sábado, 24 de dezembro de 2022

É o bonapartismo, habituem-se!

 

Só o roubo pode salvar a sociedade burguesa! Só o roubo, a bastardia, a família, a desordem, a ordem!

Karl Marx, O 18 Brumário de Luís Bonaparte

 O acontecimento de política caseira que mais tem dado de falar nestes dias é, sem dúvida alguma, a entrevista concedida pelo primeiro-ministro Costa à revista “Visão”. As reacções por parte da dita “oposição” e de todos os opinantes e paineleiros encartados e não encartados confluem para o ponto comum da arrogância, vaidade e insegurança. A entrevista faz parte de um conjunto de intervenções na imprensa mainstream, toda ela bem untada pelos milhões de compra de publicidade institucional que vem do tempo da pandemia e que se manteve até agora. O jornal do regime, o inefável “Expresso” do ex-ala-liberal do fascismo e fundador do principal partido da oposição, PPD/PSD, não escapou à acção de propaganda do chefe do governo. O facto de Costa, mais o colega ucraniano, ter sido nomeado figura do ano pelo jornal conservador “DN” não é por caso e terá sido o tiro de partida para a campanha de propaganda governamental.

Os sucessos do governo de Costa

Costa, na entrevista, elenca os feitos do seu governo nestes nove meses de mandato, esquecendo-se que este governo mais não passa da continuidade do anterior sem os parceiros geringonços. A principal façanha terá sido a “recuperação” da economia pós-pandemia, aprovação de dois orçamentos de estado e dois acordos de concertação com os “parceiros sociais”, patrões e trabalhadores, incluindo os da função pública, o que irá, em princípio, garantir a paz social e a estabilidade, tão de agrado das elites e do PR monárquico Marcelo; a redução dos impostos sobre as empresas e a distribuição do bodo aos pobres que foram os subsídios dos 60 euros e mais tarde de 150 e agora de 240 euros, que abrangeram não só os mais economicamente vulneráveis como a classe média cada vez mais proletarizada. Costa tem conseguido manter e até aumentar os lucros das grandes empresas com a subsidiação do poder de compra dos mais pobres, como bem tem aconselhado tanto o FMI como o BCE, em vez de tabelar os preços e intervir directamente na economia, a fim de impedir a escalada dos preços, e aumentar os salários e as reformas e pensões ao mesmo nível, pelo menos, da taxa da inflação. A glória de Costa está, e na entrevista orgulha-se disso, em ser um bom “gestor de crises”, ou seja, gestor da crise do capitalismo e manter o povo calmo.

Os críticos de Costa falam do acessório, criticam o estilo de Costa, “arrogante”, “presunção”, “insegurança”, de “cansaço” e “precisar de férias”, e chegam a jogar com eventuais divisões internas do PS apresentando alguns socialistas “desconfortáveis” com o tom de António Costa, nunca com o conteúdo do discurso do entrevistado, pela simples razão de que todos concordam com a política levado a cabo pelo governo; a própria oposição não apresenta nada de diferente, razão pela qual Costa pode facilmente acusar os eus oponentes de “falta de ideias”. Ao cabo e ao resto, trata-se de saber quem é que no momento seria o melhor servidor do capital, não mais do que isso. Com maioria absoluta, Costa pode, como se costuma dizer, arrotar postas de pescada, porque a oposição não existe, do lado da direita e da esquerda, os dois ex-parceiros da geringonça ficaram sem capital político, limitando-se o BE e o PCP, e mais o primeiro do que o segundo, a atacar o governo em questões pontuais como seja o SNS que se encontra a dar o último suspiro, ou seja, nas palavras de Catarina Martins, no “princípio do fim”.

Costa – e não é despiciendo enfatizar – perante as câmaras, ufana-se: “se não fossemos nós a gerir a crise, quem o faria?” Não deixa de ter orgulho pela confiança que as elites nacionais e o grande capital financeiro, representado por Bruxelas, até agora lhe têm garantido. É a confiança do servo que presta serviço com zelo e se esforça diariamente para que essa relação de entendimento não esmoreça ou quebre. Só que esta ligação só se manterá com esforço acrescido e, temos de reconhecer, o homem tem tido o seu mérito. Não nos devemos esquecer como se formou o primeiro governo do PS liderado por Costa, que só foi possível graças à colaboração dos dois partidos que lhe ficam mais à esquerda, convencidos com a léria de reposição dos salários e reformas, das condições de vida em geral e das leis do trabalho em particular, que foram retiradas por imposição da troika e do governo PSD/PP, que também se vangloriou do facto de ter além do que lhe terá sido exigido, fazendo o papel de idiotas úteis do regime. Depois de “comer” o eleitorado daqueles dois partidos, conhecidos por “muletas” da “geringonça”, Costa e o PS facilmente ganharam as eleições por maioria absoluta de facto, porque a maioria já o era mas de jure.

Os bonapartismos em sociedades pré-industriais ou pouco industrializadas

Estes dois partidos, apesar do rótulo de esquerda, mais não são que organizações que representam os interesses de sectores distintos da mesma classe média, ou seja, a pequena burguesia que, descontente com as injustiças e os exageros do capitalismo, tem mais medo da revolução ou da mudança brusca e radical do seu estilo de vida do que qualquer outra coisa. São partidos que de “radicais” só possuem o nome, um deles em questões internas e externas alinham abertamente pelo lado do capitalismo e do imperialismo, o outro difere pelo facto de a nível externo ainda combater os crimes e desmandos do imperialismo norte-americano e algumas vezes da União Europeia. Mas não só o apoio a Costa vem de parte do eleitorado destes partidos e das suas direcções como vem sobretudo da classe média em geral, seguindo o que acontece usualmente no fenómeno político conhecido por “bonapartismo”. Este constitui uma tendência, principalmente em sociedade onde não se fez a revolução industrial e onde ainda predomina um sector social de pequena propriedade, quando se verifica um período prolongado de crise económica e os partidos do poder se encontram em forte declínio de credibilidade. Nestas condições é fácil que surja um “Salvador” da Pátria, um Messias que se irá impor pela figura em si ou pelo que possa representar no imaginário dos pequenos burgueses assustados e não pelo programa político apresentado, que muitas das vezes nem existe e quando levado à prática é bem pior daquele que se encontra em vigor e imposto pelo partido de turno no governo. O objectivo último será sempre o de salvar, não o povo, mas as elites e seu sistema de exploração.

Candidatos a Bonaparte sempre houve em Portugal, desde o D. Sebastião, que haveria de vir numa manhã de nevoeiro para salvar o Império, ao Sidónio, o presidente rei, que teve vida curta e preanunciou o regime fascista instituído pelo golpe de estado de 1926, aos actuais candidatos, e vários nomes se poderão apontar: Cavaco, Marcelo, Costa, ou o almirante das vacinas que tem sido ultimamente apontado como sucessor de Marcelo, talvez um Américo Tomas mais moderno e proactivo. No entanto, e por agora, vai-se assistindo à coexistência pacífica, pelo menos à superfície, de dois venenosos, entre o primeiro-ministro Costa e o Presidente da República Marcelo, na justa medida em que a economia vai-se aguentando menos mal e povo mantem-se pacífico. E tudo é utilizado para manter a paz social e a estabilidade, desde o apoio de patriotismo balofo à selecção nacional de futebol, no campeonato do mundo, até ao folclore inócuo das manifestações e algumas greves, feitas a prestações pelos sindicatos das duas centrais sindicais do regime. Não parece haver nenhum repúdio, que a existir deveria ser veemente e generalizado, pelo comportamento displicente e perdulário dos dinheiros públicos de Marcelo nas suas constantes deslocações ao estrangeiro e da substituição da frota automóvel que o estado lhe colocou ao serviço e que irá ficar em mais 500 mil euros, a transição energética já está a ficar cara com a descarbonização do PR, substituindo automóveis a gasóleo por eléctricos.

Depois de ir à bola à custa do Zé, depois de ir dar um mergulho no mar em Cabo Verde, porque é tradição em dia de aniversário; agora, projecta ir à tomada de posse de Lula e, aproveitando a deixa, passará o Fim de Ano no Brasil. Para perguntar, será em casa de Ricardo Salgado? Em princípio não precisará, as despesas estão antecipadamente pagas. Se Costa foi à Ucrânia cumprimentar o colega da vassalagem ao Tio Sam, porque carga de água não irá Marcelo fazer o mesmo? Assim, Marcelo já anunciou a sua peregrinação a Kiev “certamente no próximo ano”, a questão é saber se a Ucrânia ainda existirá e se existir como estará nessa altura. O anúncio terá sido feito na sua visita à tropa mercenária portuguesa que se encontra destacada na Roménia por obrigação perante a Otan/Nato. Quanto a subserviência ao imperialismo americano e à sua sucursal europeia (UE) Marcelo faz questão de ombrear com Costa, que na entrevista não se esqueceu de dizer que a paz só será possível com a ”derrota da Rússia”. Marcelo está bem para o Costa e vice-versa. As próprias sondagens mostram esta equivalência, Costa não afunda na popularidade e apoio do eleitorado sondado e nem Marcelo fica com imagem negativa apesar de toda a sua inclinação turística; aliás, a imprensa amiga continua, a contento dos fãs, a dar uma imagem simpática, mas invertida, do seu papel: “Marcelo nem fala demasiado nem fiscaliza o suficiente” (Sondagem Expresso/SIC); afinal, o Balsemão é um amigalhaço e o “papagaio-mor” ainda continua a ser “o político mais popular do país”… e nem fala demasiado!

Quanto ao aparecimento do bonapartismo em França, Marx (O 18 Brumário de Luís Bonaparte) caracterizava o novo regime como o governo da gatunagem e da corrupção e, recordando a Regência ou Luís XV, “… a França já conheceu um número bastante considerável de favoritas, mas nunca um governo de chulos.” Em Portugal a gatunagem, a corrupção e os chulos já são endémicos e sem Bonaparte, mas a partir de agora, com a profunda e arrastada crise do capitalismo e a guerra inter-imperialista à porta, a situação irá exponenciar-se. Não é coincidência que todos os partidos com assento na Assembleia da República se encontram de acordo quanto a uma nova revisão da Constituição da República, será a oitava se não estamos em erro, poderão quanto muito discordar em alguma questão de pormenor, mas no essencial estão de acordo: há que dar mais poder ao órgão executivo, esvaziando ainda mais o Parlamento do seu poder – os deputados irão assinar a sua certidão de óbito. É a musculação do regime com o argumento de agilização da acção governativa em situações de excepção, como pandemias, catástrofes naturais repentinas, as putativas “alterações climáticas” vêm a calhar, etc., tudo a bem da saúde de todos ou do país em geral.

No entanto, seja qual for o Bonaparte, e o quadro político em que venha a surgir, nunca deixará de ser, como também referiu Marx, “Le roi des drôles”.

Imagem: Montagem da capa da "Visão" na net.

Liberdade e insegurança

 

Giorgio Agamben

John Barclay, no seu romance profético Argenis (1621), definiu nestes termos o paradigma de segurança que os governos europeus viriam a adotar progressivamente: «Ou dá aos homens a sua liberdade ou dá-lhes segurança, pela qual abandonarão a liberdade». Em outras palavras, liberdade e segurança são dois paradigmas antitéticos de governo, entre os quais o Estado deve sempre fazer sua escolha. Se quiser prometer segurança a seus súditos, o soberano terá que sacrificar a liberdade deles e, inversamente, se quiser liberdade, terá que sacrificar a segurança deles. Michel Foucault mostrou, no entanto, como a segurança deve ser entendida (la sureté publique) que os governos fisiocratas, a começar por Quesnay, foram os primeiros a assumir explicitamente entre suas tarefas na França do século XVIII. Não se tratava - então como agora - de prevenir as catástrofes, que na Europa daqueles anos eram essencialmente fomes, mas de deixá-las ocorrer para então poder intervir imediatamente para governá-las na direção mais útil. Governar recupera aqui o seu significado etimológico, ou seja, «cibernético»: um bom piloto (kibernes) não pode evitar as tempestades, mas, quando estas ocorrem, deve em todo o caso saber conduzir o seu navio de acordo com os seus interesses. Nesta perspetiva, era essencial espalhar um sentimento de segurança entre os cidadãos, através da crença de que o governo zelava pela sua tranquilidade e pelo seu futuro.

O que assistimos hoje é um desenvolvimento extremo desse paradigma e, ao mesmo tempo, sua derrubada pontual. A principal tarefa dos governos parece ter sido a difusão generalizada entre os cidadãos de um sentimento de insegurança e até de pânico, que coincide com uma extrema compressão de suas liberdades, que encontra sua justificativa justamente nessa insegurança. Os paradigmas antitéticos hoje não são mais liberdade e segurança; em vez disso, nos termos de Barclay, deve-se dizer hoje: 'dê insegurança aos homens e eles abrirão mão da liberdade'. Assim, já não é necessário que os governos se mostrem capazes de gerir os problemas e as catástrofes: a insegurança e a emergência, que constituem agora o único fundamento da sua legitimidade, não podem em caso algum ser eliminadas, mas – como vemos hoje com a substituição da guerra entre a Rússia e a Ucrânia pela guerra contra o vírus – apenas articulada segundo métodos convergentes, mas cada vez diferentes. Um governo desse tipo é essencialmente anárquico, no sentido de que não tem nenhum princípio a respeitar, exceto a emergência que ele mesmo produz e mantém.

É provável, porém, que a dialética cibernética entre a anarquia e a emergência chegue a um limiar, além do qual nenhum piloto conseguirá pilotar o navio e os homens, no já inevitável naufrágio, terão de voltar a questionar as liberdades de que gozam. tão imprudentemente sacrificado.

8 de Dezembro de 2022

Imagem:  Menez (Maria Inês da Silva Carmona Ribeiro da Fonseca, 1926-1995): Sem título, 1994. “Uma cena do Apocalipse, uma espécie de luta entre o Bem e o Mal, entre a Luz e as Trevas”, segundo Teresa de Vasconcelos. Em setemargens

Fonte: quodlibet

sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Trabalho Assalariado e Capital

 

Chartist’s Riots de Alfred Pearse: Revolta cartista em Londres, um dos primeiros levantamentos da classe operária na década de 30 do século XIX

Karl Marx, 1891

Quando o capital cresce, a massa do trabalho assalariado engrossa, o número de operários assalariados aumenta, numa palavra: a dominação do capital estende-se a uma massa maior de indivíduos. Vamos supor o caso mais favorável: quando o capital produtivo cresce, a procura de trabalho aumenta. Sobe, portanto, o preço do trabalho, o salário.

Pode uma casa ser grande ou pequena, enquanto as casas que a rodeiam forem também pequenas, ela satisfaz todas as exigências sociais de uma casa. Mas, se ao lado da casa pequena se erguer um palácio, a casa pequena passa à categoria de cabana. A casa pequena é, então, a prova de que o seu proprietário não pode ser exigente ou que só pode ter exigências muito modestas. E por muito que ela cresça, no decurso da civilização, se o palácio vizinho crescer na mesma proporção ou ainda mais depressa, o habitante da casa relativamente pequena sentir-se-á cada vez menos à vontade, mais descontente, mais acanhado entre as suas quatro paredes.

Um aumento sensível do salário pressupõe um crescimento rápido do capital produtivo. O crescimento rápido do capital produtivo provoca um crescimento igualmente rápido da riqueza, do luxo, das necessidades e das fruições sociais. Por conseguinte, mesmo que as fruições do operário tenham aumentado, a satisfação social que proporcionam terá diminuído, em comparação com as maiores fruições do capitalista que são inacessíveis ao operário, em comparação com o estádio de desenvolvimento da sociedade em geral. As nossas necessidades e as nossas fruições têm a sua origem na sociedade; em consequência, nós medimo-las pela sociedade e não pelos objectos da nossa satisfação. Sendo de natureza social, são de natureza relativa.

Portanto, o salário, ao fim e ao cabo, não é determinado apenas pela quantidade de mercadorias que se podem obter em troca. Implica diversas relações.

O que os operários recebem, antes de mais, pela sua força de trabalho, é uma determinada quantia em dinheiro. Acaso é o salário determinado apenas por este preço em dinheiro?

No século XVI, o ouro e a prata em circulação na Europa aumentaram em consequência da descoberta na América de minas mais ricas e mais fáceis de explorar. Por esta razão, o valor do ouro e da prata baixou em relação às outras mercadorias. Os operários continuaram a receber o mesmo montante de prata cunhada pela sua força de trabalho. O preço em dinheiro do seu trabalho ficou na mesma e, no entanto, o seu salário tinha baixado, pois em troca da mesma quantidade de dinheiro recebiam uma quantidade menor de outras mercadorias. Esta foi uma das circunstâncias que favoreceram o crescimento do capital, o desenvolvimento da burguesia no século XVI.

Consideremos outro caso. No Inverno de 1847, os produtos alimentares mais indispensáveis, o trigo, a carne, a manteiga, o queijo, etc., em virtude de uma colheita fraca tinham aumentado consideravelmente de preço. Suponhamos que os operários tenham continuado a receber pela sua força de trabalho a mesma quantia em dinheiro. Não teria o seu salário baixado? Claro que sim. Pela mesma quantidade de dinheiro, eles recebiam em troca menos pão, menos carne, etc. O salário tinha decido não porque tivesse diminuído o valor do dinheiro, mas porque tinha aumentado o valor dos meios de subsistência.

Suponhamos, finalmente, que o preço em dinheiro do trabalho se mantenha o mesmo enquanto todos os produtos agrícolas e manufacturados baixaram de preço, pelo emprego de novas máquinas, por uma colheita mais favorável, etc. Pela mesma quantidade de dinheiro, os operários podem passar a comprar mais mercadorias de todo o género. O seu salário, portanto, terá subido precisamente não se ter alterado o seu valor em dinheiro.

Como vemos, o preço em dinheiro do trabalho, o salário nominal, não coincide com o salário real, quer dizer, com a quantidade de mercadorias que realmente se obtêm a troco do salário. Por conseguinte, quando falamos de altas ou de baixas do salário, não devemos considerar somente o preço em dinheiro do trabalho, o salário nominal.

Mas as relações contidas no salário não se esgotam com o salário nominal - a quantia de dinheiro pela qual o operário se vende ao capitalista – e o salário real – a quantidade de mercadorias que pode realmente comprar com esse dinheiro.

O salário é ainda determinado, em primeiro lugar, pela sua relação com o ganho, com o lucro do capitalista; o salário é relativo, proporcional.

O salário real exprime o preço do trabalho relativamente ao preço de outras mercadorias; o salário relativo, em contrapartida exprime a parte do trabalho imediato no novo valor que criou em relação à parte que cabe ao trabalho ao trabalho acumulado, ao capital.

Dizíamos mais acima, na página 20: «O salário não é a parte do operário na mercadoria que este produz. O salário é a parte das mercadorias já existentes com a qual o capitalista compra uma determinada quantidade de força de trabalho produtiva». Mas o capitalista tem que recuperar novamente este salário no preço por que vende o produto fabricado pelo operário; precisa de o recuperar, de modo a que, regra geral, ainda sobre para ele um excedente sobre o custo de produção dispendido, um lucro. O preço de venda da mercadoria produzida pelo operário divide-se, para o capitalista, e três partes: primeira , a reposição do preço das ma matérias-primas adiantadas bem como a reposição do desgaste dos instrumentos, máquinas e outros meios de trabalho também adiantados por ele; segunda , a reposição do salário que adiantou; terceira, a parte que resta, o lucro do capitalista. Enquanto a primeira parte apenas repõe valores já existentes anteriormente , é evidente que tanto a repôs ição do salário como o excedente que forma o lucro do capitalista provêm, ao fim e ao cabo, do novo valor criado pelo trabalho do operário e acrescentado às matérias-primas. E só neste sentido podemos considerar quer o salário quer o lucro, quando os comparamos em conjunto, como participações do operário no produto.

Pode acontecer que o salário real continue a ser o mesmo e, inclusivamente, que aumente, sem que por isso o salário relativo deixe de diminuir. Suponhamos, por exemplo, que o preço de todos os meios de subsistência tenha baixado 2/3 e o salário diário apenas 1/3, ou seja, por exemplo, de 3 marcos para 2. Embora o operário disponha, com os seus 2 marcos, de uma maior quantidade de mercadorias que anteriormente com 3 marcos, o seu salário, entretanto, terá diminuído em relação ao ganho do capitalista. O lucro do capitalista (do fabricante, por exemplo) aumentou 1 marco, o que significa que o operário, por uma quantidade menor de valores de troca que lhe paga o capitalista, precisa de produzir uma quantidade de valores de troca superior à precedente. A parte do capital aumentou em relação à parte do trabalho. A repartição da riqueza social entre o capital e o trabalho tornou-se ainda mais desigual. Com o mesmo capital, o capitalista é senhor de uma maior quantidade de trabalho. O poder da classe capitalista sobre a classe operária aumentou, a situação social do operário piorou, desceu mais um grau abaixo da do capitalista.

Qual é então a lei geral que determina a alta e a baixa do salário e do lucro nas suas relações recíprocas?

Estão na razão inversa. A parte do capital, o lucro, sobe na mesma proporção em que baixa a parte do trabalho, o salário diário, e reciprocamente. O lucro sobe na medida em que o salário baixa, e baixa na medida em que o salário sobe.

Objectar-se-á talvez que o capitalista pode realizar lucros graças a uma troca vantajosa dos seus produtos com outros capitalistas, quando aumenta a procura da sua mercadoria, seja em consequência da abertura de novos mercados, seja devido ao aumento momentâneo das necessidades nos antigos mercados, etc.; que, portanto, o lucro do capitalista pode crescer à custa de outros capitalistas, independentemente da alta ou da baixa do salário, do valor de troca da força de trabalho; ou que o lucro pode crescer igualmente graças ao aperfeiçoamento dos instrumentos de trabalho, graças a uma nova utilização das forças naturais, etc.

Em primeiro lugar, deverá reconhecer-se que o resultado é o mesmo, ainda que se chegue lá por um caminho inverso. É certo que o lucro não terá aumentado porque o salário tenha diminuído, mas o salário terá diminuído por o lucro ter aumentado. Com a mesma quantidade de trabalho alheio, o capitalista terá comprado uma maior quantidade de valores de troca sem, com isso, pagar mais caro o trabalho; quer dizer, o trabalho terá sido pior remunerado em relação ao lucro líquido que dá ao capitalista.

Lembremos, além disso, que, a despeito das oscilações dos preços das mercadorias, o preço médio de cada mercadoria, a relação pela qual se troca por outras mercadorias, é determinado pelo seu custo de produção . As aldrabices mútuas no seio da classe capitalista compensam-se, portanto, necessariamente. O aperfeiçoamento das máquinas, o uso de novas forças naturais ao serviço da produção permitem, num dado tempo de trabalho, com a mesma quantidade de trabalho e de capital, criar uma maior massa de produtos, mas de modo algum uma maior massa de valores de troca. Se, graças à utilização da máquina de fiar, eu posso fabricar numa hora duas vezes mais fio que antes da sua invenção, por exemplo, cem libras em vez de cinquenta, acabo por não receber em troca mais mercadorias que as que anteriormente recebia por cinquenta, por o custo de produção se reduzir a metade ou por, com o mesmo custo, poder fabricar o dobro do produto.

Finalmente, qualquer que seja a proporção em que a classe capitalista, a burguesia (seja de um país, seja de todo o mercado mundial), reparta entre os seus membros o lucro líquido da produção, o montante total desse lucro líquido representa sempre, de forma geral, o montante que o trabalho vivo acrescentou ao trabalho acumulado. Esta soma total cresce, portanto, na medida em que o trabalho aumenta o capital, quer dizer, na medida em que o lucro cresce em relação ao salário.

Estamos portanto a ver que, mesmo se nos limitarmos às relações entre o capital e o trabalho assalariado, os interesses do capital e os interesses do trabalho assalariado são diametralmente opostos.

Um crescimento rápido do capital equivale a um crescimento rápido do lucro. O lucro só pode crescer rapidamente se o preço do trabalho, o salário relativo diminuir com a mesma rapidez. O salário relativo pode baixar mesmo que o salário real suba simultaneamente com o salário nominal, com o valor em dinheiro do trabalho, desde que estes não subam na mesma proporção que o lucro. Se, por exemplo, numa época de bons negócios, o salário aumenta 5% e o lucro, por seu lado, 30%, o salário proporcional, o salário relativo, em vez de aumentar, diminuiu .

Portanto, se o rendimento do operário aumenta com o crescimento rápido do capital, o abismo social que separa o operário do capitalista aprofunda-se ao mesmo tempo e aumenta, a par disso, o poder do capital sobre o trabalho, o estado de dependência do trabalho face ao capital.

Dizer que o operário está interessado num crescimento rápido do capital significa simplesmente que, quanto mais rapidamente o operário aumenta a riqueza alheia, mais substanciais são as migalhas que recolhe do banquete; quanto mais operários puderem encontrar emprego e reproduzir-se, mais se pode multiplicar a massa dos escravos na dependência do capital.

Portanto, nós verificámos:

Que mesmo a situação mais favorável para classe operária, o crescimento mais rápido possível do capital , ainda que traga alguma melhoria à vida material do operário, não suprime o antagonismo entre os seus interesses e os interesses do burguês, do capitalista. Lucro e salário continuarão, exactamente como antes, a estar na razão inversa um do outro .

Quando o capital cresce rapidamente, o salário pode aumentar, mas incomparavelmente mais depressa aumenta o lucro do capital. A situação material do operário melhorou, mas à custa da sua situação social que o separa do capitalista.

Finalmente:

Dizer que a condição mais favorável para o trabalho assalariado é um crescimento tão rápido quanto possível do capital significa somente o seguinte: quanto mais a classe operária aumentar e acrescentar o poder que lhe é hostil, a riqueza alheia que o domina, tanto mais favoráveis são as circunstâncias em que lhe será permitido trabalhar de novo no aumento da riqueza burguesa, no reforço do poder do capital, contente por forjar ela própria as cadeias douradas com que a burguesia a leva a reboque.

(Capítulo IV de “Trabalho Assalariado e Capital” de Karl Marx, 1891) 

quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

A verdade e o nome de Deus

Giorgio Agamben

Os filósofos falam da morte de Deus há quase um século e, como muitas vezes acontece, esta verdade parece hoje tácita e quase inconscientemente aceite pelo homem comum, sem contudo medir e compreender as consequências. Uma delas - e certamente não a menos relevante - é que Deus - ou melhor, seu nome - foi a primeira e última garantia da ligação entre a linguagem e o mundo, entre as palavras e as coisas. Daí a importância decisiva em nossa cultura do argumento ontológico, que uniu indissoluvelmente Deus e a linguagem, e do juramento feito em nome de Deus, que nos obrigou a responder pela transgressão do vínculo entre nossas palavras e coisas.

Se a morte de Deus só pode significar a perda desse vínculo, isso significa que em nossa sociedade a linguagem tornou-se constitutivamente uma mentira. Sem a garantia do nome de Deus, todo discurso, como o juramento que garantiu sua veracidade, não passa de vaidade e perjúrio. Isso é o que vimos aparecer em plena luz nos últimos anos, quando cada palavra dita pelas instituições e pelos media não passava de vacuidade e impostura.

Hoje chega ao fim uma era de quase 2.000 anos da cultura ocidental, que baseava sua verdade e seu conhecimento no vínculo entre Deus e o logos, entre o sacrossanto nome de Deus e os simples nomes das coisas. E certamente não é por acaso que apenas algoritmos e não palavras ainda parecem manter alguma conexão com o mundo, mas isso apenas na forma de probabilidade e estatística, porque mesmo números podem, em última análise, apenas se referir a um homem falante, eles ainda implicam alguns nomes.

Se perdemos a fé no nome de Deus, se não podemos mais acreditar no Deus do juramento e do argumento ontológico, não se exclui, porém, que seja possível outra figura de verdade, que não seja apenas a figura teologicamente correspondência obrigatória entre a palavra e a coisa. Uma verdade que não se esgota em garantir a eficácia do logos, mas nele salva a infância do homem e conserva o que nele ainda é mudo como o conteúdo mais íntimo e verdadeiro das suas palavras. Ainda podemos acreditar em um Deus infantil, como aquele menino Jesus que, como nos ensinaram, os poderosos quiseram e querem matar a todo custo.

(Tradução livre)

Fonte: quodlibet

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Demagogia e populismos

Duquesas de Mântua e Migueis de Vasconcelos 

O PS e o chefe Costa encontram-se no governo vai para sete anos, mas a vida não lhes está a ser muito fácil apesar de beneficiarem de maioria absoluta. Costa tem-se revelado um hábil executor das directivas de Bruxelas e de satisfazer, ainda, os desejos da nossa classe dominante no que concerne do acesso ao pote do orçamento de estado. No entanto, o governo de maioria absoluta parece estar a ficar como governo de dificuldade absoluta.

Costa, que governou praticamente por decreto no tempo da pandemia, à semelhança do seu antecessor João Franco, o que terá contribuído para o colapso da monarquia (é sempre bom relembrar), armou-se de novo em manhoso e invocou uma constipação (terá sido covid-19?) para não ir assistir ao jogo da selecção portuguesa de futebol com a sul-coreana no paraíso da democracia, que é o Qatar (1). A polémica que envolveu o PR Marcelo, quanto à defesa dos direitos humanos e do intervalo amnésico dos ditos por ele defendido durante o campeonato mundial da bola para poder ir apoiar a selecção e em tom patriótico, colocou o PM de sobreaviso.

A disputa pelo pote

Marcelo e Costa, ou Costa e Marcelo, como Dupond & Dupont, ou vice-versa e ao contrário, ainda não arranjaram uns momentos, nas suas preenchidíssimas agendas, para visitar os trabalhadores imigrantes que são desumanamente explorados, abaixo de escravos, no sudoeste alentejano ou em outros pontos do país, já que esta realidade infelizmente não se circunscreve àquele pedaço do território nacional. Seria uma boa maneira de praticarem o exercício político, que é a defesa dos direitos humanos, começando pela casa, e resolverem o problema de forma prática e rápida, como se impõe. Mas, como se alevantam outros interesses da nossa burguesia esclavagista, a lei continua a não penalizar quem emprega trabalhadores escravos. Aqui os deputados da nação também possuem elevada quota de responsabilidade porque são eles que fazem as leis.

A outra justificação para Costa não ir amanhã ao Qatar prender-se-á com “a tomada de posse dos novos secretários de Estado” no mesmo dia. Não se pode deixar de referir que em oito meses de vida, este governo PS/Costa já soma sete demissões, o que poderá revelar que no seu seio a unanimidade será coisa que não é lá muito bem-vinda. E a questão prender-se-á, atendendo à área de onde os últimos secretários de estado foram demitidos, a da economia, a questões de dinheiro. Os acontecimentos dão a entender que a disputa pelo pote se tem incendiado nos últimos tempos.

Por exemplo, é necessário, entre outas coisas, um novo aeroporto, cuja localização é questionada, quer pelos interesses de Lisboa, quer pelos do Porto. Os primeiros querem-no ao norte do rio Tejo e os segundos desejam-no o mais afastado possível do de Pedras Rubras para não fazer concorrência. É que são muitos milhares de milhões de euros em jogo. A pressa do ministro das Infra-estruturas não foi uma gafe, terá sido quanto muito uma precipitação que não contou com os diferentes interesses em jogo, o que levou à intervenção rápida e conciliadora de Costa.

Quanto ao OE-2023, o colectivo dos oligarcas nacionais, agora dirigido por um ex-militante do PS na Lisnave e “afilhado” do antigo dono, já veio dizer pela boca do dito que o orçamento “ficou aquém da ambição que a CIP colocou nas suas propostas”. E, em relação aos dinheiros do PRR, a incontornável e respeitosa organização já deu o mote de que o PRR deve chegar à "economia real", tendo simultaneamente elogiado o demitido secretário de Estado João Neves, o que quer dizer em politiquês: já vais tarde e não voltes. Relembrar que este, tal como Rita Marques, secretária de estado do Turismo, também demitida, discordou da diminuição transversal do IRC – uma clara vitória para a nossa rentista oligarquia.

Mais importante que os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, é a conta bancária desta gente, dos autocratas do petróleo… e dos nossos políticos do poder e dos seus amos e parceiros oligarcas. Para esconder a pérfida realidade haverá que encher a boca com as palavras sedutoras e simpáticas dos direitos humanos, do patriotismo e de outras banalidades politicamente correctas. Facilmente entram na demagogia e no populismo, este no sentido perigoso de se abrir a porta a formas autoritárias de governação, embora antes e depois se critique os tais populismos que a existirem, só existem nos outros ou nos considerados inimigos.

Como politicamente correcto, agora é de bom tom vir apelar para a celebração da "força da bandeira nacional” e agradecer aos ciganos que "deram a vida pela independência", no caso do inefável PR monárquico, ou homenagear a "memória dos que lutaram e contribuíram" para a restauração da independência de Portugal, na verve do PM Costa, que não se cansa, a par com o parceiro, de prosternar-se aos pés de Bruxelas. E quanto aos direitos humanos, em particular os dos cidadãos da etnia cigana, ficamos suficientemente elucidados quando assistimos ao seu isolamento em verdadeiros campos de concentração, de onde não podiam sair nem comunicar, durante os confinamentos e estados de emergência (dita) sanitária aquando da pandemia.

Com a crise económica as democracias liberais conduzem sempre aos fascismos

A esta gente parece que não há espelhos para mirar a sua verdadeira natureza e pensam que o povo português é estúpido, talvez um dia tenham alguma surpresa desagradável. É cada vez mais notório, e não somos nós que o dizemos, que este governo e apesar da maioria absoluta “não teve estado de graça e está em erosão" (André Freire). A razão do lento e gradual descalabro do governo não se prende exactamente pelo “descontentamento com a governação” resultante dos “sucessivos casos que (o) têm abalado” ou, até, com a “má gestão da crise económica” em si, conforme a opinião daquele cientista político, mas pela degradação da situação económica do povo que trabalha e que resulta das contradições da economia capitalista, que lhe estão no cerne. Porque a “gestão socialista” da crise tem sido aquela que mais interessa à nossa burguesia e aos interesses do grande capital financeiro europeu representado por Bruxelas; e, quanto a isso, não há alternativa – o povo tem que aguentar.

O agravamento da crise económica tem levado ao endurecimento de regimes tidos como “democráticos”, é à musculação das democracias liberais, a uma espécie de transição pacífica da democracia para o autoritarismo que temos estado a assistir nos últimos tempos, e principalmente nos países da União Europeia, isto é, na velha e civilizada Europa. Relembrar que as duas guerras mundiais com a sua enorme devastação de bens e pessoas começaram aqui na Europa e aqui tiveram o seu epicentro e o seu fim. Tem sido na judaico-cristã Europa que mais guerras e conflitos se têm sucedido, desde a Guerra dos Cem Anos até à recente Guerra dos Balcãs e a presente Guerra da Ucrânia, passando pela Guerra Napoleónica e Guerra Franco-Prussiana. Uma velha e pérfida Europa que agora se está a ser transformada no 51º Estado da União, sem soberania política e em breve sem soberania económica ou outra.

Será no quadro atrás referido que temos de compreender o facto, e que foi notícia há poucos dias, de “mais de um terço das democracias em todo o mundo estão em declínio e Portugal não é exceção”. No nosso caso, não é somente a “falta de mais participação cívica, imparcialidade da administração pública e menos corrupção”, será mais na forma de governar deste governo, atente-se ao que aconteceu durante a pandemia, e à tentativa, já em curso e com o apoio ou colaboração de todos os partidos com assento no Parlamento, de se rever a Constituição da República. A preparação da opinião pública doméstica também já se iniciou com a operação de desculpabilização das “três altas figuras do estado” que entenderam, a pretexto da defesa dos “interesses da nação”, ir fazer turismo para o Qatar e à custa do orçamento público – Marcelo, é mais o tempo que está fora do que no país. Assim como a falta de democracia por esse mundo fora, em particular o considerado ocidental: “Não é só o Catar: quase todos os países do Mundial têm derrotas no campeonato dos direitos humanos” (“Expresso”, o principal jornal do regime e propriedade do sócio nº1 do PSD). Ficamos entendidos.

Os sinais de apodrecimento do regime saído do golpe de estado de 25 de Abril são mais que evidentes, como por diversas já afirmamos, o que não quer dizer que o seu colapso esteja para breve, só não sabemos quando; contudo, será certo e feito com dor para os que trabalham neste país. E a sobrevivência do governo PS/Costa, como de igual modo alertamos, dependerá do agravamento da situação económica não só do país mas do povo que trabalha, ou seja, do mundo do trabalho. É que neste país há duas economias, a dos ricos e das grandes empresas, medida pelo anódino PIB, e a economia dos que trabalham, por sua vez, medida pela taxa de inflação, pelo montante de impostos que lhe são cobrados, pelas carências no campo da educação, da saúde, da habitação e do apoio social. Por exemplo, a notícia de “Portugal pode ter falhas no abastecimento de comida devido à seca e é dos piores em pobreza energética” (“DN”) significa que a fome virá com certeza, mas só para os pobres e trabalhadores e, isso sim, devido à crise do capitalismo. E é este que terá de ser erradicado, causa também da pandemia e da seca.

Entretanto, os nossos Duquesa de Mântua e Miguel de Vasconcelos continuam nos seus papeis. 

(1) No dia seguinte a este escrito, Costa anuncia a ida ao jogo dos oitavos de final da selecção, o impulso sobrepôs-se à razão - distúrbio de personalidade?

quarta-feira, 30 de novembro de 2022

O lícito, o obrigatório e o proibido

 

Giorgio Agamben

Segundo juristas árabes, as ações humanas são classificadas em cinco categorias, que eles listam da seguinte forma: obrigatórias, recomendáveis, lícitas, repreensíveis, proibidas. O proibido opõe-se ao obrigatório, ao que merece louvor ao que deve ser reprovado. Mas a categoria mais importante é aquela que está no centro e que constitui, por assim dizer, o eixo da balança que pesa as ações humanas e mede sua responsabilidade (a responsabilidade se chama “peso” na linguagem jurídica árabe). Se o que é louvável, cuja prática é recompensada e cuja omissão não é proibida, e o que é condenável, cuja omissão é recompensada e cuja prática não é proibida, o lícito é aquilo sobre o qual a lei não pode deixar de permanecer em silêncio e, portanto, não é nem obrigatório nem proibido, nem louvável nem condenável. Corresponde ao estado paradisíaco, em que as ações humanas não produzem nenhuma responsabilidade, não são de forma alguma “pesadas” pela lei.
Na sociedade em que vivemos, está acontecendo exatamente o contrário. A zona do lícito diminui a cada dia e uma hipertrofia normativa sem precedentes tende a não deixar nenhuma área da vida humana fora da obrigação e da proibição. Gestos e hábitos que sempre foram considerados indiferentes à lei são agora meticulosamente regulamentados e pontualmente sancionados, a ponto de quase não haver esfera do comportamento humano que possa ser considerada simplesmente lícita. Razões de segurança inicialmente não identificadas e depois, cada vez mais, razões de saúde tornaram obrigatória a autorização para a prática dos atos mais habituais e inocentes, como andar na rua, entrar em locais públicos ou deslocar-se ao local de trabalho.

Uma sociedade que restringe a tal ponto o âmbito paradisíaco de condutas não ponderadas pela lei não é apenas, como acreditavam os juristas árabes, uma sociedade injusta, mas é verdadeiramente uma sociedade inviável, na qual toda ação deve ser burocraticamente autorizada e juridicamente sancionada e a facilidade e a liberdade dos costumes, a doçura das relações e das formas de vida vão-se reduzindo até desaparecerem. Além disso, a quantidade de leis, decretos e regulamentos é tal que não só torna-se necessário recorrer a especialistas para saber se determinada ação é lícita ou proibida, como também os responsáveis ​​pela aplicação das regras se confundem e se contradizem entre si.

Em tal sociedade, a arte da vida só pode consistir em reduzir ao mínimo a parte do obrigatório e do proibido e, inversamente, em alargar tanto quanto possível o âmbito do lícito, o único em que senão a felicidade, pelo menos uma alegria se torna possível. Mas é justamente isso que os infelizes que nos governam fazem de tudo para impedir e dificultar, multiplicando as regras e regulamentos, controles e fiscalizações. Até que a máquina sombria que eles construíram desmorona sobre si mesma, emperrada pelas mesmas regras e pelos mesmos dispositivos que deveriam permitir seu funcionamento.

28 de novembro de 2022

quodlibet

terça-feira, 22 de novembro de 2022

Anti-Dühring - Economia Política: Teoria da Violência (conclusão)

 

Friederich Engels

Paralelamente a este processo de formação de classes, ainda um outro se desenvolvia. O regime elementar de divisão do trabalho, implantado no seio da família lavradora, permitiu, ao ser atingido, um certo grau de bem-estar, a incorporação à família de uma ou várias forças de trabalho alheias à ela. Isso se deu, sobretudo, naqueles países em que o regime primitivo de propriedade do solo já se tinha desagregado, ou, pelo menos, tinha cedido lugar o sistema de exploração em comum ao cultivo individual das lotes de terra, pelas famílias isoladamente. A produção tinha-se desenvolvido em tais proporções que, então, a força humana de trabalho já era capaz de criar mais do que o necessário para o seu mero sustento. Contava-se com os meios indispensáveis para a manutenção de novas forças de trabalho, assim como com os meios necessários para dar-lhes ocupação. A força de trabalho adquiriu um valor. Mas nem a coletividade, por si mesma, nem o agrupamento de coletividades de que ela fazia parte podiam fornecer forças de trabalho disponíveis, excedentes. Fornecia-as a guerra, que já se efetuava a partir, pelo menos, dos tempos em que começaram a coexistir, lado a lado, distintos grupos sociais. Até essa época, não se tinha sabido, ainda, como empregar os prisioneiros de guerra, razão pela qual eram eles liquidados em vez de se os alimentar, como era costume em épocas anteriores. Ao chegar, porém, a esta etapa da evolução económica, os prisioneiros de guerra começaram a representar um valor. Por isso, deixaram-nos viver, a fim de aproveitarem-se de seu trabalho. Como vemos, a violência, longe de se impor sobre a situação económica, foi posta a serviço desta. Haviam sido lançadas as bases da instituição da escravidão. Não tardou esta em converter-se na forma predominante da produção em todos os povos que já haviam ultrapassado as limitações das comunidades primitivas, para terminar por ser uma das causas principais de sua ruína. Foi a escravidão que tornou possível a divisão do trabalho, em larga escala, entre a agricultura e a indústria, e foi graças a ela que pôde florescer o mundo antigo, o helenismo. Sem escravidão, não seria possível conceber-se o Estado grego, nem a arte e a ciência da Grécia. Sem escravidão não teria existido o Império Romano. E sem as bases do helenismo e do Império Romano não se teria chegado a formar a moderna Europa, Não nos deveríamos esquecer nunca que todo o nosso desenvolvimento económico, político e intelectual, nasceu de um estado de coisas em que a escravidão era uma instituição não somente necessária. mas também sancionada e reconhecida de um modo geral, Podemos, neste sentido, afirmar, legitimamente, que, sem a escravidão antiga, não existiria o socialismo moderno.

     Não há nada mais para fazer-se que lançar umas quantas frases melodramáticas contra a escravidão e contra tudo o que se lhe assemelha, derramando uma torrente de indignação moral contra semelhante ignomínia. Desgraçadamente, nada se consegue com isso, a não ser proclamar o que já todo o mundo sabe: que essas instituições dos tempos antigos já não se ajustam' à nossa época, nem aos sentimentos que essa época forma em cada um de nós. Por tal caminho, não conseguiríamos provar nem uma palavra sobre o modo por que nasceram essas instituições, nem como elas se mantiveram e o papel que desempenharam na História. Neste terreno, por mais paradoxal e mais herético que possa parecer, não temos outro remédio senão dizer que a implantação da escravidão representou, nas circunstâncias em que ocorreu, um grande progresso. É indiscutível que a humanidade saiu de um estado de animalidade e que necessitou utilizar, portanto, de meios bárbaros e quase bestiais para erguer-se desse estado de barbárie. As antigas comunidades, onde subsistem essas instituições, formam, desde milhares de anos, da Índia à Rússia, a base da mais tosca forma de Estado: o despotismo oriental. Somente onde essas comunidades primitivas se dissolveram, conseguiram os povos continuar progredindo por impulso próprio, e seu progresso econômico imediato consistiu precisamente em intensificar e desenvolver a produção por meio do trabalho dos escravos. Enquanto o trabalho humano era muito pouco produtivo, é claro que apenas fornecia um pequeno excedente, depois de satisfeitas as necessidades mais prementes da vida, não se podendo tratar da intensificação das forças produtivas, da ampliação do mercado, do aperfeiçoamento do Estado e do Direito, da fundação de nenhuma arte e de nenhuma ciência, a não ser pela mais reforçada divisão do trabalho, em cuja base estava, forçosamente, a grande divisão do trabalho entre as massas dedicadas ao simples trabalho manual e uns poucos privilegiados, ao cargo dos quais estava a direção dos trabalhos, o comércio, o trato dos negócios públicos e, mais tarde, o cultivo das artes e ciências. Pois bem; a forma mais simples e mais elementar de instituir essa divisão do trabalho foi a escravidão. Dentro das condições históricas do mundo antigo e, em especial, do mundo grego, o progresso que existia na instauração de uma sociedade baseada em antagonismos de classe, somente podia levar-se a cabo sob a escravidão. E representava esta instituição um progresso até para os próprios escravos: permitia, pelo menos, aos prisioneiros de guerra, entre os quais eram recrutados em seu maior número os escravos, que conservassem as vidas já que, até então, eram todos exterminados, no começo, por meio da fogueira, e, depois, por meio do cutelo.

     Já que a ocasião é propícia, queremos acrescentar que, até hoje, todas as diferenças históricas entre classes exploradoras e exploradas, dominantes e dominadas, tiveram a sua raiz nessa tão imperfeita produtividade relativa do trabalho humano. Enquanto a população realmente trabalhadora, absorvida por seu trabalho necessário, não teve nem um momento livre para se dedicar à direção dos interesses comuns da sociedade - direção dos trabalhos, dos negócios públicos, solucionamento dos litígios, arte, ciência, etc., tinha que haver necessariamente uma classe especial que, livre do trabalho efetivo, tratasse desses assuntos. Esta classe acabava sempre, infalivelmente por impor novas e novas sobrecargas de trabalho sobre os ombros das massas produtoras, além de explorá-las em seu proveito próprio. A gigantesca intensificação das forças produtivas, conseguida graças ao advento da grande indústria, é que tornou possível que o trabalho se possa distribuir, sem exceção, entre todos os membros da sociedade, reduzindo dessa forma a jornada de trabalho do indivíduo a tais limites, que deixem a todos um tempo livre suficiente para que cada um intervenha - teórica e praticamente - nos negócios coletivos da sociedade. Hoje somente é que se pode asseverar que toda classe dominante e exploradora é inútil e, mais ainda, prejudicial e entravadora do processo social. Até hoje, no entanto, não tinha chegado o momento em que essas classes deveriam ser suprimidas, como o serão, inelutavelmente, por mais que se defendam por detrás das trincheiras da"força imediata".

     O Sr. Dühring, que cerra as sobrancelhas ao falar dos gregos, por que o seu regime de vida estava baseado na escravidão, poderia também fechar-lhes a cara por não conhecerem a máquina a vapor e o telégrafo sem fios. E, quando afirma que a nossa moderna vassalagem assalariada não é mais que uma herança um pouco modificada da escravidão, sendo uma instituição que não se pode explicar por si mesma (isto é, pelas leis económicas da moderna sociedade). as suas palavras significam que, ou o trabalho assalariado e a escravidão são duas formas de dominação e império de uma classe sobre outra, coisa que qualquer criança já sabe, ou, no caso de não significarem tal coisa, elas são falsas, pois, com a mesma razão, poderíamos dizer que o trabalho assalariado somente pode ser explicado como uma forma mitigada da antropofagia, que era, primitivamente, o fim que se dava aos inimigos vencidos.

     Compreende-se com toda a clareza, do que ficou dito acima, qual o papel desempenhado pela violência, na História, com relação ao desenvolvimento económico. Em primeiro lugar, a força política se baseia, sempre, desde as suas origens, numa função económica, social, e ela se intensifica na medida em que, com a dissolução da primitiva comunidade, os indivíduos se convertem em produtores privados, aprofundando-se mais ainda a sua separação dos que dirigem as funções sociais coletivas. Em segundo lugar, assim que a força política adquire existência própria em relação à sociedade, convertendo-se os seus detentores de servidores em seus donos, pôde essa força passar a atuar em dois sentidos diferentes. As vezes atua no sentido e com a orientação das leis que regem o desenvolvimento económico. Neste caso, não há nenhuma discrepância entre os dois fatores, e a violência não faz mais que acelerar o processo económico. Outras vezes, entretanto, a força política atua em sentido contrário e, nestes casos, acaba sempre por sucumbir, com raras exceções, frente ao vigor da evolução económica. Essas raras exceções se referem a casos isolados de conquista, em que o invasor, menos civilizado, extermina ou persegue a população de um país, devastando ou deixando inutilizarem-se as forças produtivas do país invadido, com as quais nada sabe realizar. Foi o que os cristãos, na conquista da Espanha mourisca, fizeram com a maior parte das obras de irrigação, nas quais se baseava o progressista sistema de agricultura e de horticultura dos árabes. Toda a conquista de um país por parte de um povo inferior entorpece-lhe, indubitavelmente, o desenvolvimento económico e anula numerosas forças produtivas. Na imensa maioria dos casos, porém, casos em que a conquista é duradoura, o conquistador, se for um povo inferior ao conquistado, não tem outro remédio senão submeter-se à "situação económica" deste, que é superior, terminando a conquista com a assimilação do conquistador pelo conquistado, que lhe impõe, inclusive, na maior Parte das vezes, o seu próprio idioma.

     Nas situações em que a força, além dos casos de conquista, é representada pelo poder interior do Estado, e chega a se opor ao desenvolvimento económico do país. como vemos acontecer sempre com o poder político, num determinado grau de evolução, nestes casos, a luta termina sempre com a derrocada do poder político. A evolução económica vence todas as barreiras, sempre, inexoravelmente, sem exceção. Tivemos já oportunidade de citar o último exemplo histórico irrefutável desta lei: a Grande Revolução Francesa. Se a situação económica, e com ela o regime económico de cada país, estivesse na dependência simples da força encarnada no Poder político, como quer a teoria do Sr. Dühring, não se compreenderia por que, depois de 1848, Frederico Guilherme IV da Prússia, não houvesse podido, apesar de seu"maravilhoso exército", mandar fundir nas corporações medievais e noutras, quaisquer quimeras românticas as estradas de ferro, as máquinas a vapor, e toda a grande indústria que começava por aquela época a se desenvolver em seu país. Nem se compreende por que o imperador da Rússia, muito mais poderoso que o rei da Prússia, não seja capaz de pagar as suas dívidas, nem sequer consiga manter a sua "violência", sem se comprometer, correndo constantemente em busca de créditos, junto à"situação econômica" da Europa ocidental.

     Para o Sr. Dühring, a violência é a maldade absoluta. O primeiro ato de força é, em sua Bíblia, o pecado original, reduzindo-se todo o seu arrazoado a um sermão jeremíaco sobre o contágio do pecado original em todos os fatos históricos, e sobre a infame deturpação de todas as leis naturais e sociais por esse poder satânico, que é a força. Sabemos nós que a violência desempenha também, na história, um papel muito diferente, um papel revolucionário; sabemos que ela é, também, para usar uma expressão de Marx, a Parteira de toda a sociedade antiga, que traz em suas entranhas uma outra nova: que é ela um instrumento por meio do qual se faz efetiva a dinâmica social, fazendo saltar aos pedaços as formas políticas fossilizadas e mortas. Mas, a respeito de tal aspecto. nada nos diz o Sr. Dühring. Reconhece unicamente, entre suspiros e gemidos, que, para derrubar o regime de exploração, não há outro remédio senão usar a violência: desgraçadamente, acrescenta, pois o emprego da violência desmoraliza sempre a quem a utiliza. E diz-nos essas palavras, esquecendo-se do elevado impulso moral e espiritual que emana de toda revolução triunfante! E diz-nos tal coisa aqui, na Alemanha. onde um choque violento - que se pode impor em caso necessário, ao povo (quem o duvida?) - teria ao menos a vantagem de varrer da consciência nacional essa espécie de submissão servil que dela se apoderou desde a humilhação da guerra dos Trinta Anos! E será esse pregador desconexo, sem seiva e sem força, quem pretenderá impor sua doutrinas ao partido mais revolucionário que a história conhece?

Publicado: en Vorwärts, 3 de Janeiro 1877 - 7 de Julho 1878. 

sexta-feira, 11 de novembro de 2022

A revisão da Constituição e o cabo de esquadra Costa

A possibilidade de a Lei Fundamental do país ser revista mais uma vez, a oitava, foi levantada pelo partido da extrema-direita que tem assento na Assembleia da República, apesar de ainda não ter os estatutos legalizados, o que dá bem a ideia do tipo de estado de direito e democrático que temos, tendo sido de imediato seguido pelo principal partido da oposição, e finalmente pelo partido governamental que, e ao que aprece, não quer uma mas duas revisões. A imprensa corporativa afirma que “o governo quer mudar a Constituição para facilitar quarentenas e confinamentos”. Mas não só nem principalmente.

As 23 decisões do Tribunal Constitucional, a declararem inconstitucionais todas as medidas que foram adoptadas pelo Governo durante a pandemia, foram um nítido incómodo para o governo e para o Costa, que ainda se autodenomina “socialista”. Ora, chefiando um governo que beneficia de maioria absoluta na dita “casa da democracia”, fácil lhe é entortar o estado de molde a que seja de “direito” para as suas conveniências. E as suas conveniências são os interesses da classe dominante, que já está a assustar-se com o agravamento da crise económica, cujo fim o BCE não antevê para breve, bem pelo contrário, tal como a proliferação de greves e manifestações que estão a ocorrer por essas Europa fora. E, cá dentro, a paz social recém-conquistada pelo governo pode de um momento para o outro estalar rapidamente. É que estas coisas são contagiosas, mais do que a coivd-19.

Costa reagiu de forma intempestuosa, ameaçando com processo em tribunal, à notícia de que o ex-governador do Banco de Portugal Carlos Costa terá afirmado, em livro que só será publicado para a semana, ter sido pressionado pelo primeiro-ministro português para não retirar da direcção do BIC a filha do então presidente de Angola, visto que se tratava de um país amigo. A ameaça teve já o mérito de fazer publicidade ao livro e aguçar a curiosidade sobre o que lá estará escrito; Costa, mas o Carlos, começa a facturar ainda antes da publicação do livro. Quanto ao António, independentemente da veracidade da afirmação do banqueiro, mostra, por um lado, que reage mal quando a bajulação desaparece e, além do mais, sem ter sequer ter lido o livro e desconhecer o contexto das ditas palavras e dos factos. Estamos perante factos políticos, não se trata de assuntos pessoais, e será neste campo da política e dos factos que a questão deve ser dirimida. Estranhamos que Carlos Costa, sendo verdadeiro o que saiu agora na imprensa, faça este tipo de afirmação sem estar bem fundamentado e ciente do que está a dizer. Mas sem ser necessário ir buscar a repressão que Costa lançou sobre os trabalhadores, estivadores, motoristas e enfermeiros, com a requisição civil, só este facto confirma o aforismo popular: se queres ver um vilão, coloca-lhe um pau na mão.

Bruxelas não come as palavras e, desdizendo as bazófias de Costa e do seu homem das Finanças, o Medina da Câmara de Lisboa (parece que também está sob investigação da justiça), estima que a economia portuguesa trave a fundo em 2023 (crescendo apenas 0,7%) e que a inflação se mantenha elevada (5,8%), embora mais baixa que a de este ano, que já vai nos 10,1% (Outubro), considerado o valor mais alto desde 1994. Com este pretexto, a Comissão Europeia avisa para “as pressões do aumento dos salários da Função Pública”; aviso e preocupação já respondidos pelo governo que limitou a subida dos salários para este sector nos 2%. A perda do poder de compra dos trabalhadores do estado será de cerca de 80% de um salário e a dos do sector privado será à volta dos 60%, fácil se torna fazer as contas, fazendo fé nos números oficiais: “salário médio cai 4,7% em termos reais”.

Pouco tempo antes (28 de Outubro) a francesa que lidera o BCE alertara para a “recessão”, parece que foi a primeira vez que utiliza a palavra, prometendo simultaneamente agravar as taxas de juros. O FED (Sistema de Reserva Federal) norte-americano já vai nos 4%, e nós rapidamente lá iremos ter. Não será via para combater a inflação e evitar a recessão económica, será exactamente ao contrário, embora a propaganda dos media mainstream seja naquele sentido. A subida das taxas de juro pelo Banco Central Europeu serve única e exclusivamente para fazer aumentar os lucros dos bancos e concomitante enriquecimento, desbragado, dos seus acionistas. Mesmo que isso represente prejuízo para o resto da economia e para os países periféricos que estão no euro, ou seja, sem soberania monetária. Esta é uma das muitas contradições do capitalismo que o farão entrar, muito provavelmente dentro em breve, em colapso final. Perfeitamente compreensível e lógico o facto de no “Reino Unido, o rendimento dos grandes empresários subir duas vezes mais rápido que a inflação” (da imprensa). Entre nós, o país dos miseráveis, os lucros dos bancos nos primeiros nove meses foram de cerca de 1900 milhões de euros.

A riqueza flui na sociedade como em sistema de vasos comunicantes, indo dos que produzem, embora estando na base da pirâmide social, para os proprietários do capital, os que estão no vértice, ficando algumas migalhas para os seus políticos que lhes tratam dos negócios à vez e em turnos de quatro anos. Para se entender o fenómeno não é preciso nenhum doutoramento, basta olhar para os factos e sentir na carne e nos bolsos a exploração. O banco público CGD, gerido à boa maneira capitalista por um dos principais homens de mão do bicéfalo bloco central, teve um lucro de perto de 700 milhões de euros, mas à custa de menos 170 “colaboradores” e do encerramento de 27 agências; tudo ao fim de nove meses – que partos maravilhosos! Devemos olhar para o que diz o presidente da Associação Portuguesa de Bancos, Vítor Bento: “o trabalho dos bancos não é fazer caridade”, acrescentando não saber o que são lucros excessivos. Fala o experiente aposentado (antecipadamente aos 60 anos e com reforma de perto de 6 mil euros mensais) do Banco de Portugal.

Marcelo, irmão quase gémeo de Costa na criatividade política e mediática de atirar poeira para os olhos do Zé incauto, preocupou-se muito quando Lagarde veio dizer “recessão” e que irá continuar a fazer o seu trabalho, sodomizar (sentido figurado, bem entendido) os povos do sul da Europa, pedindo contenção na subida dos juros. O homem até se preocupa, nem deve dormir e deve ficar com a líbido embutida, com o empobrecimento do povo português, e, agora, mais uma vez preocupado, disfarçando que estes assuntos nem são do seu negócio, com a necessidade de se rever a Constituição da República. Antes do episódio revisionista uma outra vez se preocupou com assunto que nada lhe diz respeito, a distribuição dos dinheiros do PRR. Interpelar a ministra da Coesão Territorial, mais da “repartição” dos dinheiros do saque pelos lóbis nacionais, quis mostrar que a ministra responde perante ele e simultaneamente dar o coice ao primeiro-mistro que, por sua vez, responde perante a Assembleia da República. Claro que, e mais uma vez, os media corporativos retomaram a narrativa de que o PR monárquico é que é responsável último pela governação, como se estivéssemos em regime presidencial em que o Presidente também é primeiro-ministro, ou o nomeia. Será neste sentido que a revisão da Constituição será feita, os confinamentos e os metadados são meros pretextos.

O bastonário da Ordem dos Advogados não deixa de ter razão ao vir alertar para “uma deriva muito preocupante” e que com a proposta (ou todas elas) de revisão constitucional parece estar “mais em causa a supressão de direitos, liberdades e garantias”. Pois é exactamente isso que se trata, destruir os diretos e a liberdade de expressão, de manifestação e de organização política e cívica dos trabalhadores e do povo em geral, sob a pretensa defesa da “saúde pública” ou da “economia do país” e de que não há alternativa às medidas impostas. Em suma, justificar o cacete sobre quem trabalha e reclama pelos seus direitos e por uma vida digna, para si e para os seus filhos. O PS que tem sido usado pelas elites pela sua habilidade em usar a cenoura será em breve utilizado como cacete sobre todos nós, ou, caso claudique na missão, deixar os instrumentos prontos para uso de um governo formalmente de direita ou de extrema-direita, onde o “principal partido da oposição” não terá engulhos em se abraçar à extrema-direita que saliva pelo poder e que deu o pontapé de saída para este processo de revisão constitucional. A História tem ensinado que é a “social-democracia” ou o “socialismo democrático” que traz a si agarrado a fascismo e o nazismo, mesmo que seja “à portuguesa”. 

segunda-feira, 7 de novembro de 2022

À População: Camaradas operários, soldados, camponeses, todos os trabalhadores!

Camaradas operários, soldados, camponeses, todos os trabalhadores!

Lenine

A revolução operária e camponesa venceu definitivamente em Petrogrado, dispersando e prendendo os últimos restos do reduzido número de cossacos enganados por Kérenski. A revolução venceu também em Moscovo. Antes de ali terem chegado alguns comboios com forças militares vindos de Petrogrado, em Moscovo os cadetes e outros kornilovistas assinaram as condições de paz, o desarmamento dos cadetes e a dissolução do Comitê de Salvação.

Da frente e das aldeias chegam todos os dias e a todas as horas notícias de que a maioria esmagadora dos soldados nas trincheiras e dos camponeses nos uezd apoia o novo governo e as suas leis sobre a proposta da paz e a entrega imediata da terra aos camponeses. A vitória da revolução dos operários e dos camponeses está assegurada, pois a maioria do povo já se ergueu a seu favor.

É completamente compreensível que os latifundiários e os capitalistas, os altos empregados e funcionários, estreitamente ligados à burguesia, numa palavra, todos os ricos e todos os que estão com os ricos, acolham hostilmente a nova revolução, se oponham à sua vitória, ameacem paralisar a actividade dos bancos, sabotem ou paralisem o trabalho de diferentes instituições, o obstaculizem por todos os meios, o entravem directa ou indirectamente. Todo o operário consciente compreendeu perfeitamente que encontraríamos inevitavelmente tal resistência, toda a imprensa partidária dos bolcheviques o assinalou muitas vezes. As classes trabalhadoras não se assustarão um só instante com essa resistência, nem cederão minimamente Perante as ameaças e as greves dos partidários da burguesia.

A maioria do povo está por nós. A maioria dos trabalhadores e dos oprimidos de todo o mundo está por nós. A nossa causa é a causa da justiça. A nossa vitória está assegurada.

A resistência dos capitalistas e dos altos empregados será quebrada. Nenhuma pessoa será privada por nós dos seus bens sem uma lei especial do Estado sobre a nacionalização dos bancos e dos consórcios. Esta lei está a ser preparada. Nenhum trabalhador perderá um só copeque; pelo contrário, ser-lhe-á prestada ajuda. O governo não quer introduzir quaisquer outras medidas que não sejam o mais rigoroso registo e controlo, que não seja a cobrança sem ocultação dos impostos anteriormente estabelecidos.

Em nome destas justas reivindicações, a imensa maioria do povo uniu-se em torno do governo provisório operário e camponês.

Camaradas trabalhadores! Lembrai-vos que vós próprios dirigis agora o Estado. Ninguém vos ajudará se vós próprios não vos unirdes e não tomardes nas vossas mãos todos os assuntos do Estado. Os vossos Sovietes são a partir de agora órgãos do poder de Estado, órgãos plenipotenciários e decisivos.

Uni-vos em torno dos vossos Sovietes. Reforçai-os. Lançai mãos à obra na base, sem esperar por ninguém. Estabelecei a mais rigorosa ordem revolucionária, esmagai implacavelmente tentativas de anarquia por parte de bêbados, arruaceiros, cadetes, contra-revolucionários, kornilovistas e outros semelhantes.

Introduzi o mais rigoroso controlo da produção e do registo dos produtos. Prendei e entregai ao tribunal revolucionário do povo todos os que ousem prejudicar a causa popular, quer esse prejuízo se manifeste na sabotagem (deterioração, entravamento, subversão) da produção ou na ocultação de reservas de cereais e de víveres, quer na retenção de carregamentos de cereais ou na desorganização dos caminhos-de-ferro, dos correios, telégrafos e telefones ou em geral em qualquer resistência à grande causa da paz, à causa da entrega da terra aos camponeses, à causa da aplicação do controlo operário sobre a produção e a distribuição dos produtos.

Camaradas operários, soldados, camponeses e todos os trabalhadores! Ponde todo o poder nas mãos dos vossos Sovietes. Guardai, protegei como as meninas dos olhos, a terra, os cereais, as fábricas, os instrumentos, os produtos, os transportes — tudo isto será desde agora inteiramente vosso, patrimônio de todo o povo. Gradualmente, com o acordo e a aprovação da maioria dos camponeses, na base da experiência prática deles e dos operários, marcharemos firme e tenazmente para a vitória do socialismo, que os operários avançados dos países mais civilizados consolidarão e que dará aos povos uma paz duradoura e os libertará de todo o jugo e de toda a exploração.

5 de Novembro de 1917. Petrogrado.

O Presidente do Conselho de Comissários do Povo

V. Uliánov (Lénine) 

quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Immanuel Kant: Escritos sobre o Terramoto de Lisboa

 


ACERCA DAS CAUSAS DOS TREMORES DE TERRA, A PROPÓSITO DA CALAMIDADE QUE, PERTO DO FINAL DO ANO PASSADO, ATINGIU A ZONA OCIDENTAL DA EUROPA

Grandes acontecimentos que afetam o destino coletivo dos homens despertam, justificadamente, essa famosa ânsia de novidades que o que é extraordinário em todos suscita e nos obriga a inquirir das suas causas. Em tais casos, a obrigação do investigador da Natureza para com o público será prestar contas dos conhecimentos que a observação e a pesquisa lhe possam proporcionar. Pela parte que me toca, renuncio à honra da satisfação integral desse dever e cedo-a a quem, caso surja, se possa gabar de haver perscrutado minuciosamente o interior da Terra. As minhas reflexões serão meramente esquemáticas, ou, para me exprimir com clareza, vão abranger tudo o que de provável se pode até agora dizer sobre o assunto, mas não, seguramente, o suficiente para satisfazer o rigor daquele juízo que tudo submete à pedra-de-toque da certeza a temática. Vivemos tranquilos sobre um solo cujos alicerces são, por vezes, abalados. Construímos despreocupadamente sobre abóbadas cujos pilares, volta e meia, vacilam e ameaçam ruir. Inconscientes de um destino que talvez não esteja assim tão distante de nós, entregamo-nos à compaixão, em lugar do medo, quando vemos a destruição que a fatalidade emboscada sob os nossos pés semeia na vizinhança. Será, sem dúvida, por graça da Providência que permanecemos intocados pelo terror de um destino que preocupação nenhuma da nossa parte poderia, de alguma forma, impedir, não agravando assim os nossos males reais com o temor daqueles que sabemos possíveis.

O que, em primeiro lugar, merece a nossa atenção é que o solo sobre o qual nos encontramos é oco e as suas abóbadas estendem-se, de uma forma quase contínua, ao longo de vastas regiões, incluindo o fundo do mar. Não vou citar, a este propósito, nenhum exemplo da História. Não é minha intenção apresentar uma História dos terramotos. O barulho tremendo, semelhante ao bramir de um ciclone subterrâneo ou ao rolar de um veículo de carga numa calçada de pedra, que acompanha muitos tremores de terra, aliado ao efeito que estes simultaneamente exercem em regiões tão afastadas entre si como a Islândia e Lisboa -as quais, apesar de separadas por um mar de mais de 450 milhas alemãs, foram no mesmo dia vítimas de abalos sísmicos -são fenómenos que parecem confirmar inequivocamente a existência de uma interligação entre as abóbadas subterrâneas.

Ser-me-ia necessário recuar, na história do nosso planeta, até ao caos para conseguir dizer algo de compreensível acerca das causas que, no decurso da formação da Terra, determinaram a origem destas galerias. Essas explicações assumem, contudo, um aspeto demasiado fantasioso, quando não podemos inscrevê-las no quadro geral das razões que atestam a sua credibilidade. Independentemente, porém, de qual seja a causa, o que é certo é que o sentido destas galerias é paralelo ao das montanhas e, por uma conexão natural, também ao dos grandes rios, uma vez que estes ocupam aparte mais profunda de longos vales circunscritos de ambos os lados por montanhas paralelas. Ora, essa direção é precisamente aquela em que os tremores de terra preferencialmente se propagam. Nos terramotos que se estenderam pela maior parte da Itália, notou-se que os candelabros das igrejas acusavam um movimento de norte para quase exatamente sul; este último terramoto seguiu de oeste para leste, que é também a direção predominante das montanhas que atravessam a zona mais alta da Europa.

Se, em situações tão adversas, é permitido ao homem usar de alguma cautela, se, face a tão generalizados tormentos, não se considera um esforço temerário e vão propor algumas medidas preventivas que a razão nos oferece, não deveriam então as desoladoras ruínas de Lisboa fazer reponderar o projeto de reconstruir a cidade de novo na longitudinal do mesmo rio, que descreve a direção em que os tremores de terra nessa região naturalmente têm de acontecer? Gentil testemunha que, quando uma cidade é abalada a todo o comprimento por um terramoto que segue nessa mesma direção, todas as casas se desmoronam, ao passo que, quando a direção do abalo segue a da largura, a maior parte das casas mantém-se de pé. A razão é clara. A oscilação do solo desloca os edifícios da posição vertical. Ora, se uma fileira de edifícios começa a abanar desta forma, de leste para oeste, cada um deles não se limita já a suportar o seu peso individual, pois os situados a leste empurram, ao mesmo tempo, os do lado oeste, fazendo-os infalivelmente tombar uns sobre os outros; ao passo que, se a movimentação se der num sentido perpendicular ao anterior, em que cada edifício apenas tem de sustentar o seu próprio equilíbrio, os danos serão, em circunstâncias análogas, necessariamente menores. A tragédia de Lisboa parece, pois, ter sido agravada pela localização da cidade, construída na longitudinal do Tejo. Daí que, tendo em conta estas razões, nenhuma cidade de um país por diversas vezes vítima de tremores de terra, cuja direção seja possível determinar a partir da experiência, devesse ser construída em direção paralela à que estes seguem. Só que, em situações desta natureza, a maioria das pessoas é de opinião totalmente diferente. Porque o pavor lhes rouba a capacidade de reflexão, julgam ver, nestes casos de desgraça tão generalizada, um mal de tipo completamente diferente daqueles contra os quais é lícito tomar precauções, imaginando então que podem suavizar a dureza do destino se se submeterem cega e resignadamente aos favores e desfavores do Céu.

A linha principal do terramoto segue na direção das montanhas mais altas, sendo por isso predominantemente atingidas as terras que lhes estão próximas, e sobretudo quando estejam limitadas por duas filas de montanhas, caso em que se verifica uma conjugação de abalos de ambos os lados. Numa terra de planície, que não esteja ligada a cadeias montanhosas, os sismos são mais raros e mais fracos, daí que o Peru e o Chile sejam, entre todos os países do mundo, dos mais frequentemente sujeitos a tremores de terra. Mas aí observa-se o cuidado de só construir casas com um máximo de dois andares, dos quais apenas o primeiro tem paredes, sendo o segundo feito de canas e madeira leve, para que ninguém morra esmagado debaixo dele. Acrescente-se ainda que a Itália e até mesmo a ilha da Islândia, parcialmente situada na zona glaciar, assim como outras regiões altas da Europa, comprovam igualmente esta correlação.

O terramoto que, no passado mês de dezembro, entre o cair da noite e a manhã, se propagou pela França, Suíça, Suábia, Tirol e Berna seguiu predominantemente o rumo das regiões mais elevadas desta parte do mundo. Sabe-se, no entanto, que todas as principais montanhas dão origem a montes menores perpendiculares. Também nestes se vai progressivamente disseminando a combustão subterrânea que, após haver alcançado as regiões mais altas das montanhas suíças, se comunica igualmente às cavernas que, acompanhando paralelamente alinha do Reno, se prolongam até à Baixa Alemanha. A que se deverá então esta lei, segundo a qual a Natureza associou os terramotos sobretudo às regiões altas? Se é manifesto que estes tremores de terra têm origem numa combustão subterrânea, podemos facilmente concluir que, sendo as cavernas mais extensas em zonas montanhosas, a exalação de vapores inflamáveis se dará nelas com maior liberdade, e a junção destes com o ar encerrado nas regiões subterrâneas, sempre indispensável à combustão, processar-se-á igualmente com menos entraves. Neste aspeto, o conhecimento da natureza interna do solo terrestre, até ao ponto em que ao homem é permitido descobri-la, ensina-nos que as camadas em regiões montanhosas se encontram a muito maior profundidade do que nas zonas planas, e daí que as primeiras sejam mais sensíveis aos abalos do que as segundas. Caso, então, alguém perguntasse se a nossa pátria também tem razões para temer esta calamidade, eu, se tivesse por missão pregar a moralização dos costumes, deixaria a questão do temor – em virtude da impossibilidade geral de se chegar a acordo sobre este ponto – ao critério particular de cada um. Posto porém que, entre os motivos que podem incitar à devoção, os derivados do terramoto são seguramente os mais fracos, e o meu único propósito é aduzir razões físicas como matéria de conjetura, facilmente se poderá concluir que, sendo a Prússia não apenas um país sem montanhas como, melhor ainda, o prolongamento de uma região quase inteiramente plana, temos motivos acrescidos para confiar em que as disposições da Providência nos permitem ter esperança no contrário.

Eis-nos chegados ao momento de dizer algo acerca das causas dos terramotos.

Não é difícil, para um investigador da Natureza, simular os seus fenómenos. Peguemos em 25 libras de limalha de ferro, noutras tantas de enxofre, e misturemo-las com água vulgar. Em seguida, enterremos esta massa a um pé ou pé e meio de profundidade e calquemos bem aterra que a cobre. Decorridas algumas horas, poderemos observar a libertação de um fumo espesso, a terra estremecerá e chamas irromperão do solo. Não há que duvidar que as duas primeiras matérias se encontram frequentemente no interior da terra e a água que se infiltra pelas fendas e frinchas das rochas pode pô-las em fermentação. Com uma segunda experiência, podemos produzir vapores inflamáveis a partir de uma mistura de matérias frias que entram espontaneamente em combustão. Se adicionarmos cerca de uma dracma de vitríolo a quatro dracmas de água vulgar e as vertermos sobre uma dracma de limalha de ferro, produzir-se-á uma forte efervescência acompanhada de vapores que entram em combustão espontânea. E quem duvida de que no interior da Terra existem ácidos vitriólicos e fragmentos de ferro em abundância? Assim que a água os atinge e desencadeia a sua mútua reação, expelem vapores que, ao procurar expandir-se, revolvem o solo e irrompem em chamas pelas crateras dos vulcões.

já há muito se observou que uma região se vê livre de violentos tremores de terra quando, nas suas imediações, irrompe uma montanha vulcânica, através da qual os vapores conseguem encontrar saída. Sabe-se também que, em Nápoles, os terramotos são muito mais frequentes e assustadores se o Vesúvio tiver estado durante longo tempo inativo. É assim que o que nos causa susto se revela muitas vezes benéfico, o que nos permite concluir que, se acaso surgisse um vulcão nas montanhas de Portugal, isso poderia ser um sinal de que o risco de calamidade se ia tornando, pouco a pouco, mais remoto.

A impetuosa agitação das águas que, nesse fatídico Dia de Todos os Santos, se observou em tantas costas marítimas foi o que de mais singular este acontecimento nos ofereceu como matéria de espanto e investigação. É do conhecimento comum que os terramotos se estendem ao subsolo marítimo e sacodem os navios com violência idêntica à que estes experimentariam se estivessem em terra firme. Acontece que, nas zonas em que as águas entraram em ebulição, pelo menos a uma distância razoável da costa, não foi detetado qualquer sinal de terramoto. Todavia, esta agitação das águas não é totalmente inédita. No ano de 1692, por ocasião de um terramoto que atingiu quase o mundo inteiro, verificou-se o mesmo nas costas da Holanda, Inglaterra e Alemanha.

Presumo que muitos se inclinem – e não, na verdade, sem fundamento – a ver nesta ebulição das águas o prolongamento da agitação que o mar da costa portuguesa sofreu com o impacto direto do terramoto. Mas esta explicação parece colocar, logo de entrada, algumas dificuldades. Compreendo bem que, numa matéria líquida, uma pressão desse género tenha de se fazer sentir através de toda a sua massa; mas como poderia a pressão do mar português, depois de se haver expandido por centenas de milhas, provocar ainda uma elevação de alguns pés nas águas de Gluckstadt e Husum? Não dá ideia de que teriam de se ter erguido lá montanhas de água a tocar no céu para que aqui se levantasse uma ondulação quase impercetível? A isso respondo que existe uma dupla maneira de toda a massa de uma substância líquida ser posta em movimento por ação de uma causa situada em determinado lugar: ou através do movimento baloiçante de subir e descer, isto é, de uma forma ondulatória, ou através de uma pressão súbita que sacode a massa de água no seu interior e a impele como a um corpo sólido, sem lhe dar tempo de se esquivar à pressão por meio de uma efervescência tumultuosa, e assim disseminar gradualmente o seu movimento. A primeira hipótese é, sem dúvida, insuficiente para explicar o fenómeno em questão, mas, já no que toca à segunda, a situação é diferente: se considerarmos, com efeito, que a água resiste, à semelhança de um corpo sólido, a uma pressão súbita e violenta, e que essa compressão se expande para os lados com a mesma impetuosidade que impede que as águas adjacentes tenham tempo para se erguer acima da horizontal; se considerarmos também, por exemplo, a experiência de Carré na segunda parte dos Ensaios de Física da Academia das Ciências, p. 549, em que este disparou uma bala contra uma caixa cheia de água, feita de tábuas com duas polegadas de espessura, e o impacto exerceu tamanha pressão sobre a água que a caixa saltou em mil e um pedaços; se tivermos tudo isto em conta, dizia, poderemos ter uma noção de como se processa este tipo de movimentação das águas. Imaginemos, por exemplo, que toda a costa ocidental de Portugal e Espanha, desde o Cabo de S. Vicente até ao Cabo Finisterra, tinha sido atingida por um abalo numa extensão de cerca de 100 milhas alemãs, e que esse abalo se tinha alargado ao mar, para ocidente, numa área de idêntica superfície. Se isso acontecesse, veríamos 10 mil milhas quadradas alemãs do fundo do mar convulsionadas por um súbito tremor, cuja velocidade não sobrestimaríamos se a equiparássemos ao movimento desencadeado por uma mina de pólvora que projetasse os corpos que nela se encontrassem a uma altura de 15 pés, sendo, por conseguinte, capaz (de acordo com os princípios da mecânica) de percorrer 30 pés num segundo. A água oporia tal resistência a esta súbita agitação que, contrariamente ao que sucede em movimentações lentas, não cederia e não se encresparia em ondas. Em vez disso, absorveria toda a pressão e impeliria as águas circunjacentes para os lados com idêntica força, as quais, numa compressão tão repentina, devem ser vistas como um corpo sólido cuja extremidade mais distante terá uma velocidade de propulsão exatamente análoga àquela com que na outra é impelido. Assim sendo, não se verificaria qualquer decréscimo de movimento em nenhuma faixa de matéria líquida (se me é permitido usar esta expressão), tivesse ela 200 ou 300 milhas de extensão, desde que a imaginássemos encerrada num canal com uma abertura idêntica em ambos os lados. Só se a abertura do segundo extremo fosse mais ampla do que a do primeiro é que o movimento da água que a atravessa diminuiria na proporção inversa dessa diferença.

Aqui chegados, temos, porém, de imaginar a continuação do movimento da água em nosso redor como um círculo que se vai progressivamente alargando à medida que aumenta a distância do seu ponto central, e em cujo perímetro a intensidade do fluxo de água é proporcionalmente reduzida. É por isso que na costa do Holstein, situada acerca de 300 milhas alemãs do presumível epicentro do terramoto, o movimento das águas é seis vezes inferior ao que se regista na costa portuguesa, a qual, segundo se calcula, distará cerca de 50 milhas desse preciso ponto. O movimento das águas nas costas do Holstein e da Dinamarca será, pois, ainda suficientemente forte para percorrer cinco pés num segundo, um ímpeto equivalente ao de uma corrente muito rápida. Poder-se-ia aqui objetar que o avanço da pressão das águas no Mar do Norte só se poderia ter dado através do canal junto a Calais, onde o abalo, na medida em que se propagou num vasto mar, tem de ter enfraquecido extraordinariamente. Todavia, quando se considera que a pressão das águas entre as costas francesa e inglesa, antes de alcançarem o canal, teria de ter aumentado, pela compressão entre esses dois países, no mesmo grau em que posteriormente diminuiu ao expandir-se, verifica-se que não é possível extrair grandes conclusões das consequências do tremor de terra na citada costa do Holstein.

O mais surpreendente nesta compressão das águas é o facto de esta se ter feito sentir mesmo em lagos sem qualquer ligação visível com o mar, como sucede em Templin e na Noruega. Esta será, com toda a probabilidade, a prova mais concludente até hoje apresentada da comunicação subterrânea entre as águas mediterrânicas e o oceano. Para nos desembaraçarmos da dificuldade que perante isto se pode colocar, e que se prende com a questão do equilíbrio, temos de imaginar que as águas de um lago correm efetivamente pelos canais através dos quais este comunica com o mar, num movimento sempre descendente, em virtude da sua estreiteza, e que a perda de água que por este meio ocorre é compensada pelos regatos e rios que neles desaguam, razão pela qual esse escoamento acaba por não se notar.

Apesar da raridade desta situação, convém evitar os juízos prematuros, pois não é, na verdade, impossível que a agitação dos lagos interiores se possa também dever a outros motivos. O ar subterrâneo, posto em movimento pela erupção do fogo enraivecido, podia muito bem ter-se infiltrado através das fendas das camadas terrestres, camadas essas que, à exceção desse escape forçado, lhe vedam toda a passagem. Ora a Natureza só pouco apouco se desvenda, daí que não devamos, na nossa impaciência e com as nossas fantasias, tentar arrancar-lhe à força o que nos é ocultado, mas antes aguardar que ela, nas suas manifestações, nos revele clara e inequivocamente os seus segredos.

A causa do terramoto parece estender os seus efeitos até à atmosfera. Em frequentes ocasiões, algumas horas antes de a terra ser abalada, foi possível observar um céu vermelho e outros sinais indicativos de uma alteração das condições atmosféricas. Pouco tempo antes dos terramotos, os animais mostram-se apavorados. Os pássaros procuram refúgio nas casas, os ratos e ratazanas rastejam para fora das suas tocas. Nesse momento, surge infalivelmente o vapor quente, em vias de se inflamar, que irrompe pela abóbada superior da Terra. Prefiro nem pensar nas consequências que comporta. Serão, no mínimo, muito pouco agradáveis para o investigador da Natureza, pois que esperança pode ele ter de desocultar as leis segundo as quais as alterações da camada atmosférica se vão sucedendo, quando aos efeitos desta se mistura uma atmosfera subterrânea? E poderá haver alguma dúvida de que este fenómeno não deve ser muito frequente, pois então como se compreenderia que, na mudança de condições atmosféricas, e tendo em conta que as suas causas são em parte constantes, em parte periódicas, não se verifique qualquer recorrência dos citados efeitos?

Nota: a data do terramoto na Islândia, atrás indicada como 1 de novembro, deve ser corrigida para 11 de setembro, em conformidade com o fragmento 199 da Correspondência de Hamburgo.

As presentes considerações devem ser vistas como um exercício reflexivo preliminar sobre esse incontornável fenómeno natural que marcou a nossa época. A importância, bem como as múltiplas particularidades deste acontecimento, impelem-me a escrever um relato pormenorizado do terramoto, da sua propagação a outros países da Europa e dos aspetos curiosos de que se revestiu. Desta história e das reflexões que, a este propósito, se podem fazer darei parte ao público num minucioso ensaio, a ser editado, dentro de alguns dias, pela Tipografia Real da Corte e da Academia.

(Escritos sobre o Terramoto de Lisboa, Immanuel Kant. Edições 70, 2019)