terça-feira, 25 de maio de 2021

O rosto e a morte

 


Giorgio Agamben

Parece que na nova ordem planetária que está tomando forma duas coisas, aparentemente sem relação uma com a outra, estão destinadas a ser completamente removidas: o rosto e a morte. Tentaremos investigar se eles não estão de alguma forma conectados e qual é o significado de sua remoção.

Já era conhecido dos antigos que a visão do próprio rosto e do rosto dos outros é uma experiência decisiva para o homem: "O que se chama" rosto" - escreve Cícero - não pode existir em nenhum animal exceto no homem" e os gregos definiam o escravo, que não é senhor de si mesmo, aproposon, literalmente "sem rosto". É claro que todos os seres vivos se mostram e se comunicam, mas só o homem faz do rosto o lugar de seu reconhecimento e de sua verdade, o homem é o animal que reconhece seu rosto no espelho e se reflete e reconhece no rosto do outro. O rosto é, nesse sentido, ao mesmo tempo a similitas, a semelhança e as simultas, o ser dos homens juntos. Um homem sem rosto está necessariamente sozinho.

É por isso que o rosto é o lugar da política. Se os homens tivessem que comunicar sempre e apenas informações, sempre isso ou aquilo, nunca haveria política propriamente dita, mas apenas troca de mensagens. Mas como os homens devem, antes de tudo, comunicar sua abertura uns aos outros, seu reconhecimento no rosto, o rosto é a própria condição da política, que se baseia em tudo o que os homens dizem e trocam.

O rosto é, neste sentido, a verdadeira cidade dos homens, o elemento político por excelência. É olhando para o rosto que os homens se reconhecem e se apaixonam, percebem semelhança e diversidade, distância e proximidade. Se não há política animal, é porque os animais, que já estão sempre à vista, não tornam a sua exposição um problema, simplesmente habitam nela sem se preocuparem com ela. É por isso que não se interessam pelos espelhos, pela imagem como imagem. O homem, por sua vez, quer se reconhecer e ser reconhecido, quer se apropriar de sua imagem, busca nela sua própria verdade. Ele transforma, assim, o meio ambiente animal em um mundo, no campo de uma dialética política incessante.

Um país que decide renunciar à sua própria cara, para cobrir os rostos dos seus cidadãos com máscaras por toda a parte é, pois, um país que apagou de si todas as dimensões políticas. Nesse espaço vazio, sujeito a todo momento a um controle ilimitado, os indivíduos agora se movem isolados uns dos outros, que perderam o fundamento imediato e sensível de sua comunidade e só podem trocar mensagens dirigidas a um nome sem rosto. E sendo o homem um animal político, o desaparecimento da política significa também o afastamento da vida: uma criança que, ao nascer, já não vê o rosto da mãe, corre o risco de não poder conceber os sentimentos humanos.

Não menos importante do que a relação com o rosto, é para os homens a relação com os mortos. O homem, o animal que se reconhece na própria cara, é também o único animal que celebra o culto aos mortos. Não é surpreendente, então, que até os mortos tenham um rosto e que o apagamento do rosto ande de mãos dadas com a remoção da morte. Em Roma, o morto participa do mundo dos vivos por meio de sua imago, imagem moldada e pintada em cera que cada família guardava no átrio de sua casa. O homem livre é, isto é, definido tanto por sua participação na vida política da cidade quanto por seu ius imaginum, o direito inalienável de guardar o rosto de seus ancestrais e exibi-lo publicamente nas festas da comunidade. “Depois do sepultamento e dos ritos fúnebres - escreve Políbio - a imago do morto em um relicário de madeira foi colocada no ponto mais visível da casa e esta imagem é um rosto de cera feito em semelhança exata tanto na forma quanto na cor”. Estas imagens não eram apenas tema de uma memória privada, mas eram o sinal tangível da aliança e solidariedade entre vivos e mortos, entre passado e presente que fazia parte integrante da vida da cidade. Por isso desempenharam um papel tão importante na vida pública, tanto que foi possível afirmar que o direito à imagem dos mortos é o laboratório em que se funda o direito dos vivos. Tanto que quem cometeu um crime público grave perdeu o direito à imagem.

E a lenda diz que quando Romulus fundou Roma, ele cavou um poço - chamado mundus, "mundo" - no qual ele próprio e cada um de seus companheiros jogou um punhado de terra de onde vieram. Esta cova era aberta três vezes por ano e dizia-se que naquela época as mãos, os mortos entravam na cidade e participavam da existência dos vivos. O mundo é apenas o limiar através do qual os vivos e os mortos, o passado e o presente se comunicam.

Entendemos então por que um mundo sem rostos só pode ser um mundo sem mortes. Se os vivos perdem a face, os mortos tornam-se apenas números, que, na medida em que foram reduzidos à sua vida biológica pura, devem morrer sozinhos e sem funerais. E se o rosto é o lugar onde, antes de qualquer discurso, nos comunicamos com nossos semelhantes, então mesmo os vivos, privados de sua relação com o rosto, estão irreparavelmente sós, por mais que tentem se comunicar com dispositivos digitais.

O projeto planetário que os governos tentam impor é, portanto, radicalmente apolítico. Ao contrário, propõe eliminar todo elemento genuinamente político da existência humana, substituí-lo por uma governamentalidade baseada apenas no controle algorítmico. Cancelamento facial, afastamento dos mortos e distanciamento social são os dispositivos essenciais dessa governamentalidade, que, segundo as declarações pactuadas dos poderosos, deve ser mantida mesmo quando o terror sanitário é amenizado. Mas uma sociedade sem rosto, sem passado e sem contato físico é uma sociedade de fantasmas, como tal condenada a uma ruína mais ou menos rápida.

(Texto publicado no "Neue Zürcher Zeitung", 30 de abril de 2021)

https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-il-volto-e-la-morte

sexta-feira, 14 de maio de 2021

Puta que os pariu!

 

Puta Que os Pariu! A Biografia de Luiz Pacheco (7 Maio 1925 - 5 Janeiro 2008)

Os 35 anos de Europa, o assassínio de Ihor Homemiuk, Odemira e a Cimeira Social do Porto

Nos últimos dias vários acontecimentos marcaram a agenda política do país: A Cimeira Social do Porto, que seria realizada para uma eventual mudança social com o objectivo de recuperação da economia capitalista na Europa, mais emprego, melhores salários, um possível salário mínimo europeu,mais direitos e regalias sociais para o mundo trabalho, em suma: a tal Europa dos cidadãos de que alguém gosta muito de falar; a sentença do caso da morte do imigrante ucraniano Ihor Homemiuk às mãos de três inspectores da política das fronteiras SEF, entretanto reconfigurada, cujos homicidas foram condenados a penas de prisão entre os 7 e os 9 anos, penas brandas pela razão invocada pelos juízes de que não teria havido intenção de assassinar mas somente de torturar; a cerca sanitária a duas freguesias do concelho de Odemira, por haver mais casos dos que a conta oficial de PCR+, trouxe à tona, o que já era há muito público, a existência de trabalho escravo nas culturas intensivas existentes em zona protegida na orla litoral alentejana. 35 anos após a adesão à CEE (UE), Portugal é o país de trabalho escravo que promove uma cimeira social. É razão para desabafar, caso não fossemos pessoas bem educadas: e se fossem gozar com a puta que os pariu!

O Novo Banco é, sem dúvida alguma, um poço sem fundo dos dinheiros públicos, uma resolução que foi imposta por Bruxelas, uma experiência para salvar a banca privada que ainda não tinha sido ensaiada, com o governo PSD/CDS como autor e o governo seguinte do PS/Costa/BE/PCP como executor responsável, ganhou o capital financeiro, em particular, a Lone Star, fundo de investimento norte-americano. Após 4 mil milhões de euros já estorricados, serão mais 1600 milhões que já se encontram destinados para... “compensar perdas com activos”. Entretanto, os grandes devedores ao Novo Banco continuam sem pagar os 1,26 mil milhões de euros, ao que dizem, porque nunca se saberá a quantia exacta. E os nove gestores do banco que continua falido irão receber cerca de 2 milhões de euros de prémio, possivelmente, pelo “excelente” trabalho do banco ter somado mais 1,3 mil milhões de prejuízos em 2020! Não são todos uma corja de parasitas e de gatunos?! O contribuinte continuará a pagar e o governo (que até é um governo “de esquerda”, ora se não fosse!) continuará a seguir a receita do empobrecimento do povo português, agora com os protestos hipócritas e cobardes de todos os partidos da putativa oposição. Empobrecimento revelado entre outras realidades pelo aumento da receita arrecadada em sede do IRS, mais 3,1%, enquanto os capitalistas pagaram menos 17,9% de IRC no ano passado.

No dia 1 de Janeiro de 1986, Portugal “aderiu”, segundo dizem, juntamente com a Espanha (terá sido condição sine qua non) à então CEE (Comunidade Económica Europeia), mas que na altura já era mais do que “económica”, era abertamente um projecto político de dominação ao serviço da Alemanha, esta por sua vez um prolongamento do imperialismo norte-americano - já lá vão 35 anos! Depois da invasão de Portugal pela CEE e do Tratado de Maastricht, veio o culminar da integração monetária com o euro, reforçado pelo Tratado de Lisboa, e o resultado está bem à vista, só não vê quem não quer: Portugal continua a ser um país com uma economia baseada essencialmente em baixos salários, fraca produtividade e trabalhadores com poucas habilitações. Quem o diz é a insuspeita Pordata, que no entanto omite o trabalho escravo, como se constata não só em Odemira como em outras regiões do país, sendo a gravidade mais chocante no Alentejo, Algarve e no Tejo com a apanha dos bivalves. A escravatura dos trabalhadores imigrantes não anula, apenas disfarça a outra escravatura dos trabalhadores nacionais.

Os nossos “empresários de sucesso” que dizem preferir os trabalhadores imigrantes porque os portugueses reivindicam demasiado e “não querem trabalhar” são mais do que cúmplices da escravatura, são autores, autênticos negreiros, protegidos pelo governo PS, que nada fez nem fará para acabar de vez com este estado de coisas, que para além de extorquírem a mais-valia pelo trabalhado realizado nas culturas intensivas ainda os exploram através dos alojamentos e da contratação, esta feita a meias com as empresas ditas de “trabalho temporário”, e querem sempre mais, como todos os capitalistas nacionais. A CIP, fazendo eco desta ganância desenfreada, reclama uma “almofada” pública de 8.000 milhões de euros para resolver moratórias das empresas que se encontram endividadas aos bancos, e estes também endividados num encadeamento circular à espera de quem irá cair primeiro se o governo PS/Costa não acudir a tempo. Mais uma factura para os trabalhadores e os portugueses em geral, os tais de baixos salários e fracas habilitações, pagarem e de preferência sem protestar... porque agora a culpa é da pandemia da covid-19 e o governo não fez melhor porque não pôde!

Portugal é o 3.º país com mais trabalhadores acima dos 64 anos na União Europeia, 11,7%; ou seja, o dobro da média dos 27 países! E, esta hein! Em 35 anos da dita Europa dos Direitos Sociais, segundo se rezou na Reunião dita “informal” do Conselho Europeu, realizada há pouco na cidade do Porto, e cujos objectivos eram: redução da pobreza, combate à discriminação e exclusão social e diminuição das desigualdades redigidas. Mas como parece que a pobreza é pouca, embora digam pretender o contrário, o facto é que tudo aponta para que ela, e a curto prazo, aumente ainda mais. Não será somente as mais de 700 mil famílias que não conseguirão pagar os seus créditos quando as moratórias acabarem em Setembro, ou a tendência dos impostos pagos pelos trabalhadores, nomeadamente em sede de IRS e de impostos indirectos, os que são iguais quer para ricos quer para pobres, em aumentar constantemente (carga fiscal em 2020 representou 34,8% do PIB e foi a maior de sempre – INE), como já se prepara a opinião pública para a inevitabilidade do aumento de impostos num futuro próximo, porque, segundo estudo promovido pela Gulbenkian (instituição respeitável e que aparentemente não mente), o “envelhecimento pode trazer mais impostos e menos benefícios para as futuras gerações” para que possa haver finanças públicas sustentáveis e... que já poderão ter sido tomadas.

E qual o melhor governo para as tomar, muitas vezes disfarçadamente sem que a maioria dos portugueses se aperceba a tampo, se não o governo PS/Costa! Claro que haverá alguém que dirá que Portugal tem uma carga fiscal (34,8% ) abaixo da média da UE (cerca de 41%), só que não diz que os patrões em Portugal, os grandes, pagam poucos impostos e o sonho molhado seria não pagar nada e ter os trabalhadores a trabalhar à borla, por exemplo, como em Odemira. Na prática, parece ser essa a política do PS quando no governo e, principalmente, porque é exactamente nestas alturas que o PS é catapultado para o poder da governação, quando a economia portuguesa se encontra em forte depressão - o Instituto Nacional de Estatística (INE) confirmou que o PIB português registou, durante o ano passado, uma contracção de 7,6%, o resultado mais negativo que é possível encontrar na série histórica do Banco de Portugal desde 1928 (da imprensa). É mais que evidente que é toda a economia capitalista nacional, para mais em situação de subjugação perante os países centrais mais ricos, se encontra falida. Agora, em 2021, não são só os bancos que se encontram no charco da ruína, como em 2008, mas todas as empresas em geral, e o apoio ao aumento do salário mínimo de 84,5 euros por posto de trabalho, no total serão 60 milhões de euros, é um bom índice da situação das empresas e do papel e natureza deste governo PS que, além do mais, nunca deixou de contar com os apoios do PCP e do BE, ambos muito preocupados com a “economia nacional”.

E a pandemia veio em boa hora, até parece que surgiu de propósito, excelente pretexto para salvar as grandes empresas e deixar afundar as restantes, facilitando o processo natural de concentração do capital, mas que neste momento se pretende acelerado, e justificar as medidas de austeridade que virão em breve e a quadruplicar. E os indícios do que aí vem são bem claros. O já referido estudo da Gulbenkian também não deixa de apontar que “os impostos terão de subir 22% para ter contas públicas sãs (exigência de Bruxelas) e em alternativa será necessário cortar o valor das pensões futuras em 19% ou então aumentar a idade da reforma (que o governo acaba de fazer em mais 1 mês). E no campo da Saúde, o mais sensível de todos para o povo português, o denominado PRR (Plano de Recuperação e Resiliência) irá “recuperar medidas da troika para hospitais”, com a junção dos serviços de urgências dos hospitais públicos nas grandes cidades e que será mais do que isso, iremos assistir à repetição do que aconteceu nos governos do PS/Sócrates e PSD/CDS/Coelho/Portas de encerramento de unidades do SNS consideradas a mais para não competir com o privado. Será mais do mesmo, mas em dose reforçada: salários mais baixos, corte nas pensões e benefícios sociais, menos dinheiro para o SNS (para os privados não faltará) e Educação e aumento de impostos! Serão medidas decretadas pelo Costa/PS, como aconteceu com o Sócrates/PS, depois virá um governo formalmente de direita PSD/Chega, à semelhança do PSD/CDS, para as impor à força do cacete. A história repete-se.

No tal de PRR, cuja versão completa não foi dada a conhecer aos portugueses pelo Costa, mas somente uma versão resumida, haverá 92 milhões de euros para “regularizar” e “inovar” os lares clandestinos de idosos, como se estes parasitas, exploradores dos nossos idosos e famílias, se preocupassem com alguma coisa se não com o dinheiro. Se o governo estivesse na realidade interessado em acabar com este negócio negreiro já teria iniciado a criação de uma rede pública de lares e de residências para cuidados continuados em vez de entregar o assunto aos privados que apenas vêem cifrões e pouco mais, e esta seria uma excelente altura. A pandemia serviu para contratar camas aos privados da saúde enquanto, como agora se confirma mais uma vez, os hospitais públicos, quer enfermarias quer unidades de cuidados intensivos, estavam longe da saturação, e ao contrário do que a imprensa mercenária nos queria fazer acreditar. E o Plano de Recuperação e Resiliência será, com o financiamento de toda a rede de serviços (ditos) sociais e privados, o culminar do processo de destruição do SNS.

O que se passa em Odemira, onde os trabalhadores são miseravelmente explorados, não se pode desligar do tratamento que as polícias lhes dão quando tentam entrar no país de forma isolada, porque quando em rede de tráfico, os polícias, que não são menos corruptos que os políticos do regime, vão fechando os olhos. Exploração de seres humanos em herdades de culturas intensivas, cuja produção se destina em grande medida para exportação (havendo já alguém preocupado com a imagem que esta situação de desumanidade poderá dar do país no exterior, inclusivamente haver o risco de boicote aos produtos hortícolas made in Odemira), em plena reserva natural (Rede Natura 2000 e Parque Natural), em regime de exploração intensiva dos solos com a sua esterilização a prazo devido ao uso desmesurado de fertilizantes e pesticidas, perigo que espreita todo o Alentejo e Algarve com as culturas intensivas da oliveira, da amendoeira e agora da pera abacate. Calcula-se que em 20 anos, Alentejo e também Algarve, porque o turismo nunca virá a ser o que era, estarão desertificados igualmente em termos humanos depois dos seus terrenos terem ficado envenenados pela actividade destas empresas que na sua maioria nem sequer são portuguesas.

Mas foi para isto que Portugal entrou na CEE/UE: produzir a preço baixos o que os outros países precisam; a preços baixos e com escravatura. A reconversão capitalista que aí vem através do PRR será para estender esta situação a todo o país e a todas as áreas económicas, será com as minas do lítio, será com o já famigerado “hidrogénio verde”, e já o incontornável secretário de estado da energia e ambiente sentenciara: “Quem está contra as minas está contra a vida”... do capitalismo, acrescentamos nós. E nesta destruição do país e da pauperização acelerada do povo português, todos são responsáveis, como em Odemira: governo, autarcas, deputados, partidos do regime, magistrados e polícias (o SEF não encontrou trabalhadores ilegais em Odemira, pudera!). E para os recalcitrantes haverá, na melhor das hipóteses, o passaporte covid, discriminando vacinados (e vamos lá ver aos efeitos a prazo das vacinas!) e não vacinados à semelhança da Alemanha Hitleriana com os judeus e não judeus, ou a tortura e a morte, como aconteceu com o malogrado trabalhador Ihor Homemiuk e cuja justiça ficará por se fazer; as penas decididas serão meramente simbólicas para salvar a face do regime. Aos poucos o regime democrático burguês revela a sua verdadeira face de ditadura da burguesia sobre os trabalhadores e o povo em geral e não bastará mudar de governo ou de figurões ou sair da UE, a revolução socialista será inevitável... porque necessária.

 


sábado, 1 de maio de 2021

Maio proletário, internacionalista e de revolta!

 


Maio é sempre o mês que marca a revolta social, não sendo por acaso que é no primeiro dia que se comemora a data da luta internacionalista proletária, cujo objectivo último é a emancipação da humanidade – a classe dos proletários ao destruir as grilhetas da exploração simultaneamente liberta-se como classe e liberta toda a humanidade. O 1º de Maio é uma manifestação de classe, embora muitas vezes recuperada como conciliação entre os possidentes e os explorados, jamais perde a centelha e a natureza da luta para transformação social, enquanto o 25 de Abril nunca deixou de ser uma comemoração conservadora, de institucionalização de uma ordem que serve os poderosos.

O 25 de Abril foi passado nestes dois anos em pleno estado de excepção (emergência), com as liberdades, direitos e garantias individuais suspensos, com a normalização do autoritarismo e da repressão, a pretexto do combate à dita pandemia. Este ano ficou bem patente a hipocrisia de todos os partidos e políticos da establishment, com os siameses ocasionais, Marcelo e Costa, em primeira linha, através dos discursos oficiais e de toda a intervenção política diária. Eles ficarão para a história como os principais responsáveis pela decadência acelerada do regime parlamentar burguês, saído do golpe militar, e do seu fim a curto ou médio prazo.

Marcelo, o hermafrodita rei/presidente, apelou, no seu discurso comemorativo da efeméride, à união de todos os portugueses para o apoio ao regime, à estabilidade política, atendendo para mais à situação de crise, dita pandémica, mas intrinsecamente económica e bem anterior à declaração da covid-19. Fez lembrar a velha “união de todos os portugueses honrados” tão querida, embora em sentido diferente, tanto ao regime fascista bem como à oposição existente na altura e alegadamente liderada pelo PCP, partido que agora é mais papista que o Papa. O apelo à conciliação dos portugueses passou pelo branqueamento dos crimes do colonialismo português nas antigas colónias, já evidenciado pela presença de Marcelo no funeral do genocida Marcelino; no entanto, “esqueceu-se” referir que ele, filho de um alto dignitário do fascismo, nem sequer cumpriu o serviço militar.

Em situação de maior pobreza, o povo português descrê cada vez mais no regime, como tem sido revelado por diversos inquéritos (“Dois terços não confiam nos tribunais e nos juízes”, “Inquiridos revelam descrença generalizada no regime”, “Políticos não são devidamente fiscalizados (83%) e justiça não tem capacidade para investigar se são corruptos”). Não faltará muito para que aconteça a este regime o que aconteceu à I República, que soçobrou quando o povo já farto de miséria e de repressão lhe negou mais apoio.

Foi o medo da revolta social que levou o PR e o PM a recuar: o estado de emergência não foi renovado, após quase meio ano de estado de sítio e de quinze prorrogações contínuas. A pouca amistosa recepção ao PM Costa e do seu assessor-ministro das Infra-estruturas em Valença do Minho por parte de pequenos comerciantes e de trabalhadores assalariados, uma aliança que nunca deixa de ser perigosa para a burguesia, fez empalidecer-lhe a face e antecipar a abertura das fronteiras, objectivo tão reivindicado e há bastante tempo, pelas populações, por completamente injustificado.

O estado de emergência tem servido para justificar a crise, por um lado, e desresponsabilizar o governo pela crescente dificuldades e miséria sentidas pelo povo português e pelas medidas de mais e redobrada austeridade que se preparam para ser aplicadas em breve, sempre com a justificação do combate à pandemia. A crescente ruína das classes médias, a par da miséria endémica (esta sim pandémica) da classe operária, faz com que rapidamente se reúnam as condições da revolução dos explorados, como aconteceu há 150 anos na Comuna de Paris. É este perigo, sempre latente, que faz correr Costa e Marcelo, cuja qualidade principal não é exactamente a coragem, mas mais a poltronice, a que juntam a mentira, a manipulação e a intriga; todas qualidades da classe social que representam, a burguesia.

No entanto, para salvar a face, Marcelo, numa manobra miserável de continuar a responsabilizar os portugueses pelo estado de calamidade da saúde pública em Portugal, vomitou: "Não hesitarei em avançar com novo estado de emergência". Vai-se percebendo que a diferença entre este PR e o seu antecessor é apenas de estilo e no grau de hipocrisia, tendo sido a múmia uma vez mais criticada por estar ausente na cerimónia do 25 Abril no Parlamento. E em questão de coerência e de coragem será bom também referir que Associação 25 de Abril, a entidade promotora do evento, chegou até a defender que não houvesse desfile; o que teria sido uma decisão acertada porque o mofo e a hipocrisia da comemoração da data já são nauseantes.

O pano de fundo dos temores não só dos governantes mas de toda a classe política é a grave crise económica, que jamais deixou de se agravar durante a badalada pandemia. E a situação não é para menos: mais 16.600 pessoas recorreram ao RSI no último ano (não foi a pandemia que intensificou a pobreza, como refere a imprensa mercenária, foi o governo com o pretexto da dita), são agora 216.550 beneficiários, mais 8,3% do que em Março do ano passado, porque vivem em pobreza extrema; o endividamento dos agentes económicos (setor público, empresas e famílias) subiu quase 5,4 mil milhões de euros em Abril, atingindo um nove recorde de 751,4 mil milhões de euros; o PIB, o conjunto da riqueza produzida no país, caiu 5,4% (3,3% no primeiro trimestre do ano); e o défice das contas públicas, neste mesmo período, atinge os 2255 milhões de euros no primeiro trimestre.

Mas enquanto a pobreza entre os portugueses aumenta, e outros números se poderão citar, como os trabalhadores inscritos nos centros de emprego subiram 25,9% em Março ou os portugueses têm o sexto preço de gasolina mais caro da União Europeia ou gastaram menos 59 milhões por dia no ano passado, a burguesia vai engordando os seus lucros e riqueza em geral: “Lucro da Jerónimo Martins sobe 66,3% até Março”, “A EDP acaba de fazer a maior distribuição de lucros de sempre, são 754 milhões de euros”, “SIRESP já custou ao Estado mais de 556 milhões de euros”, “Vilanova Resort recebeu apoio a lay-off e não pagou salários aos cerca de 40 trabalhadores”. E para que os lucros das empresas não se ressintam, o governo do Costa/PS “aprova compensação às empresas por subida do salário mínimo”.

É a acumulação e concentração do capital que, segundo a lógica capitalista, não deve parar e nem ter limite. Os números apresentados pelas grandes empresas monopolista são iniludíveis: “AstraZeneca duplica lucros para 1288 milhões de euros no 1.º trimestre”; “Amazon mais do que triplica lucros para 8,1 mil milhões de dólares (no primeiro trimestre)”. Lucros que são exponenciais, particularmente para as empresas farmacêuticas e todas as que se situam na área da saúde com a vacinação e a testagem em massa (em Portugal por cada 100 mil testes encontram-se 100 casos ditos “positivos” ou “activos”!) em todos os países. Mas enquanto se concentra a riqueza num dos lados, como a água em sistema de vasos comunicantes, a revolta desponta um pouco por todos os cantos: no Sábado, dia 24 de Abril, dezenas de milhares de manifestantes desfilaram pelas ruas de Londres contra o passaporte de vacinação, com cartazes onde se podia ler "Não à máscara, não à vacina, não ao confinamento", ousando enfrentar as restrições do confinamento e a proibição de reuniões e ajuntamentos.

Se na velha Europa a contestação contra os confinamentos e a pobreza aumenta, então na América Latina, a revolta ruge com a Colômbia em estado de sítio, onde a população entrou em greve geral e em manifestações em massa contra a reforma fiscal que visa aumentar os impostos sobre os trabalhadores e a pequena-burguesia, sendo o governo acusado de ser pior que o vírus (“El Gobierno es más peligroso que el virus”); ou no Chile onde a revolta contra o governo de Piñera (a quinta maior fortuna do país, em grande parte adquirida no tempo da ditadura de Pinochet), nunca cessou apesar da pandemia, tendo ocorrido grandes manifestações no dia 30 de Abril, manifestações que visam o derrube do governo. São agora os regimes que tremem.

Por cá, os trabalhadores estão a ser confrontados com o aumento do desemprego, com despedimentos feitos pelo próprio governo, onde a TAP é o melhor exemplo da hipocrisia de um governo que se diz de esquerda. Primeiro, foi dito que os trabalhadores poderiam sair a bem, foram enviadas “cartas de conforto” (!) a 6240 trabalhadores, não conseguindo contudo esconder a “pressão psicológica intolerável”, denunciada pelos pilotos. Agora, como a cenoura não terá funcionado como se esperava, é mais do que a manipulação, é o cacete da pura chantagem e terror, que os administradores, onde pontifica um ex-dirigente do PSD, na sua cobardia, atribuem ao logaritmo do computador. Luta que deve ser apoiada por todo o povo português!

Com estes exemplos por parte do estado, os capitalistas sentem-se mais seguros e confiantes para fazer o mesmo, e será o que vai acontecer quando se chegar à etapa do recebimento dos dinheiros da bazuca, que já fazem salivar toda a burguesia, e do pagamento dos mesmos pelo povo. Ninguém dos partidos do poder parlamentar explica por que é que a União Europeia, como um todo, se endivida perante a banca (os “mercados”) e não vai buscar directamente o dinheiro ao Banco Central Europeu, este por sua vez é que dá dinheiro aos bancos a juros negativos. A explicação é simples: União Europeia e governos nacionais não passam de instrumentos ao serviço do grande capital financeiro. São os moleques dos banqueiros, o francês Macron e o italiano Draghi nem chegam a disfarçar.

Apertar constantemente o garrote sobre a garganta dos povos pode dar mau resultado, como a história nos ensina e muito boa gente não se cansa de avisar para os perigos que daí poderão advir. Razões que leva a que os governos afiem os instrumentos repressivos e dêem largas à sanha repressiva. Entre nós, o PS no governo não deixa por mãos alheias os pergaminhos de “quem se mete com o PS, leva!”: “Dois anos após ter interrompido o discurso de António Costa, Francisco é acusado de desobediência civil. O Ministério Público acusa o activista de 'perturbar a ordem e a tranquilidade públicas' quando invadiu o jantar de aniversário do PS para protestar contra a construção do Aeroporto do Montijo, em 2019; pena pode ir até dois anos de prisão”; ou “Juíza do Supremo pôs em causa isenção de membros do Conselho Superior da Magistratura. Clara Sottomayor levantou incidente de recusa contra maioria dos membros do CSM, no âmbito de um processo disciplinar que tem a correr contra si e no qual será ouvida em audiência pública...” Fala-se na judicialização da política, mas o inverso também é válido, só mostra que não há separação de poderes, isso é uma falácia, e quando alguém ousa lutar leva sempre com o aparelho repressivo do estado em cima, e que não perde ocasião para mostrar a sua verdadeira face de um instrumento de repressão de uma classe contra as restantes.

E em data de comemoração da Comuna de Paris, o fantasma do comunismo está presente e atemoriza cada vez mais a burguesia. É o medo que faz correr os capitalistas e os seus representantes e cães de fila, será bom não esquecermos das palavras de Otelo que explicou que a quartelada tinha sido antecipada para o 25 de Abril porque as ruas de Lisboa estavam cheias de pichagens a convocar o 1º de Maio (pichagens que não eram da autoria do PCP), havia o medo de que o regime caísse na rua. Razão pela qual não se tinha planeado nem a extinção da PIDE nem a libertação dos presos políticos. Só que o povo entendeu exigir uma revolução e como, apesar de tudo o que se passou, a burguesia não chegou a sair do poder (as revoluções não se fazem com cravos nem com a mudança dos figurões), então, não há nada a comemorar a 25 de Abril. É que a revolução ainda se encontra na ordem do dia, mesmo que o dia não seja exactamente hoje. Maio é mais do que Abril.

A vida nua e a vacina


 GIORGIO AGAMBEN

Várias vezes em minhas intervenções anteriores evoquei a figura da vida nua. Na verdade, parece-me que a epidemia mostra, sem qualquer dúvida possível, que a humanidade não acredita mais em nada, excepto na mera existência a ser preservada como tal a qualquer preço. A religião cristã com suas obras de amor e misericórdia e com sua fé ao ponto do martírio, a ideologia política com sua solidariedade incondicional, mesmo a confiança no trabalho e no dinheiro parecem perder o lugar assim que a vida nua é ameaçada, ainda que no forma de um risco cuja entidade estatística é instável e deliberadamente indeterminada.

Chegou a hora de esclarecer o significado e a origem deste conceito. Para isso é preciso lembrar que o humano não é algo que se defina de uma vez por todas. É antes o lugar de uma decisão histórica incessantemente atualizada, que cada vez fixa a fronteira que separa o homem do animal, o que é humano no homem do que não é humano nele e fora dele. Quando Lineu busca uma nota característica para suas classificações que separa o homem dos primatas, ele deve confessar que não a conhece e acaba colocando ao lado do nome genérico homo apenas o velho adágio filosófico: nosce te ipsum, conheça a si mesmo. Este é o significado do termo sapiens que Linnaeus acrescentará na décima edição de seu sistema da natureza: o homem é o animal que deve reconhecer-se como humano para ser humano e, portanto, deve dividir - decidir - o humano do que não é.

O dispositivo pelo qual essa decisão ocorre historicamente pode ser chamado de máquina antropológica. A máquina funciona excluindo a vida animal do homem e produzindo o humano por meio dessa exclusão. Mas para que a máquina funcione, a exclusão deve ser também uma inclusão, que entre os dois pólos - o animal e o humano - haja uma articulação e um limiar que os divide e os une. Essa articulação é a vida nua, ou seja, uma vida que não é propriamente animal nem verdadeiramente humana, mas na qual a decisão entre o humano e o não-humano se dá sempre. Esse limiar, que necessariamente passa dentro do homem, separando nele a vida biológica da social, é uma abstração e uma virtualidade, mas uma abstração que se torna real ao se corporificar a cada vez em figuras históricas concretas e politicamente determinadas: o escravo, o bárbaro, o homo sacer, a quem qualquer pessoa pode matar sem cometer um crime, no mundo antigo; o enfant-sauvage, o homem-lobo e o homo alalus como o elo perdido entre o macaco e o homem entre o Iluminismo e o século XIX; o cidadão em estado de excepção, o judeu na cerveja, o overcomatous na sala de reanimação e o corpo preservado para a retirada de órgãos no século XX.

Qual é a figura da vida nua que está em questão hoje na gestão da pandemia? Não é tanto o paciente que é isolado e tratado como um paciente que nunca foi tratado na história da medicina; antes, é o infectado ou - como se define com uma fórmula contraditória - o paciente assintomático, isto é, algo que todo homem é virtualmente, mesmo sem saber. Em questão não está tanto a saúde, mas sim uma vida que não é saudável nem doente, que, como tal, sendo potencialmente patogénica, pode ser privada de suas liberdades e sujeita a proibições e controles de todos os tipos. Todos os homens são, neste sentido, sofredores virtualmente assintomáticos. A única identidade dessa vida oscilando entre a doença e a saúde é a de ser receptor do tampão e da vacina, que, como o batismo de uma nova religião, definem a figura invertida do que antes se chamava de cidadania. O baptismo já não é indelével, mas necessariamente provisório e renovável, porque o novo cidadão, que deve sempre apresentar a certidão, já não tem direitos inalienáveis e indecidíveis, mas apenas obrigações que devem ser constantemente decididas e actualizadas.

Original em quodlibet