terça-feira, 30 de abril de 2024

1º de Maio ou 25 de Abril?

 

O 25 de Abril foi assinalado, como seria de esperar, com muitos cravos e com todo o bicho careta e desfilar pela Avenida da Liberdade, eram os cinquenta anos, um cinquentenário. A data redonda, exactamente o tempo suficiente para reescrever a história sem grande contraditório e ao serviço de agenda política actualizada e de acordo com os interesses da elite e da sua classe política. O povo (algum) e a classe média compareceram, foram mais de 220 mil em Lisboa – disse a imprensa mainstream, também aderente à efeméride. Seria uma revanche à vitória dos partidos da AD ou um saudosismo impotente perante a realidade?

Marcelo dita a agenda dos partidos

Na Assembleia da República, a dita casa da democracia, os discursos foram solenes, mais adequados às conveniências de cada partido, ou facção de interesses que ali representam; resumidamente, hipócritas ou, em hipótese benevolente, ingénuos. Ali se destacou o “supremo magistrado” da Nação, que enfiou o cravo na lapela no último instante antes de entrar no hemiciclo e, segundo transpareceu na imagem televisiva, com o ar de maior displicência e até de enfado. Mais um frete que o homem parido na oligarquia fascista fez à democracia, ela também uma flor de lapela.

Contudo, as palavras de descontração bem comida e bebida, proferidas por Marcelo em reunião com jornalistas estrangeiros e poucas horas antes das comemorações oficiais do 25 de Abril, sobrepuseram-se a todas as cerimónias comemorativas da data e, passado uma semana, preenchem os tabloides cá do burgo, as televisões, os debates de opinantes e outros avençados, e de todos os partidos, os da oposição e os do governo. O rei histrião marca e comanda a política nacional. Ou, pelo menos, a encenação que passa diariamente nas televisões, que são ainda os media que mais influenciam a opinião pública. As redes sociais, com os seus memes, dão-lhe uma ajudinha prestimosa.

in Henricartoon

Maio versus Abril

Amanhã irão decorrer as cerimónias, também oficiosas, do 1º de Maio, Dia Internacional do Trabalhador, que se espera que venham a ser cordatas, pacíficas, dentro a legalidade e da democracia. Tudo estará bem (aparentemente) já que vivemos os cinquenta anos de Abril, graças à intervenção dos capitães que estavam chateados por se sentirem ultrapassados pelos oficiais do quadro complemento e de não conseguirem vencer uma guerra que, à partida, já estava derrotada e que nem sequer deveria ter sido iniciada. As lutas dos trabalhadores nos meses que antecederam o golpe militar e que ameaçavam fazer cair na rua o regime no 1º de Maio de 1974, em estado avançado de convocação, são estórias que não interessam à imprensa de referência nem aos partidos do poder.

Se a situação económica que foi pano de fundo do 25 de Abril e que, em última instância definiu o fim do fascismo, não era boa, então, cinquenta anos depois e de estarmos na União Europeia e no euro, não é lá muito melhor. E há uma referência interessante: o salário mínimo nacional de 1974, imposto pela luta do proletariado revolucionário, não foi uma doação, era de 629 euros (valor actual), e agora, 50 anos depois, é de 820 euros mensais, ou seja, mais 191 euros, ou mais 30,37%. No mesmo período de tempo, o PIB, a tal riqueza nacional, aumentou duas vezes e meia. Ora, qualquer cidadão ou família paga a alimentação, o alojamento ou os transportes com euros, não com “democracia”.

Enquanto as assimetrias económicas e sociais aumentam e o empobrecimento é incontornável de uma ampla maioria do povo que trabalha, dos trabalhadores mais simples aos técnicos mais especializados, a riqueza vai-se acumulando na outra faixa da sociedade e onde predominam a banca e o grande capital financeiro internacional:

Lucros da Galp sobem 35% no primeiro trimestre para 337 milhões; BBVA (Black Rock) ganha 2,2 mil milhões de euros no primeiro trimestre, mais 19,1%; Lucro do Santander dispara 58% para 294 milhões no primeiro trimestre; Lucro trimestral do CaixaBank (BPI) avança 17,5% para 1.005 milhões; Grupo Santander com lucros de mais de 2,8 mil milhões de euros no primeiro trimestre; BCP (banco privado com algum capital nacional) confirma proposta de distribuição de 257 milhões de euros em dividendos, no ano passado a instituição financeira obteve um lucro de 856 milhões de euros. As manchetes dos jornais, pelo menos desta vez, não enganam.

A crise determina a política

A recessão económica na Europa é mais que evidente, a Alemanha, a dita “locomotiva” europeia, pifou, por força da crise capitalista e pela agravante da competição com os EUA, a potência imperial decadente que nos enfiou numa guerra que não é nossa, também chegou até nós, apesar da negação dos governos, do anterior e do actual; este já retomou a léria de que os problemas que encontra são herdados e escondidos pelo PS. Iremos ver se o comportamento do governo AD/Montenegro irá diferir do do seu homólogo PSD/Coelho/Portas. Conseguirá manter a paz social, como fez o governo PS/Costa? Talvez por se lembrar do passado que a entrada tem sido cautelosa. Os conflitos mantêm-se e as lutas que decorriam antes do dia 10 de Março apenas fizeram intervalo.

Durante a vigência do governo PS de maioria absoluta, as sondagens quanto ao apoio que disfrutava do eleitorado eram quase diárias, a instabilidade estava na ordem do dia. Marcelo dirigia a campanha, os media faziam o trabalho de campo. Quando pensávamos, foi o que nos deram a entender, que a partir de agora haveria estabilidade, embora o governo seja minoritário mas nenhum partido da posição não quer arcar com o bónus do derrube, volta de novo a agitação: «Metade dos portugueses acredita que o Governo de Montenegro não vai durar mais de um ano» - conclusões do barómetro mensal da Intercampus para o Jornal de Negócios, Correio da Manhã e CMTV. Somente 14% dos inquiridos estão convencidos de que reúne condições para cumprir os quatro anos.

Ainda antes da data do 25 de Abril, uma semana antes, e estas coisas nunca acontecem por acaso, o jornal do regime, “Expresso”, encomendou uma sondagem sobre a opinião dos “portugueses” (os inquiridos) sobre 16 áreas da vida económica, revelando que aqueles vêem melhorias em 8, assim-assim em 5 e opinião negativa em 3; resumindo, estarão satisfeitos com a democracia. Mas se a maioria dos inquiridos considera a democracia “preferível”, 47% deles, quase metade, não teriam problemas em apoiar um “líder forte”, um salvador da pátria, sem eleições. Relembrar que Montenegro afirmou, devido a não possuir maioria parlamentar, que iria, se necessário, governar por decreto.

Juntando esta preparação da opinião pública para uma possível solução bonapartista em caso de bloqueio parlamentar, as afirmações de Montenegro e a cruzada persistente de Marcelo em achincalhar os partidos, secundarizar o governo e a Assembleia da República, impor agendas mediatizadas, lançar factos políticos e fait divers a toda a hora e a todo o instante, fácil é chegarmos à conclusão de que a descredibilização, e a destruição a prazo, mais curto de que longo,  desta democracia mais não passa de que uma campanha concertada. Poderá haver algum protagonista que não tenha consciência disso cegado pela disputa pelo pote. As intervenções do histriónico presidente dependem menos do álcool que ingere ou da personalidade que possui, mas mais de uma agenda política há muito dada a conhecer. E quem não vê isto, é porque não quer ver.

Bruxelas diktat

Não nos cansamos de repetir, e fá-lo-emos até à exaustão se for preciso, que quem comanda a actividade política dos partidos que temos é a situação económica do país e dos interesses das elites que na verdade possuem o poder, quer económico quer político. Por sua vez, os dirigentes partidários não passam de funcionários que se vão revezando, sendo descartados após cumprirem, melhor ou pior, a missão que lhes é incumbida. Os próprios partidos actuais serão também substituídos a seu tempo e segundo os interesses dos que mandam, os DDT: a nível interno, uma burguesia rentista e parasita, subsídio-dependente e que tem no Estado o seguro de vida; a nível externo, Bruxelas (grande capital financeiro) dita as regras. Nenhum partido no governo ousará desafinar, os restantes são o coro da tragédia grega.

Para que não haja dúvidas sobre quem manda. Hoje, 30 de Abril, entram em vigor as novas regras comunitárias para défice e dívida pública; assim, os governos dos países da União Europeia terão de enviar para a Comissão Europeia os seus Programas de Estabilidade até Setembro. Estes planos serão discutidos durante o Verão e o Outono e incluirão “medidas de correção dos desequilíbrios macroeconómicos e diretrizes sobre reformas e investimentos prioritários para quatro ou sete anos”. Entrarão em vigor a partir de 2025 e terão a nova designação de “planos orçamentais-estruturais nacionais”. Ditarão o que os governos terão de fazer (haverá um tecto anual de gastos públicos), se não cumprirem com as regras podem incorrer em procedimentos por défices excessivos e multas. Eis a Europa dos valores e dos direitos… do mais forte. As próximas eleições para o Parlamento Europeu irão mostrar que os partidos com assento na Assembleia da República não põem em causa a União Europeia, discordarão quanto muito de algum pormenor.

O 1º de Maio é luta e internacionalista

Enquanto de um lado da barricada os partidos do establishment se entretêm em descobrir a razão ou a justeza das palavras presidenciais de “Costa era lento, por ser oriental; Montenegro não é oriental, mas é lento, tem o tempo do país rural” e “Portugal deve pagar custos da escravatura e dos crimes coloniais” ou “cortou relações com o filho após caso das gémeas brasileiras”; do outro lado, os trabalhadores portugueses lutam contra os salários de miséria (subida de salários é a prioridade para 62% dos portugueses); reivindicam: salários condignos (salário mínimo deveria ser de 1572,5 euros, o mesmo aumento do PIB nestes 50 anos); SNS universal, geral e gratuito; Escola Pública de qualidade; acesso dos filhos do trabalhadores ao Ensino Superior; Habitação, como direito fundamental e inalienável; Soberania alimentar; Independência económica e monetária, e subsequentemente política para o país; recusam terminantemente o envolvimento na guerra imperialista (saída imediata da Nato), que já lavra há cerca de dois anos na Europa. Exigem não apenas reformas, mas essencialmente uma revolução, que sejam eles a dirigir os seus próprios destinos na política e na economia. Esta luta não se restringe ao nosso país mas a todo o continente europeu e a todo o mundo – é internacionalista.

Imagem: Barricadas – Paris, 1944 – Robert Doisneau

terça-feira, 23 de abril de 2024

O Último Relatório para a Pide e A Luta Contra a Guerra Colonial

  

A preparação do 1º de Maio de 1974 mostrou que o povo estava a lutar e antes que o regime caísse na rua… deu-se o 25 de Abril.

Salgueiro Maia não conseguiu esconder, pouco tempo antes de falecer, as razões que levaram a que o golpe tivesse sido antecipado para a data de 25 de Abril – não era esta a data prevista para o seu desencadeamento - que era o “desconforto” existente no seio dos oficiais das Forças Armadas devido às consequências imprevisíveis da realização do 1.º de Maio Vermelho, cujo amplo trabalho de convocação era realizado desde o princípio do mês, situação confirmada pelo próprio Otelo em outra ocasião.

Por todo o lado se mobilizava os operários para o dia de luta do proletariado internacional, sendo visíveis de norte a sul do país as inscrições nos muros realizadas por comunistas revolucionários e da CDE sobre a libertação dos presos ou sobre a carestia de vida, mas cuja propaganda era feita em ruelas esconsas ou comunicados deixados aos montes nas casas de banho e corredores do Metro, sendo facilmente apanhados na sua quase totalidade pela polícia, como refere o relatório (página 2-4)

É o “Ultimo relatório sobre a situação geral do país do Ministério do Interior para a PIDE-DGS” (“Perintrep” do Comando-Geral da P.S.P, nº15/74, respeitante ao período de 6 a 13 de Abril), que diz.

A folha 2-1, ponto 1, Situação Geral e na alínea a), pode ler-se o seguinte: «Continuam a aparecer panfletos (LISBOA, AVEIRO, LEIRIA, SANTARÉM E VIANA DO CASTELO) e pichagens (LISBOA, COIMBRA E BRAGA), relativos ao próprio dia 1 de Maio. O panfleto referente a Viana do Castelo era já conhecido e os restantes não tinham sido ainda detectados. Os seus autores são: “MRPP”, “CLAC” e “RPA-C”. Este último tem a finalidade de pretender induzir o pessoal das Forças Armadas a manifestar-se no 1º. de Maio».

Páginas 2-3 e 2-4 do mesmo documento, faz-se referência a comunicados contra a guerra colonial distribuídos porta a porta pelos CLA-C's e pela RPA-C e a “inscrições murais com o desenho da foice e do martelo: “VIVA O 1º DE MAIO / VIVA A DITADURA DO PROLETARIADO / TODOS AO ROSSIO ÀS 19H30 / O 1º DE MAIO É VERMELHO / TODOS AO ROSSIO ÀS 19H30 MRPP”».

E a página 2-5 (só para citar algumas referências), pode ler-se igualmente: «Data: 29 Mar 74. Editado: “Comité Amílcar Cabral – Comité Directivo da RPA-C. Súmula: Procura arrastar soldados e marinheiros para a anunciada manifestação do dia 1 de Maio no ROSSIO pelas 19h30, ao lado da classe operária e do povo contra a ditadura da burguesia colonial-fascista, contra a exploração capitalista, etc., indicando ter-se registado já no Regimento de Engenharia nº1 um caso de indisciplina».

Coimbra, 8 de Abril «detectadas na Rua Rego do Bonfim e na Fábrica de Cortumes, as inscrições murais: “VIVA A CLASSE OPERÁRIA, ABAIXO A EXPLORAÇÃO CAPITALISTA, O.C.M.L.P. / O GRITO DO POVO EM FRENTE PELA REVOLUÇÃO POPULAR / VIVA O 1-º DE MAIO”» (pág. 2-10).

Em Barcelos, «em 10 de Abril, são «detectadas em vários locais as inscrições murais: “VIVA O 1.º DE MAIO – GREVE / MANIFESTEMO-NOS CONTRA A EXPLORAÇÃO CAPITALISTA / ABAIXO O CAPITALISMO / ABAIXO O CUSTO DE VIDA / MAIS DINHEIRO /JUNTOS NO 1.º DE MAIO DIA DO OPERÁRO / LUTA”, seguidas das iniciais A.C.M.L.P. e do desenho da foice e martelo» (a folha 2-12).

Em Viana do Castelo, «11 de Abril, foram encontrados no Bairro Jardim, 26 exemplares do panfleto: “CAMARADAS: VIVA O DIA DOS TRABALHADORES – VIVA O 1º DE MAIO, editado pela Organização Marxista-Leninista Portuguesa (O Grito do Povo)”» (pág. 2-22).

Aveiro, 11 de Abril «foram encontrados em Espinho, exemplares dos panfletos com o título: FERIADO NO 1.º DE MAIO! UMA LUTA DE TODOS OS TRABALHADORES. Assinado por “Um Grupo de Trabalhadores” (pág. 2-11).

Outras indicações sobre a agitação e propaganda para a convocação do 1º de Maio, realizadas em Braga, na Marinha Grande ou em Torres Novas, se podem encontrar do mesmo documento (páginas 2-17 e 2-20), o que prova que a Pide e as outras forças repressivas tinham os olhos postos sobre a actividade de quem se oponha com firmeza à guerra colonial e ao regime.

O PADRE QUE PREGAVA CONTRA A GUERRA E OS ESPECULADORES

Sem dúvida que uma das referências mais interessantes encontradas no “ÚLTIMO RELATÓRIO sobre a situação geral do país do ex-ministro do Interior para a ex-pide/dgs” é aquela que diz respeito à prédica do padre de Maximinos, em 6 de Abril, que passamos a transcrever: «Aspecto religioso: chegou ao conhecimento do CD que o padre LIRA, pároco da freguesia de Maximinos desta cidade, nas meditações que fez durante a Via Sacra, enquadrada no programa das solenidades da Semana Santa em Braga, que teve lugar naquele dia, tendo por intenção especial os emigrantes, junto dos respectivos calvários, entre o mais, pronunciou: “Ó Jesus Cristo auxiliei o povo do século XX, ajudai o clero, as Instituições, os Bombeiros, os Educadores e os que fazem greves para aumentar os seus salários;

Ó Jesus Cristo castigai os do século XX que exploram os pobres, açambarcando os géneros e marcando-os por um preço mais elevado, aqueles que compram por cinco e vendem por trinta e cinco, aqueles que têm os presos a morrerem nas cadeias, aqueles que como Judas atraiçoam toda a gente e estão agora colocados em grandes pedestais;

Ó Santa Mãe que recebeste uma medalha do teu filho como exemplo de honra, mas não é como estas mães que agora recebem medalhas e condecorações a título póstumo por os filhos que morrem na guerra”» (pág. 2-13).

Fonte

quinta-feira, 18 de abril de 2024

Estórias do fascismo português

Uma pequena estória sobre a censura do fascismo português, publicada pelo Jornal de Notícias por ocasião da morte do seu antigo director, o jornalista Manuel Ramos, ocorrida no dia 8 de Novembro de 2006. A que se juntam duas pequenas crónicas do jornalista e poeta Manuel António Pina que, no seu estilo peculiar, denuncia os falsos democratas que, de uma maneira ou de outra, assumiram a herança do fascismo ou, não deixando de colaborar, tentam apagar o passado tenebroso.

A “hora dos coronéis” chegava depois do jantar. O militar de plantão nas instalações dos Serviços de Censura, à Rua de Santa Catarina, telefonava pontualmente às 21 horas e Manuel Ramos fazia questão de ser ele a atender, embora quem o conhecesse soubesse que paciência evangélica era virtude que ele não cultivava.

“Notícias sobre o almirante Tenreiro são para cortar” – dizia o coronel do lado de lá do telefone. “Para cortar, senhor coronel? Então, já não se pode falar de um homem que tantos serviços tem prestado à Pátria?”, repontava Manuel Ramos, do lado de cá, em ar de gozo. “E também estão proibidas notícias sobre suicídios”, informava, noutra altura, o coronel. E Manuel Ramos escrevia nas suas notas diárias: “A Censura proibiu os suicídios em Portugal”…

São aos milhares as notas de Censura que ainda existem no Centro de Documentação do “Jornal de Notícias”. Como a desobediência nestes casos era crime e podia dar azo a julgamento em Tribunal Plenário, outro remédio não havia senão seguir à risca as “ordens dos coronéis”, que não se limitavam a dá-las pelo telefone. Todos os dias, o Maciel, contínuo da Redacção, ia a Santa Catarina levar as prosas para os censores poderem cortar, com lápis vermelho – em Lisboa, o lápis era azul – os extractos que eles considerassem não estarem de acordo com os cânones do regime. E invariavelmente os cortes deixavam as notícias sem qualquer sentido… Manuel Ramos, que sempre foi um homem da Oposição, ficava vermelho de raiva com todos estes disparates. Também no Centro de Documentação do JN há milhares de notícias arquivadas com o selo dos coronéis. E quanto à guerra colonial, que mobilizou milhares de jovens para as antigas colónias, nem pensar: Daqui apenas podia dar-se à estampa as notas oficiais que, normalmente, só contemplavam o número de mortes e feridos. Mas não se fazia, então, as notícias? Manuel Ramos, neste particular era inflexível: “Nós escrevemos; eles que cortem se quiserem”, sentenciava.

In “JN”, 09/11/2006

“Salazar – Agora, na hora da sua morte” de João Paulo Correia e Miguel Rocha

Assim se faz a história

Pedro Moutinho, líder da Juventude Popular/CDS/PP, é um jovem voluntarioso e irá, ninguém tenha dúvidas, longe no partido. Não lhe falta, como a Portas, “frontalidade” e convicção, independentemente do facto, despiciendo, de aquilo que diz ser ou não verdade. Qualquer jovem candidato a político sabe que o que importa, em política, não é o que se diz, mas o modo convicto como se diz. Para isso servem as "jotas", para "formação". E se Portas pode, sem pestanejar, dizer que as cópias que trouxe para casa de documentação que se encontrava no Ministério da Defesa eram só inocentes "notas pessoais" (61893 páginas de “notas pessoais”), porque não pode um aprendiz de Portas "apontar com frontalidade" como um dos responsáveis pelos “sequestros e incêndios às sedes do CDS-PP logo após a revolução de Abril de 1974” o dirigente comunista Bernardino Soares que, à época, tinha quatro tenros anos de idade?

Toda a gente sabe que os comunistas comem criancinhas e que as criancinhas comunistas andam por aí, como o "Baby Herman" de “Roger Rabitt”, de fraldas e charuto, apalpando “baby sitters” e incendiando sedes do CDS. Moutinho estava lá e viu tudo, apesar de só ter nascido oito anos depois. É assim que tem que se escrever a História de Portugal, "com frontalidade".

(Manuel António Pina, “Por outras palavras”, “JN”, 28/11/2007)

Um negócio obsceno

Os 38 apartamentos de luxo construídos no edifício que foi a sede da PIDE, em Lisboa ("um edifício com história" que, diz a imobiliária, se mostra "novamente orgulhoso da sua herança ") estão a ser vendidos convidando os compradores a "reviver tempos de esplendor" e um passado de "luzes a reflectirem-se nas pratas do aparador e nas vestes de gala de cavaleiros e damas".

A suja história de sangue e horror do edifício e os gritos de dor de milhares de portugueses que as "velhas e nobres paredes com um metro de espessura" abafavam, são agora, pelo turvo milagre da usura, uma memória doirada, transbordante de festas e de bodas, e de duques, príncipes e embaixadores. Num país onde o dinheiro compra tudo, até a memória colectiva, os antigos torturadores tornaram-se "copeiros e gentis homens" ao serviço de ricaços e recém-chegados ansiosos por reconhecimento.

Bem pode o poeta clamar que "com usura homem algum terá casa de boa pedra" e que "com usura, pecado contra a natureza/ sempre teu pão será rançosa côdea"; os usurários não têm pesadelos nem temem fantasmas. O esquecimento é o seu "estilo de vida".

(de Manuel António Pina, “Por outras palavras”, in JN , 20/03/2009)

quarta-feira, 10 de abril de 2024

O Vigésimo Quarto Governo

 

Em 50 anos de democracia de Abril, vamos no governo nº24, ou seja, já passaram 23 governos de turno e chegou-se às duas dúzias – são dois números redondos, é para se dizer que à dúzia é mais barato. Este governo é apresentado pelos media de referência como «um Governo de “capacidades e talentos” que está a ser “preparado” há mais de um ano», ou o «Governo muito mais técnico e feminino», características por si só suficientes para ultrapassar a falta de “experiência no poder”. São dezassete ministros e 41 secretários de estado que já tiraram a “fotografia de família” na vila de Óbidos e onde, muito provavelmente, não deixaram de apreciar a famosa ginjinha e comido o copo de chocolate. Mas, talvez por essa razão, o primeiro-ministro já anteriormente declarara que irá governar por decreto e os mesmos media mainstream já apelam de forma veemente à estabilidade, quando até à véspera das eleições não se cansavam de desestabilizar o governo de maioria absoluta do PS.

O bloco central de interesses e a agenda da extrema-direita

O país tem sido governado, na maior parte do tempo, à vez: ora governa PS, ora governa PSD, só ou acompanhado pelo anexo. Mas, em questões fundamentais para as elites indígenas ou em relação às “orientações” de Bruxelas, tem havido sempre acordo entre os dois partidos, usualmente denominado de “pacto de regime”. Neste momento, parece que estamos a assistir a uma crise deste namoro ou união de facto pela introdução de um terceiro elemento, o partido da extrema-direita; ou, então, a uma sucessão de truques, ou seja, a mais uma encenação de que estes dois principais partidos da governação são exímios. Também poderá ser uma mistura das duas coisas, ambos continuarem a apresentar-se perante o povo que os elege e sustenta como partidos “responsáveis”, amantes da estabilidade, mas só quando lhes interessa, e simultaneamente usarem o terceiro partido como instrumento de manipulação. PS empurra o PSD para os braços do mal-amado para o acusar de faltar à palavra (“não é não”), entretanto o PSD vitimiza-se pela má fé do PS. No final, a comédia está sempre presente.

Nos entrementes, assiste-se à união das diversas forças políticas e de influência social mais conservadores e reaccionárias existentes no seio da sociedade portuguesa. A apresentação do livro pelo ex-primeiro-ministro Coelho, que martirizou o povo trabalhador com austeridade redobrada, gabando-se de ter ido além das imposições da troika, onde critica as políticas de “esquerda” dos governos PS no sentido da legalização do aborto e da eutanásia e da aceitação da ideologia identitária do lóbi LGBTQI+, tem o efeito, para além de mobilizar toda a elite que se revês nos valores “sagrados” do “Deus, Pátria e Família”, de impor ao governo esta agenda, em claro revivalismo do fascismo. Não foi por acaso que os dois principais e mais mediáticos dirigentes do terceiro partido estiveram presentes na apresentação da obra e um deles sentiu-se à vontade para sugerir Passo Coelho como possível e desejado candidato a Belém.

O chefe do governo AD tem sido criticado pelo facto do seu primeiro acto, logo após a tomada de posse do governo, ter sido a mudança do famigerado logótipo do governo da República, que teria sido alterado pelo governo anterior em aberta falta de respeito pelos símbolos mais do que sagrados da “bandeira nacional”, por óbvia ausência de programa credível para a resolução dos principais problemas do país, um sinónimo de inépcia. Mas a questão é simbólica e é muito mais importante do que possa parecer, foi o primeiro sinal de que a agenda do governo ou as linhas com que se vai cozer vão muito para além do programa com que se apresentou ao eleitorado. Vai ser o programa, puro e duro, do grande capital financeiro e do sector mais trauliteiro da burguesia nacional e, caso seja aplicado, irá doer muito mais do que aquele que foi ditado pela troika, com a alegação de que o país estaria prestes em entrar na bancarrota. Agora, será o povo português em entrar em bancarrota completa se o plano seguir em frente.

A mudança de discurso e a Igreja na política

Ainda não se conhecia toda a constituição governamental e já o discurso dos partidos da AD era outro, ficou-se agora a saber, como fosse diferente no governo anterior, que o governo se vê “forçado a ajustar programa económico às novas regras de Bruxelas”. Já não há dinheiro para tudo o que se prometeu, embora se continue a afirmar abertura ao diálogo com toda a gente, e polícias, militares, professores, oficiais de justiça, médicos, enfermeiros e os mais que venham a reivindicar as justas atualizações salariais e de carreira terão de esperar ou contar com menos. Novo “plano orçamental de médio prazo” vai ter de respeitar as normas impostas por Bruxelas.

O líder do “principal partido da oposição”, lugar disputado pelo chefe do terceiro partido que promete “oposição” ao governo e à “oposição” se necessário, já escreveu a Montenegro, estará disponível para acordo com condições para aprovar orçamento retificativo, onde se incluem melhorias para as carreiras da função pública. Aquele terá manifestado inteira disponibilidade, mas “o tempo e o modo” serão definidos pelo governo. Coloca-se a questão pertinente: será só para isso ou para mais alguma coisa? O mais provável é que as “oposições” sejam mais no nome do que nos factos, daí termos enfiado a palavra entre comas.

Marcelo quis lembrar ao país que o eleitorado entendeu dar a vitória aos "moderados" e não aos "radicais", deixando no ar que numa próxima vez isso poderá não acontecer, querendo possivelmente chantagear os partidos que à esquerda se oponham à governação da AD. E, algum tempo depois, o bispo do Porto não esteve com meias palavras: "a Igreja tem de se meter na política", não exactamente através dos paroquianos como afirmou, mas directamente como partido informal, uma força de pressão, que ousa já dar a cara. Quase ao mesmo tempo, o Patriarca de Lisboa vem dizer que o “país”, isto é, o povo, tem de “reencontrar força” para “superar dificuldades”, que já são esperadas pelas elites e que as pretendem resolver à custa de mais sacrifícios, não delas mas dos que trabalham.

O endurecimento do regime no seu cinquentenário

As mensagens são claras: o governo da AD governará com o programa da extrema-direita. Não são apenas os velhos e novos fascistas que se vão reunindo e juntando forças, recuperando velhos princípios e consignas, o governo já assumiu esses valores, quer na constituição do governo, quer na nomeação de algumas figuras cinzentas disfarçadas de “independentes” e de “tecnocratas”. O ministério da Cultura desapareceu, o Ensino Superior ficou diluído no super-ministério da Educação, e o detentor do cargo é um conhecido economista defensor do capitalismo selvagem e dos cortes permanentes dos subsídios salariais aos trabalhadores. O ataque por parte da elite mais conservadora contra os trabalhadores, começa pela cultura, os operários não precisam de ser cultos, basta-lhes saber ler e escrever, e não devem receber salários elevados. Em vez de bifes de lombo ou da vazia, comam hambúrgueres de larva de gafanhoto. O salário sempre foi o preço da reprodução da força de trabalho.

O ex-economista-chefe do BCP na secretaria de estado do Orçamento diz bem sobre o papel deste governo quanto à Economia, um braço do grande capital financeiro. O presidente da Associação Portuguesa de Bancos e reformado do Banco de Portugal, com uma pensão de cerca de 6 mil euros mensais aos 60 anos (2014), quando defendia que os trabalhadores deviam trabalhar mais tempo para ajudar as “gerações mais entaladas”, já veio propor algumas medidas para “desentalar” os patrões, redução do IRC para 15%, e os bancos, exigindo reunião com o novo/velho governo da AD para acabar com o “excesso da tributação extra”. Por outro lado, devemos salientar que a despesa pública com o setor financeiro ascende a 24,6 mil milhões de euros (2010 a 2023), mais de 9% do PIB (2023), e, só no ano passado, aumentou mais de 5,6% por causa da Parvalorem (BPN) e do Novo Banco; ou seja, o maior aumento em três anos (dados do INE). Com certeza que os bancos salivam por mais com este governo, o povo pagará a conta no final, e se não for a bem, será a mal, como nos tem habituado os governos com o PSD.

Se a nível interno é o que se vislumbra, então, quanto a política externa, ficamos suficientemente esclarecidos. O novel ministro dos Negócios Estrangeiros, colocando-se em bicos de pés e sem ter ingerido qualquer bebida alcoólica, presumimos, inchou o peito e criticou "algumas hesitações" do anterior Governo sobre a adesão da Ucrânia à União Europeia. A partir de agora, será sempre a bombar: quanto à Ucrânia e à guerra, Bruxelas ou a Nato/Otan dizem “mata”, o governo da AD dirá logo “esfola”. O regresso do serviço militar obrigatório (conscrição) está na ordem do dia, bem como o aumento, para além dos 2% do PIB, das despesas militares, sobretudo em armamento comprado aos EUA. Quanto à conscrição, a coisa irá ser feita com alguma cautela, de forma gradual, porque é tema pouco popular, principalmente entre a juventude. No entanto, na lógica do capitalismo, será considerada uma boa medida, porque irá “acabar” com o desemprego enviando-se os jovens para a guerra contra a Rússia. Não poderá ser para outro objectivo, já que Portugal não está sob ameaça iminente de invasão militar.

A falácia do combate à corrupção

No momento em que escrevemos esta linhas decorre no tribunal da Guarda um megaprocesso, mais um infindável, com 149 arguidos acusados de fraude com fundos comunitários na compra de maquinaria agrícola, envolvendo 136 testemunhas e 70 advogados. Lá para as calendas e se não houver umas amnistias pelo meio e umas prescrições no fim (os arguidos eram em maior número mas alguns já morreram) haverá um resultado previamente conhecido; os factos ocorreram entre 2010 e 2013, há mais de 10 anos. Sabe-se que estas fraudes com os fundos europeus superam os 70 milhões em apenas nos últimos três anos. Ora, com os cerca de 20 mil milhões de euros só do PRR, mais uns 30 mil milhões de outros projectos até 2027, será o fartar vilanagem! E vem a ministra da Justiça aventar o diálogo com os partidos sobre corrupção, quando todos eles se encontram metidos até aos gorgomilos nas negociatas ou com elas pactuam. Só poderá estar a gozar!

Os governantes ao prometer mundos e fundos ao eleitorado e, quando se vêm no governo, fazem o oposto, colocando em posição de quatro patas perante os interesses dos diversos lóbis indígenas e os ditames de Bruxelas, são isso mesmo, são políticos corruptos. Gente sem princípios que só olha para o umbigo, o mais importante é o protagonismo ou/e a conta bancária, é praticamente, e com raras excepções, o normal dentro dos vários governos que têm gerido os interesses do capital em Portugal desde o 25 de Abril. E dentro do actual governo há um pouco de tudo: desde um ex-ministro que assinou 300 despachos na última noite antes sair do governo beneficiando uns tantos grupos de interesses privados, agora é secretário de estado; passando por um ex-presidente de câmara a contas com a justiça por adjudicar serviços a uma empresa em pré-falência, sem equipamentos nem funcionários, no último dia de mandato; ou um ex-secretário de estado que propôs alteração à lei para facilitar a cunha da filha de um então ministro que não tinha média para entrar na faculdade; até ao actual ministro das Infraestruturas que está a ser investigado pela PJ quanto a corrupção na Câmara de Cascais e à campanha de candidatura à liderança do PSD, em 2020, quando era vice-presidente da autarquia.

O PSD para conquistar votos à direita e fazer concorrência ao irmão da extrema-direita entendeu assumir como prioridade este tema da corrupção, assim como outros, mas parece que vamos ter muitos casos e casinhos se conseguir manter-se no governo durante algum tempo. Para além dos ministros já com curriculum na praça e de conhecimento público, outros haverá que prometem uma auspiciosa carreira. E um deles poderá ser a titular da pasta da Saúde, que tudo fará para transformar o Serviço Nacional de Saúde em “Sistema”, onde caibam todos na gamela, desde clínicas privadas a santa casas da misericórdia, que pouca misericórdia terão com os nossos dinheiros. Esta ministra, quando bastonária da Ordem dos Farmacêuticos e durante a pandemia, geriu, juntamente com o então bastonário da Ordem dos Médicos e agora deputado da Nação, mais de 1,3 milhões de euros provenientes da indústria farmacêutica, utilizando uma conta pessoal. Será de esperar que o lóbi dos grandes laboratórios farmacêuticas esteja neste momento a pular de contente, sabendo-se que este ministério é um dos que mais dinheiro e interesses envolve. Será um maná!

Programa sempre no interesse do grande capital financeiro

Quando estávamos a finalizar esta crónica ficou-se a saber da entrega do programa do governo à Assembleia da República, não se conhecem pormenores, mas algumas “novidades”, que não espantam ninguém conhecendo-se a matriz dos partidos que o constituem, já fizeram manchete. A mais notória é o governo querer “revisitar” mudanças ao Código do Trabalho efectuadas pelo governo do PS/Costa, que já foram em benefício do patronato, mas como este quer mais haverá então de satisfazer a vontade e quanto antes: despedimentos mais baratos, salários mais baixos e indexados à “produtividade”, como se esta dependesse inteiramente dos trabalhadores e não da gestão da empresa ou de outros custos, que não o custo trabalho. O SNS será reduzido a um “sistema” que permita aos lóbis privados da saúde (doença) arrecadar lucros como de uma qualquer outra área de actividade económica se tratasse. Os “peritos” do Livro Verde da Sustentabilidade da Segurança Social, encomendado pelo governo PS, já vieram propor algumas alterações ao sistema de pensões, no sentido de garantir a “sustentação” da Segurança Social, ou seja, o velho mantra para que um dia destes os dinheiros, descontados pelos trabalhadores durante uma vida inteira, sejam entregues aos bancos e aos fundos de investimento privados. Entretanto os polícias, professores e oficiais de justiça irão levar “música” para que o programa seja aprovado no Parlamento.

O BE veio agora manifestar receio de o PS querer fazer “abertura à direita” por aceitar reunião com aquela força política só depois do debate de programa. O PCP já apresentara moção de rejeição ao governo e obteve como “solidariedade” do PS a não votação desta moção. O PS irá apresentar uma moção autónoma, irá abster-se, ninguém sabe. Mas conhecendo-se o que aconteceu com a eleição da segunda figura do estado, será sempre de admitir que, e apesar de o discurso de “esquerda” do actual chefe socialista, o PS tente o suicídio ao assumir-se como muleta do governo AD; ou seja, uma de partido “responsável” do regime, fazendo lembrar a hilariante “abstenção violenta, mas construtiva” do pusilânime José Seguro, enquanto “líder” da oposição do governo pafioso de Coelho/Portas, na negociação do OE-2012. Por vontade do PS, quase de certeza que este governo irá durar para além de Dezembro e, muito possivelmente, até ao fim do mandato. Terá sempre medo de ser penalizado em termos eleitorais pelo facto de eventualmente ser acusado de responsável pelo derrube do governo e não contribuir para a estabilidade, embora tenha sido vítima da desestabilização levada acabo por toda a direita e sob o alto patrocínio do PR Marcelo, que até condecorou o fundador da rede bombista que actuou durante o PREC mas sem que ninguém soubesse.

Quanto à questão da duração do governo AD dependerá somente da paciência dos trabalhadores e do povo português. Com certeza que as medidas incluídas no programa da legislatura ou no Plano de Estabilidade 2024-28, a ser apresentado na próxima segunda feira, irão desencadear uma resistência e uma revolta directamente proporcionais ao prejuízo que tragam para a vida das pessoas. E com uma agravante é que o PSD não possui a mesma arte do PS em comprar a paz social.

quinta-feira, 4 de abril de 2024

Teatro e política

 

Giorgio Agamben

É no mínimo singular que não nos questionemos sobre o facto, não menos inesperado mas perturbador, de o papel de líder político ser cada vez mais assumido por actores do nosso tempo: é o caso de Zelensky na Ucrânia, mas o mesmo aconteceu na Itália com Grillo (eminência cinzenta do Movimento 5 Estrelas) e ainda antes nos Estados Unidos com Reagan. É certamente possível ver neste fenómeno a evidência do declínio da figura do político profissional e da crescente influência dos meios de comunicação e da propaganda em todos os aspectos da vida social; contudo, é claro, em qualquer caso, que o que está a acontecer implica uma transformação da relação entre política e verdade, sobre a qual é necessário reflectir. Que a política tinha a ver com mentiras é, de facto, óbvio; mas isto significava simplesmente que o político, para atingir objectivos que acreditava serem verdadeiros do seu ponto de vista, poderia contar falsidades sem demasiados escrúpulos.

O que se passa diante dos nossos olhos é algo diferente: já não se utiliza a mentira para fins políticos, mas, pelo contrário, a mentira tornou-se em si mesma o objectivo da política. Ou seja, a política é pura e simplesmente a articulação social do falso. É portanto compreensível que o ator seja hoje necessariamente o paradigma do líder político. Segundo um paradoxo que nos é familiar desde Diderot até Brecht, o bom actor não é, de facto, aquele que se identifica apaixonadamente com o seu papel, mas aquele que, mantendo a sua frieza, o mantém à distância, de modo a falar. Ele parecerá tanto mais verdadeiro quanto menos esconder sua mentira. A cena teatral é, ou seja, o lugar de uma operação sobre a verdade e a mentira, em que a verdade é produzida pela exibição do falso. A cortina sobe e fecha precisamente para lembrar aos espectadores a irrealidade do que estão vendo.

O que define a política hoje – que se tornou, como foi efetivamente dito, a forma extrema do espetáculo – é uma inversão sem precedentes da relação teatral entre verdade e mentira, que visa produzir a mentira através de uma operação particular sobre a verdade. A verdade, como pudemos constatar nos últimos três anos, não está, de facto, escondida, e permanece facilmente acessível a quem a queira conhecer; mas se antes – e não apenas no teatro – a verdade era alcançada mostrando e desmascarando a falsidade (veritas patefacit se ipsam et falsum), agora a mentira é produzida, por assim dizer, exibindo e desmascarando a verdade (daí a importância decisiva da discussão sobre fake news). Se o falso já foi um momento no movimento da verdade, agora a verdade só é válida como um momento no movimento do falso.

Nesta situação o ator está, por assim dizer, em casa, mesmo que, comparado ao paradoxo de Diderot, ele deva de alguma forma duplicar-se. Nenhuma cortina separa mais a cena da realidade, o que - segundo um expediente que os diretores modernos nos tornaram familiares - obriga os espectadores a participarem da peça – torna-se o próprio teatro. Se o ator Zelensky é tão convincente como líder político é precisamente porque consegue sempre e em todo o lado proferir mentiras sem nunca esconder a verdade, como se esta fosse apenas uma parte inevitável do seu ato. Ele - como a maioria dos líderes dos países da NATO - não nega o facto de os russos terem conquistado e anexado 20% do território ucraniano (que, aliás, foi abandonado por mais de doze milhões dos seus habitantes) nem que sua contra-ofensiva falhou completamente; nem que, numa situação em que a sobrevivência do seu país depende inteiramente do financiamento estrangeiro que pode cessar a qualquer momento, nem ele nem a Ucrânia tenham qualquer hipótese real pela frente. É por isso que, como ator, Zelensky vem da comédia. Ao contrário do herói trágico, que deve sucumbir à realidade de fatos que não conhecia ou acreditava não serem reais, a personagem cômica nos faz rir porque nunca deixa de exibir a irrealidade e o absurdo de suas próprias ações. No entanto, a Ucrânia, outrora chamada de Pequena Rússia, não é uma cena cómica e a comédia de Zelensky acabará por se transformar apenas numa tragédia amarga e muito real.

19 de janeiro de 2024

quodlibet

A espada de Dâmocles

Giorgio Agamben

É bom não esquecer a lenda de Dâmocles, que Cícero narra nas suas Disputas Tusculanas. Um dia, Dâmocles, cortesão de Dionísio, tirano de Siracusa, elogiou-o "pelas suas riquezas, pela majestade do seu poder, pela magnificência do seu palácio". «Dâmocles – respondeu o tirano – já que gostas desta vida, quero dar-te um gostinho dela e fazer-te tentar o meu destino». Fê-lo sentar-se num sofá coberto com um pano finamente bordado, colocou à sua frente cerâmicas preciosas e colocou ao seu serviço jovens de extraordinária beleza, prontos a cumprir todas as suas ordens. Dâmocles pensou que estava feliz, até que percebeu que uma espada afiada suspensa por uma crina de cavalo estava pendurada no teto sobre sua cabeça. Nesse ponto, o incauto elogiador renunciou à riqueza e ao poder e implorou a Dionísio que o deixasse ir, porque não queria mais ser feliz dessa forma.

Hoje vemos que a espada suspensa sobre a cabeça dos tiranos está prestes a cair, o cabelo que sustenta aquela espada suspensa sobre a cabeça de Zelensky está agora desgastado e talvez, amanhã, até aquela que pende sobre outros, cúmplices ou inimigos dele, pode cair. Mas a lição da lenda não é só esta para nós. Não basta nos abstermos dos elogios que todos timidamente esbanjam aos tiranos, é preciso lembrar também que cabe a nós, na medida das nossas forças, se não cortar, pelo menos arranhar e desgastar os cabelos que ainda segura a espada suspensa sobre suas cabeças. O fio que a sustenta - não nos cansamos de mostrá-lo, se o primeiro a saber é o tirano - é tênue e só o consenso e o medo de muitos o impedem de se romper.

21 de fevereiro de 2024

quodlibet