terça-feira, 30 de abril de 2024

1º de Maio ou 25 de Abril?

 

O 25 de Abril foi assinalado, como seria de esperar, com muitos cravos e com todo o bicho careta e desfilar pela Avenida da Liberdade, eram os cinquenta anos, um cinquentenário. A data redonda, exactamente o tempo suficiente para reescrever a história sem grande contraditório e ao serviço de agenda política actualizada e de acordo com os interesses da elite e da sua classe política. O povo (algum) e a classe média compareceram, foram mais de 220 mil em Lisboa – disse a imprensa mainstream, também aderente à efeméride. Seria uma revanche à vitória dos partidos da AD ou um saudosismo impotente perante a realidade?

Marcelo dita a agenda dos partidos

Na Assembleia da República, a dita casa da democracia, os discursos foram solenes, mais adequados às conveniências de cada partido, ou facção de interesses que ali representam; resumidamente, hipócritas ou, em hipótese benevolente, ingénuos. Ali se destacou o “supremo magistrado” da Nação, que enfiou o cravo na lapela no último instante antes de entrar no hemiciclo e, segundo transpareceu na imagem televisiva, com o ar de maior displicência e até de enfado. Mais um frete que o homem parido na oligarquia fascista fez à democracia, ela também uma flor de lapela.

Contudo, as palavras de descontração bem comida e bebida, proferidas por Marcelo em reunião com jornalistas estrangeiros e poucas horas antes das comemorações oficiais do 25 de Abril, sobrepuseram-se a todas as cerimónias comemorativas da data e, passado uma semana, preenchem os tabloides cá do burgo, as televisões, os debates de opinantes e outros avençados, e de todos os partidos, os da oposição e os do governo. O rei histrião marca e comanda a política nacional. Ou, pelo menos, a encenação que passa diariamente nas televisões, que são ainda os media que mais influenciam a opinião pública. As redes sociais, com os seus memes, dão-lhe uma ajudinha prestimosa.

in Henricartoon

Maio versus Abril

Amanhã irão decorrer as cerimónias, também oficiosas, do 1º de Maio, Dia Internacional do Trabalhador, que se espera que venham a ser cordatas, pacíficas, dentro a legalidade e da democracia. Tudo estará bem (aparentemente) já que vivemos os cinquenta anos de Abril, graças à intervenção dos capitães que estavam chateados por se sentirem ultrapassados pelos oficiais do quadro complemento e de não conseguirem vencer uma guerra que, à partida, já estava derrotada e que nem sequer deveria ter sido iniciada. As lutas dos trabalhadores nos meses que antecederam o golpe militar e que ameaçavam fazer cair na rua o regime no 1º de Maio de 1974, em estado avançado de convocação, são estórias que não interessam à imprensa de referência nem aos partidos do poder.

Se a situação económica que foi pano de fundo do 25 de Abril e que, em última instância definiu o fim do fascismo, não era boa, então, cinquenta anos depois e de estarmos na União Europeia e no euro, não é lá muito melhor. E há uma referência interessante: o salário mínimo nacional de 1974, imposto pela luta do proletariado revolucionário, não foi uma doação, era de 629 euros (valor actual), e agora, 50 anos depois, é de 820 euros mensais, ou seja, mais 191 euros, ou mais 30,37%. No mesmo período de tempo, o PIB, a tal riqueza nacional, aumentou duas vezes e meia. Ora, qualquer cidadão ou família paga a alimentação, o alojamento ou os transportes com euros, não com “democracia”.

Enquanto as assimetrias económicas e sociais aumentam e o empobrecimento é incontornável de uma ampla maioria do povo que trabalha, dos trabalhadores mais simples aos técnicos mais especializados, a riqueza vai-se acumulando na outra faixa da sociedade e onde predominam a banca e o grande capital financeiro internacional:

Lucros da Galp sobem 35% no primeiro trimestre para 337 milhões; BBVA (Black Rock) ganha 2,2 mil milhões de euros no primeiro trimestre, mais 19,1%; Lucro do Santander dispara 58% para 294 milhões no primeiro trimestre; Lucro trimestral do CaixaBank (BPI) avança 17,5% para 1.005 milhões; Grupo Santander com lucros de mais de 2,8 mil milhões de euros no primeiro trimestre; BCP (banco privado com algum capital nacional) confirma proposta de distribuição de 257 milhões de euros em dividendos, no ano passado a instituição financeira obteve um lucro de 856 milhões de euros. As manchetes dos jornais, pelo menos desta vez, não enganam.

A crise determina a política

A recessão económica na Europa é mais que evidente, a Alemanha, a dita “locomotiva” europeia, pifou, por força da crise capitalista e pela agravante da competição com os EUA, a potência imperial decadente que nos enfiou numa guerra que não é nossa, também chegou até nós, apesar da negação dos governos, do anterior e do actual; este já retomou a léria de que os problemas que encontra são herdados e escondidos pelo PS. Iremos ver se o comportamento do governo AD/Montenegro irá diferir do do seu homólogo PSD/Coelho/Portas. Conseguirá manter a paz social, como fez o governo PS/Costa? Talvez por se lembrar do passado que a entrada tem sido cautelosa. Os conflitos mantêm-se e as lutas que decorriam antes do dia 10 de Março apenas fizeram intervalo.

Durante a vigência do governo PS de maioria absoluta, as sondagens quanto ao apoio que disfrutava do eleitorado eram quase diárias, a instabilidade estava na ordem do dia. Marcelo dirigia a campanha, os media faziam o trabalho de campo. Quando pensávamos, foi o que nos deram a entender, que a partir de agora haveria estabilidade, embora o governo seja minoritário mas nenhum partido da posição não quer arcar com o bónus do derrube, volta de novo a agitação: «Metade dos portugueses acredita que o Governo de Montenegro não vai durar mais de um ano» - conclusões do barómetro mensal da Intercampus para o Jornal de Negócios, Correio da Manhã e CMTV. Somente 14% dos inquiridos estão convencidos de que reúne condições para cumprir os quatro anos.

Ainda antes da data do 25 de Abril, uma semana antes, e estas coisas nunca acontecem por acaso, o jornal do regime, “Expresso”, encomendou uma sondagem sobre a opinião dos “portugueses” (os inquiridos) sobre 16 áreas da vida económica, revelando que aqueles vêem melhorias em 8, assim-assim em 5 e opinião negativa em 3; resumindo, estarão satisfeitos com a democracia. Mas se a maioria dos inquiridos considera a democracia “preferível”, 47% deles, quase metade, não teriam problemas em apoiar um “líder forte”, um salvador da pátria, sem eleições. Relembrar que Montenegro afirmou, devido a não possuir maioria parlamentar, que iria, se necessário, governar por decreto.

Juntando esta preparação da opinião pública para uma possível solução bonapartista em caso de bloqueio parlamentar, as afirmações de Montenegro e a cruzada persistente de Marcelo em achincalhar os partidos, secundarizar o governo e a Assembleia da República, impor agendas mediatizadas, lançar factos políticos e fait divers a toda a hora e a todo o instante, fácil é chegarmos à conclusão de que a descredibilização, e a destruição a prazo, mais curto de que longo,  desta democracia mais não passa de que uma campanha concertada. Poderá haver algum protagonista que não tenha consciência disso cegado pela disputa pelo pote. As intervenções do histriónico presidente dependem menos do álcool que ingere ou da personalidade que possui, mas mais de uma agenda política há muito dada a conhecer. E quem não vê isto, é porque não quer ver.

Bruxelas diktat

Não nos cansamos de repetir, e fá-lo-emos até à exaustão se for preciso, que quem comanda a actividade política dos partidos que temos é a situação económica do país e dos interesses das elites que na verdade possuem o poder, quer económico quer político. Por sua vez, os dirigentes partidários não passam de funcionários que se vão revezando, sendo descartados após cumprirem, melhor ou pior, a missão que lhes é incumbida. Os próprios partidos actuais serão também substituídos a seu tempo e segundo os interesses dos que mandam, os DDT: a nível interno, uma burguesia rentista e parasita, subsídio-dependente e que tem no Estado o seguro de vida; a nível externo, Bruxelas (grande capital financeiro) dita as regras. Nenhum partido no governo ousará desafinar, os restantes são o coro da tragédia grega.

Para que não haja dúvidas sobre quem manda. Hoje, 30 de Abril, entram em vigor as novas regras comunitárias para défice e dívida pública; assim, os governos dos países da União Europeia terão de enviar para a Comissão Europeia os seus Programas de Estabilidade até Setembro. Estes planos serão discutidos durante o Verão e o Outono e incluirão “medidas de correção dos desequilíbrios macroeconómicos e diretrizes sobre reformas e investimentos prioritários para quatro ou sete anos”. Entrarão em vigor a partir de 2025 e terão a nova designação de “planos orçamentais-estruturais nacionais”. Ditarão o que os governos terão de fazer (haverá um tecto anual de gastos públicos), se não cumprirem com as regras podem incorrer em procedimentos por défices excessivos e multas. Eis a Europa dos valores e dos direitos… do mais forte. As próximas eleições para o Parlamento Europeu irão mostrar que os partidos com assento na Assembleia da República não põem em causa a União Europeia, discordarão quanto muito de algum pormenor.

O 1º de Maio é luta e internacionalista

Enquanto de um lado da barricada os partidos do establishment se entretêm em descobrir a razão ou a justeza das palavras presidenciais de “Costa era lento, por ser oriental; Montenegro não é oriental, mas é lento, tem o tempo do país rural” e “Portugal deve pagar custos da escravatura e dos crimes coloniais” ou “cortou relações com o filho após caso das gémeas brasileiras”; do outro lado, os trabalhadores portugueses lutam contra os salários de miséria (subida de salários é a prioridade para 62% dos portugueses); reivindicam: salários condignos (salário mínimo deveria ser de 1572,5 euros, o mesmo aumento do PIB nestes 50 anos); SNS universal, geral e gratuito; Escola Pública de qualidade; acesso dos filhos do trabalhadores ao Ensino Superior; Habitação, como direito fundamental e inalienável; Soberania alimentar; Independência económica e monetária, e subsequentemente política para o país; recusam terminantemente o envolvimento na guerra imperialista (saída imediata da Nato), que já lavra há cerca de dois anos na Europa. Exigem não apenas reformas, mas essencialmente uma revolução, que sejam eles a dirigir os seus próprios destinos na política e na economia. Esta luta não se restringe ao nosso país mas a todo o continente europeu e a todo o mundo – é internacionalista.

Imagem: Barricadas – Paris, 1944 – Robert Doisneau

terça-feira, 23 de abril de 2024

O Último Relatório para a Pide e A Luta Contra a Guerra Colonial

  

A preparação do 1º de Maio de 1974 mostrou que o povo estava a lutar e antes que o regime caísse na rua… deu-se o 25 de Abril.

Salgueiro Maia não conseguiu esconder, pouco tempo antes de falecer, as razões que levaram a que o golpe tivesse sido antecipado para a data de 25 de Abril – não era esta a data prevista para o seu desencadeamento - que era o “desconforto” existente no seio dos oficiais das Forças Armadas devido às consequências imprevisíveis da realização do 1.º de Maio Vermelho, cujo amplo trabalho de convocação era realizado desde o princípio do mês, situação confirmada pelo próprio Otelo em outra ocasião.

Por todo o lado se mobilizava os operários para o dia de luta do proletariado internacional, sendo visíveis de norte a sul do país as inscrições nos muros realizadas por comunistas revolucionários e da CDE sobre a libertação dos presos ou sobre a carestia de vida, mas cuja propaganda era feita em ruelas esconsas ou comunicados deixados aos montes nas casas de banho e corredores do Metro, sendo facilmente apanhados na sua quase totalidade pela polícia, como refere o relatório (página 2-4)

É o “Ultimo relatório sobre a situação geral do país do Ministério do Interior para a PIDE-DGS” (“Perintrep” do Comando-Geral da P.S.P, nº15/74, respeitante ao período de 6 a 13 de Abril), que diz.

A folha 2-1, ponto 1, Situação Geral e na alínea a), pode ler-se o seguinte: «Continuam a aparecer panfletos (LISBOA, AVEIRO, LEIRIA, SANTARÉM E VIANA DO CASTELO) e pichagens (LISBOA, COIMBRA E BRAGA), relativos ao próprio dia 1 de Maio. O panfleto referente a Viana do Castelo era já conhecido e os restantes não tinham sido ainda detectados. Os seus autores são: “MRPP”, “CLAC” e “RPA-C”. Este último tem a finalidade de pretender induzir o pessoal das Forças Armadas a manifestar-se no 1º. de Maio».

Páginas 2-3 e 2-4 do mesmo documento, faz-se referência a comunicados contra a guerra colonial distribuídos porta a porta pelos CLA-C's e pela RPA-C e a “inscrições murais com o desenho da foice e do martelo: “VIVA O 1º DE MAIO / VIVA A DITADURA DO PROLETARIADO / TODOS AO ROSSIO ÀS 19H30 / O 1º DE MAIO É VERMELHO / TODOS AO ROSSIO ÀS 19H30 MRPP”».

E a página 2-5 (só para citar algumas referências), pode ler-se igualmente: «Data: 29 Mar 74. Editado: “Comité Amílcar Cabral – Comité Directivo da RPA-C. Súmula: Procura arrastar soldados e marinheiros para a anunciada manifestação do dia 1 de Maio no ROSSIO pelas 19h30, ao lado da classe operária e do povo contra a ditadura da burguesia colonial-fascista, contra a exploração capitalista, etc., indicando ter-se registado já no Regimento de Engenharia nº1 um caso de indisciplina».

Coimbra, 8 de Abril «detectadas na Rua Rego do Bonfim e na Fábrica de Cortumes, as inscrições murais: “VIVA A CLASSE OPERÁRIA, ABAIXO A EXPLORAÇÃO CAPITALISTA, O.C.M.L.P. / O GRITO DO POVO EM FRENTE PELA REVOLUÇÃO POPULAR / VIVA O 1-º DE MAIO”» (pág. 2-10).

Em Barcelos, «em 10 de Abril, são «detectadas em vários locais as inscrições murais: “VIVA O 1.º DE MAIO – GREVE / MANIFESTEMO-NOS CONTRA A EXPLORAÇÃO CAPITALISTA / ABAIXO O CAPITALISMO / ABAIXO O CUSTO DE VIDA / MAIS DINHEIRO /JUNTOS NO 1.º DE MAIO DIA DO OPERÁRO / LUTA”, seguidas das iniciais A.C.M.L.P. e do desenho da foice e martelo» (a folha 2-12).

Em Viana do Castelo, «11 de Abril, foram encontrados no Bairro Jardim, 26 exemplares do panfleto: “CAMARADAS: VIVA O DIA DOS TRABALHADORES – VIVA O 1º DE MAIO, editado pela Organização Marxista-Leninista Portuguesa (O Grito do Povo)”» (pág. 2-22).

Aveiro, 11 de Abril «foram encontrados em Espinho, exemplares dos panfletos com o título: FERIADO NO 1.º DE MAIO! UMA LUTA DE TODOS OS TRABALHADORES. Assinado por “Um Grupo de Trabalhadores” (pág. 2-11).

Outras indicações sobre a agitação e propaganda para a convocação do 1º de Maio, realizadas em Braga, na Marinha Grande ou em Torres Novas, se podem encontrar do mesmo documento (páginas 2-17 e 2-20), o que prova que a Pide e as outras forças repressivas tinham os olhos postos sobre a actividade de quem se oponha com firmeza à guerra colonial e ao regime.

O PADRE QUE PREGAVA CONTRA A GUERRA E OS ESPECULADORES

Sem dúvida que uma das referências mais interessantes encontradas no “ÚLTIMO RELATÓRIO sobre a situação geral do país do ex-ministro do Interior para a ex-pide/dgs” é aquela que diz respeito à prédica do padre de Maximinos, em 6 de Abril, que passamos a transcrever: «Aspecto religioso: chegou ao conhecimento do CD que o padre LIRA, pároco da freguesia de Maximinos desta cidade, nas meditações que fez durante a Via Sacra, enquadrada no programa das solenidades da Semana Santa em Braga, que teve lugar naquele dia, tendo por intenção especial os emigrantes, junto dos respectivos calvários, entre o mais, pronunciou: “Ó Jesus Cristo auxiliei o povo do século XX, ajudai o clero, as Instituições, os Bombeiros, os Educadores e os que fazem greves para aumentar os seus salários;

Ó Jesus Cristo castigai os do século XX que exploram os pobres, açambarcando os géneros e marcando-os por um preço mais elevado, aqueles que compram por cinco e vendem por trinta e cinco, aqueles que têm os presos a morrerem nas cadeias, aqueles que como Judas atraiçoam toda a gente e estão agora colocados em grandes pedestais;

Ó Santa Mãe que recebeste uma medalha do teu filho como exemplo de honra, mas não é como estas mães que agora recebem medalhas e condecorações a título póstumo por os filhos que morrem na guerra”» (pág. 2-13).

Fonte

quinta-feira, 18 de abril de 2024

Estórias do fascismo português

Uma pequena estória sobre a censura do fascismo português, publicada pelo Jornal de Notícias por ocasião da morte do seu antigo director, o jornalista Manuel Ramos, ocorrida no dia 8 de Novembro de 2006. A que se juntam duas pequenas crónicas do jornalista e poeta Manuel António Pina que, no seu estilo peculiar, denuncia os falsos democratas que, de uma maneira ou de outra, assumiram a herança do fascismo ou, não deixando de colaborar, tentam apagar o passado tenebroso.

A “hora dos coronéis” chegava depois do jantar. O militar de plantão nas instalações dos Serviços de Censura, à Rua de Santa Catarina, telefonava pontualmente às 21 horas e Manuel Ramos fazia questão de ser ele a atender, embora quem o conhecesse soubesse que paciência evangélica era virtude que ele não cultivava.

“Notícias sobre o almirante Tenreiro são para cortar” – dizia o coronel do lado de lá do telefone. “Para cortar, senhor coronel? Então, já não se pode falar de um homem que tantos serviços tem prestado à Pátria?”, repontava Manuel Ramos, do lado de cá, em ar de gozo. “E também estão proibidas notícias sobre suicídios”, informava, noutra altura, o coronel. E Manuel Ramos escrevia nas suas notas diárias: “A Censura proibiu os suicídios em Portugal”…

São aos milhares as notas de Censura que ainda existem no Centro de Documentação do “Jornal de Notícias”. Como a desobediência nestes casos era crime e podia dar azo a julgamento em Tribunal Plenário, outro remédio não havia senão seguir à risca as “ordens dos coronéis”, que não se limitavam a dá-las pelo telefone. Todos os dias, o Maciel, contínuo da Redacção, ia a Santa Catarina levar as prosas para os censores poderem cortar, com lápis vermelho – em Lisboa, o lápis era azul – os extractos que eles considerassem não estarem de acordo com os cânones do regime. E invariavelmente os cortes deixavam as notícias sem qualquer sentido… Manuel Ramos, que sempre foi um homem da Oposição, ficava vermelho de raiva com todos estes disparates. Também no Centro de Documentação do JN há milhares de notícias arquivadas com o selo dos coronéis. E quanto à guerra colonial, que mobilizou milhares de jovens para as antigas colónias, nem pensar: Daqui apenas podia dar-se à estampa as notas oficiais que, normalmente, só contemplavam o número de mortes e feridos. Mas não se fazia, então, as notícias? Manuel Ramos, neste particular era inflexível: “Nós escrevemos; eles que cortem se quiserem”, sentenciava.

In “JN”, 09/11/2006

“Salazar – Agora, na hora da sua morte” de João Paulo Correia e Miguel Rocha

Assim se faz a história

Pedro Moutinho, líder da Juventude Popular/CDS/PP, é um jovem voluntarioso e irá, ninguém tenha dúvidas, longe no partido. Não lhe falta, como a Portas, “frontalidade” e convicção, independentemente do facto, despiciendo, de aquilo que diz ser ou não verdade. Qualquer jovem candidato a político sabe que o que importa, em política, não é o que se diz, mas o modo convicto como se diz. Para isso servem as "jotas", para "formação". E se Portas pode, sem pestanejar, dizer que as cópias que trouxe para casa de documentação que se encontrava no Ministério da Defesa eram só inocentes "notas pessoais" (61893 páginas de “notas pessoais”), porque não pode um aprendiz de Portas "apontar com frontalidade" como um dos responsáveis pelos “sequestros e incêndios às sedes do CDS-PP logo após a revolução de Abril de 1974” o dirigente comunista Bernardino Soares que, à época, tinha quatro tenros anos de idade?

Toda a gente sabe que os comunistas comem criancinhas e que as criancinhas comunistas andam por aí, como o "Baby Herman" de “Roger Rabitt”, de fraldas e charuto, apalpando “baby sitters” e incendiando sedes do CDS. Moutinho estava lá e viu tudo, apesar de só ter nascido oito anos depois. É assim que tem que se escrever a História de Portugal, "com frontalidade".

(Manuel António Pina, “Por outras palavras”, “JN”, 28/11/2007)

Um negócio obsceno

Os 38 apartamentos de luxo construídos no edifício que foi a sede da PIDE, em Lisboa ("um edifício com história" que, diz a imobiliária, se mostra "novamente orgulhoso da sua herança ") estão a ser vendidos convidando os compradores a "reviver tempos de esplendor" e um passado de "luzes a reflectirem-se nas pratas do aparador e nas vestes de gala de cavaleiros e damas".

A suja história de sangue e horror do edifício e os gritos de dor de milhares de portugueses que as "velhas e nobres paredes com um metro de espessura" abafavam, são agora, pelo turvo milagre da usura, uma memória doirada, transbordante de festas e de bodas, e de duques, príncipes e embaixadores. Num país onde o dinheiro compra tudo, até a memória colectiva, os antigos torturadores tornaram-se "copeiros e gentis homens" ao serviço de ricaços e recém-chegados ansiosos por reconhecimento.

Bem pode o poeta clamar que "com usura homem algum terá casa de boa pedra" e que "com usura, pecado contra a natureza/ sempre teu pão será rançosa côdea"; os usurários não têm pesadelos nem temem fantasmas. O esquecimento é o seu "estilo de vida".

(de Manuel António Pina, “Por outras palavras”, in JN , 20/03/2009)

quarta-feira, 10 de abril de 2024

O Vigésimo Quarto Governo

 

Em 50 anos de democracia de Abril, vamos no governo nº24, ou seja, já passaram 23 governos de turno e chegou-se às duas dúzias – são dois números redondos, é para se dizer que à dúzia é mais barato. Este governo é apresentado pelos media de referência como «um Governo de “capacidades e talentos” que está a ser “preparado” há mais de um ano», ou o «Governo muito mais técnico e feminino», características por si só suficientes para ultrapassar a falta de “experiência no poder”. São dezassete ministros e 41 secretários de estado que já tiraram a “fotografia de família” na vila de Óbidos e onde, muito provavelmente, não deixaram de apreciar a famosa ginjinha e comido o copo de chocolate. Mas, talvez por essa razão, o primeiro-ministro já anteriormente declarara que irá governar por decreto e os mesmos media mainstream já apelam de forma veemente à estabilidade, quando até à véspera das eleições não se cansavam de desestabilizar o governo de maioria absoluta do PS.

O bloco central de interesses e a agenda da extrema-direita

O país tem sido governado, na maior parte do tempo, à vez: ora governa PS, ora governa PSD, só ou acompanhado pelo anexo. Mas, em questões fundamentais para as elites indígenas ou em relação às “orientações” de Bruxelas, tem havido sempre acordo entre os dois partidos, usualmente denominado de “pacto de regime”. Neste momento, parece que estamos a assistir a uma crise deste namoro ou união de facto pela introdução de um terceiro elemento, o partido da extrema-direita; ou, então, a uma sucessão de truques, ou seja, a mais uma encenação de que estes dois principais partidos da governação são exímios. Também poderá ser uma mistura das duas coisas, ambos continuarem a apresentar-se perante o povo que os elege e sustenta como partidos “responsáveis”, amantes da estabilidade, mas só quando lhes interessa, e simultaneamente usarem o terceiro partido como instrumento de manipulação. PS empurra o PSD para os braços do mal-amado para o acusar de faltar à palavra (“não é não”), entretanto o PSD vitimiza-se pela má fé do PS. No final, a comédia está sempre presente.

Nos entrementes, assiste-se à união das diversas forças políticas e de influência social mais conservadores e reaccionárias existentes no seio da sociedade portuguesa. A apresentação do livro pelo ex-primeiro-ministro Coelho, que martirizou o povo trabalhador com austeridade redobrada, gabando-se de ter ido além das imposições da troika, onde critica as políticas de “esquerda” dos governos PS no sentido da legalização do aborto e da eutanásia e da aceitação da ideologia identitária do lóbi LGBTQI+, tem o efeito, para além de mobilizar toda a elite que se revês nos valores “sagrados” do “Deus, Pátria e Família”, de impor ao governo esta agenda, em claro revivalismo do fascismo. Não foi por acaso que os dois principais e mais mediáticos dirigentes do terceiro partido estiveram presentes na apresentação da obra e um deles sentiu-se à vontade para sugerir Passo Coelho como possível e desejado candidato a Belém.

O chefe do governo AD tem sido criticado pelo facto do seu primeiro acto, logo após a tomada de posse do governo, ter sido a mudança do famigerado logótipo do governo da República, que teria sido alterado pelo governo anterior em aberta falta de respeito pelos símbolos mais do que sagrados da “bandeira nacional”, por óbvia ausência de programa credível para a resolução dos principais problemas do país, um sinónimo de inépcia. Mas a questão é simbólica e é muito mais importante do que possa parecer, foi o primeiro sinal de que a agenda do governo ou as linhas com que se vai cozer vão muito para além do programa com que se apresentou ao eleitorado. Vai ser o programa, puro e duro, do grande capital financeiro e do sector mais trauliteiro da burguesia nacional e, caso seja aplicado, irá doer muito mais do que aquele que foi ditado pela troika, com a alegação de que o país estaria prestes em entrar na bancarrota. Agora, será o povo português em entrar em bancarrota completa se o plano seguir em frente.

A mudança de discurso e a Igreja na política

Ainda não se conhecia toda a constituição governamental e já o discurso dos partidos da AD era outro, ficou-se agora a saber, como fosse diferente no governo anterior, que o governo se vê “forçado a ajustar programa económico às novas regras de Bruxelas”. Já não há dinheiro para tudo o que se prometeu, embora se continue a afirmar abertura ao diálogo com toda a gente, e polícias, militares, professores, oficiais de justiça, médicos, enfermeiros e os mais que venham a reivindicar as justas atualizações salariais e de carreira terão de esperar ou contar com menos. Novo “plano orçamental de médio prazo” vai ter de respeitar as normas impostas por Bruxelas.

O líder do “principal partido da oposição”, lugar disputado pelo chefe do terceiro partido que promete “oposição” ao governo e à “oposição” se necessário, já escreveu a Montenegro, estará disponível para acordo com condições para aprovar orçamento retificativo, onde se incluem melhorias para as carreiras da função pública. Aquele terá manifestado inteira disponibilidade, mas “o tempo e o modo” serão definidos pelo governo. Coloca-se a questão pertinente: será só para isso ou para mais alguma coisa? O mais provável é que as “oposições” sejam mais no nome do que nos factos, daí termos enfiado a palavra entre comas.

Marcelo quis lembrar ao país que o eleitorado entendeu dar a vitória aos "moderados" e não aos "radicais", deixando no ar que numa próxima vez isso poderá não acontecer, querendo possivelmente chantagear os partidos que à esquerda se oponham à governação da AD. E, algum tempo depois, o bispo do Porto não esteve com meias palavras: "a Igreja tem de se meter na política", não exactamente através dos paroquianos como afirmou, mas directamente como partido informal, uma força de pressão, que ousa já dar a cara. Quase ao mesmo tempo, o Patriarca de Lisboa vem dizer que o “país”, isto é, o povo, tem de “reencontrar força” para “superar dificuldades”, que já são esperadas pelas elites e que as pretendem resolver à custa de mais sacrifícios, não delas mas dos que trabalham.

O endurecimento do regime no seu cinquentenário

As mensagens são claras: o governo da AD governará com o programa da extrema-direita. Não são apenas os velhos e novos fascistas que se vão reunindo e juntando forças, recuperando velhos princípios e consignas, o governo já assumiu esses valores, quer na constituição do governo, quer na nomeação de algumas figuras cinzentas disfarçadas de “independentes” e de “tecnocratas”. O ministério da Cultura desapareceu, o Ensino Superior ficou diluído no super-ministério da Educação, e o detentor do cargo é um conhecido economista defensor do capitalismo selvagem e dos cortes permanentes dos subsídios salariais aos trabalhadores. O ataque por parte da elite mais conservadora contra os trabalhadores, começa pela cultura, os operários não precisam de ser cultos, basta-lhes saber ler e escrever, e não devem receber salários elevados. Em vez de bifes de lombo ou da vazia, comam hambúrgueres de larva de gafanhoto. O salário sempre foi o preço da reprodução da força de trabalho.

O ex-economista-chefe do BCP na secretaria de estado do Orçamento diz bem sobre o papel deste governo quanto à Economia, um braço do grande capital financeiro. O presidente da Associação Portuguesa de Bancos e reformado do Banco de Portugal, com uma pensão de cerca de 6 mil euros mensais aos 60 anos (2014), quando defendia que os trabalhadores deviam trabalhar mais tempo para ajudar as “gerações mais entaladas”, já veio propor algumas medidas para “desentalar” os patrões, redução do IRC para 15%, e os bancos, exigindo reunião com o novo/velho governo da AD para acabar com o “excesso da tributação extra”. Por outro lado, devemos salientar que a despesa pública com o setor financeiro ascende a 24,6 mil milhões de euros (2010 a 2023), mais de 9% do PIB (2023), e, só no ano passado, aumentou mais de 5,6% por causa da Parvalorem (BPN) e do Novo Banco; ou seja, o maior aumento em três anos (dados do INE). Com certeza que os bancos salivam por mais com este governo, o povo pagará a conta no final, e se não for a bem, será a mal, como nos tem habituado os governos com o PSD.

Se a nível interno é o que se vislumbra, então, quanto a política externa, ficamos suficientemente esclarecidos. O novel ministro dos Negócios Estrangeiros, colocando-se em bicos de pés e sem ter ingerido qualquer bebida alcoólica, presumimos, inchou o peito e criticou "algumas hesitações" do anterior Governo sobre a adesão da Ucrânia à União Europeia. A partir de agora, será sempre a bombar: quanto à Ucrânia e à guerra, Bruxelas ou a Nato/Otan dizem “mata”, o governo da AD dirá logo “esfola”. O regresso do serviço militar obrigatório (conscrição) está na ordem do dia, bem como o aumento, para além dos 2% do PIB, das despesas militares, sobretudo em armamento comprado aos EUA. Quanto à conscrição, a coisa irá ser feita com alguma cautela, de forma gradual, porque é tema pouco popular, principalmente entre a juventude. No entanto, na lógica do capitalismo, será considerada uma boa medida, porque irá “acabar” com o desemprego enviando-se os jovens para a guerra contra a Rússia. Não poderá ser para outro objectivo, já que Portugal não está sob ameaça iminente de invasão militar.

A falácia do combate à corrupção

No momento em que escrevemos esta linhas decorre no tribunal da Guarda um megaprocesso, mais um infindável, com 149 arguidos acusados de fraude com fundos comunitários na compra de maquinaria agrícola, envolvendo 136 testemunhas e 70 advogados. Lá para as calendas e se não houver umas amnistias pelo meio e umas prescrições no fim (os arguidos eram em maior número mas alguns já morreram) haverá um resultado previamente conhecido; os factos ocorreram entre 2010 e 2013, há mais de 10 anos. Sabe-se que estas fraudes com os fundos europeus superam os 70 milhões em apenas nos últimos três anos. Ora, com os cerca de 20 mil milhões de euros só do PRR, mais uns 30 mil milhões de outros projectos até 2027, será o fartar vilanagem! E vem a ministra da Justiça aventar o diálogo com os partidos sobre corrupção, quando todos eles se encontram metidos até aos gorgomilos nas negociatas ou com elas pactuam. Só poderá estar a gozar!

Os governantes ao prometer mundos e fundos ao eleitorado e, quando se vêm no governo, fazem o oposto, colocando em posição de quatro patas perante os interesses dos diversos lóbis indígenas e os ditames de Bruxelas, são isso mesmo, são políticos corruptos. Gente sem princípios que só olha para o umbigo, o mais importante é o protagonismo ou/e a conta bancária, é praticamente, e com raras excepções, o normal dentro dos vários governos que têm gerido os interesses do capital em Portugal desde o 25 de Abril. E dentro do actual governo há um pouco de tudo: desde um ex-ministro que assinou 300 despachos na última noite antes sair do governo beneficiando uns tantos grupos de interesses privados, agora é secretário de estado; passando por um ex-presidente de câmara a contas com a justiça por adjudicar serviços a uma empresa em pré-falência, sem equipamentos nem funcionários, no último dia de mandato; ou um ex-secretário de estado que propôs alteração à lei para facilitar a cunha da filha de um então ministro que não tinha média para entrar na faculdade; até ao actual ministro das Infraestruturas que está a ser investigado pela PJ quanto a corrupção na Câmara de Cascais e à campanha de candidatura à liderança do PSD, em 2020, quando era vice-presidente da autarquia.

O PSD para conquistar votos à direita e fazer concorrência ao irmão da extrema-direita entendeu assumir como prioridade este tema da corrupção, assim como outros, mas parece que vamos ter muitos casos e casinhos se conseguir manter-se no governo durante algum tempo. Para além dos ministros já com curriculum na praça e de conhecimento público, outros haverá que prometem uma auspiciosa carreira. E um deles poderá ser a titular da pasta da Saúde, que tudo fará para transformar o Serviço Nacional de Saúde em “Sistema”, onde caibam todos na gamela, desde clínicas privadas a santa casas da misericórdia, que pouca misericórdia terão com os nossos dinheiros. Esta ministra, quando bastonária da Ordem dos Farmacêuticos e durante a pandemia, geriu, juntamente com o então bastonário da Ordem dos Médicos e agora deputado da Nação, mais de 1,3 milhões de euros provenientes da indústria farmacêutica, utilizando uma conta pessoal. Será de esperar que o lóbi dos grandes laboratórios farmacêuticas esteja neste momento a pular de contente, sabendo-se que este ministério é um dos que mais dinheiro e interesses envolve. Será um maná!

Programa sempre no interesse do grande capital financeiro

Quando estávamos a finalizar esta crónica ficou-se a saber da entrega do programa do governo à Assembleia da República, não se conhecem pormenores, mas algumas “novidades”, que não espantam ninguém conhecendo-se a matriz dos partidos que o constituem, já fizeram manchete. A mais notória é o governo querer “revisitar” mudanças ao Código do Trabalho efectuadas pelo governo do PS/Costa, que já foram em benefício do patronato, mas como este quer mais haverá então de satisfazer a vontade e quanto antes: despedimentos mais baratos, salários mais baixos e indexados à “produtividade”, como se esta dependesse inteiramente dos trabalhadores e não da gestão da empresa ou de outros custos, que não o custo trabalho. O SNS será reduzido a um “sistema” que permita aos lóbis privados da saúde (doença) arrecadar lucros como de uma qualquer outra área de actividade económica se tratasse. Os “peritos” do Livro Verde da Sustentabilidade da Segurança Social, encomendado pelo governo PS, já vieram propor algumas alterações ao sistema de pensões, no sentido de garantir a “sustentação” da Segurança Social, ou seja, o velho mantra para que um dia destes os dinheiros, descontados pelos trabalhadores durante uma vida inteira, sejam entregues aos bancos e aos fundos de investimento privados. Entretanto os polícias, professores e oficiais de justiça irão levar “música” para que o programa seja aprovado no Parlamento.

O BE veio agora manifestar receio de o PS querer fazer “abertura à direita” por aceitar reunião com aquela força política só depois do debate de programa. O PCP já apresentara moção de rejeição ao governo e obteve como “solidariedade” do PS a não votação desta moção. O PS irá apresentar uma moção autónoma, irá abster-se, ninguém sabe. Mas conhecendo-se o que aconteceu com a eleição da segunda figura do estado, será sempre de admitir que, e apesar de o discurso de “esquerda” do actual chefe socialista, o PS tente o suicídio ao assumir-se como muleta do governo AD; ou seja, uma de partido “responsável” do regime, fazendo lembrar a hilariante “abstenção violenta, mas construtiva” do pusilânime José Seguro, enquanto “líder” da oposição do governo pafioso de Coelho/Portas, na negociação do OE-2012. Por vontade do PS, quase de certeza que este governo irá durar para além de Dezembro e, muito possivelmente, até ao fim do mandato. Terá sempre medo de ser penalizado em termos eleitorais pelo facto de eventualmente ser acusado de responsável pelo derrube do governo e não contribuir para a estabilidade, embora tenha sido vítima da desestabilização levada acabo por toda a direita e sob o alto patrocínio do PR Marcelo, que até condecorou o fundador da rede bombista que actuou durante o PREC mas sem que ninguém soubesse.

Quanto à questão da duração do governo AD dependerá somente da paciência dos trabalhadores e do povo português. Com certeza que as medidas incluídas no programa da legislatura ou no Plano de Estabilidade 2024-28, a ser apresentado na próxima segunda feira, irão desencadear uma resistência e uma revolta directamente proporcionais ao prejuízo que tragam para a vida das pessoas. E com uma agravante é que o PSD não possui a mesma arte do PS em comprar a paz social.

quinta-feira, 4 de abril de 2024

Teatro e política

 

Giorgio Agamben

É no mínimo singular que não nos questionemos sobre o facto, não menos inesperado mas perturbador, de o papel de líder político ser cada vez mais assumido por actores do nosso tempo: é o caso de Zelensky na Ucrânia, mas o mesmo aconteceu na Itália com Grillo (eminência cinzenta do Movimento 5 Estrelas) e ainda antes nos Estados Unidos com Reagan. É certamente possível ver neste fenómeno a evidência do declínio da figura do político profissional e da crescente influência dos meios de comunicação e da propaganda em todos os aspectos da vida social; contudo, é claro, em qualquer caso, que o que está a acontecer implica uma transformação da relação entre política e verdade, sobre a qual é necessário reflectir. Que a política tinha a ver com mentiras é, de facto, óbvio; mas isto significava simplesmente que o político, para atingir objectivos que acreditava serem verdadeiros do seu ponto de vista, poderia contar falsidades sem demasiados escrúpulos.

O que se passa diante dos nossos olhos é algo diferente: já não se utiliza a mentira para fins políticos, mas, pelo contrário, a mentira tornou-se em si mesma o objectivo da política. Ou seja, a política é pura e simplesmente a articulação social do falso. É portanto compreensível que o ator seja hoje necessariamente o paradigma do líder político. Segundo um paradoxo que nos é familiar desde Diderot até Brecht, o bom actor não é, de facto, aquele que se identifica apaixonadamente com o seu papel, mas aquele que, mantendo a sua frieza, o mantém à distância, de modo a falar. Ele parecerá tanto mais verdadeiro quanto menos esconder sua mentira. A cena teatral é, ou seja, o lugar de uma operação sobre a verdade e a mentira, em que a verdade é produzida pela exibição do falso. A cortina sobe e fecha precisamente para lembrar aos espectadores a irrealidade do que estão vendo.

O que define a política hoje – que se tornou, como foi efetivamente dito, a forma extrema do espetáculo – é uma inversão sem precedentes da relação teatral entre verdade e mentira, que visa produzir a mentira através de uma operação particular sobre a verdade. A verdade, como pudemos constatar nos últimos três anos, não está, de facto, escondida, e permanece facilmente acessível a quem a queira conhecer; mas se antes – e não apenas no teatro – a verdade era alcançada mostrando e desmascarando a falsidade (veritas patefacit se ipsam et falsum), agora a mentira é produzida, por assim dizer, exibindo e desmascarando a verdade (daí a importância decisiva da discussão sobre fake news). Se o falso já foi um momento no movimento da verdade, agora a verdade só é válida como um momento no movimento do falso.

Nesta situação o ator está, por assim dizer, em casa, mesmo que, comparado ao paradoxo de Diderot, ele deva de alguma forma duplicar-se. Nenhuma cortina separa mais a cena da realidade, o que - segundo um expediente que os diretores modernos nos tornaram familiares - obriga os espectadores a participarem da peça – torna-se o próprio teatro. Se o ator Zelensky é tão convincente como líder político é precisamente porque consegue sempre e em todo o lado proferir mentiras sem nunca esconder a verdade, como se esta fosse apenas uma parte inevitável do seu ato. Ele - como a maioria dos líderes dos países da NATO - não nega o facto de os russos terem conquistado e anexado 20% do território ucraniano (que, aliás, foi abandonado por mais de doze milhões dos seus habitantes) nem que sua contra-ofensiva falhou completamente; nem que, numa situação em que a sobrevivência do seu país depende inteiramente do financiamento estrangeiro que pode cessar a qualquer momento, nem ele nem a Ucrânia tenham qualquer hipótese real pela frente. É por isso que, como ator, Zelensky vem da comédia. Ao contrário do herói trágico, que deve sucumbir à realidade de fatos que não conhecia ou acreditava não serem reais, a personagem cômica nos faz rir porque nunca deixa de exibir a irrealidade e o absurdo de suas próprias ações. No entanto, a Ucrânia, outrora chamada de Pequena Rússia, não é uma cena cómica e a comédia de Zelensky acabará por se transformar apenas numa tragédia amarga e muito real.

19 de janeiro de 2024

quodlibet

A espada de Dâmocles

Giorgio Agamben

É bom não esquecer a lenda de Dâmocles, que Cícero narra nas suas Disputas Tusculanas. Um dia, Dâmocles, cortesão de Dionísio, tirano de Siracusa, elogiou-o "pelas suas riquezas, pela majestade do seu poder, pela magnificência do seu palácio". «Dâmocles – respondeu o tirano – já que gostas desta vida, quero dar-te um gostinho dela e fazer-te tentar o meu destino». Fê-lo sentar-se num sofá coberto com um pano finamente bordado, colocou à sua frente cerâmicas preciosas e colocou ao seu serviço jovens de extraordinária beleza, prontos a cumprir todas as suas ordens. Dâmocles pensou que estava feliz, até que percebeu que uma espada afiada suspensa por uma crina de cavalo estava pendurada no teto sobre sua cabeça. Nesse ponto, o incauto elogiador renunciou à riqueza e ao poder e implorou a Dionísio que o deixasse ir, porque não queria mais ser feliz dessa forma.

Hoje vemos que a espada suspensa sobre a cabeça dos tiranos está prestes a cair, o cabelo que sustenta aquela espada suspensa sobre a cabeça de Zelensky está agora desgastado e talvez, amanhã, até aquela que pende sobre outros, cúmplices ou inimigos dele, pode cair. Mas a lição da lenda não é só esta para nós. Não basta nos abstermos dos elogios que todos timidamente esbanjam aos tiranos, é preciso lembrar também que cabe a nós, na medida das nossas forças, se não cortar, pelo menos arranhar e desgastar os cabelos que ainda segura a espada suspensa sobre suas cabeças. O fio que a sustenta - não nos cansamos de mostrá-lo, se o primeiro a saber é o tirano - é tênue e só o consenso e o medo de muitos o impedem de se romper.

21 de fevereiro de 2024

quodlibet

quarta-feira, 27 de março de 2024

Os fazedores de Salazares

Quando os media, mais concretamente a RTP com o programa “Grandes Portugueses”, já preparavam a opinião pública para aceitar a ideia de uma possível solução milagrosa para a crise do capital, centrada na figura de algum “salvador da pátria”, ao branquear o fascismo e o seu principal protagonista. Alguns anos depois surge o partido de extrema-direita que, recentemente, acaba por se transformar na terceira força política mais votada. Eles vêm ainda com pés de lã, por quanto tempo não sabemos.  A crónica é datada de Março de 2007.

 

O programa de “entretenimento” da RTP fez jus aos pergaminhos da estação televisiva do Estado, e teve como intuito, mais que saber da preferência dos telespectadores daquela estação sobre quem é o “maior português” de sempre, formar opinião favorável para que um dia destes, caso a crise económica não se resolva, venha aí um salvador da pátria providencial para pôr ordem na casa, o que bem encaixa na tradição política portuguesa.

A vitória do “padre” de Santa Comba, que tinha medo de andar de avião e usava do bom hábito de meter os opositores políticos na prisão, ou ordenar o seu assassínio quando se mostravam mais teimosos, ou temíveis, é interpretada pelos seus antigos admiradores como sinal de descontentamento do falhanço da democracia parlamentar. Muitos saudosistas relembram frequentemente que foi ele que livrou o país da guerra (da mundial, porque a colonial não conta) e que sempre viveu e morreu pobre, se esteve muito tempo no poder foi porque os portugueses assim o quiseram.

Outros opinantes, mais democráticos, entendem a vitória da sondagem telefónica como um alerta sobre o défice dos programas do ensino oficial que não ensinam a história do Estado Novo como deve ser, bem como sobre a Guerra Colonial; a isto juntam algum descontentamento pelas expectativas deixadas pelo 25 de Abril e que não se cumpriram. Alguns historiadores mais avisados, género Reis Torgal, talvez a maior sumidade em História Contemporânea Portuguesa, aponta o dedo à falta de seriedade da RTP que, graças à manipulação, mais não faz do que autêntica propaganda ao fascismo português.

É mesmo disso que se trata: manipulação. Manipulação feita por quem não desmerece do seu velho historial de estação oficial do regime e que ainda não conseguiu fazer a catarses. Foi a RTP que reciclou um velho fascista e salazarista, Hermano Saraiva, paradoxalmente irmão de um combatente anti-fascista, esquecido por este regime, que foi António José Saraiva. O “historiador” encartado terá sido convertido pela actual democracia com um programa pago a peso de ouro; programa esse, que pela pobreza e incorreção dos factos, só revela a ignorância do sujeito sobre história.

A acompanhar a estação de televisão do Estado, estão todos os principais órgãos de informação que têm, nestes últimos trinta e três anos de democracia de opereta, feito uma verdadeira operação de branqueamento do fascismo e de reciclagem de velhos e irredutíveis fascistas, agora apresentados como democratas – por exemplo, haveria interesse em conhecer o passado político de muitas figuras gradas do CDS e PSD e até de algumas do PS para verificarmos que o branqueamento do fascismo não se ficou apenas pelos crimes da PIDE, onde se inclui o assassinato de Humberto Delgado. Seria igualmente interessante conhecer os bufos daquela polícia política, porque então aí as surpresas seriam bem maiores, quase de certeza que iríamos conhecer figuras insuspeitas, algumas das quais pertencentes a partidos de dita “extrema-esquerda”.

Um programa como os “Grandes Portugueses” vem a calhar ao governo do ex-engenheiro Sócrates, serve como arma de chantagem: ou vocês aceitam a política de sacrifícios imposta pelo governo ou têm aí o fascismo porque há muito gente que vê com bons olhos o regresso de um “António das Botas” em versão pós-moderna. Só que os candidatos que mais se perfilam a candidato a Salazar de pacotilha são precisamente o Cavaco, actual PR, e o chefe do conselho de ministros, Sócrates (que nada tem a ver com o de Atenas), e que nem é engenheiro; ambos provincianos e com ar de tecnocratas.

O resultado do concurso prova, por um lado, que os fascistas mais jovens se encontram organizados, que souberam fazer bem o seu trabalho, conseguindo enviar uma catadupa de telefonemas para a RTP, nisso tiveram mais habilidade que os militantes do PCP, cujo candidato ao concurso não passou de um distante segundo lugar. Gente que beneficia, por outro lado, da protecção e da simpatia das autoridades políticas e policiais, cuja missão é fazer o trabalho sujo da polícia e tentar assustar os temerosos democratas pequeno-burgueses, que vêm neste regime o mais democrático de todos e no capitalismo o melhor dos mundos apesar de alguns defeitos que lhes possam ser apontados.

É pena a história não se repetir, o fascismo que nos explorou e oprimiu durante quase meio século não tem mais condições económicas, principalmente estas, nem sociais para voltar a impor-se. A grande massa de camponeses, incultos e supersticiosos, não existe mais, como ficou bem demonstrado pelo resultado do referendo sobre o aborto; a influência da Igreja é bem menor; a dita sociedade civil emancipou-se de tutelas, apesar do impasse que a luta de classes se encontra no momento actual; a classe dos operários, onde se incluem os assalariados do sector dos serviços, aumentou substancialmente e, embora o nível de literacia não seja o melhor, a experiência e os conhecimentos são muito superiores comparados com o que se verificava em 24 de Abril de 1974.

A experiência política colectiva dos trabalhadores leva a que a reacção perante uma tentativa de imposição de um qualquer regime ditatorial seja muito mais violenta, com eventual guerra civil revolucionária. E, pelo menos para já, a própria União Europeia, bem como o grande capital financeiro, não está interessada em regimes despóticos porque estes já demonstraram que não são os instrumentos mais eficazes e seguros para a boa prossecução da exploração do trabalho assalariado e para a desejada acumulação do capital.

Para infelicidade dos nossos fascistas, dos velhos e dos novos, os tempos já não são os mesmos e a tradição já não é o que era.

Fonte da notícia: TVI

Imagem: Cartaz publicitário em Lisboa, Av. da Liberdade - Foto do autor da crónica, 02 Março de 2007.

28 de Março 2007 

quarta-feira, 20 de março de 2024

Março, Marçagão, o mês de toda a manifestação

  A propósito das manifestações do dia 12 de Março de 2011, que ficaram conhecidas pelas manifestações da “geração à rasca”, e que tiveram o condão de ditar o fim dos governos PS/Sócrates. Embora alguma espontaneidade, não deixaram de ter uma mãozinha do BE e PCP, coisa que se confirmou mais tarde. Iremos agora assistir a manifestações "inorgânicas" ainda mais contestatárias contra o governo AD/Chega? Os trabalhadores e o povo português irão dizê-lo na altura que acharem mais oportuno.

 

“Contra os Contratos a Prazo, os Falsos Recibos Verdes, os Baixos Salários, a Precariedade Laboral e o Desemprego!” É assim que reza a convocatória da manifestação a realizar no próximo dia 12, sábado, em 10 cidade do país. Uma manifestação que, ao contrário da tradição, não é convocada por centrais sindicais ou (de forma aberta) por partidos da democracia instituída e que parece enervar alguns comentadores políticos da nossa praça, para além do governo. O mês de Março vai assistir a outras manifestações mais pacíficas, dos professores para o mesmo dia 12 e da CGTP para o dia 19, sob a estafada consigna “mudança de políticas”.

As greves dos transportes vão continuar, com os trabalhadores do Metro de Lisboa, Soflusa, Transtejo e maquinistas da CP a marcarem paralisações para o dia 23. Nos primeiros dias do mês foram as “Jornadas Anti-Capitalistas”, de colectivos anarquistas, e as concentrações de professores, convocadas por associações da classe, que se fizeram notar; e os maquinistas da CP negando-se a fazer horas extraordinárias fizeram suspender mais de 700 comboios. A questão que se coloca: para quando nova greve geral nacional e o que resultará da manifestação da “Geração à Rasca”?

O Manifesto da “Geração Enrascada” é claro: “Reafirmamos a total independência do protesto face a qualquer estrutura ou movimento de cariz partidário, político ou ideológico”. No entanto, não deixou de haver convite ao secretário-geral do PCP, e outros dirigentes políticos da esquerda, não se fizeram esperar para anunciar a sua participação na manifestação de Lisboa. Nada de mal, como também nada de importante o facto de elementos e forças políticas de extrema-direita queiram tirar partido, bem como outros pescadores de águas turvas.

O engraçado é ouvir certos fazedores de opinião perorarem sobre o perigo de manifestações como esta, aparentemente sem controlo e com consequências imprevisíveis, puderem catapultar caudilhos e salvadores da pátria dando como resultado final ditaduras. Ora, o perigo destas manifestações é geralmente não darem em nada; nem para a direita nem para esquerda, por serem facilmente “recuperáveis” pelo sistema, ou seja, pelos governos ou partidos parlamentares. Assim se compreende a colagem de alguns dirigentes políticos da esquerda, e nem nos admiramos que apareçam dirigentes das jotas dos partidos do centrão disfarçados, por exemplo, de dirigentes associativos. Tudo é possível.

Iremos, no próximo dia 12, isso sim, ver se as redes sociais, como em outros países em contestação fervente, funcionam também entre nós como meios de mobilização das massas, especialmente da juventude, contornando os meios tradicionais de mobilização dos partidos ou sindicatos. E podemos até ver qual a manifestação mais participada e contestária se a de 12 de Março ou do dia 19, e como os sindicatos reformistas se encontram esclerosados e ultrapassados. E é com enorme satisfação que assistimos a esta convocatória via net, independentemente das reais motivações de quem teve a iniciativa.

Não nos devemos preocupar se o Manifesto diz que “nunca foi enviada qualquer lista de reivindicações” ou que “não protestamos pela demissão de nenhum político ou governo”, pela simples razão de que quando a contestação social é iniciada ganha uma dinâmica própria difícil de fazer parar. Lembremo-nos da Comuna de Paris que começou no mês de Março, há precisamente 140 anos, e que colocou reivindicações que os partidos de esquerda existentes se tinham recusado a fazer, colocando em causa a existência do próprio estado. E muitas reivindicações, que agora não são apresentadas, surgirão naturalmente, e uma delas poderá ser a demissão dos políticos que nos (des)governam.

Se a manifestação do próximo sábado romper com os diques do conformismo poderá significar que os partidos de esquerda, incluindo a considerada extrema-esquerda, se encontram desligados dos reais interesses e verdadeiro sentir da grande massa dos jovens deste país. E mais do que os partidos serão ainda os sindicatos, dominados por gerontocracia há muito desligada do trabalho da empresa ou da escola, que há mais tempo ainda abdicaram de defender os trabalhadores desempregados, os trabalhadores precários, os trabalhadores imigrantes clandestinos, porque não pagam a quota à burocracia sindical. Muita coisa poderá ser posta em causa depois do dia 12 de Março. A ver vamos.

Saudamos ainda esta importante iniciativa – como é dito em outro sítio da net – porque ela é também uma resposta à falta de luta, à conciliação e até capitulação dos dirigentes das centrais sindicais em relação à longa ofensiva capitalista, bem expressas na recusa das referidas centrais em convocar uma nova greve geral nacional. É tempo de se virar a corrente do próprio movimento operário que se tem remetido a uma defesa que lhe será fatal, sendo mais que tempo de se passar à ofensiva. E a ofensiva é derrubar o governo PS/Sócrates.

As manifestações do dia 12 de Março, serão pelo menos 10, e que deverão multiplicar-se por mil, são a prova que, neste país, há gente que resiste, há gente que se sente revoltada, que não está conformada com os rituais sazonais de partidos que se dizem de esquerda mas que estão sempre prontos a entrar em compromissos com o governo e jamais levantaram uma palha do chão para lhe dificultar a vida, e dos desfiles das centrais sindicais que, atendendo à época, de “carnavalescos” passam a procissões pela avenida abaixo; e daqui não passam, mandando depois os trabalhadores para casa, ficando tudo na mesma.

Os jovens portugueses, estudantes ou trabalhadores, licenciados ou indiferenciados, não são uma geração rasca, estão simplesmente à rasca, como estão à rasca os restantes trabalhadores assalariados, incluindo os que pensam que tem um contrato sem termo, mas que de um momento para outro ficam no desemprego, as mulheres trabalhadoras, as primeiras a serem despedidos e com salários inferiores, a grande maioria dos reformados, ou seja, o mundo do trabalho no geral. A luta é comum, há apenas que arredar os empecilhos, e centrá-la na causa dos nossos males: o capitalismo e o seu governo PS, este o mais lacaio e vendido desde o 25 de Abril de 1974.

09 de Março 2011

Imagem de destaque: henricartoon

www.osbarbaros.org 

 

terça-feira, 12 de março de 2024

As eleições do dia 10: a instabilidade veio para ficar

 

O resultado das eleições legislativas realizadas no passado dia 10 de Março, não constituiu qualquer surpresa; surpresa foi o resultado das anteriores em que o PS conseguiu a maioria absoluta, coisa que nem ele próprio esperava. A disputa entre PS e PSD foi um tête à tête, gorando as tentativas levadas a cabo por algumas sondagens, feitas à medida por alguns órgãos de informação mainstream, que pressionaram a orientação do voto do eleitorado de molde a dar uma vantagem de 6% ao PSD, o que não veio a acontecer. O resultado da extrema-direita poderá, a uma primeira vista, ser considerado algo exagerado e até ter ultrapassado as expectativas dos correligionários do regresso ao passado, mas analisando mais atentamente não haverá surpresa e até terá beneficiado o PS que, assim, impediu a maioria absolta do PSD. A intenção do rei Marcelo foi alcançada, criou a instabilidade, da qual dificilmente se desenvencilhará, e o seu almejado governo PSD/Chega poderá ser uma realidade; Costa saiu pela porta baixa, e se era sua intenção levar o seu sucessor ao poder quando apresentou a demissão, sem ser acusado sequer no caso Influencer, foi inapelavelmente derrotado. No entanto, as melhores cenas do próximo capítulo seguirão brevemente e talvez não sejam boas de ver.

O rescaldo ainda se está a fazer, a poeira ainda não assentou, uns cantam vitória, outros franzem o sobrolho porque a colheita poderia ser mais proveitosa, aqueloutros lambem as feridas e o derrotado não dá parte de fraco e já assumiu tonitruantemente que será líder da oposição e não dará aval a proposta de Orçamento apresentado pelo futuro governo AD. Os que cantam vitória tentarão tirar os devidos dividendos e irão vender caro o apoio ao governo que se irá formar, muito provavelmente não limitarão o apoio em votos no Parlamento, exigirão a entrada no governo.

Muito provavelmente, Montenegro dará o dito pelo não dito, porque o bolo é demasiado apetitoso para ser atirado fora, são mais de 55 mil milhões de euros que escorregarão, parte já terá chegado, até 2027. Se vier a concretizar a união de facto, as divisões e as disputas pela repartição das comissões e do saque serão com certeza pomo rápido de discórdia e de desunião. Se a coisa não se der, então dificilmente haverá governo que dure até ao final do ano e de certeza que haverá de novo eleições antecipadas, que serão as terceiras em cerca de três anos. Marcelo terá um novo orgasmo, nova dissolução, nova viagem e nova corrida.

Será repetitivo, mas não é despiciendo, apontar as causas principais pela derrota do PS e a subida do partido da extrema-direita. Este constituído ilegalmente e como muitas irregularidades no processo que entrou no Tribunal Constitucional, mas havia pressa, e seguindo o que já acontecera em outros países da União Europeia, em criar uma organização que, simultaneamente metesses medo à pequena-burguesia e recolhesse os votos de “protesto” de algumas camadas do povo descontentes com a governação do PS.

E as razões são óbvias e já sobejamente apontadas: baixos salários, pensões de reforma miseráveis, elevado custo de vida, ausência de perspectivas para os mais jovens, trabalho precário, falta de habitação, acesso difícil aos cuidados de saúde devido à privatização da saúde, encerramento de urgências e de serviços de maternidade, longas listas de espera para consultas e cirurgias enquanto os médicos (80% dos médicos que trabalham no privado acumulam com o SNS), etc… Políticas impostas, por um lado, pela necessidade de os lucros do capital não poderem ser reduzidos e, por outro, segundo as directivas de Bruxelas.

O PS deu o oiro ao bandido, mas teve o consolo de não ter ido para a extrema-esquerda, ou para uma nova alternativa revolucionária, e ter impedido que o rival no acesso ao pote não conseguisse maioria absoluta. Ninguém conte que o PS se alie à AD para isolar o Chega, seria o seu fim como aconteceu com o PASOK, e quase de certeza que o Chega poderá ir para o governo; Marcelo nada se importará embora tenha publicamente dito o contrário.

O BE já prometeu “luta”, como é que não sabemos; o PCP, que ainda não percebeu porque está em queda abrupta e rápida em número de votos e de deputados desde 2015, isto é, desde quando reafirmou a sua política de maioria de esquerda em via inteiramente social-democrata, declarou que a viragem à direita exige já “a luta dos trabalhadores”. A CGTP irá ter trabalho extraordinário. Parece que estes três partidos, pode-se incluir o PS, só dão ares de esquerda quando estão na oposição, iremos assistir a manifestações e a greves gerais mobilizadoras como aconteceu durante o governo da coligação pafiosa? Não sabemos e esperamos para ver, porque há a possibilidade de os protestos sociais virem a ser inorgânicos, ou seja, fora do controlo das estruturas tradicionais.

O que sabemos para já é que os polícias e médicos que suspenderam as suas reivindicações, durante o período eleitoral, já vieram prometer a continuação. A plataforma que junta estruturas da PSP e GNR vai preparar estratégia para novo Governo; a FNAM exige regresso às negociações para "fazer o que não foi feito". Do outro lado, o presidente do Conselho Geral da AEP (Associação Empresarial de Portugal) exige “estabilidade”, pelo menos "até ao próximo OE”, isto é, até ao final do ano, e depois logo se verá, devendo-se “avançar passo a passo". Dá a entender que o governo que agora tomar posse terá sempre a vida em perigo.

Muito dificilmente, para não dizer impossível, o governo AD, com ou sem Chega, irá responder positivamente a polícias e a médicos, estes desejando o sol na eira e a chuva no nabal, acumulando público com o privado e ao mesmo tempo dizendo que não há falta de médicos, ou proceder a um aumento generalizado e significativo de salários ou de pensões de reforma. Sabe-se desde há muito, o BCE tem-no repetido frequentemente, que os salários terão de se manter baixos para “não fazerem subir a inflação”, quanto às reformas as directivas de Bruxelas são no sentido de se entregar os dinheiros da Segurança Social a fundos de investimento privados e aos bancos. Assim, a perspectiva imediata será um brutal e imediato corte, em termos reais, em todas as pensões e salários.

As palavras cautelosas de um dos dirigentes do empresariado indígena podem ser entendidas como alguma, se não muita, falta de confiança no novo governo, que não deverá ser capaz de impor uma política de austeridade a duplicar, abandonando as meias tintas dos governos do PS. Na realidade, aqueles nunca deixaram de impor uma austeridade mitigada, recusando sempre a revogação de todas as medidas decretadas pelo governo Passos Coelho/Paulo Portas e a mando da troika. Pelo contrário, ainda agravaram algumas delas, exemplo, alterações ao Código do Trabalho e continuação acelerada da Lei Cristas quanto à habitação, com os resultados conhecidos, razões que contribuíram para o descalabro eleitoral do PS e da subida da extrema-direita.

A História diz-nos que o os partidos social-democratas, género PS, são partidos da guerra. Costa defendeu acerrimamente a guerra na Ucrânia, enviou para lá algumas centenas de milhões de euros que seriam melhor empregues na Saúde ou na Educação, e nunca colocou em questão a situação de Portugal dentro da NATO ou na União Europeia. As mesmas posições e as mesmas políticas são defendidas pelos partidos da AD e pelo Chega, e ninguém se admire que o governo que se irá formar venha a defender sem hesitações o envio de tropas para a Ucrânia. Esta gente gosta da guerra, mas que sejam os outros a fazê-la no terreno por eles.

O PS recorreu à requisição civil mais vezes do que Salazar, foi contra os estivadores, contra os enfermeiros, foi contra ao motoristas de transporte de materiais perigosos, prometeu dentistas no SNS mas esqueceu-se logo no dia seguinte, prometeu habitação social e residências para estudantes mas não disse que eram tarefas para ser entregues à ganância do lucro de privados. Costa vem agora pedir reflexão sobre as causas do crescimento da extrema-direita… e se fosse para a pata que o pariu!

O PS mais não passa que um outro bando da matilha que se vai revezando na gestão dos negócios do grande capital: «Santos Silva defende "negociação e compromisso" entre PS e PSD em temas essenciais, Câmara Pereira não vê "mal nenhum" em entendimentos com Chega» (da imprensa mainstream). Vendo bem, não houve a “mudança de ciclo” que era previsível, mudaram somente os funcionários que irão cumprir as ordens dimanadas de Bruxelas e, nos intervalos, fazer o frete e facilitar os negócios a este ou aquele grupo de interesses que se vai alimentando do Orçamento de Estado, daí a preocupação pelo OE de 2025. Os oligarcas que financiaram o Chega esperam agora o retorno do investimento.

A imprensa, os paineleiros e cartilheiros, os políticos do regime, vêm todos em coro elogiar o sentido cívico dos portugueses que foram cumprir o seu, votando, e fazendo com que a abstenção tivesse descido para os 33,77%, ou seja, um terço dos cidadãos votantes resolveram não caucionar o regime da tal badalada “democracia”. No país que está entre os cinco países da UE onde menos se vota para formar governo, a “democracia” não paga as contas ao fim do mês, nem o povo come “democracia” durante o dia, nem se trata quando está doente com tão maravilhosa receita.

Aquela funciona bem para quem vai receber 20 milhões de euros por ano em subvenções, cada deputado arrecadará em média mais de 5 mil euros líquidos mensais, e para quem beneficia da dívida pública. Ainda não sabemos qual o remédio receitado pelos partidos que saíram agora vitoriosos para fazer frente quer à dívida soberana quer à dívida privada, esta mais de duas vezes superior à dívida pública, se não impor medidas de austeridade ainda mais gravosas do que as receitadas pela troika.

A respeito do resultado do destas legislativas, nas redes sociais alguém disse: “a parte boa é que vão acabar as greves!”. Entre nós, os de baixo, existe uma gente que ama sobremaneira o “manda quem pode, obedece quem deve!”, só que há um “pequeno” problema, onde há exploração e repressão a resistência é inevitável e pode crescer a ponto jamais visto, independentemente das vontades dos partidos da oposição ou das direcções sindicais. O partido do trabalho deve preparar-se par os tempos que se avizinham, que serão tempos de cólera e a tormenta de certeza que será global, seja qual for o governo a entrar em funções. Será suprema ironia que a vitória da AD seja posta em causa pelos votos que faltam da emigração. A instabilidade veio para ficar.

Imagem de henricartoon

segunda-feira, 11 de março de 2024

Quando o PSD sucede ao PS

Relembrar os tempos dos governos PSD, já que ganhou estas eleições, e, em particular, os grandes feitos do cavaquismo, na crónica escrita logo após a vitória do PSD nas eleições legislativas de 5 de Junho de 2011 e que atirou o PS para líder da oposição, numa situação algo semelhante à actual.

Silva, “O Repovoador”

O presidente da República, mais conhecido pelo senhor Silva, quer ficar na História de Portugal como um segundo D. Dinis, um repovoador do Reino que revitalizou a agricultura, desenvolveu a floresta e, já agora, contribuiu para o fomento da nossa marinha e deu a conhecer novos mundos ao mundo. O senhor Silva, na sua conversa da treta, no entanto mais conhecida por discurso oficial, indigna-se com a situação dos nossos campos, mas esquece-se, ou quer fazer esquecer, que ele, quando primeiro-ministro foi o principal responsável pela destruição da nossa agricultura e pelo abandono do interior por muitos milhares de agricultores. A agricultura do senhor Silva foi a agricultora de sucesso de uma Odefruta do seu amigalhaço Thierry Roussel, que fugiu para a Nigéria depois de enfiar nos bolsos 6 milhões de euros, ferrando o calote à CGD e ao estado português e deixando um projecto fraudulento e desajustado com graves consequências ambientais na costa alentejana, mais precisamente no Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina.

Foi no tempo do senhor Silva que milhares de milhões de euros desapareceram para que os agricultores deixassem de produzir, que vinhas e oliveiras foram arrancadas, vacarias desmanteladas, para no seu lugar se cultivassem girassóis que ficavam no campo a apodrecer, e se comprassem jipes de luxo e apartamentos de férias por pseudo-lavradores e que organizações do género CAP enriquecessem, passando os seus dirigentes a viver em palácio sumptuoso. Esta, sim, é que foi a "estratégia clara de revalorização do interior do país" e "oportunidades de sucesso" para os jovens agricultores. O senhor Silva diz que, hoje e em Portugal, 220 mil agricultores recebem subsídios da União Europeia para não produzir, mas muitos mais foram lançados na ruína para que os países ricos da Europa, com a Alemanha à cabeça, continuassem a produzir e escoar os seus excedentes para os países do Sul. A nossa pobreza, nomeadamente na agricultura, foi e é a riqueza dos países do Norte da Europa. E podemos agradecer ao senhor Silva.

Contudo, não foi só a agricultura que sofreu, foram as pescas, foi a indústria em geral, razão pela qual se percebe que uma Associação Nacional das Pequenas e Médias tivesse vindo perguntar, no dia do discurso do senhor Silva, onde foram parar os 60 mil milhões de euros de fundos europeus que entre 2000 e 2006 deviam ter sido investidas no Interior, não contando com os anteriores a este período. "Onde foram aplicados 60 mil milhões de euros, referentes às dotações do QCIII (Quadro Comunitário) 2000/2006 e QREN (Quadro de Referência Estratégico Nacional), uma vez que estas transferências líquidas da UE para o nosso país deviam ter sido investidas, precisamente, no desenvolvimento das Regiões de Convergência, ou Regiões do Interior", questiona a associação.

A obra do senhor Silva e do PSD foi completada nos governos do PS, pela mão do senhor comissionista Sousa, com o encerramento dos serviços de urgência e maternidades, o encerramento de escolas e deslocação das crianças para os mega-agrupamentos nas cidades, o encerramento dos postos dos CTT, etc., não esquecendo a obra notável do senhor Silva que consistiu na desactivação de mais 800 quilómetros de via-férrea e concomitante encerramento de dezenas de estações e perdas de postos de trabalho. Se o senhor Silva irá ficar na história como “O Repovoador”, o senhor Sousa ficará com o cognome do “Exterminador”. Ambos contribuíram fortemente para o despovoamento e miséria do país e, em particular, do Portugal profundo.

14 de Junho 2011, “Os Bárbaros”

segunda-feira, 4 de março de 2024

Eleições: A corrida ao oiro em ambiente de guerra aberta

 

Estas eleições irão distinguir-se de todas as outras já realizadas depois de 1976, ano em que entrou em vigor a Constituição da República da Democracia, por diversas características: uma delas é o prolongado tempo de campanha que, na realidade, começou ainda antes da dissolução do Parlamento e da queda do governo, que, por sua vez, foi o que mais tempo se manteve em funções de gestão; outra é o tom encarniçado em que os partidos se digladiam, menos por diferenças programáticas, mais por ataques às formas e aos modos de discurso ou de carácter dos principias protagonistas partidários. O ambiente em que a refrega ocorre é de constante e ruidosa instabilidade e insegurança, causada e atiçada por todos os políticos do establishment com hipótese de enfiar a mão no pote e sob o alto patrocínio do PR Marcelo que, depois de criar o caos e atiçar os ânimos, se recolheu a recato de gozo e satisfação.

Agitar os espantalhos da instabilidade e da insegurança

Não é primeira vez que assistimos a tentativas de desestabilização institucional e alarmismo social desencadeadas sorrateiramente pelo oposição das forças de direita, incluindo as mais retrógradas e trauliteiras, representadas por poderes fácticos, interessadas em derrubar ou criar dificuldades acrescidas aos governos do PS. Estamos lembrados da polémica das touradas em Barrancos, no tempo do governo de Guterres, que eram ilegais e que a direita, com a ajuda da imprensa que controla, fez tudo para que o governo lançasse a repressão sobre os intervenientes do evento; seria como que uma vingança pelo que se passou na Ponte 25 de Abril e que ditou o fim do Cavaquismo. Agora, fica-se com a impressão de que toda a contestação levada a cabo por polícias e militares, independentemente da justeza das razões aduzidas, possui o mesmo objectivo: desautorizar e descredibilizar o PS como governo. A mensagem é clara: o PS a governar, mesmo com maioria absoluta, é incapaz de garantir a estabilidade, tão necessária para o crescimento da economia, e para a segurança do cidadão.

Como já antevíamos, o que, diga-se de passagem, não era coisa difícil, a seguir aos polícias e guardas prisionais viriam os militares, e assim foi: tivemos o prazer de ouvir dois militares lateiros, um sargento e um oficial de secretária, perorar sobre a triste sorte de ser militar em Portugal. Em suma, cenas caricatas de gente que nunca pegou a sério numa arma e que nem deverão saber quantas estrias tem uma G3. Não nos enganaremos se afirmarmos que estes sindicalistas façanhudos rapidamente meterão a sanfona no saco se os partidos da AD formarem governo após as eleições do próximo dia 10 de Março. E mais ainda, caso o Chega vá para o governo, eventualidade mais que certa, contrariando os falsos pruridos democráticos de Montenegro, aos zaragateiros dirigentes policiais, que põem processos contra o governo e provocam o ministro da Administração Interna, mais rápido será o esfriamento do arrobo sedicioso. Por outro lado, não podemos olvidar que em situação de fascização do regime de democracia burguesa, é com militares e polícias mais “exaltados” que surgem historicamente as Sturmabteilung.

Convém relembrar outras provocações montadas pelos comandos da PSP com o objectivo de colocar o povo trabalhador contra o governo PS, foi também em tempo de governo Guterres, quando a polícia de choque, sob o comando do ultramontano general Gabriel Teixeira, carregou barbaramente sobre os trabalhadores da têxtil “Abel Alves de Figueiredo & Filhos”, em Santo Tirso, que mais pareceu uma operação militar com ocupação da fábrica, tendo provocado 4 feridos graves, um dos quais chegou a estar às portas da morte. O ministro da Administração Interna, Alberto Costa, só mais tarde é que soube do acontecimento, a operação terá sido feita à revelia da decisão ministerial. Ainda poderemos referir outros acontecimentos, com inteiros contornos de provocação, ocorridos com o mesmo governo e com o mesmo ministro, por exemplo, o baleamento mortal de um pilha-galinhas em Évora já com a polícia à espera embora a decisão do assalto tivesse sido decidida, ao que parece, durante o caminho; factos que levaram a que a PSP, e muito correctamente, tivesse sido desmilitarizada. Foram precisos mais de vinte anos para que se emendasse uma anomalia herdada do salazarismo, mas, pelo que se constata, o trabalho não ficou completo.

Estes apelos à quase sedição são aproveitados pelos sectores mais conservadores da elite para endurecer o regime democrático saído do 25 de Abril, acontecimento que ironicamente perfaz daqui a um mês o seu 50º aniversário. O incontornável PR está satisfeito com a actuação reivindicativa da polícia que vai ao encontro das suas intenções políticas, preocupa-se apenas que os protestos sejam “mal geridos” e possam “prejudicar a imagem das forças armadas” e das polícias. Marcelo não quer que uns como outros fiquem mal vistos perante o povo, mas parece que é isso que já está a acontecer, daí a preocupação presidencial e a razão pela qual o governo tem evitado a repressão sobre os contestatários, porque caso Montenegro fosse primeiro-ministro, e à semelhança de Cavaco, a repressão já tinha acontecido. Estas movimentações policiais e militares já fizeram reagir, para além da ministra da Defesa, inteiramente alinhada com a política militarista e belicista da OTAN/NATO e da União Europeia, o chefe do Estado Maior da Armada, almirante Gouveia e Melo, que foi frontal ao condenar a posição dos dirigentes sindicais de sargentos e praças e oficiais, o que terá levado ao desabafo, por parte daqueles, acusando a ministra e o almirante de sofrerem de “saudosismo autoritário”. O bom pretexto para que o almirante das vacinas considere a sua candidatura a Belém, de certeza que terá o voto de Marcelo… e até de muitos militares.

A Campanha eleitoral ao rubro

Na entrada da última semana de promessas ao metro e à resma, os principais partidos do establishment arregimentam todas forças que ainda conseguem mobilizar e toda a argumentação fácil e falaciosa para a compra do voto dos incautos e dos indecisos. São as putativas “sondagens” diárias a fim de canalizar o voto para a AD e o Chega; são os “incidentes” mediáticos e mediatizados de tinta verde na cabeça de Montenegro, passando a Monteverde, lembrando outros incidentes do género com Mário Soares na Marinha Grande ou de Bolsonaro quando levou a facada; são as convocatórios de múmias paralíticas dos partidos que constituem a AD; são o piscar de olho aos sectores ultramontanos da burguesia e da Igreja Católica com a antevisão de novo referendo para reverter a legalização do aborto ou da revogação da Lei da Eutanásia, embora depois venham desdizer que, por exemplo, a questão do aborto está definitivamente encerrada, o que não deixa de ser uma rematada mentira. A ideia é reverter o mais possível todas e quaisquer conquistas obtidas acerca dos direitos do povo português num aberto e ansioso regresso ao passado. Enterrar de vez o 25 de Abril no seu 50º aniversário.

É inteiramente patético rever os cadáveres desenterrados: um Passos Coelho que, sempre igual a si próprio, repisou as mentiras habituais e, de forma tosca, veio estigmatizar os imigrantes ligando-os a hipotética insegurança, ultrapassando o Chega, mas com o qual aconselha amorosa união de facto. Cavaco quis dar uma de democrata, coisa que lhe é arredia, chamando a atenção que o Chega faz o jogo do PS (sempre o Chega); Assunção Cristas, responsável pela lei dos despejos e pela “solução” do BES, que foi aos bolsos dos portugueses em mais de 10 mil milhões de euros, é apresentada como modelo da emancipação feminina; o salafrário e camaleão Barroso, numa de patriotismo, pede “orgulho na família e nos símbolos nacionais”, fazendo-se esquecido de que foi lacaio no apoio à guerra no Iraque, homem de mão de Bruxelas e do banco norte-americano Goldman Sachs, e agora ao serviço de Bill Gates na Aliança Global para as Vacinas, e, só pode ser paródia, orgulho nos anos da troika/Passos Coelho que levaram o povo ao empobrecimento e à miséria quase absoluta. E até um encartado liberal independente (ou será independente liberal?) foi convocado, Rui Moreira junta-se à campanha da AD porque “É o tempo de intervir”. Juntar as fraquezas não significa aumentar a força ou que ela exista sequer.

Os partidos desprezam os grandes problemas do povo português

Com a campanha na recta final, os partidos da democracia de Abril continuam a deitar para debaixo do tapete questões de importância para o povo português: situação de Portugal dentro do euro e da União Europeia; a guerra na Europa que, atendendo aos últimos desenvolvimentos, por exemplo, de possibilidade de colocação de tropas NATO dentro da Ucrânia, qual a posição a seguir?; Com a guerra à porta, Portugal deve sair ou não da NATO?; a conscrição será para se retomar ou não, tema impopular no seio da juventude?; em temas que são abordados pela rama, por exemplo, a Justiça, quais as medidas concretas para a reformar, os juízes e Ministério Público devem ser sujeitos ao escrutínio do voto ou não?; como combater a corrupção, medidas palpáveis como acabar com o sigilo bancário e com sigilo fiscal e expropriação das grandes riquezas que não sejam comprovadas a favor do estado serão medidas eficazes ou não?; as alterações feitas ao Código do Trabalho pelos governos Passos Coelho e Costa são para revogar ou não (pedra de toque para eventual apoio da dita esquerda a governo PS)? Os partidos da oposição não apresentam soluções credíveis e o PS, agora pela voz de Costa, que correu em auxílio de recurso ao aflito Pedro Santos, limitou-se a salientar as “proezas” do seu governo, ou seja, a aplicação prática das medidas que interessam ao grande capital, ao mesmo tempo que deixava cair para debaixo da mesa umas parcas migalhas para enganar os que ainda se deixam ou querem ser enganados.

A política económica que há muito está definida por Bruxelas, isto é, pelo grande capital financeiro, é para esconder, ou seja, continuar-se a enganar os trabalhadores e o povo português em geral. Quanto a salários, Lagarde já foi clara e taxativa, de nada valendo as promessas a rodo feitas quanto aos hipotéticos aumentos do salário mínimo ou salário médio: “os salários serão importante motor de inflação nos próximos trimestres”. Em português corrente, aumentar salários é aumentar a inflação, vira-se a questão de pernas para o ar, escondendo que o salário também é o preço de uma mercadora que é a força de trabalho e encontra-se sujeita às mesmas leis económicas. Baixos salários significam elevados lucros para as empresas, começando e acabando nos bancos. A Saúde, como a Educação, é para privatizar e o SNS é para ser desmantelado por completo; ambos os sectores são considerados como duas áreas de actividade económica: vendem-se medicamentos, cuidados de saúde, exames complementares de diagnóstico, ou educação, como se vendem sapatos, carros ou batatas; os utentes de cuidados de saúde há muito que são considerados “clientes”. A habitação é uma mercadoria, não é um direito, independentemente do número de casas vazias, é o mercado, e os bancos, que controlam os preços. Eis as propostas dos partidos da governação.

O estado intervir nestes sectores fundamentais para avida das pessoas é assunto proibido. Colocar no governo PS ou PSD, com ou sem anexos, é chover no molhado. Quando um regime político, que não consegue resolver os problemas da maioria da população, faliu pura e simplesmente; embora ainda funcione satisfatoriamente para o aumento dos lucros das grandes empresas (as pequenas estarão sempre condenadas). E dando uma olhadela pelas que aqui exploram fica-se com a ideia clara de que PS e PSD não têm servido quem os tem elegido: EDP espera lucrar até 1,3 mil milhões em 2023; GALP teve um lucro recorde de 1000 milhões de euros; principais bancos privados em Portugal com lucros de 3.153 milhões de euros (maior parte dos lucros destas empresas sai do país por serem maioritariamente de capital estrangeiro). Entretanto, o endividamento das famílias quadruplica face a 2015 à boleia de créditos à saúde; 10% da população empregada está em risco de pobreza e taxa agravou-se para os desempregados, atingindo quase metade desta população (dados do INE). Os números, que até são oficiais, não enganam.

Passados 50 anos, o regime de democracia burguesa está a finar-se e, segundo diz o velho ditado popular, não se deve gastar água benta com ruim defunto; no entanto, e, ao contrário do que afirmam os partidos do poder, os votos não alteram nada, somente consolidam o que já está instituído, daí a preocupação do PR Marcelo e de todos os comentadores estipendiados quanto à eventualidade da abstenção subir. Ficou-se a saber hoje, o que não é propriamente novidade, que 80% dos portugueses não confiam nos partidos políticos, 60% não confiam na Assembleia da República e 43% referem insatisfação com o regime. Será o confirmar da falência de um regime que, vendo bem, já nasceu velho, porque deixou incólume muito do aparelho de estado do fascismo, a começar e acabar nas suas figuras mais importantes, que nunca foram julgadas, e os seus esbirros, os pides, incluindo os que assassinaram Huberto Delgado, foram sujeitos a uma facécia de julgamento e puderam morrer descansadamente, bem como os juízes do Tribunal Plenário, gozando de chorudas reformas pagas pelo povo português. O chefe do partido de extrema-direita, criado e medrado pela burguesia e levado ao colo pelos media mainstream, outro sintoma da podridão deste regime, vem levantar suspeitas sobre a lisura deste acto eleitoral, deitando assim mais lenha no processo de descredibilização do dito.

Em 10 de Março os trabalhadores e o povo vão ter um dilema: em quem votar, sabendo que PS e PSD são as duas faces da mesma moeda? Votar em partidos que estão fora do Parlamento talvez seja o voto de protesto… ou então a abstenção, enquanto a velha toupeira vai fazendo o seu trabalho.

Imagem: “À procura” de Henrique Monteiro.