sábado, 10 de fevereiro de 2024

A polícia insurrecta e o fim do estado de direito

Os polícias irão desencadear um golpe de estado e afastar de vez o PS do governo ainda antes das eleições do dia 10 de Março? Ou, melhor ainda, impedir que as eleições se realizem sequer, por desnecessárias, criando um governo com a AD e o Chega de nomeação presidencial? Este é o ponto da situação, graças ao oportunismo político do PS de querer controlar a PJ e o SIS com uma prebenda discriminatória em vez de um salário base digno, como todos os funcionários públicos. O governo mal dirigido por Costa, outra coisa não seria de esperar, abriu a caixa de pandora: os agentes da PSP e da GNR (que não é precisamente uma polícia) também se acham com o direito ao bónus, a seguir, e caso o consigam, os militares, que são todos mercenários e não conscritos, também virão reivindicar o mesmo, já que ir para a guerra é um sério e real risco.

Estabilidade à la carte

Estamos a assistir à degradação, já em passo de marcha acelerada, da democracia saída do golpe militar de 25 de Abril, que o rei/presidente Marcelo fez o favor de dar uma mãozinha com a demissão do governo PS/Costa a fim de o substituir por um outro formalmente de direita, tendo já prometido que poderá proceder a terceira dissolução da Assembleia da República se assim o entender… a instabilidade, tão esconjurada pelos estrénuos defensores do “estado de direito e democrático”, são os que mais se esforçam para a instituir. Se a economia não reanimar, parece que não irá acontecer este ano de 2024 e para o ano as incertezas são mais que muitas, então estará instalado o ambiente propício à intriga, traições e baixa política dentro do regime, como já se está a assistir, e, muito possivelmente, ao golpe de estado que salvificamente irá colocar a malandragem na ordem. Os populismo servem para este fim.

Na campanha eleitoral, que vai em fase avançada e com os debates coreografados ao ínfimo pormenor, fala-se dos engodos para caçar o voto aos incautos e aos ainda crédulos, aumentos salariais e diminuição de IRS e IRC, mas não se discute questões importantes, verdadeiramente cruciais para o cidadão comum ou para o próprio regime, para além das mais imediatas, salários, saúde, educação e segurança social. Por que não falar da conscrição ou voluntariado para o serviço militar? Justiça e segurança, democratização da justiça e das polícias, estruturas que foram herdadas do fascismo e que continuam incólumes ou quase, por que razão o poder judicial é o único que não é escrutinado pelo voto do cidadão? E o que pensam os partidos sobre estes temas? Ou como combater a corrupção de forma e eficaz, para além de declarações vagas e ocas, como acabou de fazer o chefe do PSD, “esquecendo-se” que, caso o combate fosse sério e desejado, mais de metade dos dirigentes do seu partido, incluindo muito provavelmente ele próprio, não escaparia da prisão?

Sobre as reivindicações policiais, ainda nenhum partido da oposição, incluindo os mais de direita, se comprometeu a satisfazê-las tal como são apresentadas pelas organizações sindicais respectivas se por hipótese venha a ser governo, quanto muito qualquer deles fica pela promessa apaziguadora e politicamente correcto do “diálogo”. O PS, escudando-se na “falta de legitimidade” do governo por se encontrar em gestão, dá agora a entender que nada irá prometer, mas, conhecendo-se o oportunismo deste partido, ninguém se admire que à última da hora deixe a porta entreaberta ao acordo, porque serão mais uns poucos milhares de votos caso vença as eleições e venha a formar de novo governo. A intransigência será então mais de forma do que de facto.

O controlo das polícias e a luta pelo poder

Por carga de água os partidos se “preocupam” tanto com as reivindicações policiais? O cerne da questão encontra-se, para além de poderem vir arrecadar mais alguns votos (aqui encontram-se até os partidos da esquerda dita “mais radical”) ou do desejo de infernizar a vida ao PS dificultando-lhe a vitória no próximo dia 10 de Março, na ansia de controlo das forças policiais. O PS controla a PJ e o SIS, faltar-lhe-á a PSP e a GNR, estas por sua vez estarão a ser usadas pelo PSD e restante direita para a desestabilização e para enfraquecer o PS, daí este partido à última da hora e de forma inesperada, como já referimos, venha a tirar uma carta da manga e resolva a questão a seu favor. Para já assistimos a um braço de ferro, talvez mais aparente do que real (a política nacional encontra-se em nível cada vez mais rasteiro e mais mediático do que nunca) entre o governo e as associações representativas das polícias. Em suma, é a manipulação das forças policiais para a disputa partidária pelo pote e, em situação de tensão social, como instrumento dócil na repressão dos trabalhadores.

Entretanto, vai-se assistindo à refrega entre o governo, via ministro da Administração Interna, e os sindicatos das polícias, com o endurecimento das posições de ambos os lados. O ministro acusa os sindicatos de quererem “boicotar as eleições” e “colocar em causa o estado de direito”, e os sindicatos, via sindicalista belicoso, indignam-se com as palavras do dito e, não fazendo por menos, ameaçam com processo em tribunal por “difamação” contra ministro, primeiro-ministro e “todos os comentadores” que apoiaram as palavras governamentais. Relembrar que o sindicalista em causa, aparentemente fazendo eco de opinião mais geral, foi mais longe na ameaça, que mais tarde teve a arte (talvez aconselhado pelo advogado) de emendar para “alerta”, de que as reivindicações não sejam satisfeitas facilmente se poderá chegar a uma situação de descontrolo, com a eventual possibilidade de os denominados “movimentos inorgânicos” virem a dirigir o processo. Os sindicatos dos polícias, ao que parece, fazem o mal e caramunha.

Fica claro aos olhos de qualquer cidadão que estes protestos surgem em momento mais que oportuno, e em política as coisas nunca surgem por acaso, se acontecem é porque foram planeadas. Estas lutas, agricultores, polícias, a que se juntam já as polícias municipais e bombeiros sapadores e voluntários, tantos uns e outros directamente dependentes dos municípios, custe o que custar, visam malhar no PS. Só que há um pequeno problema, o PS ainda é o partido que melhores garantias dá a Bruxelas/Alemanha na aplicação das directivas impostas pelo grande capital financeiro europeu. E coisa que os partidos, que andam entretidos em debates televisivos a endrominar o eleitor, devem entender é que quem manda na chafarica à beira-mar plantada ainda é Bruxelas; o resto será apenas conversa fiada, como dizem os brasileiros, para boi dormir.

Cartoon de Cristina Sampaio (Facebook) - Cristina Sampaio: “Recebi ameaças e mensagens de ódio às dezenas por causa deste cartoon. O sentido de humor está a perder-se completamente” … “Nós estamos a criticar o racismo na polícia. Estamos a chamar a atenção para um problema”.  “O Sindicato Nacional da Carreira de Chefes (SNCC) da Polícia de Segurança Pública (PSP) apresentou uma queixa-crime contra os autores de um cartoon sobre polícia e racismo, e também contra a RTP, por o ter emitido.” (Agência Lusa, 08.07.2023). … que não deu em nada.

Economia e o descontentamento social

A situação económica do país não é tão risonha como o PS a pinta, não nos cansamos de enfatizar este ponto, e é o estado do capitalismo nacional, ou seja, a situação dos lucros da burguesia indígena que, em última análise, determina a estabilidade da política, cada vez mais rasca, cá do burgo. A subida do PIB de 2,3% do PIB é enganadora porque a queda do dito foi brutal no tempo da pandemia, a maior de toda a UE, de forma que qualquer subida mais significativa será sempre grande em termos percentuais. A pobreza tem aumentado, é grande o número das famílias de trabalhadores que reduzem as despesas, “quatro em cada dez consumidores cortaram na ida ao restaurante” ou “Portugal está entre os 11 países da OCDE que registaram quebras no rendimento real per capita dos agregados no 3.º trimestre de 2023” ou “mais de 251 mil portugueses obrigados a ter dois empregos”. A própria classe média (que vota ao centro, que tem dado a vitória ora ao PS, ora ao PSD) encontra-se em estado apressado de proletarização, os médicos e professores estão na primeira linha, o salário médio não aumenta, e facilmente é aliciada pelos ditos “populismos”.

E é para aproveitar esta tendência, e simultaneamente dando-lhe mais força, que o establishment, através do seu aparelho de propaganda (toda a imprensa mainstream) promove aos píncaros partidos e organização de extrema direita, dentro ou fora das polícias, manifestações racistas e xenófobas, como aconteceu recentemente com a pretensa “anti-islamização”, chegando-se a usar um criminoso de delito comum, já com cadastro, como dirigente e agitador. Facilmente, embora com alguma demagogia, se possa fazer a ligação entre umas e outras, sabendo-se que o racismo e a xenofobia abundam entre as forças policiais, indo um pouco para além do reflexo do que existe no seio da sociedade portuguesa, ainda moldada por meio século de fascismo e colonialismo; ideias estas que não despareceram de todo neste também meio século de democracia algo manhosa. Não deixa de ser irónico observar a ascensão do fascismo, agora mais polido e “democratizado”, cinquenta anos depois do 25 de Abril. É iniludivelmente sinal de senilidade precoce desta democracia.

As polícias serão reformáveis?

E ainda quanto às manifestações dos polícias, não deixa igualmente de ser confrangedor constatar que agentes de autoridade, para defender reivindicações corporativas, sejam os primeiros a infringir as leis, a começar pela apresentação de “oportunos” atestados médicos até ao desafio da autoridade do estado. Pergunta-se: qual agora a autoridade ou moralidade desta gente em obrigar o cidadão comum a respeitar essas mesmas leis? Os polícias, que agora saem à rua a protestar, terão alguma autoridade para reprimir alguma greve ou manifestação dos trabalhadores? Os polícias ainda estarão lembrados ou já se esqueceram da repressão e boicote às greves dos estivadores e dos camionistas de transportes de matérias perigosas? Os agentes da PSP e da GNR, que andaram a multar a torto e a direito os cidadãos que não acataram as imposições ridículas e prepotentes impostas pelo governo PS, através dos confinamentos sanitários, ainda têm coragem e vergonha de quererem por ventura o apoio do povo português? Estas são algumas das muitas questões sobre as quais os polícias e as suas organizações deverão reflectir.

O PS, ao contrário do PSD que reprimiu as manifestações dos “secos e molhados” e que terá feito algumas reformas (pequenas) quanto ao tipo de direcção da PSP e GNR, poderia aproveitar, no próximo governo, avançar com a reforma de todos os corpos policiais: quanto à GNR, poderia simplesmente dissolvê-la, o povo agradeceria, seria uma maneira de apagar da memória a triste GNR do fascismo, entretanto poderia criar uma polícia florestal e do meio ambiente, com o ressuscitar dos antigos guarda-rios; acabar com as polícias municipais, que foram paridas como protecção dos presidentes da câmaras e que não possuem uma direcção nacional e que se limitam a passar multas. Reduzia assim o número de polícias existentes no país, que inexplicavelmente rivalizam em número com as forças armadas, e aproximar o número total de polícias em Portugal da média europeia, que são 300 por 100 mil cidadãos e não os actuais 450. Há polícias a mais no país, mas há médicos, professores e enfermeiros, e outros técnicos necessários ao desenvolvimento social e económico do país, a menos.

Os economistas do sistema dizem que os trabalhadores portugueses têm fraca produtividade, justificando assim os baixos salários praticados entre nós, e então o que dizer da produtividade dos cerca cem mil polícias e militares de um país, um dos mais pobres de toda a União Europeia, que nem está em guerra com nenhum outro? Só se a guerra é contra os trabalhadores e o povo português?

Foto (CM) – Idoso a descansar depois de ter ido buscar comida a uma cantina social e que a PSP, depois da polémica surgida no Facebook, nega que o tivesse multado, mas sim dois homens que se encontravam perto sem máscara e sem distanciamento social. No entanto, o balanço do estado de emergência (Fevereiro de 2021): “Mais de 13 mil contraordenações levantadas desde Janeiro, mais que em todo o ano de 2020”, “PSP abre inquérito por dúvidas no uso da força em ação policial no Barreiro - A intervenção policial registou-se devido a um ajuntamento de pessoas a consumir bebidas alcoólicas na via pública”, “Crimes, Figueira da Foz: PSP deteve homem sem máscara”, “PSP multa surfista resgatado na praia em Cascais”, “GNR encerrou restaurante em Ílhavo com cinco pessoas no interior”, “Brigadas covid da PSP: 810 pessoas multadas em 48 horas, 92 por não terem máscara”. 

Imagem de destaque: “Policial português agride fotógrafa da AFP” (Patricia de Melo Moreira, fotojornalista da Agência France-Press) 

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