quinta-feira, 25 de agosto de 2022

A quem se dirige a palavra?

 

Giorgio Agamben

Em todas as épocas, poetas, filósofos e profetas reclamaram e denunciaram sem reservas os vícios e deficiências de seu tempo. Aqueles que gemiam e acusavam assim se voltavam para seus semelhantes e falavam em nome de algo comum ou pelo menos compartilhável. Já se disse, nesse sentido, que poetas e filósofos sempre falaram em nome de um povo ausente. Ausente no sentido de falta de algo que foi perdido e, portanto, ainda estava de alguma forma presente. Mesmo nesse modo negativo e puramente ideal, suas palavras ainda supunham um destinatário.
Hoje, talvez pela primeira vez, poetas e filósofos falam - se falam - sem ter em mente nenhum destinatário possível. A tradicional estranheza do filósofo ao mundo em que vive mudou de sentido, não é mais apenas isolamento ou perseguição por forças hostis ou inimigas. A palavra deve agora lidar com uma ausência de um destinatário que não é episódico, mas constitutivo, por assim dizer. É sem destino, ou seja, sem destino. Isso também pode ser expresso dizendo, como muitos fazem, que a humanidade - ou pelo menos aquela parte dela mais rica e poderosa - chegou ao fim de sua história e que, portanto, a própria ideia de transmitir, e transmitir algo, não faz mais sentido. Quando Averróis na Andaluzia do século XII afirmou que o propósito do pensamento não é só comunicar com os outros, mas unir-se com um intelecto, no entanto, ele tinha como certo que a espécie humana era eterna. Somos a primeira geração da modernidade para a qual essa certeza foi questionada, para a qual de fato parece provável que a raça humana - pelo menos o que queremos dizer com esse nome - possa deixar de existir.
Se, no entanto - como estou fazendo agora - continuarmos a escrever, não podemos deixar de nos perguntar que palavra pode ser que em nenhum caso será compartilhada e ouvida, não podemos escapar desse teste extremo de nossa condição de escritores em uma posição de não pertença absoluta. É claro que o poeta sempre esteve sozinho com a sua linguagem, mas essa linguagem era por definição compartilhada, algo que já não nos parece tão evidente. Em todo caso, é o próprio sentido do que fazemos que está sendo transformado, talvez já tenha sido completamente transformado. Mas isso significa que temos que repensar o nosso mandato de raiz na palavra - numa palavra que já não tem destinatário, que já não sabe a quem se dirige. A palavra aqui torna-se semelhante a uma carta que foi rejeitada ao remetente porque o destinatário é desconhecido.

Há alguns anos, uma revista de língua inglesa me pediu para responder à pergunta "Para quem é dirigida a poesia". Dou aqui o texto italiano, ainda inédito.

Para quem é o poema?

É possível responder a essa pergunta apenas se for entendido que o destinatário de um poema não é uma pessoa real, mas uma necessidade.
A necessidade não coincide com nenhuma das categorias modais que nos são familiares: o que é objeto de uma necessidade não é necessário nem contingente, nem possível nem impossível.
Ao contrário, dirá que uma coisa requer outra, quando, se a primeira é, a outra também será, sem que a primeira a implique logicamente ou a obrigue a existir no plano dos fatos. Está simplesmente além de qualquer necessidade e qualquer possibilidade. Como uma promessa que só pode ser cumprida por quem a recebe.

Benjamin escreveu que a vida do príncipe Myshkin exige permanecer inesquecível, mesmo que todos a tenham esquecido. Da mesma forma, um poema precisa ser lido, mesmo que ninguém o leia.

Isso também pode ser expresso dizendo que, na medida em que precisa ser lido, o poema deve permanecer ilegível, que não há propriamente um leitor do poema.

Talvez seja isso que César Vallejo tinha em mente quando, para definir a intenção última e quase a dedicação de toda a sua poesia, não encontrou outra palavra senão por “el illiteretto a quien escribo”. Considere a formulação aparentemente redundante: "para o analfabeto para quem escrevo". Por aqui não é tanto "um" quanto "no lugar dele", como Primo Levi disse que testemunhou para - isto é, "no lugar de" - aqueles que no jargão de Auschwitz eram chamados de "muçulmanos", isto é, aqueles que em nenhum caso poderiam testemunhar. O verdadeiro destinatário do poema é aquele que não consegue lê-lo. Mas isso também significa que o livro, que se destina a quem não sabe lê-lo - o analfabeto - foi escrito com uma mão que, em certo sentido, não sabe escrever, com uma mão analfabeta. A poesia devolve toda escrita ao ilegível de onde vem e para o qual segue viajando.

23 de agosto de 2022
quodlibet

terça-feira, 9 de agosto de 2022

Silly season 2022

O Verão vai a meio, as temperaturas sobem bruscamente, facilmente são ultrapassados os 42º Celsius, o que não deixa de ser normal atendendo aos registos de épocas passadas de um clima de forte influência mediterrânica, e, ao contrário do que seria de esperar, os acontecimentos e as notícias não irão de férias nem serão assim tão simplórias nem tolas.

Se nos lançarmos ao trabalho, vencendo a moleza inerente ao tempo que se faz sentir, de passar uma vista de olhos pelos principais órgãos de imprensa escrita do establishment, vários são os temas que irão, e já estarão, a inquietar-nos: a guerra da Ucrânia, a subida do preço da energia, os lucros extraordinários e obscenos dos grandes grupos económicos e dos bancos para além das empresas directamente ligadas ao sector das energias, a inflação galopante que não se sabe até onde irá chegar, os incêndios que serão definitivamente extintos somente quando deixarem de ser negócio, o SNS debaixo de fogo cada vez mais intenso, com a suspeita de privatização a curto prazo da área da obstetrícia/ginecologia, numa estratégia que vem de há muito e sob pressão de Bruxelas, a justiça que, embora não pareça, é branda com os inspectores do SEF que acusados de tortura, omissão de auxílio e homicídio apenas levaram 9 anos de prisão ou de Ricardo Salgado, o banqueiro do regime, que para além de ainda não estar preso viu a caução diminuir de 3 milhões de euros para metade e a reforma melhorada para 90 mil euros por mês, o partido de extrema-direita com representação parlamentar questionar a prepotência do presidente da dita “casa da democracia”, ambos em plena campanha de auto-promoção, o segundo como candidato a candidato a Belém, o cantor que não tem voz mas que apanha sempre a onda para também se promover e quando ameaçado corre para as saias governo a pedir protecção, a Igreja Católica que não consegue explicar o seu silêncio sobre os casos de pedofilia, a continuação do estado de alerta para se manter o uso da máscara até ao fim do mês de Agosto quando o próprio governo convida a realização em Portugal de grandes eventos desportivos internacionais e, entretanto, continua a comprar vacinas, agora para a virose dos macacos. Etc., etc.

Perante todos estes acontecimentos, numa guerra cada vez mais quente e pouco fria, quer lá fora quer cá dentro, os números não enganam, basta seguir o dinheiro:

Galp, EDP Renováveis, Jerónimo Martins e Sonae MC somam mil milhões de lucros no primeiro semestre e a dona do Continente com saldo positivo de 62 milhões; Lucro do BPI aumenta 9% para 201 milhões no semestre; Lucros semestrais da Cofina crescem 67%, A Cofina registou um aumento de 5,9% nas receitas, que ascenderam a 37,58 milhões de euros; REN aumenta lucros em 16% para 45,9 milhões de euro; Receitas da Altice Portugal sobem 14% para 1.254,2 milhões no primeiro semestre; Rendimentos operacionais do Banco CTT sobem 27% até Junho; a Altri registou no primeiro semestre deste ano um resultado líquido de 69,6 milhões de euros, um aumento de 56,9% face ao mesmo período de 2021; Sonae quase duplica lucros para 118 milhões no primeiro semestre.  

E lá fora: A Shell britânica anunciou lucros recorde no valor de mais de onze mil milhões de euros líquidos nos três meses de Abril a Junho; Iberdrola cai 36% mas atinge lucros de 2.075 milhões no primeiro semestre; Lucros recorde da espanhola Repsol, receita cresceu 92,9%, para 22 mil milhões de euros; Total Energies quase triplica o lucro somando 70,4 mil milhões de dólares entre Abril e Junho, alta de 69% na comparação anual. É a concentração acelerada do capital.

Se o dinheiro corre para um lado, de um outro sairá, numa espécie de sistema de vasos comunicantes: Inflação sobe para 9,1% em Julho e atinge máximo desde 1992, a taxa de variação homóloga do Índice de Preços no Consumidor terá aumentado 9,1% em Julho, depois de 8,7% em Julho; Inflação na Zona Euro sobe para 8,9% em Julho; contudo, PIB contrai 0,2% em cadeia no 2º trimestre; Taxa de desemprego sobe ligeiramente para 6,1% em Junho; O Banco de Portugal informou esta quinta-feira que as instituições bancárias que operam em Portugal «reduziram» mais de 3000 trabalhadores e fecharam acima de 350 agências nos últimos dois anos; Prestação da casa agrava-se até 104 euros em Agosto após BCE subir juros,  Agosto trará um novo agravamento da prestação da casa para os contratos que foram revistos; Rendas aumentaram 30% em Julho face ao ano passado; O Estado registou um excedente de 1.113 milhões de euros no primeiro semestre, em contabilidade pública, o que traduz uma melhoria de 8.429 milhões de euros face aos primeiros seis meses de 2021. São as famosas cativações a par dos fabulosos lucros dos grandes grupos económicos. A mesma filosofia.

A recessão económica encontra-se atrás da porta e será inevitável, no centro do capitalismo mundial o anúncio, contrariando as palavras do demenciado Biden e dos economistas de serviço, de os Estados Unidos entram em recessão técnica. Continuando com as paragonas dos media, a maior economia mundial registou uma quebra de 0,9% no segundo trimestre depois da contração de 1,6% nos primeiros três meses do ano; assim, os Estados Unidos encontram-se em recessão técnica.

E a locomotiva europeia não se encontra melhor, Queda da confiança coloca economia alemã “à beira da recessão”. Indicador de confiança entre os empresários alemães caiu em Julho para o valor mais baixo desde Junho de 2020, no auge da pandemia. Receio de contracção na economia aumenta.

E já o patrão da Meta, e da censura contra o que não é politicamente correcto, alertou para o início da recessão económica. De acordo com os balanços do período de Abril a Junho, a empresa registou lucro líquido de 6,687 milhões de dólares, equivalente a 2,46 dólares por ação, valor que representa uma queda de 36% em relação aos 10.394 milhões de dólares no mesmo trimestre de 2021, com ações avaliadas em 3,61 dólares cada.

A recessão dentro da economia capitalista é endémica, está-lhe na natureza, e é cíclica, só que a burguesia já aprendeu a tirar dividendos de uma coisa que não consegue modificar ou colocar-lhe fim, mas que afinal tem sido sempre benéfica para o sistema económico no seu todo, embora possa ser prejudicial para uma parte. Quando o aumento da produção, que, teoricamente e no capitalismo, não terá fim, entra em contradição com o mercado, então, há uma crise de super-produção, como está a verificar-se actualmente. A solução encontrada tem sido a guerra, além da disputa de recursos e mercados, serve para destruir o excesso de produtos e de forças produtivas, incluindo a mão-de-obra excendentária. Com a guerra há sempre a garantia que o desemprego acaba.

E, quando se reconstruir, recomeça o novo ciclo de acumulação e concentração de riqueza. Na guerra há sempre um sector da burguesia que enriquece, nem que seja pelo próprio negócio do armamento, enquanto outro poderá arruinar-se, é o que está a assistir-se presentemente. A pandemia da covid-19 serviu, e outras se encontram já na calha, varíola do macaco, a poliomielite e cólera já estão a ser ensaiadas atendendo aos casos já noticiados, para impor medidas de controlo social e restrição da própria actividade económica.

Os estados de emergência sanitários e os seus confinamentos sociais levaram ao enfraquecimento das pequenas e médias empresas que agora ainda terão a vida ainda mais dificultada com o aumento brutal do preço da energia. O exemplo da Vista Alegre, que viu os custos com gás a dispararem 485%, fechando o 1º semestre do ano com prejuízos, dá bem a imagem daquilo que as esperam. Muitas têm o destino traçado e não haverá surpresa que, depois das habituais férias de Agosto, algumas já não abram as portas.

De pouco ou nada valerão os 4,6 mil milhões destinados às empresas, no quadro do Portugal 2030, grande parte desse dinheiro irá para as grandes empresas e, nomeadamente, para as empresas estrangeiras que aqui se encontram a aproveitar-se da mão de obra barata e dos benefícios fiscais. Como de pouco valeram os milhões gastos nos lay-off ao abrigo do putativo combate à pandemia ou os 19.963 milhões recebidos de Bruxelas até Junho deste ano no âmbito do PT 2020. E quanto aos mais de 16 mil milhões de euros do famigerado PRR, já sabemos a quem calharão e quais os resultados.

O mundo actual está completamente de pernas para o ar, e vêm-nos dizer que o problema está nas alterações climáticas e na guerra, ora só acredita quem quer. Se a guerra é a continuação da política por outros meios (Carl von Clausewitz), então a política é a continuação da economia a outro nível. E com esta economia, com este regime político, com estas elites, uma economicamente rentista e subsidiária, outra politicamente corrupta, degradada e degradante, Portugal é um país sem futuro e em vias de desaparecimento, acabando por pouco importar se está dentro ou fora da União Europeia ou do euro. Outro mundo é possível porque necessário, só que o caminho terá de ser outro diametralmente oposto. A silly season este ano será particularmente quente e nada simplória.

Imagem de destaque: Praia de Yalta, Crimeia, 1995 – Martin Parr

https://temposdecolera.blogs.sapo.pt/silly-season-2022-52353

 

sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Anjos e Demónios

 

por Giorgio Agamben

Os discursos que ouvimos com tanta frequência hoje sobre o fim da história e o início de uma era pós-humana e pós-histórica esquecem o simples fato de que o homem está sempre em ato de se tornar humano e, portanto, também de deixar de ser assim e assim dizer morrer para o humano. A reivindicação de uma animalidade alcançada ou humanidade completa do homem no final da história não dá conta dessa incompletude constitutiva do ser humano.
Considerações semelhantes também se aplicam aos discursos sobre a morte de Deus. Assim como o homem está sempre em ato de se tornar humano e deixar de ser, também o devir divino de Deus está sempre em andamento e nunca se completa de uma vez por todas. Nesse sentido, deve-se entender a frase de Pascal sobre Cristo em agonia até o fim dos tempos. Em agonia - isto é, segundo a etimologia, em luta ou em conflito com sua própria divindade, por isso nunca morreu, mas sempre morrendo para si mesmo, por assim dizer. O único sentido da história humana está nessa agonia incessante e a tagarelice sobre o fim da história parece ignorar o fato – também evidente – de que a história está sempre em vias de terminar.
Daí a insistência do último Hölderlin em semideuses e figuras quase divinas ou mais que humanas. A história é feita de seres já e ainda não divinos, já e ainda não humanos: há, ou seja, uma "semi-história" assim como há semideuses e quase homens. Por esta razão, as únicas chaves para interpretar a história são a angelologia e a demonologia, que vêem nela – como os Padres e o próprio Paulo fizeram quando chama os anjos (ou demónios) os poderes e governos deste mundo – uma luta implacável entre menos que deuses e mais – ou menos – que os homens. E se podemos dizer alguma coisa sobre nossa condição atual é que nos últimos dois anos vimos com clareza sem precedentes os demónios trabalhando na história e os possuídos seguindo-os cegamente em sua vã tentativa de expulsar os anjos para sempre – aqueles anjos que, afinal, antes de sua queda infinita na história, eles próprios o eram.

4 de Agosto de 2022

(tradução livre)

Imagem: O Triunfo do Génio da Destruição (1878), de Mihály Zichy.

Em: quodlibet