Maio é sempre o mês que marca a revolta social, não sendo por acaso que é no primeiro dia que se comemora a data da luta internacionalista proletária, cujo objectivo último é a emancipação da humanidade – a classe dos proletários ao destruir as grilhetas da exploração simultaneamente liberta-se como classe e liberta toda a humanidade. O 1º de Maio é uma manifestação de classe, embora muitas vezes recuperada como conciliação entre os possidentes e os explorados, jamais perde a centelha e a natureza da luta para transformação social, enquanto o 25 de Abril nunca deixou de ser uma comemoração conservadora, de institucionalização de uma ordem que serve os poderosos.
O 25 de Abril foi passado nestes dois anos em pleno estado de excepção (emergência), com as liberdades, direitos e garantias individuais suspensos, com a normalização do autoritarismo e da repressão, a pretexto do combate à dita pandemia. Este ano ficou bem patente a hipocrisia de todos os partidos e políticos da establishment, com os siameses ocasionais, Marcelo e Costa, em primeira linha, através dos discursos oficiais e de toda a intervenção política diária. Eles ficarão para a história como os principais responsáveis pela decadência acelerada do regime parlamentar burguês, saído do golpe militar, e do seu fim a curto ou médio prazo.
Marcelo, o hermafrodita rei/presidente, apelou, no seu discurso comemorativo da efeméride, à união de todos os portugueses para o apoio ao regime, à estabilidade política, atendendo para mais à situação de crise, dita pandémica, mas intrinsecamente económica e bem anterior à declaração da covid-19. Fez lembrar a velha “união de todos os portugueses honrados” tão querida, embora em sentido diferente, tanto ao regime fascista bem como à oposição existente na altura e alegadamente liderada pelo PCP, partido que agora é mais papista que o Papa. O apelo à conciliação dos portugueses passou pelo branqueamento dos crimes do colonialismo português nas antigas colónias, já evidenciado pela presença de Marcelo no funeral do genocida Marcelino; no entanto, “esqueceu-se” referir que ele, filho de um alto dignitário do fascismo, nem sequer cumpriu o serviço militar.
Em situação de maior pobreza, o povo português descrê cada vez mais no regime, como tem sido revelado por diversos inquéritos (“Dois terços não confiam nos tribunais e nos juízes”, “Inquiridos revelam descrença generalizada no regime”, “Políticos não são devidamente fiscalizados (83%) e justiça não tem capacidade para investigar se são corruptos”). Não faltará muito para que aconteça a este regime o que aconteceu à I República, que soçobrou quando o povo já farto de miséria e de repressão lhe negou mais apoio.
Foi o medo da revolta social que levou o PR e o PM a recuar: o estado de emergência não foi renovado, após quase meio ano de estado de sítio e de quinze prorrogações contínuas. A pouca amistosa recepção ao PM Costa e do seu assessor-ministro das Infra-estruturas em Valença do Minho por parte de pequenos comerciantes e de trabalhadores assalariados, uma aliança que nunca deixa de ser perigosa para a burguesia, fez empalidecer-lhe a face e antecipar a abertura das fronteiras, objectivo tão reivindicado e há bastante tempo, pelas populações, por completamente injustificado.
O estado de emergência tem servido para justificar a crise, por um lado, e desresponsabilizar o governo pela crescente dificuldades e miséria sentidas pelo povo português e pelas medidas de mais e redobrada austeridade que se preparam para ser aplicadas em breve, sempre com a justificação do combate à pandemia. A crescente ruína das classes médias, a par da miséria endémica (esta sim pandémica) da classe operária, faz com que rapidamente se reúnam as condições da revolução dos explorados, como aconteceu há 150 anos na Comuna de Paris. É este perigo, sempre latente, que faz correr Costa e Marcelo, cuja qualidade principal não é exactamente a coragem, mas mais a poltronice, a que juntam a mentira, a manipulação e a intriga; todas qualidades da classe social que representam, a burguesia.
No entanto, para salvar a face, Marcelo, numa manobra miserável de continuar a responsabilizar os portugueses pelo estado de calamidade da saúde pública em Portugal, vomitou: "Não hesitarei em avançar com novo estado de emergência". Vai-se percebendo que a diferença entre este PR e o seu antecessor é apenas de estilo e no grau de hipocrisia, tendo sido a múmia uma vez mais criticada por estar ausente na cerimónia do 25 Abril no Parlamento. E em questão de coerência e de coragem será bom também referir que Associação 25 de Abril, a entidade promotora do evento, chegou até a defender que não houvesse desfile; o que teria sido uma decisão acertada porque o mofo e a hipocrisia da comemoração da data já são nauseantes.
O pano de fundo dos temores não só dos governantes mas de toda a classe política é a grave crise económica, que jamais deixou de se agravar durante a badalada pandemia. E a situação não é para menos: mais 16.600 pessoas recorreram ao RSI no último ano (não foi a pandemia que intensificou a pobreza, como refere a imprensa mercenária, foi o governo com o pretexto da dita), são agora 216.550 beneficiários, mais 8,3% do que em Março do ano passado, porque vivem em pobreza extrema; o endividamento dos agentes económicos (setor público, empresas e famílias) subiu quase 5,4 mil milhões de euros em Abril, atingindo um nove recorde de 751,4 mil milhões de euros; o PIB, o conjunto da riqueza produzida no país, caiu 5,4% (3,3% no primeiro trimestre do ano); e o défice das contas públicas, neste mesmo período, atinge os 2255 milhões de euros no primeiro trimestre.
Mas enquanto a pobreza entre os portugueses aumenta, e outros números se poderão citar, como os trabalhadores inscritos nos centros de emprego subiram 25,9% em Março ou os portugueses têm o sexto preço de gasolina mais caro da União Europeia ou gastaram menos 59 milhões por dia no ano passado, a burguesia vai engordando os seus lucros e riqueza em geral: “Lucro da Jerónimo Martins sobe 66,3% até Março”, “A EDP acaba de fazer a maior distribuição de lucros de sempre, são 754 milhões de euros”, “SIRESP já custou ao Estado mais de 556 milhões de euros”, “Vilanova Resort recebeu apoio a lay-off e não pagou salários aos cerca de 40 trabalhadores”. E para que os lucros das empresas não se ressintam, o governo do Costa/PS “aprova compensação às empresas por subida do salário mínimo”.
É a acumulação e concentração do capital que, segundo a lógica capitalista, não deve parar e nem ter limite. Os números apresentados pelas grandes empresas monopolista são iniludíveis: “AstraZeneca duplica lucros para 1288 milhões de euros no 1.º trimestre”; “Amazon mais do que triplica lucros para 8,1 mil milhões de dólares (no primeiro trimestre)”. Lucros que são exponenciais, particularmente para as empresas farmacêuticas e todas as que se situam na área da saúde com a vacinação e a testagem em massa (em Portugal por cada 100 mil testes encontram-se 100 casos ditos “positivos” ou “activos”!) em todos os países. Mas enquanto se concentra a riqueza num dos lados, como a água em sistema de vasos comunicantes, a revolta desponta um pouco por todos os cantos: no Sábado, dia 24 de Abril, dezenas de milhares de manifestantes desfilaram pelas ruas de Londres contra o passaporte de vacinação, com cartazes onde se podia ler "Não à máscara, não à vacina, não ao confinamento", ousando enfrentar as restrições do confinamento e a proibição de reuniões e ajuntamentos.
Se na velha Europa a contestação contra os confinamentos e a pobreza aumenta, então na América Latina, a revolta ruge com a Colômbia em estado de sítio, onde a população entrou em greve geral e em manifestações em massa contra a reforma fiscal que visa aumentar os impostos sobre os trabalhadores e a pequena-burguesia, sendo o governo acusado de ser pior que o vírus (“El Gobierno es más peligroso que el virus”); ou no Chile onde a revolta contra o governo de Piñera (a quinta maior fortuna do país, em grande parte adquirida no tempo da ditadura de Pinochet), nunca cessou apesar da pandemia, tendo ocorrido grandes manifestações no dia 30 de Abril, manifestações que visam o derrube do governo. São agora os regimes que tremem.
Por cá, os trabalhadores estão a ser confrontados com o aumento do desemprego, com despedimentos feitos pelo próprio governo, onde a TAP é o melhor exemplo da hipocrisia de um governo que se diz de esquerda. Primeiro, foi dito que os trabalhadores poderiam sair a bem, foram enviadas “cartas de conforto” (!) a 6240 trabalhadores, não conseguindo contudo esconder a “pressão psicológica intolerável”, denunciada pelos pilotos. Agora, como a cenoura não terá funcionado como se esperava, é mais do que a manipulação, é o cacete da pura chantagem e terror, que os administradores, onde pontifica um ex-dirigente do PSD, na sua cobardia, atribuem ao logaritmo do computador. Luta que deve ser apoiada por todo o povo português!
Com estes exemplos por parte do estado, os capitalistas sentem-se mais seguros e confiantes para fazer o mesmo, e será o que vai acontecer quando se chegar à etapa do recebimento dos dinheiros da bazuca, que já fazem salivar toda a burguesia, e do pagamento dos mesmos pelo povo. Ninguém dos partidos do poder parlamentar explica por que é que a União Europeia, como um todo, se endivida perante a banca (os “mercados”) e não vai buscar directamente o dinheiro ao Banco Central Europeu, este por sua vez é que dá dinheiro aos bancos a juros negativos. A explicação é simples: União Europeia e governos nacionais não passam de instrumentos ao serviço do grande capital financeiro. São os moleques dos banqueiros, o francês Macron e o italiano Draghi nem chegam a disfarçar.
Apertar constantemente o garrote sobre a garganta dos povos pode dar mau resultado, como a história nos ensina e muito boa gente não se cansa de avisar para os perigos que daí poderão advir. Razões que leva a que os governos afiem os instrumentos repressivos e dêem largas à sanha repressiva. Entre nós, o PS no governo não deixa por mãos alheias os pergaminhos de “quem se mete com o PS, leva!”: “Dois anos após ter interrompido o discurso de António Costa, Francisco é acusado de desobediência civil. O Ministério Público acusa o activista de 'perturbar a ordem e a tranquilidade públicas' quando invadiu o jantar de aniversário do PS para protestar contra a construção do Aeroporto do Montijo, em 2019; pena pode ir até dois anos de prisão”; ou “Juíza do Supremo pôs em causa isenção de membros do Conselho Superior da Magistratura. Clara Sottomayor levantou incidente de recusa contra maioria dos membros do CSM, no âmbito de um processo disciplinar que tem a correr contra si e no qual será ouvida em audiência pública...” Fala-se na judicialização da política, mas o inverso também é válido, só mostra que não há separação de poderes, isso é uma falácia, e quando alguém ousa lutar leva sempre com o aparelho repressivo do estado em cima, e que não perde ocasião para mostrar a sua verdadeira face de um instrumento de repressão de uma classe contra as restantes.
E em data de comemoração da Comuna de Paris, o fantasma do comunismo está presente e atemoriza cada vez mais a burguesia. É o medo que faz correr os capitalistas e os seus representantes e cães de fila, será bom não esquecermos das palavras de Otelo que explicou que a quartelada tinha sido antecipada para o 25 de Abril porque as ruas de Lisboa estavam cheias de pichagens a convocar o 1º de Maio (pichagens que não eram da autoria do PCP), havia o medo de que o regime caísse na rua. Razão pela qual não se tinha planeado nem a extinção da PIDE nem a libertação dos presos políticos. Só que o povo entendeu exigir uma revolução e como, apesar de tudo o que se passou, a burguesia não chegou a sair do poder (as revoluções não se fazem com cravos nem com a mudança dos figurões), então, não há nada a comemorar a 25 de Abril. É que a revolução ainda se encontra na ordem do dia, mesmo que o dia não seja exactamente hoje. Maio é mais do que Abril.
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