quinta-feira, 30 de novembro de 2023

A demissão da ministra e a mercantilização da saúde


 Crónica escrita em Setembro de 2022 e que vem a propósito da intervenção mediática da ex-ministra da Saúde Marta Temido a respeito do seu desconhecimento do tratamento das gémeas brasileiras, e que terá sido legal (?!) já que foi feito, ao mesmo tempo que defendia Marcelo, talvez a pensar no seu futuro político. Se desconhecia, então foi ministra incompetente; se conhecia, então é mentirosa e, pela atitude inquieta que apresentou, quase de certeza que é válida esta última hipótese.

 Depois da apresentação do pedido de demissão por parte da ministra Marta Temido, apareceram muitas boas almas a manifestar “surpresa” pelo acto de quem até parecia ter entregado o corpo e o espírito à nobre e ingrata missão de defesa do SNS. A primeira alma surpreendida foi o primeiro-ministro que, mais tarde, se terá contraditado ao afirmar que a morte de uma grávida em transferência de hospital foi a “última gota” na tolerância de alguém que, afinal, terá sido negligente ou menos competente no cargo.

A seguir à grosseria e ingratidão do “nosso” primeiro, assim foi acusado, sobrevieram de imediato os elogios ao trabalho e espírito de sacrifício da ministra demissionária, mas ainda não demitida, em prol da saúde dos portugueses e, em particular, da salvaguarda do SNS. Contudo, as ordens e os sindicatos dos profissionais do sector, para além dos partidos da oposição, rejubilaram contando com a fragilização do governo e uma futura remodelação.

O governo como agente de negócios

Convém, talvez, relembrar que a ministra, à semelhança dos restantes titulares das pastas, mais não é do que mero executivo que vai cumprindo na execução e vigilância das directivas que lhe são ordenadas pelo chefe; e que este, por sua vez, as recebe de Bruxelas e dos diversos lóbis que por aqui vão sobrevivendo à custa dos dinheiros públicos e dos favores dos políticos que estão no poder graças aos seus financiamentos.

Já ninguém acredita, neste tempo de democracia liberal, que os partidos do regime suportam as milionárias campanhas eleitorais somente com o dinheiro das quotas dos militantes e não com os apoios diversos, que depois terão de ser recapitalizados pela governação. Geralmente estes governantes a soldo são bem recompensados, quando abandonam a política, com lugares de relevo nas administrações das empresas que foram beneficiados. Tanto de um lado como do outro, trata-se apenas de investimento.

O paraíso dos seguros privados

Na mesma ordem de ideias, ninguém vai na onda de que os órgãos de informação, principalmente os mais importantes, estão de boa fé ou não há interesses disfarçados, ao desencadearem e desenvolverem campanhas contra o SNS; no entanto, fazem de conta que o estão a defender através da (falsa) preocupação de eventual prejuízo acarretado para os cidadãos utentes pelo deficiente, ou falta dele, funcionamento.

Assim se percebe os violentos ataques aos serviços de obstetrícia e ginecologia dos hospitais públicos levados a cabo por todos os media corporativos, campanha que foi iniciada e conduzida, como já aqui denunciámos, pelo inefável jornal “Público”, propriedade de uma família de ricos emergentes depois do 25 de abril. Porque só com a degradação profunda do SNS, inclusivamente com o fecho de algumas unidades (“Grupo de trabalho diz que é necessário fechar maternidades e serviços de obstetrícia”), os empresários do negócio da saúde, ou melhor da doença, poderão ter mercado para os seus lucros.

Ainda não eram conhecidos os resultados do grupo criado pelo governo para estudar os problemas desta área dentro do SNS, já o grupo Sonae sai a terreiro revelando ao que vem e sem papas na língua: “Há seis milhões de portugueses sem seguro e muitos querem ter” – explica Miguel Águas, administrador da Sonae MC. E acrescenta: “a quantidade de publicidade nas televisões e rádios pode fazer supor que o mercado dos seguros de saúde está saturado, mas a realidade é muito diferente” – o título é claro: “Sonae lança seguros de saúde e quer um milhão de clientes”. Não serão necessárias mais palavras para se entender ao que andam estes agentes, porque também sabem que a política deste governo nunca deixou de lhes estar de feição.

Só ficam surpreendidos os desatentos ou os papalvos da política, na justa medida em que todos os indícios apontam para um ponto comum: a privatização da saúde. Os portugueses são os que mais pagam a saúde do seu próprio bolso, de nada ou pouco servindo o dinheiro que lhes é sacado através dos seus impostos, dentro dos países da OCDE; agora, ficou-se a saber que “SNS gastou 718 milhões de euros em exames e tratamentos no privado; valor recorde é consequências dos gastos com testes à covid-19”. Ou mais uma prova que atesta para que serviu realmente a tão milagrosa e oportuna pandemia.

Abre a época da vacinação em massa

Os comerciantes da morte devem estar, a esta hora, a salivar por mais, atendendo às recentes notícias quanto ao que se prevê para o próximo Outono: “OMS espera aumento de hospitalizações e mortes com o tempo frio – A Organização Mundial da Saúde (OMS) admitiu hoje que é expectável um aumento de hospitalizações e mortes por COVID-19 depois do Verão, quando o tempo ficar mais frio”. As expectativas do negócio são boas, embora a União Europeia tenha anunciado tempo seco e quente até Novembro, alguma vez o frio chegará para ajudar à venda das vacinas, pelo menos.

Mal o Governo anunciara a data do início da campanha de vacinação, tal como os incêndios e a caça há sempre uma “época” como resultado da instituição do facto, logo a mesma imprensa (que não se cansa em denegrir o SNS) avisa: “COVID-19: Portugal volta a registar mais de 3 mil casos nas últimas 24 horas – Número de mortes é o mais alto desde 8 de Agosto”. O negócio já está concluído e a campanha irá iniciar-se: “Primeiras 650 mil novas vacinas já chegaram a Portugal - As primeiras doses da vacina adaptada à variante Ómicron já estão em Portugal e vão começar a ser utilizadas no dia 7 de Setembro”. Prevê-se a vacinação de 3 milhões de portugueses (para já!).

A vacinação começará pelos cidadãos mais vulneráveis ou com mais de 80 anos e irá descendo gradualmente na escala etária. Poder-se-ia, demagogicamente, que será para aliviar a despesa da Segurança Social; no entanto, há uma realidade incontornável que o governo e a DGS ainda não souberam explicar, que é o grande número de mortes por excesso entre os mais idosos (mais de 85 anos) nos últimos meses, mais precisamente, desde Março. Mas, mais grave ainda, há um outro grupo etário onde se observa igualmente um repentino e nunca visto agravamento da mortalidade: os adolescentes e jovens entre os 15 e os 24 anos. No global, um aumento médio de 42 óbitos a mais por dia (dados em "PáginaUm").

O inexplicável excesso de mortalidade 

Este excesso de mortalidade poderá ter várias causas. Poderá ser da vacina, que em vez reforçar o sistema imunitário o vai, pelo contrário, enfraquecer ou desencadear doenças de auto-imunidade, como por diversas vezes já foi denunciado; ou poderá ser pela degradação das condições de vida e de pior atendimento pelos serviços de saúde, onde se inclui o SNS depreciado intencionalmente pelo governo e pelos médicos a quem dá jeito levar os doentes do público para o privado porque é aí que vão enriquecendo. Parece-nos que talvez estas duas últimas razões sejam as mais importantes, embora todas elas se interligam e potenciam.

A diminuição do poder de compra do povo português, apesar de todas as medidas “anti-inflacionárias” tomadas pelo governo, irá deteriorar as condições de vida e de trabalho, começando por uma pior alimentação e pior estilo de vida, assim como degradar os níveis de saúde, a começar pela saúde mental. Irá retirar quaisquer perspectivas de futuro à nossa juventude, observa-se que que há cada vez mais jovens menores envolvidos em crimes e internados em centros educativos, segundo refere a imprensa, num crescimento considerado alarmante. Igualmente se constata que de toda a população são os jovens que mais emigram: no primeiro semestre emigraram tantos como no ano passado.

Iremos assistir daqui para a frente a uma degradação acelerada dos níveis de saúde dos portugueses em geral na proporção da mercantilização da saúde: menos saúde = mais lucros para o privado. A demissão da ministra, sabendo-se como funciona o governo, já estava preparada e há muito. Com esta ou outra qualquer ministra/ministro o destino do SNS também há muito está traçado pela elite predadora e gananciosa, a não ser que utentes e trabalhadores da saúde se oponham tenazmente a esta tenebrosa política.

6 de Setembro de 2022

Imagem: António Costa e Marta Temido - Jornal Açores 9

sexta-feira, 24 de novembro de 2023

O governo de iniciativa presidencial

 

O que o beato Marcelo mais almeja é benzer um governo seu, da sua cor e paladar, daí ter ficado eufórico e aceitado de imediato o pedido de demissão do PM Costa, oportunidade para relembrar o Silva de Boliqueime quando deu posse ao seu governo, desprezando a correlação de forças dentro da Assembleia da República, para mais tarde ser obrigado a engolir a geringonça.

Neste tempo todo, pouco mais de quinze dias, ficou-se a conhecer, coisa que já não era desconhecida, que a direita que está no poder da governação, incluindo a alta figura magistrada da Nação, a elite nacional a quem o poder obedece e serve, os banqueiros e funcionários/banqueiros, os jornalistas e comentadores avençados, e tudo o mais, mais não são que a direita radical (muito mais radical que a vituperada “esquerda radical” que quer ir para o governo). A extrema-direita, até aqui ainda disfarçada de democrática, mas mal disfarçada, nestes 40 anos de democracia burguesa de opereta, não pode deixar de mostrar o que na realidade é e ao que vem, aliás, sempre veio: uma extrema-direita salazarenta e ressabiada, disposta a vingar-se da derrota (meia) que sofreu em 25 de Abril e não recuperada totalmente em 25 de Novembro.

O discurso do Silva de Boliqueime, que discrimina os partidos com representação parlamentar que podem formar governo, e os que dele estão à partida afastados por não aceitarem os compromissos externos do país (do governo), nomeadamente. desejarem a saída do euro e/ou da UE e a renegociação da dívida pública, insiste na formação de um governo de coligação de extrema-direita, sem apoio maioritário no Parlamento, como acabou por indigitar, revela que os interesses dos bancos alemães e franceses, de que o BCE é uma emanação, estão em primeiro lugar, seguidos pela ganância sem escrúpulos da burguesia nacional que aceita ficar com as migalhas do saque.

O aparecimento em público do temor dos banqueiros e funcionários-banqueiros nacionais, o incontornável presidente do BPI, o presidente do BCP/Millennium e o funcionário laranja presidente da Associação Portuguesa de Bancos, pela eventual inexistência de “um Governo estável a longo prazo e que cumpra com os compromissos de Portugal” ou de um “Governo governe bem” no interesse da estabilidade dos negócios da banca que, após as ajudas directas do estado, mais de 15 mil milhões de euros (1500 euros por português), ainda se encontra em situação de falência, esperando arrecadar mais algum, mostra para que serve o governo: gerir os negócios do capital.

O governo a quem o Silva deu posse é abertamente um governo de extrema-direita, basta olhar para os novos ministros, onde se destaca o beato professor catedrático de Direito de Coimbra, lembrando o estilo do velho das botas, agora ministro do Interior, um governo mais do que “ao serviço dos bancos”, é indubitavelmente um governo do grande capital financeiro. O governo minoritário da coligação fascista PàF mostra, por outro lado, que as eleições desta “democracia” mais não são que um pormenor para enganar os incautos e, só por isso, (e utlizando as palavras do ministro das botas) deve entregar-se quanto antes a Deus.

A simples possibilidade, que não passa ainda de eventualidade incerta, de aparecimento de um governo de maioria PS/BE/PCP, mesmo com os dois últimos partidos como simples apoiantes parlamentares, tem suscitado os mais terríveis pesadelos nas abencerragens mais reaccionárias da nossas elites, políticas e económicas, que, diga-se de passagem, são quase todas, mostrando que a nossa burguesia não é inteligente nem possui vistas largas, ao contrário da de outros países da União Europeia que já viram que partidos de orientação social-democrata, embora com outra designação ou farpela, como são os BE´s e a maior parte dos PC´s, são ainda a melhor forma de fazer com que as políticas de austeridade sejam aceites pelo povo e os trabalhadores, intimidados com a falsa “não há alternativa”.

A insistência na velha fórmula de governo de direita, tipo PSD/CDS-PP, que na realidade é extrema-direita, quando mais de dois terços do eleitorado se expressaram sem margem para dúvidas que estão contra estas políticas, poderá conduzir a uma radicalização de posições, principalmente por parte de quem sofre a austeridade que, devido à continuação e profundamente da crise do capitalismo, irá redobrar. Não é por acaso que um Pacheco Pereira (PP) se tem esforçado em apontar os perigos de tal extremar de campos, insistindo no regresso à antiga social-democracia do centro, porque sabe que este caminho em que teimam Silvas de Boliqueime e os nossos banqueiros e empresários de sucesso conduzirá inevitavelmente à revolta social e, eventualmente, à revolução socialista, o que significará o fim do capitalismo e das classes parasitárias existentes em cada país, ou seja, as ditas elites nacionais, onde PP se inclui.

É bem possível, mas ainda não é certo, que vingue um governo de maioria de esquerda, apesar do trabalho de sapa dos submarinos existentes no PS, agora formalmente capitaneados pelo Assis, mais parecido com o coreano Kim Il-sung do que propriamente com o santo. Mas até seria bom que tal acontecesse porque iria mostrar que partidos como um BE ou um PCP são partidos nacionalistas apostados em salvar um capitalismo de cor também nacional e as elites ditas “patrióticas”, desprezando os operários e o povo, cujos interesses só poderão ser salvaguardados com a destruição da base económica, o capitalismo, que está na origem de todo o sofrimento e miséria de quem trabalha.

Mas o mais certo é o bronco Silva de Boliqueime, fazendo jus ao seu espírito salazarento e provinciano (no mau sentido do termo, diga-se) dê continuidade ao governo do seu partido e de iniciativa pessoal, caso seja chumbado no Parlamento, como governo de gestão, tentando esvaziar de poder o órgão que constitui o poder principal e o símbolo desta democracia formal saída do golpe de estado do 25 de Abril. O que não deixará de ser uma coisa boa, numa perspectiva de que irá intensificar as contradições entre classes e dentro da própria classe dominante, já manifestada na incapacidade de criar um governo de maioria parlamentar, daí as propostas de algumas figuras mais cinzentas do regime, tipo Guilherme Silva, de se reformar o sistema eleitoral com a concessão de um bónus de mais deputados ao partido vencedor, a exemplo do da Grécia em que o partido que ganha leva mais 50 deputados, já não chegando as distorções provocadas pelo actual método de Hondt. Por este andar, não faltará muito para que ou se dará maioria absoluta ao partido mais votado, seja qual for o número de votos, ou se fará a criminalização dos partidos da oposição, como acontece na Turquia, país candidato ao clube UE, ou então deixar-se-á de fazer eleições e ficará governo de nomeação presidencial, segundo indicação expressa e formal de Bruxelas/Alemanha, como já agora o labrego (sem ofensa para os labregos) Silva defende abertamente.

O que não deixará, diga-se de passagem, de ser também uma coisa boa, apesar dos enormes males e sofrimentos que acarretará para os trabalhadores e o povo português, porque também fará avançar a consciência política não só da parte mais revolucionária da classe operária, o proletariado, como de outras camadas dos trabalhadores; valerá mais que mil discursos contra o sistema e conduzirá, como já anteriormente referimos em caso de governo de maioria de esquerda, à criação de condições subjectivas para o aparecimento de um partido revolucionário, coisa que não existe presentemente, que aponte o caminho da revolução socialista. O Silva, com a sua proverbial cegueira e congénita estupidez, está apenas a apressar a revolução socialista.

O que queremos salientar que qual seja o expediente usado pela burguesia a fim de prolongar o seu sistema de exploração e de fazer recair os custos da crise sobre os ombros dos trabalhadores, será inevitável a classe operária tomar consciência de molde a compreender que não há outro caminho alternativo ao capitalismo senão o socialismo; ou seja, a tomada do poder como única via para a reorganização da economia segundo não o lucro e a ganância, mas a satisfação das necessidades, a todos os níveis e não só material, dos cidadãos, qualquer que seja a classe social, sexo, credo ou cor; isto é, a emancipação e a libertação de toda a humanidade.

Publicado na revista “Os Bárbaros” em 03 de Novembro 2015

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Fúria que sonha

 

Giorgio Agamben

No Museu Nacional Romano do Palazzo Altemps existe uma cabeça de mármore que, segundo a tradição, representa uma Erínia adormecida. Os olhos fechados, os tufos de cabelo desgrenhados na testa e nas bochechas, os lábios entreabertos, o rosto da Fúria - se for uma Fúria, seja Alecto, Megera ou Tisífone - repousa tranquilamente sobre uma almofada de mármore escuro, como se ela estivesse sonhando.

Uma fúria que em vez de gemer e gritar, sacudir os cabelos serpentinos, fecha os olhos e sonha, desmente-se. No entanto, precisamente e apenas o sonho ou o sono de uma fúria se assemelha ao pensamento. O pensamento não é apenas contemplação, é antes de tudo fúria. Pensamos, contemplamos, só se primeiro houve a fúria, se olhando para a abominação do homem e do mundo, a mente - disse Bruno - tendo descido "à parte mais infernal... sente-se dilacerada e dilacerada em pedaços". E só se na nossa fúria heróica conseguirmos fechar os olhos e sonhar, existe a verdadeira quietude, existe a visão e a teoria. Os nossos sonhos não são, portanto, devaneios, que sabemos serem enganosos e vãos, mas verdades nas quais, mesmo de olhos fechados, não podemos deixar de acreditar, porque vimos primeiro a vingança e o erro. O pensamento é esse apaziguamento da fúria, é uma Erínia que sonha.

13 de novembro de 2023

quodlibet

Imagem: Orestes perseguido pelas Fúrias, de William-Adolphe Bouguereau, 1862.

*

Um Outro Silêncio

Enquanto os meios de comunicação social dedicam todo o seu espaço à guerra na Ucrânia e em Gaza e contam, como parecem adorar fazer, os mortos palestinianos e israelitas, ucranianos e russos, outro povo foi mais uma vez ignorado: os arménios, forçados a evitar serem exterminados para deixar o país onde viviam. Após a ofensiva militar dos azeris em Setembro de 1923, Nagorno-Karabakh ou República de Artsakh, como a chamavam os seus habitantes arménios, já não existe. Tal como já aconteceu muitas vezes nesta região, as fronteiras serão novamente traçadas e populações inteiras serão dizimadas e deslocadas em nome da limpeza étnica. Quando, no final da Primeira Guerra Mundial, a Federação Transcaucasiana, criada em 1917 por arménios, azeris e georgianos, foi dissolvida e o território conquistado pelos russos, Nagorno-Karabakh, embora 98% povoado por arménios, foi atribuído por Estaline não à República Socialista Soviética da Arménia, mas à do Azerbaijão. Daí, após a dissolução da União Soviética, os conflitos que tiveram o seu triste desfecho nos últimos dias. É necessário refletir sobre o destino deste povo que, como os judeus, sofreu um genocídio e não se fala dele, embora seja talvez a mais antiga comunidade cristã e, portanto, ocupe um dos quatro bairros em que se encontra dividida a antiga cidade de Jerusalém. Está perto de nós, talvez mais perto do que os outros de que falamos. O que está a acontecer em Nagorno-Karabakh preocupa-nos e questiona-nos e por isso preferimos ignorá-lo.

14 de novembro de 2023

Giorgio Agamben

quodlibet

Imagem: CNN Portugal.

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Substituição de governo (funcionários) em tempo de cólera

  

Costa apresentou a demissão ao PR Marcelo e este de imediato aceitou, parecendo que já estava à espera do acontecimento. A razão do pedido toda a gente a conhece, ou talvez não, porque muitas vezes o pretexto não é a causa, apenas um meio para resolver um problema e esconder a verdadeira razão. No caso presente, o leitmotiv foi o envolvimento do nome Costa em processo de escutas sobre o alegado envolvimento de figuras do seu gabinete e de amizade próxima em corrupção, tráfico de influências e vantagens indevidas no negócio do século da transição energética pelo lítio e hidrogénio verde. O “capitalismo verde” não será melhor que o actual, porque são exactamente o mesmo.

A judicialização da política em benefício do establishment

Após a demissão e apurando-se que terá havido um “lapso” (o “erro” é intencional), afinal, o Costa será o outro, o da Economia, mas nem Costa retirou o pedido de demissão, também as eleições antecipadas já estão marcadas, nem a Gago da PGR veio abaixo. Fica-se com a ideia que toda a gente ficou satisfeita com a nova situação, desde o PS à oposição, passando por Marcelo. E quanto ao processo e depois da decisão do juiz sobre as medidas de coação impostas aos presumíveis prevaricadores, a acusação de corrupção, que fez correr meio mundo ou mundo inteiro da política e da comunicação mainstream, acabou por cair, entretanto, a máquina para o assalto ao pote entrou em movimento desenfreado e agora nada nem ninguém a fará parar.

Estranhamos que, sendo a Procuradora Geral da República pessoa de confiança do governo PS e de Costa, pelo menos foi acusada de o ser pelos partidos de direita que a compararam com a anterior, essa, sim, é que era boa porque não condescendia com os crimes do PS, Costa não soubesse que iria rebentar a bomba que poderia causar a sua demissão e do seu governo, porque a investigação decorria desde o dia 17 de Outubro, segundo a dita PGR. Este caso faz-nos lembrar outro caso semelhante, o da Casa Pia, que envolveu os nomes de Ferro Rodrigues, então secretário geral do PS, e outra figura socialista importante, Paulo Pedroso, que chegou a estar preso alguns meses. Quando Durão Barroso deu de frosques, o presidente da república de então, Jorge Sampaio, em vez de convocar eleições antecipadas, preferiu manter o PSD no governo com um novo primeiro-ministro, surgindo assim a figura caricata de Santana Lopes como chefe do governo. E por que isto terá acontecido, talvez pelas mesmas razões de agora?

É que, durante o tempo de governo Santana Lopes, o PS mudou de direcção, surgiu o jovem turco Sócrates, e só depois, e alegando incapacidade do governo PSD para manter a governação, Sampaio descarta o governo, dissolve a Assembleia da República e convoca eleições, com o resultado que sabemos, vitória ao PS. Ficamos com a sensação de que a direcção de Ferro Rodrigues no PS não seria de grande confiança para o establishment a fim de fazer frente aos tempos difíceis que se avizinhavam e que trouxeram a troika a Portugal. Já com novo governo e dirigido pelas pessoas certas, Ferro Rodrigues e Paulo Pedroso viram cair as suspeições de quem eram objecto, mas ficaram com o futuro político prejudicado. Esta intervenção da justiça na política, lawfare ou judicialização da política, foi realizada a contento e em benefício de uma ala do PS e, sobretudo, das elites que dominam o país. Estaremos a assistir a algo semelhante com o derrube de este governo PS e do seu chefe que, ao contrário do antecessor, estará em condições de continuar com a carreira política, possivelmente até Belém?

A disputa pelo acesso ao pote

Devemos fazer correr a fita do tempo um pouco para trás e lembrar-nos que nas últimas eleições legislativas, que foram antecipadas, todos, partidos e cidadãos, esperavam que o PS se ganhasse seria por um triz e que haveria a forte possibilidade, fazendo fé nas sondagens e na vitória do Moedas com a sua coligação nas eleições para a Câmara de Lisboa, de o PSD vir a ser o vencedor e poder criar, mas em sentido contrário, uma geringonça, como, aliás, veio acontecer para o Governo Regional dos Açores, mas o raio é que o PS conseguiu, sabe-se lá como, tirar da cartola uma maioria absoluta – um desaforo!  Mal o governo PS, e outra vez chefiado pelo Costa, tomou posse, de imediato toda a sorte de ataques e de agoiros foram lançados sobre os malditos que estavam destinados a gerir sozinhos os mais de 55 mil milhões de euros que virão de Bruxelas até 2027.

E com o objectivo de enfiar a mão na massa que a oposição, nomeadamente a que fica mais do lado direito, procurou de imediato todos os pretextos e incidentes: a substituição do ministro das Infraestruturas, que deveria estar a incomodar alguém, pelo famigerado Galamba, e a estória rocambolesca do portátil com segredos de estado que deveria ter resultado na demissão deste último. Por que é que Marcelo não despachou o Costa nessa altura? Muito possivelmente teve medo de o PS vir a ganhar de novo as eleições e assim ficaria, ele presidente da república, em situação deveras delicada. Costa e governo ficaram em funções, mas alguma coisa deveria ser feita de molde a dar a chance ao outro bando da governação poder aceder ao quinhão a que se acha direito: ou há moralidade ou comem todos!

Nunca é despiciendo falar do bolo que as nossas elites estão à espera e que será mais tarde pago não por elas mas pelo povo, daí também não ser conveniente beliscar a “reputação do país”. São 8 mil milhões para o novo aeroporto; 2 mil milhões para a Ferrovia 2020, a concluir até final de 2023; 23 mil milhões do Acordo de Parceria entre Portugal e a Comissão Europeia, com aplicação entre 2021 e 2027; 22,6 mil milhões, que poderão chegar aos 30,5 mil milhões, do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) que terão de ser aplicados até 2026. Resumindo, será mais de um terço de todos os fundos (150 mil milhões de euros) que Portugal (não o povo português) recebeu desde a entrada na então CEE e agora União Europeia. Percebe-se que a disputa é feroz e tudo serve para destruir o governo PS e substitui-lo por outro de cor mais alaranjada. No entanto, ouvindo os líderes do PSD e do IL, a preocupação é sempre o “país”, só nunca especificam que país é que se trata.

O que terá provocado verdadeiramente a queda do governo PS?

Henricartoon

Terá sido a pedido de “várias famílias” que o PR Marcelo, esfregando as mãos de contente, depois de aceitar o pedido de demissão do Costa e de auscultar o seu “conselho de estado”, decidiu dissolver a Assembleia da República, o tal “órgão máximo da democracia”, mas… atenção!, só depois da aprovação do Orçamento de Estado para 2024. Brinquem lá com as eleições, elejam o PS ou o PSD, sós ou acompanhados, o importante é os nossos empresários garantirem que não falhará o quinhão que lhes é devido no assalto aos dinheiros públicos, produto do assalto cometido pelo PS ao rendimento dos cidadãos comuns portugueses, vulgo povo. As elites indígenas pouco se importam com as paragonas dos seus media: «“Demissão de Costa tem “impacto brutal na reputação de Portugal”», o que eles querem é dinheiro, não sendo mero acaso o CEO dos CTT ter vindo a terreiro: «Crise política "é indesejada", mas é "mitigada" com aprovação do OE» ou uma das organizações dos patrões logo esclarecesse: «Confederação do Comércio aplaude decisão "adequada" de Marcelo de salvar OE». Com coisas sérias não se brinca: “Empresas preocupadas querem OE aprovado”.

O alarido provocado pelos media mainstream serve mais para iludir os tolos e esconder as verdadeiras causas da substituição das hostes funcionárias no governo, do género: «“Uma crise política e uma crise de regime?”; “Depois de 2902 dias como primeiro-ministro, Costa demitiu-se: já não vai bater o recorde de Cavaco”; “Uma etapa que se encerrou. Costa é a 14.ª demissão de uma longa lista”; “De governos impossíveis a “mata-borrão” das crises. Costa sai ao fim de oito anos”; “PS em choque, mas pronto para substituir Costa por um “senador” “’Bomba atómica’ na política portuguesa preocupa empresários” “Bolsa em queda após demissão de António Costa, juros da dívida mantêm-se estáveis” “Ambientalistas temem que processo do lítio retire confiança à transição verde”; “Citi avisa que agravamento da incerteza política pode pesar na dívida portuguesa”, “Banqueiros pedem estabilidade e solução rápida para a crise política”». Mas tudo não passa de espavento.

 «Eurostat confirma contração de 0,1% na Zona Euro no 3.º trimestre. Portugal caiu 0,2%». Não deixa de ser fastidioso falar em números e ainda por cima de economia, mas a verdade é que a crise é política e é, acima de tudo, económica, raramente há crise na esfera da política que não tenha subjacente uma crise económica e, no caso presente, uma crise dentro de crise, que não se sabe como e quando vai terminar, daí as guerras como consequência e solução. E pelo sexto mês consecutivo que as exportações têm vindo baixar: “Exportações encolhem 8,2% em setembro. Défice comercial atinge 2.171 milhões”. Com a procura externa a baixar, bem como a interna, daí a diminuição das importações, apesar do turismo se ter aguentado, as empresas também sofrem: “Empresas não tinham crédito tão caro desde 2008”. E o outro Costa, causador da confusão, não se engasga: «Não nos podemos iludir. Vamos ter um ano de 2024 difícil.»

O aumento da pobreza despoleta a revolta

Se a crise económica capitalista é incontornável, a pobreza em Portugal não o é menos: «“Rendimentos em Portugal são os sextos mais baixos da UE em poder de compra”; “Portugal é um país onde as desigualdades estão a crescer de uma forma muito rápida”; “Mulheres têm pensões 43% mais baixas do que os homens”; “Isto é uma doidice! Um litro de azeite a 9,99 euros?”. E onde há exploração e pobreza há revolta: “Empresas com despedimentos coletivos aumentam 28% até setembro”, “Pré-avisos de greve até setembro aumentam 290% no Estado e 50% no privado”. Mas de outro lado, contrastando: “Principais bancos já renegociaram mais de 100 mil créditos à habitação” e “Seis em cada dez pessoas têm dificuldade em pagar casa”. No entanto, os bancos nunca tiveram lucros como agora devido à alta das taxas de juro: “Margem dos cinco maiores bancos dispara 80% para 6,7 mil milhões de euros”. As assimetrias socio-económicas em Portugal nunca foram tão grandes como no tempo actual, que é indubitavelmente um tempo de cólera.

Terá sido o descambar da situação económica e social que levou de certo modo as elites a decidir que é altura de substituir o governo do PS, apesar da maioria absoluta, porque não dará garantias de poder vir a lançar sobre os que trabalham as medidas austeritárias que o grande capital necessita para sair da crise, e a repressão, que poderá ser feroz, sobre as lutas dos trabalhadores. Talvez um governo de toda a direita, incluindo o Chega e não apenas do PSD, seja o mais eficaz. Esta sim uma razão para descartar Costa e sus muchachos, coisa que ele próprio até agradece. Há quem goste de comparar Costa com Sócrates, nós preferimos comparar mais os governos de Sócrates e de Passos Coelho/Paulo Portas. O primeiro justificou a intervenção da troika de má-memória e preparou o terreno para a actuação caceteira do governo que veio a seguir, o pafioso PSD/PP, mais apetrechado a fazer o papel de polícia mau. Agora, poderemos estar a assistir a uma situação semelhante, o polícia bom governo PS/Costa irá dar lugar ao ultramontano governo PSD/Chega, que ficará na história como o mau da fita.

A situação actual é incerta e os acontecimentos são imprevisíveis e o facto palpável é que os partidos que vão concorrer às próxima s eleições legislativas antecipadas, e apesar de alguma gabarolice e muita demagogia, não parecem ter lá ficado muitos felizes com a solução encontrada pelo PR Marcelo; é que há o risco de todos eles falharem e as elites, por iniciativa própria ou por Bruxelas, entendam que fará tempo de alterar o quadro partidário actual ou encontrar uma solução mais musculada para fazer face à crise económica e acabar com o regabofe partidário. A última palavra caberá sempre ao grande capital financeiro, o verdadeiro dono da chafarica, ou ao povo dirigido pelo proletariado revolucionário que entenda tomar em mãos o seu próprio destino.

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Marcelo, O Dissolvente… do regime democrático

 


Marcelo, após as várias trapalhadas que criou, regozija com a apresentação do pedido de demissão de Costa, devido a suspeição de estar envolvido em corrupção ligada aos negócios da “transição energética”, um dos objectivos e razões da dita, preparando-se para a dissolução da Assembleia da República e convocação de eleições antecipadas. Não foi em Maio com o caso “Galamba”, foi agora e a iniciativa partiu de Costa. Marcelo poderá igualmente agradecer à Procuradoria Geral da República que se assume como instrumento na luta política. Quase de certeza que terá tido uma convulsão fisiológica.

O deflagrar da denominada “bomba atómica” irá fazer esquecer, pelo menos durante algum tempo, as boutades de Marcelo, que estão longe de ser uns meros descuidos ou gafes, mas as expressões da sua verdadeira natureza de democrata reciclado depois de 25 de Abril. A sua formação cultural de filho da oligarquia fascista vem periodicamente ao decimo quando o controlo abranda, ou por estar bem-disposto após lauta refeição bem regada ou por se sentir mais seguro, contando com a condescendência dos media mainstream e das massas mais ingénuas. Nos últimos tempos, e para citar apenas alguns episódios, o monárquico PR, uma contradição nos termos, quebrou o fino verniz que cobre o seu real carácter.

Começou com a desculpabilização do número de vítimas do clero católico pedófilo, encobrindo o seu amigalhaço bispo e avisando-o de que estaria a ser investigado pela justiça; depois, veio tentar esclarecer o que disse, operação que repete sempre quando a boca atira para o disparate. A seguir, se bem nos lembramos, veio a observação aparentemente brejeira sobre o decote que deixava antever o volume das mamas de uma jovem emigrante, parece que jamais terá visto coisa semelhante; desculpou-se então com o frio que se fazia sentir. Mais recentemente, foi a abordagem paternalista e a despropósito, na medida que não é assunto do seu ofício, ao embaixador do estado palestiniano em Portugal sobre os responsáveis pelo actual conflito no Médio Oriente; perante as reacções, sentiu a necessidade de vir por duas vezes esclarecer o vómito presidencial. Declaradamente, não possui controlo de impulso, será distúrbio de personalidade para o qual não há tratamento?

Mas continuando, e, last but not least, espécie de cereja em cima do bolo, é apontado como suspeito de ter metido cunha para o tratamento de duas crianças brasileiras com medicamento milionário no SNS. Resumindo, e considerando apenas estas metidas da pata na poça, Marcelo revela uma mentalidade arrogante, de os meios justificam os fins e os nossos estão primeiro, nepotismo à última exponencia, paternalista e colonialista, patriarcal e sexista, pese o seu fácies de peru velho, monárquico e beato, e, acima de tudo, um político populista e hipócrita – decididamente, um reaccionário. O que é natural, está-lhe nos genes; mesmo que troque de género, através de umas cirurgias plásticas, o sexo será sempre o mesmo porque os genes não mudam.

O presidente beato de sacristia, que é levado ao colo pelos órgãos de propaganda do regime e que agora devem delirar com a atitude de dissolução do Parlamento e de convocação de eleições antecipadas, é apresentado por estes laxantes cerebrais como seja ele o responsável pela actividade do governo, à semelhança de regime presidencialista, uma espécie de regente de orquestra, que não é, e que poderá, um dia destes, o feitiço virar-se contra o feiticeiro; ou seja, ter um fim triste. Já aqui o dissemos, Marcelo ficará na história como o presidente da república ligado, e até certo ponto corresponsável, à degradação do regime democrático saído do golpe de estado de 25 de Abril de 1974, e que daqui a pouco mais de cinco meses completará cinquenta anos – à semelhança, pelo menos formal, do padrinho Caetano que foi o último primeiro-ministro (então presidente do conselho) do fascismo luso. 

Será bom recordar que Marcelo foi reconduzido em 2021 com mais votos do que em 2016, teve mais votos do que todos os outros candidatos e obteve o seu maior apoio no seio da classe média que ama sobretudo a paz social e predominante no interior do país. Marcelo, logo que se soube dos resultados recebeu os maiores encómios da imprensa mainstream: “Portugal desafia a pandemia e reelege Marcelo Rebelo de Sousa como Presidente”, lembremo-nos que o homenzinho declarara que se candidatava porque havia a pandemia, presumindo-se que caso o não fizesse seria uma cobardia; “Marcelo liderou onde há mais casos covid-19 e maior área ardida”, parecia que era a esperança do povo para a cura da doença e para a regeneração florestal do país!; “Marcelo quer unir" e “venceu em todos os 308 concelhos do país”, será o chefe da “união nacional”. No entanto, somente 23,48% dos eleitores votaram nele, o que não impediu que tivesse sido apresentado como o Salvador da Pátria. E será este salvador que irá ajudar a enterrar a democracia de Abril, e vontade não lhe falta.

É curioso notar que a qualidade dos presidentes da república eleitos que temos tido desde o 25 de Abril tem vindo gradual e imparavelmente a diminuir desde o primeiro. O general Ramalho Eanes, o único que soube dignificar o cargo, talvez por ser militar, não sabemos, e que, como figura política, sempre se deu ao respeito. A partir daí, tem sido o descalabro, desde uma figura demagógica e poltrona, passando por um político frouxo e outro empedernidamente reaccionário, até ao actual, de carácter dúplice, intriguista e perigoso, e que poderá gabar-se de ter sido o único, se a memória não nos atraiçoa, de ter concitado contra si uma manifestação popular. Ficará na história pela triste figura de ter degradado o papel e a imagem do mais elevado magistrado da nação, rebaixando-os aos de qualquer soba de reino das bananas. O que, diga-se de passagem, não é de estranhar já que reflecte o ponto a que chegou esta democracia de ópera bufa. Marcelo, mistura de duquesa de Mântua e de  Sidónio, será o símbolo do apodrecimento do regime e a nostalgia do Portugal salazarento que ressuscita na sua pessoa.

Ver A reeleiçãso de Marcelo

segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Desobediência Civil

 

Hannah Arendt 

A desobediência à lei, civil e criminal tornou-se um fenómeno de massa nos anos recentes, não apenas na América, mas também em muitas outras partes do mundo. O desafiar da autoridade estabelecida, religiosa e secular, social e política, como fenómeno mundial pode bem vir a ser considerado um dia como o mais notável evento da última década. Na verdade, «as leis parecem ter perdido o seu poder». Visto de fora e considerado na sua perspetiva histórica, não há sinal mais claro – nem mais explícito da instabilidade interna e da vulnerabilidade dos governos e sistemas legais existentes – que possa ser imaginado. Se a história nos ensina alguma coisa sobre as causas da revolução – e a história não ensina muito, mas ainda ensina consideravelmente mais do que as teorias das ciências sociais – é que uma desintegração dos sistemas políticos precede as revoluções, que o sintoma revelador da desintegração é uma progressiva erosão da autoridade governamental, e que esta erosão é causada pela incapacidade do governo para funcionar adequadamente, de onde brotam as dúvidas dos cidadãos sobre a sua legitimidade. E isto que os marxistas costumavam chamar uma «situação revolucionária» - que, claro está, na maior parte dos casos não se desenvolve numa revolução.

No nosso contexto, a grave ameaça ao sistema judicial dos Estados Unidos é exatamente o caso. Lamentar «o canceroso crescimento das desobediências» não faz muito sentido a menos que se reconheça que, de há muitos anos para cá, as instituições encarregues de fazer respeitar a lei foram incapazes de pôr em vigor legislação contra o tráfico de droga, os assaltos e os roubos. Considerando que as probabilidades de que os criminosos dessas categorias nunca venham a ser apanhados são superiores a nove para um e que só um em cada cem irá para a prisão, há todas as razões para ficar surpreendido com o facto de que tais crimes não sejam piores do que são. (Segundo o relatório de 1967 da Comissão Presidencial de Execução da Lei e Administração da Justiça, «bem mais de metade de todos os crimes nunca são levados ao conhecimento da polícia» e «dos que o são, menos de um quarto origina uma detenção. Quase metade de todas as detenções acabam pela retirada das acusações.) É como se estivéssemos empenhados numa experiência nacional para descobrir quantos criminosos potenciais – ou seja, pessoas que são impedidas de cometer crimes apenas pela força dissuasora da lei – existem de facto numa dada sociedade. Os resultados podem não ser encorajadores para os que sustentam que todos os impulsos criminosos são aberrações – ou seja, impulsos de pessoas mentalmente doentes agindo sob compulsão da sua doença. A simples e bastante assustadora verdade é que, em circunstâncias de permissividade legal e social, participam num comportamento criminoso mais ultrajante pessoas que, em circunstâncias normais, talvez sonhassem com esses crimes sem nunca considerarem cometê-los de facto». *

Na sociedade de hoje, nem os potenciais violadores da lei (ou seja, criminosos não-profissionais e não-organizados) nem os cidadãos respeitadores da lei precisam de estudos elaborados para lhes dizer que os actos criminosos provavelmente – quer dizer, previsivelmente – não terão qualquer espécie de consequências legais. Ficámos a saber, com grande pena nossa que o crime organizado é menos de recear do que os delinquentes não-profissionais - que aproveito oportunidade – e a sua inteiramente justificada «ausência de preocupação com serem punidos»; e este estado de coisas não é alterado nem clarificado pela investigação da «confiança pública no processo judicial americano». Aquilo contra o que nos erguemos não é o processo judicial, mas o simples facto de que os atos criminosos não têm habitualmente qualquer espécie de consequências; não são seguidos de processes judiciais. Por outro lado, temos de nos perguntar o que aconteceria se os poderes da polícia fossem restaurados para o ponto razoável em que 60 a 70 por cento de todos crimes fossem adequadamente seguidos de prisão e julgamento. Há alguma dúvida de que isso significaria o colapso dos já desastrosamente sobrecarregados tribunais e teria consequências muito aterradoras para o igualmente sobrecarregado sistema prisional? O que é tao aterrorizador na situação atual não é o mau funcionamento do poder policial per se, mas que remediar radicalmente essa situação significaria uma catástrofe para os outros ramos do sistema judicial, igualmente importantes.

A resposta do governo a isto, e similarmente a outras degradações dos serviços públicos, tem sido invariavelmente a criação de comissões de estudo, cuja fantástica proliferação em anos recentes fez provavelmente dos Estados Unidos o país mais investigado na Terra. Não há dúvida de que as comissões, depois de gastarem muito tempo e dinheiro com o intuito de descobrir que «quanto mais pobres as pessoas, mais provável é que sofram de malnutrição» (uma pérola de sabedoria que até foi objeto de «Citação do Dia» do New York Times), fazem frequentemente recomendações razoáveis. Estas, todavia, raramente são postas em prática mas são, em vez disso, submetidas a um novo painel de investigadores. O que todas as comissões tem em comum é uma tentativa desesperada de descobrir alguma coisa sobre as «causas profundas» de seja qual for o problema – em especial se for o problema da violência – e dado que as causas mais profundas são, por definição, ocultas, o resultado final de uma equipa dessas é, com demasiada frequência, pouco mais do que hipóteses e teorias não demonstradas. O efeito concreto é que a investigação se converteu num substituto para a acção, e as «causas mais profundas» estão a cobrir as óbvias, que são frequentemente tão simples que a ninguém «sério» e «erudito» pode ser pedido que lhes dê qualquer atenção. Decerto, encontrar remédios para as insuficiências óbvias não garante a solução do problema; mas negligenciá-las significa que o problema nem sequer será adequadamente definido. A investigação converteu-se numa técnica de evasão e isto certamente não ajudou a já abalada reputação da ciência.

Dado que a desobediência e o desafio à autoridade são uma marca tão geral do nosso tempo, é tentador ver a desobediência civil como um mero caso especial. Do ponto de vista do jurista, a lei é violada pelo que participa na desobediência civil, nãoo menos do que pelo criminoso, e é compreensível que as pessoas, em especial tratando-se de advogados, suspeitem que a desobediência civil, precisamente por causa de ser exercida em público, está na raiz da variedade criminal – não obstante todas as provas e argumentos contrários, porque a prova «para demonstrar que os atos de desobediência civil... levam a... uma propenção para o crime» não é «insuficiente», mas simplesmente inexistente. Apesar de ser verdade que os movimentos radicais e, certamente, as revoluções atraem elementos criminosos, não seria correcto nem sensato igualar os dois; os criminosos são tão perigosos para os movimentos políticos como para a sociedade como um todo. Além disso, enquanto a desobediência civil pode ser considerada uma indicação de uma significativa perda de autoridade (apesar de dificilmente poder ser vista como a sua causa), a desobediência criminal não é mais do que a inevitável consequência da desastrosa erosão da competência e poder da polícia. As propostas para sondar a «mente criminosa», quer com testes de Rorschach quer através dos serviços de informações, tem um ar sinistro, mas também pertencem às técnicas de evasão. Um fluxo incessante de hipóteses sofisticadas acerca da mente – essa mais esquiva das propriedades do homem – o criminoso oculta o sólido facto de que ninguém é capaz de capturar o seu corpo, do mesmo modo que o hipotético pressuposto das «atitudes negativas latentes» dos polícias esconde o seu registo visivelmente negativo da solução de crimes .

A desobediência civil ocorre quando um significativo número de cidadãos se convence de que os canais normais da mudança já não funcionam, e as queixas não são ouvidas ou não se age quanto a elas, ou então, pelo contrário, quando o governo está prestes a mudar e embarcou e persiste em modos de acção cujas legalidade e constitucionalidade estão abertas a sérias dúvidas. Os casos são numerosos e sete anos de guerra não declarada no Vietname; a crescente influência dos serviços secretos nos assuntos públicos; ameaças abertas ou ligeiramente veladas às liberdades garantidas pela Primeira Emenda; tentativas de privar o Senado dos seus poderes constitucionais, seguidas da invasão do Camboja decidida pelo Presidente em claro desrespeito da Constituição, que exige a aprovação do congresso para iniciar uma guerra; para não mencionar a referência ainda mais assustadora do Vice-Presidente aos resistentes e dissidentes como «"abutres"... e "parasitas" [que] podemos permitir-nos apartar... da nossa sociedade sem mais arrependimento do que deveríamos sentir ao deitar fora maçãs podres de um barril» - uma referência que desafia não apenas as leis dos Estados Unidos mas também qualquer ordem legal. Por outras palavras, a desobediência civil pode ser adaptada à necessária e desejável mudança ou à necessária e desejável preservação ou restauro do status quo – à preservação de direitos garantidos pela Primeira Emenda, ou ao restauro do adequado equilíbrio de poderes no governo, que é posto em perigo pelo ramo executivo e também pelo enorme crescimento do poder federal à custa dos direitos dos estados. Em nenhum desses casos pode a desobediência civil ser considerada igual à desobediência criminal.

Há toda a diferença do mundo entre o criminoso que evita o olhar do público e o participante na desobediência civil que toma a lei nas suas próprias mãos em aberta provocação. Esta distinção entre uma violação aberta da lei, efetuada em público, e uma violação clandestina só pode ser descurada por preconceito ou má vontade. E hoje reconhecido por todos os escritores sérios que abordam o tema e é claramente a condição primordial para todas as tentativas que defendem a compatibilidade da desobediência civil com a lei e as instituições americanas de governo. Além disso, o violador comum da lei, mesmo que pertença a uma organização criminosa, age para o seu próprio benefício, apenas; recusa ser dominado pelo consentimento de todos os outros e cede apenas à violência das entidades que obrigam a cumprir a lei. O participante na desobediência civil, embora esteja habitualmente em desacordo com uma maioria, age em nome e para bem de um grupo; desafia a lei e as autoridades estabelecidas com o fundamento de um desacordo básico e não porque, como indivíduo, deseja criar uma excepção para si e sair impune. Se o grupo a que pertence é signiticativo em número e posição, é-se tentado a classifica-lo como membro de uma das «maiorias concorrentes» de John C. Calhoun, Ou seja, secções da população que são unânimes no seu desacordo. O termo, infelizmente, esta manchado por argumentos pró-escravatura e racistas e, em Disquisition on Government, 0nde aparece, cobre apenas interesses, não opiniões ou convicções, de minorias que se sentem ameaçadas por «maiorias dominantes». De qualquer modo, o que importa é que estamos a lidar aqui com minorias organizadas que são demasiado importantes, e não apenas em número, mas em qualidade de opinião, para serem ignoradas com segurança. Porque Calhoun tinha certamente razão quando sustentava que em questões de grande importância nacional a «concorrência ou aquiescência das várias porções da comunidade» são um pré-requisito do governo constitucional. Pensar nas minorias desobedientes como rebeldes e traidoras vai contra a letra e o espírito de uma Constituição cujos criadores eram especialmente sensíveis aos perigos de uma incontida regra da maioria.

De todos os meios que os participantes na desobediência civil podem usar na linha da persuasão e da dramatização das questões, o único meio que pode justificar que se lhes chame «rebeldes» é a violência. Por isso, a segunda característica necessária geralmente aceite da desobediência civil é a não-violência, e decorre daí que «a desobediência civil não é revolução. (...) O participante na desobediência civil aceita  quadro da autoridade estabelecida e a legitimidade geral do sistema de leis, ao passo que o revolucionário os rejeita». Esta segunda distinção entre o revolucionário e o que desobedece, tão plausível à primeira vista, revela-se mais difícil de sustentar do que a distinção entre o participante na desobediência civil e o criminoso. O primeiro partilha com o revolucionário o desejo «de mudar o mundo», e a mudança que quer realizar pode ser drástica, de facto – como, por exemplo, no caso de Gandhi, que é sempre citado, neste contexto, como o grande exemplo da não-violência. (Será que Gandhi aceitava o «quadro da autoridade estabelecida», que era a lei britânica na Índia? Respeitava a «legitimidade geral do sistema de leis» da colónia?)

* Exemplos horríveis desta verdade foram apresentados durame o chamado «Julgamento de Auschwitz», na Alemanha, cujas actas podem ser encontradas em Bernd Naumann, Auschwitz, Nova Iorque, 1966. Os acusados eram «um mero punhado de casos abomináveis», selecionados entre cerca de 2000 homens da SS em serviço nos campos entre 1940 e 1945. Todos eles foram acusados de homicídio, o único crime que em 1963, quando o julgamento começou, não estava coberto pela prescrição. Auschwitz foi o campo do extermínio sistemático, mas as atrocidades que quase todos os acusados tinham cometido nada tinham que ver com a ordem para a «solução final»; os seus crimes eram puníveis pela lei nazi e em alguns cases, raros, os perpetradores foram de facto punidos pelo governo nazi. Esses acusados não tinham sido especialmente selecionados para prestar serviço num campo de extermínio; a razão por que tinham vindo para Auschwitz era apenas não serem aptos para o serviço militar. Quase nenhum deles tinha registo criminal de qualquer espécie, e nenhum tinha uma história de sadismo e homicídio. Antes de terem vindo para Auschwitz e durante os dezoito anos que tinham vivido na Alemanha do pós-guerra, tinham sido cidadãos respeitáveis e respeitados, indistinguíveis dos seus vizinhos.

("Desobediência Civil", Hannah Arendt. Relógio D’Água, 2017) 

quarta-feira, 1 de novembro de 2023

O país está melhor…

  

O OE-2024 foi aprovado pela maioria absoluta do PS na Assembleia da República, com a abstenção das duas flores de lapela do regime e votos contra de todos os demais partidos, que, eventualmente, terão votado neste sentido porque a aprovação era certa – este orçamento é o orçamento de estado do regime que antecipadamente merece o aval de Bruxelas –, fazendo-nos lembrar quando o bando PSD estava no governo e afirmava que “a vida das pessoas não está melhor, mas o país está muito melhor” e o empobrecimento de grande parte dos portugueses avançava a grande vapor – agora não será mais lento.

Escrita em 24 de Fevereiro 2014

Na cimeira do principal bando governativo, que se realizou neste fim de semana, o chefe não esteve de modas e foi claro: “o país está melhor que em 2011”; já um dia antes, o chefe da bancada dos paus mandados na Assembleia da República tinha dito: “a vida das pessoas não está melhor, mas o país está muito melhor”; deve-se salientar a parte da frase: o país está muito melhor. Que “país” esta gente está a referir-se? De certeza que não é o país que trabalha, porque este encontra-se bem pior, salários mais baixos, quer na Função Pública quer no sector privado, e aposentados com reformas bem menores.

Cerca de 80% dos pensionistas recebem uma reforma de 364 euros, enquanto há cerca de 5 mil reformas milionárias, isto é, acima dos 4 mil euros e cerca de 60 indivíduos com reformas de quase 17 mil euros por mês. Os salários no sector público caíram cerca de 20%, no sector privado não estarão muito longe; contudo, a Comissão Europeia já veio dizer que os salários nominais (não entra em linha de conta com a desvalorização resultante da inflacção) terão de cair uns 5% para que o país possa reduzir o défice externo nos próximos 10 anos. Ora, quando diz 5%, como diz que a queda foi apenas de 6% de 2010 até agora, sabendo todos nós que foi 3 a 4 vezes mais, deverá querer dizer um pouco mais.

Não estando à espera da troika vir dizer onde e como deve cortar, o chefe do bando já anunciou mais cortes nos rendimentos dos trabalhadores do estado, os eternos cepos das marradas e ensaio para o que irá acontecer mais tarde em todo o sector privado: implementação de tabela única de suplementos, em Junho, e tabela remuneratória única, em Dezembro, ao que parece a melhor forma de aumentar e tornar definitivos os cortes salariais sem haver risco de chumbo por parte do Tribunal Constitucional. Bem razão tem o tal chefe de bancada do bando principal, mostrando-se um pouco menos poltrão que o chefe do bando, se a vida das pessoas (que trabalham) não está melhor, o “país” está muito melhor: em 2011, os 10 por cento mais ricos (este é que o verdadeiro país de que o bando principal fala) reuniam 27,3% do rendimento global das famílias portuguesas num ano e Portugal é um dos países europeus com mais concentração de rendimentos nas famílias mais ricas – ficou-se a saber (embora, já se soubesse) no Dia Mundial da Justiça Social.

Claro que nem necessário será falar da dívida soberana que aumentou desde 2011, ultrapassou os 130% do PIB, que por sua vez encolheu, diga-se em abono da verdade, enquanto o acordado no Memorando da Troika era de 114,9%; ou os números do défice das contas do estado que deveriam ter ficado pelos 3% em 2013, mas que dispararam para mais de 5%, quase o dobro, o que fará com que o endividamento prossiga de vento em popa. Fica mais que evidente que o défice das contas públicas, que não deve ultrapassar os 0,5% do PIB, não passa de um instrumento para manter a dívida e impedir que haja investimento em sectores da economia ou dos serviços de carácter social.

Toda a vida do país, no conceito abrangente do povo que trabalha, será toda dirigida para o cumprir a meta do défice, ou seja, manter e pagar a dívida. Esta é o nó da forca que garrota o pescoço do povo português, razão mais que suficiente para que as metas impostas pelo Pacto Orçamental não devam ser cumpridas e a Dívida Soberana não deva ser paga. Estes dois instrumentos têm contribuindo para o empobrecimento galopante dos trabalhadores portugueses: se, em 2010, 2,28 milhões de famílias (famílias, não indivíduos) recebiam menos de 10 mil euros, em menos de dois anos depois já eram 3,04 milhões, isto é, houve um aumento de 33,1% no empobrecimento.

Como é óbvio nestas contas não se encontram os desempregados, os emigrados, e aqueles que já não são gente porque não entram nas estatísticas. Serão ao todo 40%, 50%, 60% da população portuguesa a viver dentro da pobreza? Não se sabe bem, porque os números das estatísticas oficiais escondem a dura realidade, mas serão de certeza uma larga maioria do povo empobrecida graças a esta política que o principal bando quer apresentar como a única, aquela que não tem alternativa.

Este empobrecimento é a única alternativa, na verdade, mas para que os 10% indivíduos mais ricos se tornem ainda mais ricos, os bancos consigam sair da situação de pré-falência em que se encontram (em 2013, os seis principais bancos privados tiveram um prejuízo de 1 560 milhões de euros, mais 353 milhões que em 2012; e a CGD, o banco do estado, um prejuízo de 576 milhões de euros, superior ao prejuízo de 395 milhões do ano anterior), e a burguesia nacional consiga aguentar o impacto da concorrência externa.

Nem o país está melhor, nem o bando principal se encontra em melhor situação do que aquele. Não se pretendendo entrar pela análise do que se passou no dito congresso, já andam por aí analistas de sobra, a ideia com que se ficou foi a de que o bando se encontra em desagregação, parte dele estará a fazer as malas para mudar de poiso, enquanto a camarilha dirigente se une cada vez mais. Foi um regalo ver todos os comentadores-paineleiros televisivos a aplaudir o chefe, ver reconduzido o incontornável Relvas em posição cimeira do bando e até um morto-vivo Lopes a fazer prova de vida.

O discurso oficial foi o mesmo, culpar uma parte dos portugueses pela infelicidade da outra parte, depois dos velhos serem culpados pela desgraça dos novos, dos empregados pela dos desempregados, dos funcionários públicos pela dos do sector privado, agora assistiu-se à responsabilização dos portugueses que não pagam impostos pela desgraça das misérias das contas públicas. Ficou-se também a saber, embora não fosse novidade que esta política tem o apoio da burguesia nacional, pedindo-se medidas mais restritivas quanto aos direitos dos trabalhadores, nomeadamente, maior limitação do direito à greve.

O “convite” do principal bando ao compromisso por parte do PS até seria desnecessário porque o saque tem-se efectuado nestes quase 40 anos de democracia de opereta graças a esse consenso, a esse entendimento político, se a intenção não fosse outra. E a intenção é, para já, retirar capital político ao PS, para que não vença as próximas eleições europeias, para mostrar que a política a seguir por outro governo, eventualmente com o PS, será a mesma porque a política é a que foi acordada/imposta por Bruxelas, com ou sem FMI (troika).

A sacro-santa disciplina orçamental é para manter, disse a ministra swaps em recente encontro internacional, e a assistência financeira, seja qual for a forma que revista, será mais que certa. A troika sai sem sair, a austeridade é para manter e intensificar, o derrube do governo é uma tarefa mais que urgente. Não se pode contar com o PS, este tem sido o principal suporte do governo, tanto ou quase tanto como o partido do táxi, assim os restantes partidos que se dizem oposição poderiam juntar-se nem que fosse só para esta tarefa: o PCP diz-se disponível para “negociar, convergir, com todos aqueles, mas todos, que queiram pôr este Governo na rua e acabar com esta política”. Claro que sem hegemonias e em pleno pé de igualdade. Esperamos para ver, se não acontecer, não se queixem de virem a ser acusados de cumplicidade.

Derrube do governo, já!

PS: Se acompanhado pelo PR Cavaco tanto melhor!

Discurso proferido pelo embaixador Guaicaípuro Cuatemoc, advogando o pagamento da dívida externa ao seu país

  

Um surpreendente discurso feito pelo embaixador Guaicaípuro Cuatemoc, de descendência indígena, advogando o pagamento da dívida externa ao seu país, o México, deixou embasbacados os principais chefes de Estado da Comunidade Europeia. A conferência dos chefes de Estado da União Europeia, Mercosul e Caribe, em Maio de 2002 em Madrid, viveu um momento revelador e surpreendente: os chefes de Estado europeus ouviram perplexos e calados um discurso irónico, cáustico e de exatidão histórica que lhes fez Guaicaípuro Cuatemoc.

Aqui estou eu, descendente dos que povoaram a América há 40 mil anos, para encontrar os que a descobriram só há 500 anos. O irmão europeu da aduana me pediu um papel escrito, um visto, para poder descobrir os que me descobriram. O irmão financista europeu me pede o pagamento – ao meu país –, com juros, de uma dívida contraída por Judas, a quem – nunca autorizei que me vendesse. Outro irmão europeu me explica que toda dívida se paga com juros, mesmo que para isso sejam vendidos seres humanos e países inteiros sem pedir-lhes consentimento. Eu também posso reclamar pagamento e juros.

Consta no Arquivo da Companhia das Índias Ocidentais que, somente entre os anos 1503 e 1660, chegaram a São Lucas de Barrameda 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata provenientes da América.

Teria sido isso um saque? Não acredito, porque seria pensar que os irmãos cristãos faltaram ao sétimo mandamento!

Teria sido espoliação? Guarda-me Tanatzin de me convencer que os europeus, como Caim, matam e negam o sangue do irmão.

Teria sido genocídio? Isso seria dar crédito aos caluniadores, como Bartolomeu de Las Casas ou Arturo Uslar Pietri, que afirmam que a arrancada do capitalismo e a atual civilização europeia se devem à inundação de metais preciosos tirados das Américas.

Não, esses 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata foram o primeiro de tantos empréstimos amigáveis da América destinados ao desenvolvimento da Europa. O contrário disso seria presumir a existência de crimes de guerra, o que daria direito a exigir não apenas a devolução, mas indemnização por perdas e danos.

Prefiro pensar na hipótese menos ofensiva. Tão fabulosa exportação de capitais não foi mais do que o início de um plano 'MARSHALL MONTFZUMA', para garantir a reconstrução da Europa arruinada por suas deploráveis guerras contra os muçulmanos, criadores da álgebra, da poligamia, e de outras conquistas da civilização.

Para celebrar o quinto centenário desse empréstimo, podemos perguntar: Os irmãos europeus fizeram uso racional responsável ou pelo menos produtivo desses fundos?

Não. No aspecto estratégico, dilapidaram nas batalhas de Lepanto, em navios invencíveis, em terceiros reichs e várias formas de extermínio mútuo. No aspecto financeiro, foram incapazes, depois de uma moratória de 500 anos, tanto de amortizar o capital e seus juros quanto independerem das rendas líquidas, das matérias-primas e da energia barata que lhes exporta e provê todo o Terceiro Mundo.

Este quadro corrobora a afirmação de Milton Friedman, segundo a qual uma economia subsidiada jamais pode funcionar e nos obriga a reclamar-lhes, para seu próprio bem, o pagamento do capital e dos juros que, tão generosamente, temos demorado todos estes séculos em cobrar .Ao dizer isto, esclarecemos que não nos rebaixaremos a cobrar de nossos irmãos europeus, as mesmas vis e sanguinárias taxas de 20% e até 30% de juros ao ano que os irmãos europeus cobram dos povos do Terceiro Mundo.

Nos limitaremos a exigir a devolução dos metais preciosos, acrescida de um módico juro de 10%, acumulado apenas durante os últimos 300 anos, com 200 anos de graça. Sobre esta base e aplicando a fórmula europeia de juros compostos, informamos aos descobridores que eles nos devem 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata, ambas as cifras elevadas à potência de 300, isso quer dizer um número para cuja expressão total será necessário expandir o planeta Terra.

Muito peso em ouro e prata... quanto pesariam se calculados em sangue?

Admitir que a Europa, em meio milénio, não conseguiu gerar riquezas suficientes para esses módicos juros, seria como admitir seu absoluto fracasso financeiro e a demência e irracional idade dos conceitos capitalistas.

Tais questões metafísicas, desde já, não inquietam a nós, índios da América. Porém, exigimos assinatura de uma carta de intenções que enquadre os povos devedores do Velho Continente e que os obriguem a cumpri-la, sob pena de uma privatização ou conversão da Europa, de forma que lhes permitam entregar suas terras, como primeira prestação de dívida histórica...

Quando terminou seu discurso diante dos chefes de Estado da Comunidade Europeia, o Cacique Guaicaípuro Guatemoc não sabia que estava expondo uma tese de Direito Internacional para determinar a verdadeira dívida externa.

Fonte