quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Os acordos e as desavenças pela disputa do pote

 

A ama para o lacaio: "Estou muito feliz por me encontrar com António Costa. Sei que posso contar com a sua experiência e dedicação", escreveu Ursula von der Leyen (Em "Dinheiro Vivo")

Os partidos e outros intervenientes e interessados na repartição do saque registado no documento do Orçamento de Estado para 2022 estão desavindos, mas só aparentemente. Muitas pessoas do povo ainda pensam que a origem dos seus principais problemas a nível colectivo se encontra no facto de os partidos e outros ditos “parceiros” não se entenderem, porque caso ponham as divergências de lado, os problemas se resolverão. Ora, na realidade, é o contrário que acontece.

Como diz o adágio popular, “enquanto o pau vai e vem, folgam as costas”, o não se entender permite algum alívio no apertar da tarraxa sobre os que trabalham e produzem; e se o escarcéu é grande, é porque o desentendimento é mais no que diz respeito à forma como o produto do saque é distribuído do que no roubo em si. E o que está a acontecer é que as nossas inúteis e rentistas elites acham que o que lhes cabe neste orçamento é pouco, e querem mais.

Assiste-se a um coro de lamúrias. Para a Ordem dos Contabilistas, a Proposta do Orçamento do Estado é "pouco virada" para as empresas; as consultoras financeiras acham que "para o setor empresarial, a proposta de orçamento pode ser curta"; o sector da restauração diz que OE2022 “pode ditar fim de muitas empresas”; um jornal dos negócios do capital diz que: “Mercado pede um OE com mais PRR e menos impostos”.

Parece o muro das lamentações, apesar do OE reservar 700 milhões para apoios covid às empresas, mais 200 milhões de subsídios a fundo perdido para “premiar postos de trabalho mantidos através do Incentivo à Normalização”, mais para além do já prometido e realizado. Não será por acaso que o ministro da Finanças veio culpar o vírus por 40 mil milhões de euros de défice, ou seja, 20% do PIB para o próximo orçamento, e que foi quase todo enfiado no bolso das grandes empresas e não apenas do sector farmacêutico e da saúde.

Mas, claro, como também popularmente se diz, “quem não chora não mama”, e os diversos abutres que sobrevoam o produto da exploração exercida sobre o povo não se cansam de grasnar. Não há saciedade possível para o apetite: dos 16.644 milhões de euros do PRR, cerca de 5 mil milhões são para apoios directos às empresas, onde se inclui a recapitalização, valor que, segundo Costa, pode chegar aos 7 mil e 200 milhões de euros. Ainda haverá a possibilidade de o governo pedir emprestado mais 2. 300 milhões. É o fartar vilanagem!

O bolo é demasiado apetitoso e as empresas estão à rasca, isto é, estão em grande medida falidas, porque falido se encontra o capitalismo nacional, cronica e estruturalmente subsidiário, e ainda mais depois da entrada na União Europeia e da adesão ao euro. Razão pela qual o Presidente-Rei Marcelo se esganiça a avisar: “Portugal não pode perder 'ocasião única e irrepetível' e que o país “quer (não há outro remédio!) entrar 'nos primeiros' no novo ciclo económico” e “esta não pode ser mais uma oportunidade perdida”. Não há saída para a burguesia nacional.

Pela gravidade da situação, Marcelo, hábil e experiente na intriga política, vai manobrando, avisando, em ameaça velada, que “o chumbo do OE muito provavelmente conduzirá a eleições antecipadas”. Mas, acreditando nos partidos e na democracia – diz, ele, embora saibamos que são coisas que nunca teve em grande consideração – o “Orçamento de Estado irá passar na Assembleia da República”. No entanto, pelo sim e pelo não, e cautelas e caldos de galinha não fazem mal a ninguém, Costa joga pela prudência, contando com a eventualidade de eleições antes do tempo, daí o ter destinado à dita “classe média” um alívio de 150 milhões em sede de IRS, porque é nesta faixa do eleitorado que se ganham ou se perdem eleições.

Enquanto vai tomando algum cuidado, por outro, Costa vai esticando a corda com os parceiros da geringonça informal, tentando comprometer o PCP e o BE na aprovação do OE, ao conceder algumas migalhas, como aconteceu no ano passado; migalhas, quer no que concerne a impacto orçamental, quer no aumento de custos do trabalho nas empresas. PCP e BE vão fazendo o choradinho dos pedintes, numa farsa pouco convincente, porque sabem que ninguém já se deixa enganar e que o claudicar será questão de tempo. A cobardia política é de sobra no enfrentamento ao governo e nas possíveis consequências a nível de resultados em eleições, pouco esperadas pelo eleitorado e completamente indesejáveis pelas elites famintas e impacientes. Como bem diz o comentador Marcelo: será uma perda de tempo.

Estamos a assistir , mais uma vez, a uma ópera bufa quanto a saber quem vai ou não aprovar a Orçamento de Estado de 2022; uma reprise que acontece todos os anos, e já lá vão uns 46. Só que, este ano, a representação tem como fundo cénico uma profunda e crónica crise capitalista a nível mundial e revestindo aspecto mais gravoso na União Europeia. E não é só a denominada “crise energética” que surge como escolho que poderá fazer naufragar a frágil nau catrineta portuguesa, porque esta será apenas uma das pontas do iceberg, é toda uma crise global do capitalismo que se trata. E, para lhe fazer frente, a burguesia parece conhecer uma só saída: reduzir custos, nomeadamente, os do trabalho, e aumentar o preço das mercadorias. A inflação que se avizinha não será nem baixa nem temporária, será, no mínimo, como alerta o FMI, “uma incerteza considerável”.

Bem prega o Frei Tomás Marcelo para que a subida de preços da energia não se prolongue, por prejudicar a economia, e o ex-Ronaldo das Finanças pôs a cabeça ao postigo do Banco de Portugal alertando para a subida do preço dos combustíveis “aparentemente descontrolada”, mas que espera vir a ser "temporária". Ora, para nada disto aponta os factos e os indícios; os primeiros são a dependência do país dos combustíveis fósseis, petróleo e gás natural, e os segundos são a possível irregularidade ou mesmo falha total de fornecimento do gás por parte da Argélia, devido ao conflito crescente com o vizinho Marrocos, e a impossibilidade das eólicas e fotovoltaicas poderem substituir a curto prazo a energia em falta.

Não é uma ideia absurda pensar-se que o próximo Inverno venha ser uma Inverno de frio e de fome para quem trabalha. Costa, em preventiva de esconjurar algum do descontentamento que se avoluma, decretou a descida de dois cêntimos no ISP da gasolina e um cêntimo no ISP do gasóleo. Continua a iludir a questão. No entanto, a electricidade e o gás natural estão já mais caros e ninguém é capaz de prever os aumentos futuros, e subindo o preço dos combustíveis aumentam todos os produtos de consumo em cadeia – 2, 5 ou 10%, ninguém sabe. Preparemo-nos para o pior.

A crise política de que fala Marcelo, será sempre o reflexo da crise económica mais geral, independentemente do OE ser ou não aprovado, à primeira ou à segunda vez, com duodécimos ou sem duodécimos. O PS tem desempenhado o papel que os PS desempenham por incumbência do capital, ser bombeiro da luta de classes quando o ou os partidos da burguesia se encontram por alguma razão mais fragilizados. Logo que o PSD, o ainda partido por excelência da burguesia indígena, resolva os seus problemas internos, o PS será descartado. A questão é que ainda não se sabe bem se o momento actual é o mais acertado para a defenestração do governo, mas pelo sim e pelo não, dentro do dito “principal partido da oposição” vão-se contando espingardas e a actual direcção nunca esteve tão ameaçada como agora. Não é por acaso também que as eleições internas não foram adiadas e o principal opositor actua e fala como as eleições legislativas fossem já amanhã. Tudo é incerto. Há uma certeza, contudo, no seio do bando a pressa de enfiar a mão no pote é indisfarçável.

Perante a impaciência e nervosismo do capitalismo, a posição dos diversos interlocutores e parceiros políticos é a de mais baixa e abjecta subserviência e oportunismo. Costa alinha totalmente pela política imposta por Bruxelas, o OE pode dar muitas voltas e os partidos da putativa oposição podem dizer o que quiserem, mas o Orçamento terá de ser o das "contas certas", vincando que nunca colocará em causa “credibilidade do país”, leia-se: a subserviência canina do governo. Costa não se cansa de alardear o seu espírito de lacaio, desde querer fazer do país um fornecedor de matérias primas para a famigerada “transição energética e tecnológica” da Europa capitalista, considera “as reservas de lítio em Portugal e Espanha oportunidades de desenvolvimento”, ao pedir uma “NATO mais solidária com consulta recíproca e sem 'crises de confiança'”. O resto da manada vai na cola, ninguém coloca em causa as imposições das “contas certas” por Bruxelas e muito menos a permanência de Portugal na União Europeia e no euro.

No mundo do trabalho, os sindicatos, numa prova de vida serôdia, vêm agora convocar greves para sacar mais umas migalhas, não usando denunciar a natureza de classe de um orçamento que, na essência, representa a extorsão de que são vítimas os trabalhadores e cuja preocupação é dar ao capital o maior quinhão e segunda a sua lógica. Em questões prática, como por exemplo nos despedimentos colectivos que irão disparar daqui para a frente, é a inépcia e a cobardia política: a Saint-Gobain Sekurit Portugal, que recebeu apoio financeiro no contexto da pandemia e teve lucros superiores a 1400 milhões de euros em 2020, anuncia despedimento de 130 trabalhadores. E na Função Pública, parece que 0,9% de aumento para os trabalhadores é suficiente, não contando com a depreciação do salário real em cerca de 10% nos últimos anos.

Quanto a intenção e objectivos das lutas propostas, ficamos conversados: Mário Nogueira, Secretário-geral da Federação Nacional dos Professores, ameaça com greve e manifestação nacional se Governo não negociar com professores. Notar bem: “ameaça” e “não negociar”. Pois não é com “ameaças” para “negociar” que se resolvem, em termos imediatos, os problemas mais prementes do povo trabalhador, e, ainda por cima, em tempo de profunda, continuada e sem solução à vista crise do capitalismo. O tempo é de luta e de rutura, de ir mais além: destruição da causa de todos os males do mundo do trabalho e do planeta, o capitalismo.

16 Outubro 2021

Discurso no Senado em 7 de outubro de 2021

 

GIORGIO AGAMBEN*

Discurso no Senado em 7 de outubro de 2021

Vou me concentrar apenas em dois pontos, que gostaria de chamar a atenção dos parlamentares que terão de votar a conversão do decreto em lei.

A primeira é a evidente - insisto evidente - contradição do decreto em questão. Você sabe que o governo com um decreto-lei especial, conhecido como “escudo penal”, nº 44 de 2021, agora convertido em lei, se eximiu de qualquer responsabilidade pelos danos causados ​​pelas vacinas. A gravidade desses danos resulta do facto de que o artigo 3º do decreto menciona explicitamente os artigos 589 e 590 do código penal, que se referem a homicídio culposo e lesões por negligência.
Como notaram juristas de autoridade, o Estado não tem vontade de se responsabilizar por uma vacina que não completou a fase de testes e, ao mesmo tempo, tenta obrigar os cidadãos a vacinar-se por todos os meios, caso contrário, excluí-los da vida social e, agora, com o novo decreto que vocês são chamados a votar, até privando-os da oportunidade de trabalhar.
É possível imaginar uma situação legal e moralmente mais anormal? Como pode o Estado acusar de irresponsabilidade quem opta por não se vacinar, quando é o mesmo Estado que formalmente declina toda a responsabilidade pelas possíveis consequências graves - lembra a menção dos artigos 589 e 590 do código penal da vacina?
Gostaria que os parlamentares refletissem sobre esta contradição que, a meu ver, constitui uma verdadeira monstruosidade jurídica.

O segundo ponto para o qual gostaria de chamar sua atenção não diz respeito ao problema médico da vacina, mas ao político Passe Verde, que não se deve confundir com isso (já fizemos vacinas de todos os tipos no passado, sem sendo obrigado a apresentar um certificado para cada um dos nossos movimentos). Cientistas e médicos disseram que o Passe Verde não tem significado médico em si, mas serve para forçar as pessoas a se vacinarem. Por outro lado, acredito que o contrário também pode e deve ser afirmado, ou seja, que a vacina é, na verdade, um meio de obrigar as pessoas a terem um passe verde, ou seja, um dispositivo que lhes permite controlar e rastrear os seus movimentos de uma forma sem precedentes.
Os politólogos sabem há muito tempo que as nossas sociedades passaram do modelo que antes se chamava de "sociedade disciplinar" para o de "empresas de controle", fundado num controle digital virtualmente ilimitado do comportamento individual, que assim se torna quantificável num algoritmo. Agora estamo-nos a acostumar a esses dispositivos de controle - mas até onde estamos dispostos a aceitar esse controle? É possível que os cidadãos de uma sociedade supostamente democrática estejam numa situação pior do que a dos cidadãos da União Soviética de Estaline? Você sabe que os cidadãos soviéticos eram obrigados a mostrar um “propiska” para viajar de um país a outro, mas também teremos de o fazer para ir ao cinema ou a um restaurante - e agora, muito mais seriamente, para ir ao local de trabalho. E como é possível aceitar que, pela primeira vez na história da Itália, após as leis fascistas de 1938 sobre os cidadãos não arianos, se criem cidadãos de segunda classe, sujeitos a restrições que do ponto de vista estritamente jurídico - insisto jurídico - nada tem a invejar aos previstos nessas leis nada auspiciosas?

Tudo sugere que os decretos-leis que se sucedem como se emanassem de uma só pessoa devem ser enquadrados num processo de transformação das instituições e dos paradigmas de governo que é tanto mais insidioso quanto, como aconteceu com o fascismo, ocorre sem alterar o texto da constituição. O modelo que se desgasta e se anula progressivamente é o das democracias parlamentares, com seus direitos e garantias constitucionais, e em seu lugar assume um paradigma de governo em que, em nome da biossegurança e do controle, as liberdades individuais estão destinadas a sofrer limitações crescentes.
A concentração exclusiva das atenções nas infecções e na saúde impede-nos de perceber a Grande Transformação que se está a passar na esfera política e de perceber que, como os próprios governos não se cansam de nos lembrar, segurança e emergência não são fenómenos transitórios, mas eles constituem a nova forma de governamentalidade.
Nesta perspectiva, é mais urgente do que nunca que os parlamentares considerem com extrema atenção a transformação em curso, que a longo prazo está destinada a esvaziar o parlamento de seus poderes, reduzindo-se, como vem ocorrendo, a aprovar em nome da biossegurança decretos que emanam de organizações e pessoas que têm muito pouco a ver com o parlamento.

*Filósofo italiano

Em quodlibet

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Ventos do Apocalipse

  

Paulina Chiziane

 - Senhor Nduna, senhores juízes, venho denunciar o meu marido. Nesta semana tão sagrada ele ousou dormir na minha esteira. Foi mesmo nesta última noite, obrigando-me a desrespeitar e violar todos os princípios.

- O meu marido também, senhores juízes. Passou a tarde de ontem bebendo sura e quando chegou a noite quis dormir na minha esteira. Como eu recuasse agrediu-me aos gritos, pontapés, vejam, vejam estes arranhões que tenho no pescoço, estas chagas nas costas, vejam, eu não estou a mentir. Eu suportei tudo, mas não caí na conversa dele.

- Bravo, bravo, aqui estão as mulheres de coragem. Muito bem. Vieram até aqui denunciar os vossos maridos. Qual a contribuição por vós dada no sentido de evitar estes desvios?

- !?...

-Nada fizeram, bem se vê. Deixaram-nos desencaminhar-se, dormiram convosco, sentiram prazer, agora querem colocar as culpas nos ombros dos coitados?

Aceitem vossa parte da culpa, pois o tribunal condena-vos a vós e aos vossos maridos. Trazei cada uma de vós uma galinha para pedir perdão aos mortos.

- De que nos acusam? Os homens é que mandam, nós fomos loboladas para satisfazer todos os seus desejos.

- Aceitam, porque a culpa também é vossa. Trazei as galinhas e serão purificadas.

A natureza satisfaz os seus caprichos macabros, nenhum ser é senhor de si. O Sol vai e vem, a terra é uma caldeira com o negro assando-se dentro dela. Os homens não aceitam a indiferença dos deuses e tentam despertá-los do sono secular sacudindo-os com rezas, rituais, batucadas, sangue de galo e de cabrito cujas carnes tenras acabam nos estômagos dos que possuem garras e dentes. Há rumores nas ruas a qualquer hora do dia e da noite. São os homens que vão e voltam dos tribunais; são mulheres que partem para a limpeza da terra, regressando com as mãos conspurcadas de tanto esgaravatar à procura dos vestígios dos seus crimes. Há arrependimento, há pureza, há santidade nos corações de todos. Há também querelas ligeiras e graves no espaço delimitado pelo círculo de cada palhota. É o homem que exige o milho para a purificação, e a mulher que o esconde. É a mãe que leva as cabras para o sacrifício dos mortos e o filho que impede. E a criança não participa na algazarra porque não lhe é permitido, apenas oferece aos adultos olhares interrogativos quando vê desaparecer o último pedaço de alimento sem qualquer explicação.

Os velhotes mergulham na balbúrdia numa participação passiva. Descansam nas sombras sorvendo a pinga, puxando agradáveis fumaças da ponta do xicaucau. Estão cheios de contentamento, as novas gerações regressam às antigas tradições, mas a espoliação de que o povo é vítima pelos capangas do Sianga deixa-lhes os corações oprimidos. A interrogação é permanente: esses homens estão de facto a lutar pela salvação do povo ou simplesmente a resolver o problema pessoal do seu estômago? Ah, novas gerações, malditos sejam. A chuva não cairá de certeza, é tanta a maldade que se faz. Por outro lado, talvez seja um sacrifício necessário, talvez os deuses o tenham assim ordenado. Em conversas esmorecidas os velhotes lamentam a sorte dos novos, a destruição do clã, da cultura e da tradição que com a fome afundará na mesma barca que eles.

A idade muda os gostos dos homens. Os velhos falam da morte com paixão e ânsia, e a morte, sabendo-se desejada, aproxima-se, vem a caminho. Com os mais novos a luta é contrária. Estão empenhados numa guerra sem tréguas contra esse invencível rei dos terrores. Seguram-se ao alicerce da fé que gera a esperança e rezam perdidamente embora conscientes de que a verdadeira fé é o sacrifício do homem. Mas que alternativa tomar se no corpo e na alma não resta o mínimo de energia para o sacrifício da vida?

O povo teme a morte. Mas qual a razão deste temor se o negro quando morre passa à categoria de deus e defunto venerado?

O povo de Mananga não teme a morte, mas ama a vida e não quer perdê-la. A vida é a dádiva mais sagrada de todos os seres. No momento de agonia ou de alegria mais nos aconchegamos a ela sussurrando-lhe ao ouvido este belo poema:

 

Vida,

apesar das amarguras

eu amo-te

com as tuas delícias e milícias

adoro-te.

(Ventos do Apocalipse - Paulina Chiziane, 1999)

As eleições, a justiça e o regime

Elliott Erwitt

O resultado das autárquicas, vendo bem, não surpreendeu ninguém que tenha olhos de ver da política do reino à beira-mar plantado. Costa, ainda antes de se saber o resultado do concelho de Lisboa, veio arrotar vitória, com o PS a ganhar a maioria das câmaras. Claro que o homem já conhecia a derrota na capital, mas teve que fazer o número de circo. O principal partido da oposição, ainda o partido por excelência da burguesia, arrecadou o maior número das principais cidades, com excepção do Porto, e Coimbra foi emblemático, atendendo aos recursos propagandísticos alocados pelo PS/governo.

O PCP não tem maneira de aprender e continua a perder eleitorado e influência em autarquias emblemáticas, Loures foi um golpe irrecuperável, não querendo perceber que apoiar o comité de negócios do grande capital, que é o governo PS/Costa, e o capitalismo em geral lhe será fatal. Os partidos da extrema-direita continuam à espera de altura mais propícia, mantendo, entretanto, a sua função de distração; bem como o BE, cuja influência não ultrapassa a pequena-burguesia dos dois grandes centros urbanos do país, mas que ainda sonha ser governo. Todos os partidos do regime perderam, ganhou a abstenção.

E nesta semana de rescaldo eleitoral, um dos maiores burlões do reino pôde sair livremente do país para não cumprir os 19 anos de prisão efectiva (soma das três penas a que já foi condenado), tendo faltado apenas, como já disse alguém, a justiça ter-lhe marcado e pagado a viagem. Estes dois acontecimentos, resultados da eleições autárquicas e fuga do burlão, espelham bem a natureza da nossa democracia.

A justiça tem vindo a demonstrar, desde praticamente do 25 de Abril de 1974, que é uma justiça com dois pesos e duas medidas: lenta e branda para com os ricos e poderosos, rápida e implacável para com os trabalhadores e os pobres. O sector judicial foi o único que, dentro do aparelho de estado, não foi mexido, mantendo-se imune aos escrutínio e à responsabilização perante o povo eleitor, com juízes vitalícios e inamovíveis, gozando de privilégios e de prebendas salariais que os restantes cidadãos não usufruem. Nenhum partido do arco da governação teve a coragem de mexer no estatuto e privilégios dos membros deste órgão de soberania, que, à semelhança dos outros órgãos, deveriam ser submetidos ao escrutínio do voto do cidadão eleitor e, perante isso, poderem ser responsabilizados e destituídos, caso houvesse razão para tal, como os restantes. Claro que isso não acontece, porque o poder judicial e o poder militar são os pilares de reserva para, quando os outros falharem, suster o poder da burguesia sobre o povo.

Assim também se perceberá que os grandes gatunos deste país, incluindo banqueiros e políticos, jamais irão para a prisão, poderá ir algum peixe miúdo tipo Isaltino ou Vara, para tapar os olhos e calar algumas bocas. Enquanto vão estes, não vão os outros. Fiquem as boas consciências descansadas que o Ricardo Salgado jamais irá bater com os costados na choldra. E, pasme-se!, quando Rendeiro diz que está a ser bode expiatório, o homem até terá alguma razão, é que deviam estar com o cú no mesmo mocho os restantes sócios do BPP. E quem são eles? Precisamente Stefano Saviotti, Diogo Vaz Guedes e Francisco Balsemão. E este é, como toda a gente sabe, um senador do regime, conselheiro de estado de Marcelo e homem de mão do Clube  Bilderberg em Portugal. Como colocar esta gente na prisão sem abanar fortemente o regime democrático burguês, saído do 25 de Abril+25 de Novembro?

Perante as misérias do regime, as intrigas e tricas entre os detentores dos órgãos do poder não cessam de surgir à luz do dia. É o governo, através de Costa e do incompetente Cravinho, a querer substituir o Chefe do Estado Maior da Armada pelo herói das vacinas, antes do tempo acordado para o efeito. Não exactamente para recompensar o marinheiro, mas servindo-se dele para atacar Marcelo e consolidar a reforma das Forças Armadas no interesse de Bruxelas, enfrentando para isso os oficiais que estão contra a alienação do comando para as futuras Forças Armadas da União Europeia que, de certeza, ficarão sob a chefia de algum general alemão ou francês. Este reforço do aparelho militar servirá de igual modo para intervenção interna no caso das polícias não conseguirem reprimir a contestação social que se advinha num futuro próximo.

Antes das eleições autárquicas de domingo, já o rei/presidente tinha definido o prazo de validade do governo e de Costa, 2023. Uma data à partida compreensível na medida em que se encontra em jogo a distribuição dos milhões da bazuca pelos diferentes sectores das elites e das clientelas partidárias. Aliás, foi agitando os milhões que o Costa percorreu o país de lés a lés durante o período da campanha eleitoral. Mas caso a crise económica não seja debelada a contente do capital e as imposições de Bruxelas não sejam caninamente postas em prática, é quase certo que Costa será chutado já para o ano, ou seja, ainda antes do fim do mandato do governo, eleito em 2019.

E os indícios não são famosos: A produção industrial diminuiu 9% em termos homólogos no mês de Agosto; Quase 300 mil famílias deixaram de pagar os créditos no primeiro semestre, mais de 1200 milhões de euros de dívidas, mostrando que a pobreza da dita classe média aumentou em Portugal nos últimos tempos; Portugal tem cerca de 8.200 pessoas em situação de sem-abrigo; Moratórias caem, menos do que se esperava, em Agosto para 36,3 mil milhões, dos quais 21,5 mil milhões de empresas, o que revela que muitas empresas estão na ou à beira da falência, e de nada lhes valerá os milhões da bazuca que irão na quase totalidade e direitinhos para as grandes empresas (para além das clientelas e dos políticos, as comissões nunca são de desprezar!).

E, como não poderia deixar de ser, as contradições e os conflitos estalam dentro do PS e do governo: a demissão do presidente da CP põe a nu, mais do que uma CP bloqueada, as discordâncias de estratégia quanto ao desenvolvimento dos transportes em Portugal, avião ou comboio, e disputas pessoais no que concerne a enfiar a mão no pote. O controlo das despesas do estado por parte do ministro das Finanças desagrada não tanto pelo diktat de Bruxelas, mas mais pela divisão do saque. A vitória de Pirro do PS&Costa nas autárquicas é um sinal claro que começou o fim do reinado rosa.

Os trabalhadores e o povo devem perder as ilusões quanto à democracia parlamentar burguesa e prepararem-se para a luta. E resolver quanto antes a questão da direcção política e ideológica, uma questão sine qua non. Um novo mundo é possível, porque necessário.

30 Setembro 2021

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

A burguesia nervosa açula os cães

 

Aproxima-se o dia das eleições autárquicas que, segundo as melhores previsões, não irão alterar grandemente o números de autarquias (tachos) pelos diferentes partidos do regime, nomeadamente no que concerne às principais câmaras do país. Os principais partidos da governação, com a ajuda da imprensa corporativa, querem, aliás como tem acontecido das outras vezes, transformar as autárquicas como primárias das legislativas que se seguem. Quanto a esta questão, o principal partido da oposição ainda terá de esperar algum tempo para se substituir ao PS no governo, pela simples razão de que o governo PS/Costa vai ainda contando com a confiança das elites e de Bruxelas, com a ajuda do que agora se trata de encontrar a melhor distribuições dos milhões provenientes do PRR (Programa de Recuperação e de Resiliência) pelos diversos sectores da burguesia e demais clientelas políticas; desta vez, parece que o grosso das comissões não cairão nos bolsos dos caciques laranjas.

Como é dos manuais e da tradição, as eleições, quaisquer que sejam, são uma forma de redistribuição dos tachos e do correspondente saque, de consolidar a ordem vigente e simultaneamente distrair a atenção do povo das verdadeiras questões da política e da sociedade que, na generalidade, são resolvidas à custa do seu sacrifício. O agravamento da crise económica não deixa de acontecer, com o motor da economia, o turismo do pé descalço, a não querer arrancar, com o desemprego real, e não aquele dos números oficiais, a manter-se, com a criação anémica de novos empregos que estão longe de colmatar o que foi perdido com a desculpa da pandemia, em cada 10 novos empregos, 8 são precários, e com o facto de que os muitos milhões de euros que vêm da “bazuca” servirão apenas para salvar da falência algumas poucas médias e grandes empresas, as pequenas estarão na sua maioria destinadas à ruína inapelável. Com um pormenor: todos esses milhões serão pagos e com juros elevados pelo povo português.

A promessa feita pelo ministro mais inútil e corruptível de que a factura da luz no mercado não terá aumentos em 2022 é uma mentira descabelada, que só se compreende em tempo eleitoral e porque há que esconder a realidade dos olhos de quem trabalha. O aumento é mais que inevitável, assim como o dos combustíveis que o Costa recusa tabelar, e que irá desencadear uma inflação generalizada que poderá ir aos 10% dentro de pouco tempo, como alguns economistas estrangeiros já alertaram. Enquanto as condições de vida dos trabalhadores em geral se vão agravando, assiste-se ao aumento dos despedimentos colectivos, por vezes disfarçados de “mútuo acordo” com os trabalhadores da TAP, da Banca e da Galp na linha da frente do sofrimento - na Galp, são 1600 trabalhadores que vão directamente para o desemprego. A atitude do governo e do Costa em relação a estes trabalhadores que estão a ser despedidos pelo encerramento da Refinaria de Matosinhos, agravada com a contradição das declarações do Costa, revela bem que o governo PS é um governo ao serviço da burguesia e nada tem a ver com os trabalhadores, para pesar do PCP e do BE, e que Costa é um reles mentiroso, político sem carácter, que põe os interesses do tacho à frente de tudo e de todos, como agora se confirma na propaganda para as autárquicas.

Marcelo, agora em franco passeio turístico pelas Américas, vai vomitando a sua verborreia demagógica de “estar ao lado dos consensos que resolvem as crises”, numa aparente posição do “Pai da Nação”, ao mesmo tempo que vai colocando prazo de validade ao governo e vaticinando futuro risonho para Costa em invejável sinecura de Bruxelas. O homem, que foi eleito por 23% dos eleitores elegível, teve a distinta lata de afirmar que “o povo português votou, e uma forma de voto foi vacinar-se”, o que seria 80% na altura, e como se o fizesse de forma voluntária e não obrigado sob um metralhar constante de ameaças ignóbeis. Até parece que é a favor do voto obrigatório, caso a abstenção venha, uma outra vez e à semelhança das presidenciais, a atingir recorde jamais visto. Marcelo é ainda, no presente, a pior ameaça à democracia portuguesa e não, como a imprensa mercenária do regime apregoa ao mesmo tempo que o promove, o imbecil político Ventura/Chega.

O alívio das restrições às liberdades e direitos dos cidadãos que o governo tem vindo a fazer não são devidas a uma melhoria dos números da pandemia, que ele constantemente adultera e manipula, mas à razão simples de que estamos em campanha eleitoral e o PS tem forçosamente de ganhar estas eleições para continuar a beneficiar da confiança das elites e não ter de ser despedido. O governo irá continuar com o negócio das vacinas e dos testes, o negócio que não pode ser abortado por um governo inapto, e está disposto a fazer marcha atrás no referido alívio das restrições. O pau mandado para os negócios da Saúde, a dita ministra, já alertou: “que a máscara não é para deitar fora”, e o incontornável monarca Marcelo admitiu: “que possam ser impostas restrições se necessário”. Será uma questão de as eleições se realizarem e/ou o negócio não correr como o desejado.

Portugal é o líder mundial na taxa de população com vacinação completa, dizem. Ou “nós já ganhámos a este vírus”, diz o almirante da farda e com escolta policial (no mínimo estranho, um almirante com guarda-costas civis!). Mas, apesar de toda a bazófia para iludir os incautos e provar as virtudes dos militares e do regime democrático - optimizado, como se pretende provar, quando operacionalizado pelos ditos cujos -, há que ter algumas cautelas, não vá o diabo tecê-las! Assim já se prepara a opinião pública para uma terceira dose de vacina, adiantando algumas razões como “a imunidade cai ao fim de 4 meses” e “a Pfizer garante eficácia e segurança da vacina para as crianças dos 5 aos 11 anos” e avança com vacina de 2ª geração para as novas variantes do sars-cov-02, como se os vírus, todos eles, não sofressem mutações para iludir as defesas do hospedeiro; mas dizer novas “variantes” tem mais impacto e pode-se também responsabilizar os não vacinados pelo surgimento das mesmas e não à natureza do vírus. São 30 milhões de vacinas que terão de ser vendidas e mais 2,2 milhões para a gripe que terão de ser consumidas. Ah, mas neste Inverno que passou não morreu ninguém com gripe! Não há problema, muda-se o PCR e este, como já notificou o CDC norte-americano, irá só detetar vírus da influenza! O negócio é que não pode parar e as comissões devem continuar a escorrer para os bolsos de políticos, de médicos e da Ordem dos ditos.

Para que o negócio não seja estorvado, bem como as intenções do governo de controlo social e de recapitalização das empresas falidas, ao mesmo tempo que se facilita a acumulação e concentração capitalista, é obrigatório pôr os recalcitrantes na ordem. Se as invectivas de “negacionistas”, de “anti-vacinas” e de “chalupas” não funcionam, então, haverá de utilizar-se a força e, a pretexto dos “insultos” à segunda figura do estado e da “arrogância” sobre as forças policiais, já se começou com a vigilância policial/pidesca sobre os perigosos revoltosos. A sanha censória sobre as opiniões mais inconvenientes reforça-se, como aconteceu há pouco com o jornal do regime e propriedade da família de novos ricos Azevedo (recebeu 314.855,38 euros à pala da "compra de publicidade institucional"!), que não hesita em usar o que acusa aos outros, a difamação. A historiadora Raquel Varela ousou criticar a censura do jornal feita a artigo de médico (aliás, cronista habitual) que se insurgiu sobre a vacinação dos jovens, é agora vilipendiada em praça pública, com falsidades que irão ser desmontadas em tribunal. E é a Ordem dos Médicos, que só este ano recebeu mais de 400 mil euros dos laboratórios farmacêuticos, que abriu processo disciplinar a Fernando Nobre pelas declarações proferidas sobre as vacinas. É toda uma matilha de cães raivosos, babando ódio e sangue, alçados nos órgãos de comunicação social corporativos e mercenários a atacar quem não segue a cartilha do “não há alternativa” quanto à estratégia do combate à pandemia e à política do governo. Será o treino para reprimir o verdadeiro inimigo de classe, os operários e os trabalhadores em geral, quando estes se erguerem numa revolta a sério. É disso que a nossa burguesia tem medo.

A dita oposição ao governo arenga ao reforço da repressão e à destituição do juiz “segregacionista”, considerado pessoa perigosa e inimigo público (tal como o juiz Ivo Rosa) pelo tinhoso meia-leca e moço de recados de Marcelo com assento permanente na televisão do sócio nº1 do PSD, e concita abertamente à repressão sobre os façanhudos “negacionistas”, numa de casca de banana ao governo, porque caso a repressão dê para o torto, com feridos ou eventualmente mortes, serão os primeiros, que agora açulam a fera do cacete, a atacar o governo de excesso e desajuste de força. Não só o governo, mas todos os partidos do regime que temem a revolta social, que poderá vir por arrasto das manifestações dos denominados “chalupas” - se “chalupas”, então, porquê dar-lhes importância?! É a burguesia nacional, rentista e parasitária, mais que o vírus da covid-19, e cada vez mais atemorizada que não se sente segura, não confiando no futuro e, vendo bem, no próprio governo que, como todos os do PS, é convocado quando a direita não consegue resolver os seus problemas e como bombeiro da luta de classes. Embora o bom comportamento e o zelo no ofício, não é garantido que o governo PS chegue ao fim de mandato. E o próprio PS não terá vida longa e o fim não será agradável de se ver.

21 Setembro 2021