se enterra a pouco e pouco nos covis dos deuses, Sísifo é superior ao seu destino. É mais forte do que o seu rochedo.

Se este mito é trágico, é porque o seu herói é consciente. Onde estaria, com efeito, a sua tortura se a cada passo a esperança de conseguir o ajudasse? O operário de hoje trabalha todos os dias da sua vida nas mesmas tarefas, e esse destino não é menos absurdo. Mas só é trágico nos raros momentos em que ele se torna consciente. Sísifo, proletário dos deuses, impotente e revoltado, conhece toda a extensão da sua miserável condição: é nela que ele pensa durante a sua descida. A clarividência que devia fazer o seu tormento consome ao mesmo tempo a sua vitória. Não há destino que não se transcenda pelo desprezo.

 

Se a descida se faz assim, em certos dias, na dor, pode também fazer-se na alegria. Esta palavra não é de mais. Ainda imagino Sísifo voltando para o seu rocl1edo, e a dor estava no começo. Quando as imagens da terra se apegam de mais à lembrança, quando o chamamento da felicidade se torna demasiado premente, acontece que a tristeza se ergue no coração do homem: é a vitória do rochedo, é o próprio rochedo. O imenso infortúnio é pesado de mais para se poder carregar. São as nossas noites de Gethsemani. Mas as verdades esmagadoras morrem quando são reconhecidas. Assim, Édipo obedece de inicio ao destino, sem o saber. A partir do momento em que sabe, a sua trágéd1a começa. Mas no mesmo instante, cego e desesperado, ele reconhece que o único elo que o prende ao mundo é a mão fresca de uma jovem. Uma frase desmedida ressoa então: «Apesar de tantas provações, a minha idade avançada e a grandeza da minha alma fazem-me achar que tudo está bem». O Édipo de Sófocles, como o Kirilov de Dostoïevsky, dá assim a fórmula da vitória absurda. A sabedoria antiga identifica-se com o heroísmo moderno.

Não descobrimos o absurdo sem nos sentirmos tentados a escrever um manual qualquer da felicidade. «O quê, por caminhos tão estreitos?..). Mas só há um mundo. A felicidade e o absurdo são dois filhos da mesma terra. São inseparáveis. O erro seria dizer que a felicidade nasce forçosamente da descoberta absurda. Acontece também que o sentimento do absurdo nasça da felicidade. «Acho que tudo está bem), diz Édipo e essa frase é sagrada. Ressoa no universo altivo e limitado do homem. Ensina que nem tudo está, que nem tudo foi esgotado. Expulsa deste mundo um deus que nele entrara com a insatisfação e o gosto das dores inúteis. Faz do destino uma questão do homem, que deve ser tratado entre homens. Toda a alegria silenciosa de Sísifo aqui reside. O seu destino pertence-lhe. O seu rochedo é a sua coisa. Da mesma maneira, quando o homem absurdo contempla o seu tormento, faz calar todos os ídolos. No universo subitamente entregue ao seu silêncio, erguem-se as mil vozinhas maravilhadas da terra. Chamamentos inconscientes e secretos, convites de todos os rostos, são o reverso necessário e o preço da vitória. Não há Sol sem sombra e é preciso conhecer a noite. O homem absurdo diz sim e o seu esforço nunca mais cessará. Se há um destino pessoal, não há destino superior ou, pelo menos, só há um que ele julga fatal e desprezível. Quanto ao resto, ele sabe-se senhor dos seus dias. Nesse instante subtil em que o homem se volta para a sua vida, Sísifo, regressando ao seu rochedo, contempla essa sequência de acções sem elo que se torna o seu destino, criado por ele, unido sob o olhar da sua memória, e selado em breve pela sua morte. Assim, persuadido da origem bem humana de tudo o que é humano, cego que deseja ver e que sabe que a noite não tem fim, está sempre em marcha. O rochedo ainda rola.

Deixo Sísifo no sopé da montanha! Encontramos sempre o nosso fardo. Mas Sísifo ensina a fidelidade superior que nega os deuses e levanta os rochedos. Ele também julga que tudo está bem. Esse universo enfim sem dono não lhe parece estéril nem fútil. Cada grão dessa pedra, cada estilhaço mineral dessa montanha cheia de noite, forma por si só um mundo. A própria luta para atingir píncaros basta para encher um coração de homem. É preciso imaginar Sísifo feliz.

O Mito de Sísifo – Ensaio sobre o Absurdo. Alberto Camus. Livros do Brasil.