Miguel de Unamuno
Chego à conclusão deste escrito, pois tudo neste mundo tem que se concluir, e talvez também no outro. Mas isto tem uma conclusão? É conforme o que se entenda por concluir. Se é concluir no sentido de acabar, então isto começa ao mesmo tempo que conclui; se é concluir no sentido lógico, então não; não conclui.
Escrevo esta conclusão fora da minha pátria,
Espanha, dilacerada pela mais vergonhosa e estúpida tirania, pela tirania da
imbecilidade militarista; fora do meu lar, da minha família, dos meus oito
filhos – não tenho netos ainda –, e
sentindo em mim, com a luta civil, a religiosa. A agonia da minha pátria, que
está a morrer, removeu na minha alma a agonia do cristianismo. Sinto simultaneamente
a política elevada a religião, e a religião elevada a política. Sinto a agonia
do Cristo espanhol, do Cristo agonizante. E sinto a agonia da Europa, da civilização
a que chamamos cristã, da civilização greco-latina ou ocidental. E as duas
agonias são uma só. O cristianismo mata a civilização ocidental, ao mesmo tempo
que esta mata aquele. E vivem assim, matando-se.
E muitos crêem que nasce uma nova religião,
uma religião de origem judaica e ao mesmo tempo tártara: o bolchevismo. Uma
religião cujos dois profetas são Karl Marx e Dostoievski. Mas Dostoievski, não
será cristão? Os Irmãos Karamazov, não será um Evangelho?
E entretanto dizem que esta França onde escrevo
isto, de cujo pão agora como e bebo água que traz sais dos ossos dos seus
mortos, que esta França se despovoa, e se vê invadida por estrangeiros, porque
nela morreu a fome de maternidade e paternidade, porque nela já não se acredita
na ressurreição da carne. Acredita-se na imortalidade da alma, na glória, na
história? A trágica agonia da Grande Guerra deve ter curado muitos da sua fé na
glória.
Aqui, a poucos passos de onde escrevo, arde
continuamente, sob o Arco da Estrela – um arco de triunfo imperial! – a luz
acesa sobre o túmulo do soldado desconhecido, daquele cujo nome não ficará na
história. Se bem que, não será já um nome esse de desconhecido? Desconhecido
não vale tanto como Napoleão Bonaparte? Junto desse túmulo foram rezar mães e
pais que pensavam se aquele, o desconhecido, não seria o seu filho; mães e pais
cristãos que acreditam na ressurreição da carne. E talvez tenham ido rezar
também mães e pais incrédulos, e até mesmo ateus. E sobre esse túmulo o cristianismo
ressuscita.
O pobre soldado desconhecido, talvez um crente
em Cristo e na ressurreição da carne, talvez um incrédulo ou um racionalista,
com fé na imortalidade da alma, na história, ou sem ela, dorme o último sono
abrigado, não na terra, mas na pedra, sob os ingentes silhares de uma grande
porta, que não se abre nem se fecha, e onde estão gravados, em letras, os nomes
das glórias do Império. Glórias?
Não há muitos dias presenciei uma cerimónia
patriótica: uma procissão cívica que desfilou diante desse túmulo do soldado
desconhecido. Junto aos seus ossos, não enterrados, mas empedrados, o
presidente da República da deusa França, com o seu Governo e uns quantos
generais reformados e disfarçados de civis, todos eles abrigados debaixo das
pedras que dizem com as suas letras as glórias sangrentas do Império. E o pobre
soldado desconhecido talvez fosse um rapaz que tinha o coração e a cabeça
cheios de história, ou talvez a odiasse.
Depois da procissão cívica ter ido embora, e
de se terem retirado para os seus lares o primeiro magistrado da deusa França e
os que o acompanhavam, depois de terminarem os gritos de nacionalistas e de
comunistas, que se manifestaram durante a tarde, uma pobre mãe crente -crente
na maternidade virginal de Maria aproximou-se
silenciosa e solitária do túmulo do filho desconhecido e rezou: «Venha a nós o
vosso reino!», o reino de Deus, aquele que não é deste mundo. E depois: «Ave Maria,
cheia de graça, o Senhor é convosco; bendita sois vós entre as mulheres e
bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus. Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por
nós, pecadores, agora e na hora da nossa morte. Amen!» Jamais se rezou assim
diante da Acrópole! E com essa mãe rezava toda a França cristã. E o pobre filho
desconhecido, que ouvia – quem sabe? – aquela oração, sonhou, prestes a morrer,
ressuscitar o seu lar lá no céu da sua pátria, no céu da sua doce França, e
aquecer os séculos dos séculos da vida eterna com os beijos da sua mãe sob o
beijo da luz da Mãe de Deus.
Junto ao túmulo do francês desconhecido, que é
algo de mais sagrado que o francês médio, senti a agonia do cristianismo em
França.
Há momentos em que uma pessoa imagina que a Europa,
o mundo civilizado, está a passar por outro milénio que se aproxima do seu fim,
o fim do mundo civilizado, da civilização, como os primitivos cristãos, os verdadeiros
evangélicos, acreditavam que o fim do mundo se aproximava. E há quem cite a
trágica expressão portuguesa: «Isto dá vontade de morrer.» 1 Tenho ganas de morrer.
E tenta-se estabelecer a sede da Sociedade das
Nações dos Estados Unidos da Civilização em Genebra, à sombra de Calvino e de
Jean-Jacques. E também de Amiel, que sorri tristemente olhando – de onde? – para
essa obra de políticos. E sorri tristemente a sombra de Wilson, outro político
cristão, outra contradição em carne e espírito. Wilson, o místico da paz, uma
contradição tão grande como o foi o primeiro Moltke, o místico da guerra.
O furacão de loucura que varre a civilização
numa grande parte da Europa parece que é uma loucura de uma origem a que os
médicos chamariam específica. Muitos dos agitadores, dos ditadores, dos que
arrastam os povos, são pré-paralíticos progressivos. É o suicídio da carne.
Há já quem acredite que é o mistério da
iniquidade.
Deitemos outra vez os olhos a essa enraizada
tradição que identifica o pecado bíblico dos nossos primeiros pais, o terem comido
o fruto da árvore da ciência do bem e do mal, com o pecado da carne que quer
ressuscitar. Mas a carne não se preocupou depois em ressuscitar, não se moveu
pela fome e sede de paternidade e maternidade, mas pelo puro prazer, pela
simples luxúria. A fonte da vida envenenou-se, e, com a fonte da vida,
envenenou-se a fonte do conhecimento.
A Agonia do Cristianismo, Miguel de Unamuno. Livros Cotovia, 1991
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