domingo, 24 de julho de 2022

Tratado da Reforma do Entendimento

Bento de Espinosa

[I] Havendo-me a experiência ensinado que tudo quanto na vida corrente sucede é com frequência vão e fútil, e tendo eu observado que nada do que directa ou indirectamente me provocava temor era em si mesmo bom ou mau, a não ser enquanto afectava o espírito, decidi por fim inquirir se haveria algo que constituísse o verdadeiro bem, susceptível de se comunicar, e pelo qual exclusivamente, rejeitando tudo o mais, o ânimo fosse afectado; mais ainda, se haveria algo que, uma vez encontrado e adquirido, proporcionasse a fruição eterna da suprema e contínua alegria.

[2] Digo que decidi por fim: de facto, à primeira vista, parecia despropositado querer renunciar ao certo pelo ainda incerto. Via, com efeito, as vantagens que as honras e riquezas nos alcançam e de cuja demanda me seria forçoso desistir se quisesse empenhar-me seriamente neste novo empreendimento e se a felicidade suprema nelas se contivesse, via nitidamente que eu teria de ficar dela privado; e se, pelo contrário, nelas não residisse, e eu as procurasse de modo exclusivo, ficaria igualmente privado da felicidade suprema.

[3] Revolvia então o ânimo sobre a possibilidade de realizar o novo empreendimento ou de, ao menos, atingir a certeza a seu respeito, sem alterar a ordem e a conduta comum da minha vida – o que em vão repetidamente tentei. Na verdade, o que mais frequentemente ocorre na vida e se considera como bem supremo entre os homens -como das suas acções se pode depreender – resume-se a três coisas: riquezas, honras e prazer. Por elas de tal modo se dispersa a mente que mal pode pensar em qualquer outro bem.

[4] Quanto ao prazer, o espírito agarra-se a ele como se descansasse em algo de bom; e assim fica em extremo impedido de pensar noutra coisa; mas da fruição do prazer segue-se uma profunda tristeza que, se não suspende a mente, perturba-a, no entanto, e a entorpece. Com a busca de honras e riquezas, não pouco se distrai também a mente, sobretudo, onde elas se buscam apenas por si mesmas 1, pois se supõem então como o sumo bem;

[5] Muito mais ainda se distrai a mente com as honras, que se supõem sempre como um bem em si mesmas, como se fossem o fim último, para o qual tudo converge. Além disso, estas não arrastam consigo a punição, como é o caso da voluptuosidade; pelo contrário, quanto mais de umas e de outras se possui tanto maior é o gozo que provocam; consequentemente, somos cada vez mais incitados a incrementá-las: se, porém, em algum caso nos sai frustrada a expectativa, sobrevém então uma extrema tristeza. Por fim, as honras constituem um grande estorvo porque, para as alcançarmos, temos necessariamente de orientar a vida de acordo com a opinião dos homens. Isto é, temos de evitar o que as pessoas vulgarmente evitam e de buscar o que elas buscam.

[6] Ora, vendo eu que tudo isto de tal forma impedia de me entregar a qualquer novo projecto, mais, que de tal forma se lhe opunha que tinha necessariamente de renunciar a uma coisa ou outra, vi-me forçado a questionar-me sobre qual delas me seria mais útil; na verdade, como disse, parecia querer perder o certo pelo incerto. Mas, após brevíssimo exame desta questão, descobri primeiro que se, renunciando àquelas coisas (que vulgarmente se buscam), me empenhasse no novo projecto, perderia um bem incerto por sua natureza, (como claramente se conclui do que ficou dito) por outro bem incerto, não já por sua natureza (pois eu buscava um bem estável), mas apenas quanto ao modo de o alcançar .

[7] À custa de aturada reflexão, consegui ver que então, suposto que me pudesse aplicar totalmente, renunciava a males certos por um bem certo. Com efeito, correndo extremo perigo, via-me obrigado a procurar, com todas as forças, um remédio, ainda que incerto; assim como o paciente de doença mortal, ao prever a morte certa se não aplicar um remédio, mesmo incerto, é urgido a buscá-lo com todas as forças, pois nele reside toda a sua esperança. Tudo quanto o comum das pessoas persegue não só não traz nenhum remédio para nos conservar o ser, mas o impede até e é frequentemente causa da perdição de quem o possui 2, e é sempre a causa da ruína dos que por tal se deixam possuir.

[8] Abundam, com efeito, os exemplos dos que, por causa das próprias riquezas, padeceram perseguição até à morte, e também dos que, a fim de adquirirem bens, se expuseram a tantos perigos que acabaram por pagar com a vida o preço da estultícia. Não menos numerosos são os exemplos dos que, em vista da consecução ou da defesa das honras, sofreram atrozmente. Finalmente, são incontáveis os exemplos daqueles que apressaram a própria morte devido a excessos de prazer.

[9] Pareciam tais males advir do facto de que toda a felicidade ou infelicidade consiste apenas na qualidade do objecto, ao qual aderimos por amor. Com efeito, jamais se levantarão contendas por um objecto que não se ama; não haverá tristeza por se perder, nem inveja por estar na posse de outrem; nem temor nem ódio; numa palavra, não haverá agitação de espírito: Tudo isso sobrevém com o amor das coisas perecíveis, como são aquelas de que acabamos de falar.

[10] Mas o amor de uma coisa eterna e infinita alimenta a alma de pura alegria, isenta de toda a tristeza; ora, isso é o que a todo o transe se há-de desejar e buscar com todas as forças. Não foi, entretanto, sem razão que empreguei estas palavras; "suposto que me pudesse aplicar totalmente..." Com efeito, por maior que fosse a clareza com que apreendia tudo isso intelectualmente, não podia contudo desfazer-me de toda a avareza, voluptuosidade e gIória.

[11] Via apenas que, ocupando-se a mente em tais cogitações, eIa afastava as demais, para reflectir seriamente no novo projecto. Ora, isto trouxe-me grande consolação, pois via que aqueles males não eram de tal condição que resistissem tenazmente aos remédios. E muito embora fossem inicialmente raros esses intervalos durassem um espaço de tempo sumamente breve, contudo, depois que o verdadeiro bem se me tornou cada vez mais conhecido, mais frequentes e dilatados foram esses intervalos; sobretudo desde que reparei que a aquisição do dinheiro, o prazer e a glória prejudicam tanto mais quanto mais eram procurados por terão uso moderado e não trarão qualquer obstáculo; pelo contrário, como em seu lugar demonstraremos, prestam grande contributo em relação ao fim por que são procurados.

[12 Direi aqui brevemente o que entendo por verdadeiro bem e que coisa seja o bem supremo. Para que se entenda isto correctamente, há-de notar-se que só relativamente se fala de bem e de mal; de tal modo que a mesmíssima coisa pode, segundo pontos de vista diferentes, dizer-se boa e má, o mesmo se passando com a designação de perfeito e imperfeito.

Nada, com efeito, considerado na sua natureza, se dirá perfeito ou imperfeito; mormente depois de reconhecermos que tudo quanto se faz é de acordo com a ordem eterna e com determinadas leis da natureza que se leva cabo.

[13] Como, porém, a humana fraqueza não alcança com o pensamento aquela ordem, e como, por outro lado, o homem concebe uma certa natureza humana, muito mais consistente do que

a sua, vendo ao mesmo tempo que nada o impede de atingir essa natureza, é incitado a buscar os meios que o conduzam a tal perfeição; e tudo o que pode constituir meio para lá chegar, chama-se verdadeiro bem. O bem supremo é, para ele, chegar – juntamente com os outros indivíduos, se possível –, a fruir dessa natureza. De que natureza se trata, mostraremos no seu lugar mais não ser 3 do que o conhecimento da união que a mente possui com a Natureza na sua totalidade.

[14] Eis, pois, o fim para que tendo, a saber, adquirir uma tal natureza e esforçar-me por que muitos a adquiram juntamente comigo; isto é, à minha felicidade pertence empenhar-se para que muitos outros entendam o mesmo que eu, afim de que o seu entendimento e os seus desejos coincidam perfeitamente com o meu entendimento e desejo; para isso 4, é necessário ter da Natureza a compreensão suficiente para adquirir essa tal natureza; em seguida, é necessário formar uma sociedade como é de desejar, de modo que o maior número chegue a esse ponto com maior facilidade e segurança.

[15] Em seguida, importa aplicar-se à Filosofia Moral, bem como à Ciência de Educação das crianças; e, como a saúde não é um meio insignificante em ordem à consecução desse fim, impõe-se a elaboração de uma Medicina honesta; e porque muitas coisas, que por si são difíceis, pela arte se tomam fáceis e com sua ajuda podemos ganhar muito tempo e bem-estar na vida, de nenhum modo se há-de menosprezar a Mecânica.

[16] Mas, acima de tudo, é necessário descobrir um modo de sanar o entendimento e, na medida em que se tome possível, de o qualificar, para que facilmente compreenda as coisas sem erro e o melhor possível. De onde se poderá já ver que pretendo dirigir todas as ciências para um fim único 5, isto é, atingir a já mencionada suprema perfeição humana; assim, tudo o que nas ciências nos não faz avançar para o nosso fim, deve rejeitar-se como inútil; isto é, numa palavra, todas as nossas acções, juntamente com todos os nossos pensamentos, se devem dirigir a este fim.

[17] Como, porém, enquanto nos ocupamos da sua obtenção e nos empenhamos em reconduzir o entendimento ao caminho recto, é preciso viver, somos obrigados, antes de mais, a aceitar como boas algumas regras de vida, a saber:

I. Falar de acordo com a capacidade do comum das pessoas e fazer tudo o que em nada nos impeça de alcançar o nosso objectivo. São, com efeito, grandes as vantagens que podemos obter em condescendermos, na medida do possível, com o seu nível; além disso, se assim for, darão ouvidos benévolos para escutar a verdade.

II. Gozar dos prazeres apenas tanto quanto baste à conservação da saúde.

III. Finalmente, procurar o dinheiro ou qualquer outro bem, tanto quanto baste para sustentar a vida e a saúde, e em conformidade com os costumes da sociedade que não se oponham ao nosso fim.

[18] Estabelecidas estas regras, aplicar-me-ei primeiro àquilo que, antes de tudo, se deve fazer: reformar o entendimento e tomá-lo apto a compreender as coisas do modo necessário à consecução do nosso fim. Para isso, a ordem natural exige que eu retome aqui todos o modos de percepção que, até ao momento, tenho usado para afirmar ou negar algo sem nenhuma dúvida, a fim de escolher o melhor deles e, ao mesmo tempo, começar a conhecer as minhas forças e a natureza (humana), que desejo levar a efeito.

[19] Vendo com rigor, podem todos basicamente reduzir-se a quatro:

I. A percepção que temos pelo ouvir dizer ou por qualquer sinal arbitrariamente designado.

II. A percepção, que adquirimos por uma experiência vaga, isto é, uma experiência não determinada pelo entendimento; e designa-se assim só porque se dá ao acaso e, não havendo nenhum outro experimento que se lhe oponha, mantém-se para nós inabalável.

III. A percepção, onde a essência de uma coisa se infere de outra, embora inadequadamente. É o que acontece 6 quando de um efeito inferimos a causa ou quando uma conclusão se tira de algum universal, que é sempre acompanhado de alguma propriedade.

IV. Por último, a percepção em que uma coisa é percebida apenas mediante a sua essência, ou mediante o conhecimento da sua causa próxima.

[20] Vou ilustrar tudo com exemplos. De ouvir-dizer conheço somente o dia do meu nascimento, que tive tais pais e outras coisas semelhantes, das quais nunca duvidei. Por experiência vaga, sei que hei-de morrer: afirmo isto porque vi que outros, meus semelhantes, morreram, embora nem todos tenham vivido o mesmo tempo nem tenham sucumbido à mesma doença.

Depois, sei também por experiência vaga que o azeite é um alimento próprio para ter a chama e que a água é boa para a apagar; sei também que o cão é um animal que ladra e o homem, um animal racional, e conheço deste modo quase tudo o que é necessário à vida.

(continua)

Notas:

1- Poder-se-ia explicar isto mais longamente e em pormenor, distinguindo, entre as riquezas, as que se procuram, ou por si mesmas, ou pelas honras, prazer, saúde e progresso das ciências e das artes; mas isto fica para o seu lugar próprio, pois não é este o momento adequado de o analisar com cuidado devido.

2- Isto há-de demonstrar-se com mais exactidão.

3- Isto explicar-se-á em seu lugar com mais detenção.

4- Note-se que trato aqui apenas de enunciar as ciências necessárias ao nosso fim, embora não me prenda com a sua articulação.

5- O fim das ciências é um só, para o qual todas se devem dirigir.

6- Neste caso, nada compreendemos da causa além do que observamos no efeito. É o que bastante claramente decorre do facto de, em tais circunstâncias, se designar a causa apenas nos termos mais gerais, como, portanto, dá-se alguma coisa, também portanto, dá-se alguma potência, etc.; ou também do facto de se designar negativamente: portanto, não é isto ou aquilo, etc. No segundo caso, atribui-se alguma coisa à causa em virtude do efeito, que se concebe claramente, como demonstraremos pelo exemplo; no entanto, nada [afirmamos] para além do que é próprio, e não a essência particular da coisa.

Textos Filosóficos, Edições 70. 1987

  

segunda-feira, 11 de julho de 2022

A nossa inefável burguesia, os fundos europeus e o FMI

 

Parece que provocou algum alvoroço a notícia de que um dos empresários nacionais, dos novos ricos surgidos depois do 25 de Abril e no Portugal inundado por muitos milhões de euros dos fundos europeus, irá receber, ao que dizem será para as suas empresas, cerca de 40 milhões de euros, ou seja, 52% do total da dita recapitalização estratégica já aprovada, 76,7 milhões de euros. O motivo de alarme será também o facto de o indivíduo estar a ser investigado por alegadamente ter usado offshores para fraude fiscal de seis milhões de euros, embora o caso seja já antigo. Mas mal se começara a falar no favorecimento, a Autoridade Tributária e Aduaneira, parecendo adormecida, logo desperta e confirma que o indivíduo é “suspeito de fraude qualificada e branqueamento de capitais”. Conhecendo-se a história de outros oligarcas, emergentes à custa dos dinheiros públicos e fundos europeus, que mais tarde são sempre pagos pelo povo e acrescidos dos devidos juros, onde está então a admiração?

Uma elite que vive dos negócios com o estado

Porque a história deste novo rico é igual à de muitos outros, subiu na vida à custa de protecção dos partidos do regime quando se encontram no governo, pôde explorar livremente os trabalhadores com salários miseráveis e jornadas de trabalho prolongadas, e os bens que adquiriu foram-no à custa invariavelmente da corrupção, e alguns políticos terão ficado igualmente ricos, embora pouco menos. Em processo que envolve o oligarca e a ex-candidata presidencial Ana Gomes, ouviu-se a acusação de que houve "alta corrupção" quanto à venda do navio pelos estaleiros de Viana do Castelo (ENVC), já em avançado estado de desmantelamento, ao mesmo empresário, e muito abaixo do seu real valor, o que terá permitido que passado pouco tempo o tivesses vendido por quase o dobro do preço (comprada por 9 milhões, vendida por 17 milhões, tendo custado ao estado 40 milhões de euros!).

A fim de criar uma opinião pública que lhes seja favorável estes oligarcas não hesitam em entrar na área dos media, assim se explica que o agora “suspeito de fraude qualificada e branqueamento de capitais” tenha adquirido 30% da TVI. Este caso, pelas principais características bastante semelhantes, faz lembrar uma outra família de emergentes, a de Belmiro de Azevedo, proprietária do grupo Sonae/Continente e do jornal Público, ou até do oligarca Paulo Fernandes, dono do grupo Cofina/Correio da Manhã e de várias celuloses e centrais de biomassa (Grupo Altri). Mas há mais, dando bem a ideia de uma burguesia subsídio-dependente, vivendo dos negócios com o estado, que então não é considerado “estado a mais”, ou beneficiando de facilidades que outros cidadãos não usufruem, quer por parte dos poderes públicos quer da banca; negócios sempre envoltos na mais pura e despudorada corrupção.

As etapas ou características do enriquecimento fácil

E, voltando à história do oligarca já falecido fundador do grupo Sonae, esta dá bem a medida do processo de enriquecimento destes novos ricos: primeiro, empréstimos “milagrosos” da banca para afastar a família do antigo sócio; segundo, privatizações envoltas em corrupção, caso do BPA, depois BCP; terceiro, engenharia financeira manhosa através de OPVs, facilitadas pelos governos de Cavaco, coadjuvado pelo ministro das Finanças Cadilhe e do secretário de estado Elias da Costa, que, talvez como recompensa, passou mais tarde para o universo Sonae; quarto, exploração desenfreada dos trabalhadores, ficando célebre a frase do patriarca “vale mais ter um salário baixo do que estar no desemprego”; quinto, fazer negócios com estado português, caso do Brasil; sexto, beneficiar em todas as operações em que se meteu de elevados benefícios fiscais; sétimo, não pagar ou pagar pouco impostos no país e deslocar a sede do grupo para a Holanda.

As virtudes do empresário português resumem-se a corrupção, roubo, exploração dos trabalhadores e protecção política. Uma banca facilitadora, que por vezes não parece acautelar os seus interesses (caso Berardo, por exemplo), onde a corrupção funciona como óleo lubrificante, porque sabe que o Estado é sempre o avalista; a mesma corrupção envolve as privatizações com a troca de favores, sendo incontáveis os ex-políticos que foram aterrar em conselhos de administração de bancos ou de empresas estrangeiras que abocanharam as empresas públicas nacionais; ou as grandes obras do regime, com os ex-ministros facilitadores a irem também para os conselhos das administrações das empresas que enriqueceram, casos mais conhecidos: Ferreira do Amaral e Jorge Coelho – pode-se perguntar para que empresas irão António Costa e seu pupilo Pedro Nuno Santos quando se “reformarem” da política?

O surgimento e o engordar da nossa classe empresarial, constantemente elogiada pelos media que ela própria possui, com jornalistas vozes-do-dono prontos à bajulação, assentam na mais despudorada a abjecta exploração dos trabalhadores, facilitada pela legislação continuamente alterada no sentido da eficiência na extorsão da mais valia. Sempre sob o mando e o controlo de Bruxelas e do FMI, que periodicamente por cá vai dando uns “conselhos” aos governantes, provando que o FMI, e a troika em geral, afinal não se foi embora.

O roubo sob o alto auspício do FMI e de Bruxelas

Esta prestimosa instituição preocupa-se com os ignaros governantes e com a própria plebe sobre o modo de bem gerir a riqueza que aqui é produzida, mas sempre com o mesmo resultado final, apesar de às vezes mudar ligeiramente o discurso quando os resultados anteriores são demasiados desastrosos, ou seja, fazer enriquecer ainda mais os capitalistas e empobrecer de forma irreversível os trabalhadores. Desta vez, o FMI quer mexidas no sistema de pensões, que devem ser ainda mais baixas e, embora não o diga abertamente, privatizar um dia destes todo o sistema de segurança social, como a vizinha Espanha pretende já fazer, não deixando de evocar demagogicamente a sua sustentabilidade. Ora, esta “sustentabilidade” mais não é do que manter e fazer aumentar o bolo que, depois, será tragado pelos bancos e fundos de investimento estrangeiros que já por aqui andam a rondar.

E o FMI vai ainda mais longe, quer controlo orçamental, alegando preocupação com a dívida pública, não dizendo que esta aumentou substancialmente devido à salvação da banca privada com os dinheiros públicos por sua imposição, mas agora serve de justificação para não se investir na parte social (saúde, educação, etc.), porque se trata de criar uma economia “mais resiliente” e permitir o crescimento económico; o que seria até contraditório se não se tratasse mais concretamente do crescimento da riqueza das empresas, nomeadamente e mais propriamente dos grandes acionistas. A contenção dos salários e a flexibilização do emprego fazem parte do pacote, daí o governo PS/Costa ter aprovado sozinho as alterações ao Código do Trabalho, e não será com certeza para fazer diminuir a precariedade ou o recurso ao segundo emprego por parte de muitos trabalhadores, sendo Portugal um dos países que mais viu crescer esta situação nos últimos tempos. A receita já é velha e relha, ricos mais ricos, trabalhadores mais pobres; foi com a pandemia, será com a guerra; mas a acumulação e concentração do capital acelera-se sempre nestes períodos, está-lhe na natureza.

Os fundos serão sempre “bem” entregues

O FMI poderá ficar também descansado no que toca às medidas financeiras e estruturais, e em relação às quais não se cansa de avisar, porque o governo que temos tem como ponto de honra ser um bom aluno. Quanto à sustentabilidade da banca que opera entre nós, o governo PS/Costa não olha a meios, por exemplo, de ir continuamente injectando mais uns milhões no Novo Banco que parece ser um poço sem fundo (talvez mais de 4 mil milhões de euros), agora foram 155 milhões de euros (de um total de 346 milhões de euros) que “desapareceram” só de três devedores, cujos bens o governo recusa expropriar a fim de se ressarcir dos prejuízos, mostrando que o crime quando praticado pelos grandes capitalistas compensa. Recentemente, a auditoria realizada pela Deloitte detetou um desvio de 61 milhões de euros em processo de reavaliação de 23 imóveis, conta que também será paga pelo Zé contribuinte. Com a desculpa da guerra da Ucrânia, Costa gaba-se de ter já gastado 1.682 milhões de euros para alegadamente “conter” a inflação; mas que, na realidade, à semelhança do que acontecera com a pandemia da covid-19, foi para financiar as empresas que não podem ver os seus lucros a baixar, em vez de tabelar os preços dos bens de primeira necessidade ou, caso houvesse açambarcamentos, intervir directamente na distribuição ou até na produção.

E em relação às medidas estruturais, concretamente quanto à distribuição dos dinheiros do PRR (Plano de Recuperação e Resiliência), igualmente não haverá motivo de preocupação, o governo PS/Costa está a dar bem conta do recado, como se comprova pelo caso, já relatado, do financiamento das empresas, ou mais do próprio, do oligarca Mário Ferreira, apesar das acusações já antigas de fuga ao fisco e branqueamento de capitais. O instrumento, que foi reclamado insistentemente pela nossa (pouco) laboriosa e (muito) imaginativa classe empresarial durante os últimos tempos, está a mostrar-se eficaz, porque não só distribui os milhões pelos capitalistas certos do regime como ele próprio fomenta e contém em si a corrupção: Banco de Fomento entregou seis milhões de euros em ajustes directos. Mais detalhadamente: fez 73 contratos sem concurso em 23 meses; contrata serviços especializados, mas perde pessoas da IFD; os serviços jurídicos custam 1,7 milhões de euros; e a consultora Oliver Wyman foi a que mais facturou. Decididamente, uma criança precoce e brilhante, com apenas 23 meses o “Banco Português de Fomento contratou externamente serviços e bens no valor de 8,8 milhões de euros, dos quais seis milhões foram entregues em 73 ajustes directos” – diz a imprensa.

Uma justiça de classe e ao serviço do enriquecimento da elite

Uma outra via para o enriquecimento fácil e rápido da prestimosa burguesia indígena emergente são os benefícios e perdões fiscais; e quando é intimada a pagar o que deve ao fisco, há invariavelmente um tribunal arbitral, constituído por advogados que litigam contra o estado e a favor das empresas caloteiras, acabando, como é óbvio, por estas ganharem a maioria das contendas: “Fisco só vence 23% dos processos no tribunal arbitral” (da imprensa). Ou seja, a Autoridade Tributária (o Estado) perde a grande maioria dos processos acima de 100 mil euros, que são julgados no Centro de Arbitragem, e se a empresa designar o árbitro (juiz), aquela tem a certeza quase absoluta de ganhar o processo, pela simples razão de que este esquema já foi montado com esse objectivo, safar os grandes contribuintes (empresas, capitalistas, especuladores, etc.) enquanto os pequenos pagam por eles todos.

Mas ainda mais perigoso, e que talvez tenha passado despercebido aos olhos da maioria dos portugueses comuns, é o recente acórdão do TC (Tribunal Constitucional) que abre a porta a processos de grandes investidores contra o Estado, ao dar razão aos centros comerciais sobre o não pagamento das rendas das pequenas lojas ali localizadas; durante a pandemia, estiveram fechadas, mas agora terá de ser o estado a indemnizar os acionistas das grandes superfícies que, pelos vistos, não podem ser prejudicados – ou como os custos da pandemia não foram repartidos de igual maneira por todos os cidadãos. Este acórdão, 468/2022, que vem reforçar “o direito de crédito”, é abertamente a favor da ganância e do enriquecimento ilícito e é produzido por um tribunal, no mínimo, inútil, para não dizer pernicioso, pelo facto de ser redundante, por já existir um Supremo Tribunal de Justiça, e dos seus titulares serem de nomeação política – ou como a justiça acaba por ser um instrumento para o enriquecimento abusivo.

A revolução poderá estar ao virar da esquina

O FMI – é sempre o FMI! – “aconselha” como “medidas de resposta à subida acentuada dos preços da energia”, mas de “forma temporária” por causa do défice das contas públicas, as estritamente necessárias para “mitigar o impacto nas famílias vulneráveis”. A preocupação não será exactamente o possível aprofundar das assimetrias e injustiças sociais, mas mais prevenir possíveis revoltas populares, como está a ocorrer presentemente no Sri Lanka, com o povo a derrubar na rua os principais responsáveis do estado e, empurrado pela sua situação de miséria, chegou ao ponto de invadir as residências oficiais e deitar-lhes o fogo. O grande capital financeiro, pela voz dos seus principais representantes internacionais, teme que a imposição de mais medidas de austeridade, embora revestidas pelo invólucro da “inevitabilidade”, falsamente justificadas pela guerra ou pandemia, possam desencadear revoltas pelo mundo fora e estas, por sua vez, desembocarem numa revolução a nível mundial. Por cá, a maioria absoluta não irá proteger nem o Costa nem o PS e nem a nossa supérflua, inútil e parasitária burguesia, caso o povo se revolte. Isso irá acontecer inevitavelmente, nem que seja pela razão do 25 de Abril ter sido, do ponto de vista do proletariado, uma revolução castrada ou uma falácia.

Imagem retirada do twitter de António Costa 

 

sábado, 9 de julho de 2022

O Velho e o Mar

 

Ernest Hemingway

O Velho e o Mar é, seguramente, o livro mais poético de todos os que Hemingway escreveu, o mundo de O Velho e o Mar é o mundo da reconciliação e da amizade, da luta contra a adversidade e o destino. Nas palavras de Jorge de Sena, no prólogo da edição portuguesa de 1956, “é um breve poema em prosa, uma epopeia de trama simples, singelamente narrada. Mas é, por outro lado, muito mais do que isso: um breviário nobilíssimo da dignidade humana, escrito com a mais requintada das artes. Poucas vezes, no nosso tempo, terá sido concebida e realizada uma obra tão pura, em que a natureza e a humanidade sejam, frente a frente, tão verdade”. 

*

Já não podia ver o verde da costa, apenas avistava os cumes das colinas azuis, esbranquiçadas como se estivessem cobertas de neve e as nuvens, que pareciam grandes montanhas brancas por cima das colinas. O mar estava muito escuro e a luz formava prismas na água. Os milhões de reflexos na água eram agora anulados pelo sol, que estava alto, e o velho só via os prismas muito profundos na água azul e as linhas a cair verticalmente para o fundo do mar, que naquela zona tinha mais de uma milha de profundidade.

Os atuns – os pescadores chamavam assim a todos os peixes daquela espécie e só os diferenciavam pelos seus nomes próprios quando os vendiam ou os trocavam por isca – haviam de novo mergulhado e não mais eram vistos em nenhum lugar. O sol estava muito mais quente e o velho o sentiu na parte posterior do pescoço, de onde o suor lhe escorria pelas costas enquanto remava.

“Podia ir à deriva”, pensou ele, “e dormir um pouco com aponta da linha atada no pé, para me acordar se algum peixe mordesse. Mas hoje é o octogésimo quinto dia e devo pescar o melhor possível.”

Neste momento, quando examinava as linhas, viu uma das varas verdes dobrar-se violentamente.

– Pronto, disse o velho. Pronto, e arrumou os remos, fazendo por não estremecer o barco. Agarrou na linha e segurou-a suavemente entre o polegar e o indicador da mão direita. Não sentiu nenhuma força nem peso e continuou a segurar na linha com suavidade. Depois, sentiu outro puxão. Desta vez era um puxão ligeiro, quase suave, e ele sabia exactamente o que era. A uns cento e cinquenta metros de profundidade, um espadarte estava comendo as sardinhas que cobriam a ponta do anzol que se projectava da cabeça do atum-isca. O velho tinha a linha suavemente presa nos dois dedos e, delicadamente, com a mão esquerda, a desprendeu da vara. Agora podia deixá-la correr pelos dedos sem que o peixe sentisse qualquer tensão.

– Assim tão longe de terra, e neste mês, deve ser enorme. Coma a isca, peixe! Coma. Coma, por favor. São tão frescas e você está aí tão fundo, a cento e cinquenta metros, nessa água fria da escuridão. Dê uma volta no escuro e depois volte para comer toda a isca.

Sentiu um puxão muito ligeiro e depois um esticão mais violento, possivelmente devido a uma cabeça de sardinha ter-se tomado mais difícil de arrancar do anzol. Depois não sentiu mais nada.

– Vamos! exclamou o velho em voz alta. Dê outra volta. Cheire-as. Não é verdade que são deliciosas? Coma-as todas agora e depois ainda lhe restará o atum. Duro e frio e saboroso. Não seja tímido, meu peixe. Coma-as.

Ficou à espera, com a linha segura entre o polegar e o dedo indicador, observando alinha e também as outras ao mesmo tempo, pois o peixe podia ter nadado por outro nível, mais acima ou mais abaixo. Depois, tomou a sentir o mesmo puxão delicado.

– Vai comê-las, falou o velho pescador. Deus o ajude a comê-las.

Mas o peixe não trincou. Afastou-se de novo e o velho não sentiu mais nada.

– Não é possível que tenha ido embora, murmurou o velho. Deus sabe que não pode ter ido embora. Está dando uma volta. Talvez já tenha alguma vez mordido algum anzol e esteja agora a lembrar-se disso.

Mas, pouco depois, voltou a sentir o peixe. Sentiu-se muito feliz.

-Tinha ido dar uma volta, disse o velho. Não tarda a morder.

Estava radiante com aquela pressão suave na linha e, passados poucos segundos, sentiu um esticão violento e incrivelmente forte. Era o peso do peixe, e deixou a linha correr para baixo, para baixo, para baixo, desenrolando os dois primeiros rolos de reserva. À medida que ia descendo, deslizando ligeiramente pelos seus dedos, podia ainda perceber o grande peso, embora a pressão no polegar e no indicador fosse quase imperceptível.

-Mas que peixe! exclamou. Agarrou o atum e está afastando-se com ele na boca.

“Depois há de parar, dar uma reviravolta e engoli-lo”, pensou o velho pescador. Não disse isto em voz alta, porque sabia que, se dissesse uma coisa boa, talvez ela não acontecesse. Estava certo de que se tratava de um peixe enorme e imaginou-o a mover-se na escuridão com o atum atravessado na boca. Sentiu-o parar, mas o peso ainda continuava presente. Depois o peso aumentou e deu-lhe mais linha. Apertou a pressão do polegar e do indicador durante um momento e o peso tornou a aumentar, afastando-se rapidamente para baixo.

– Já trincou a isca! exclamou o velho, muito feliz. Agora tenho de deixá-lo comer a isca em paz.

Soltou a linha de forma que um bom pedaço deslizasse para a água e com a mão esquerda ligou a ponta dos rolos de reserva à ponta dos dois rolos de reserva as outras linhas. Agora estava pronto. Tinha duzentos e vinte metros de linha de reserva, além do rolo em uso.

– Coma um pedaço mais, pediu ele. Coma bem.

“Coma-a de maneira que a ponta do anzol lhe espete o coração e o mate”, pensou o pescador. “Venha à tona sem grandes dificuldades e deixe-me agarrá-lo com o arpão. Pronto. Está pronto? Já comeu bastante?”

– Agora! exclamou em voz alta, agarrando na linha com as duas mãos e começando a puxar com força. Recuperou um metro de linha e depois puxou e tornou a puxar, estendendo cada braço alternadamente sobre a linha com toda a força dos músculos e todo o peso de seu corpo bem equilibrado no banco.

Não aconteceu nada. O peixe deslocou-se lentamente e o pescador não conseguiu içá-lo nem um centímetro. A linha era forte e feita especialmente para suportar o peso de peixes grandes. O velho passou-a pelas costas e aguentou o peso do peixe, esticando-a tanto, que começaram a escorrer-lhe gotas de água pelas costas abaixo. Depois a corda começou a produzir uma espécie de assobio na água e ele continuou a segurá-la, esforçando-se para não ser cuspido do barco e inclinando-se para trás a fim de resistir à pressão. O barco principiou então a mover-se lentamente para nordeste.

O peixe avançava regularmente e foram-se afastando lentamente sobre a água calma do mar. O resto da isca ainda estava na água, mas era impossível puxá-la para o barco.

– Gostaria de ter aqui comigo o rapaz, falou o velho em voz alta. Estou sendo rebocado por um peixe e sou eu o poste ao qual está preso o reboque. Podia puxar mais a linha. Mas ela podia partir-se. Preciso aguentar enquanto puder e dar-lhe linha quando for preciso. Graças a Deus que está avançando a direito em vez de ir para o fundo.

“Que fazer se ele for para o fundo, é que não sei. O que hei, de fazer se ele mergulhar ou partir disparado, não sei. Mas farei qualquer coisa. Há uma porção de coisas que possa fazer.”

Continuou com a linha às costas e observou-lhe o declive na água enquanto a canoa não cessava de se mover lenta mas regularmente, para nordeste.

“Isto acabará por matá-lo”, pensou o velho. “Não pode continuar assim toda a vida.” Mas quatro horas depois o peixe ainda continuava a nadar compassadamente para o largo, rebocando a canoa, e o velho continuava firmemente instalado com a linha pelas costas e as duas mãos a segurá-la com quanta força tinham ainda seus velhos músculos.

– Era meio-dia quando o pesquei, disse. E ainda nem sequer o vi.

Puxara o chapéu de palha dura para a frente antes de agarrar o peixe e agora estava a cortar-lhe a testa. Tinha sede também e ajoelhou-se, com cuidado para não abanar a linha, movendo-se dificilmente para onde estava a garrafa de água que finalmente conseguiu agarrar com uma mão. Abriu-a e bebeu um trago. Depois encostou-se ao mastro. Ficou sentado, descansando, e tentou não pensar: apenas aguentar.

Depois olhou para trás e verificou que já não via terra. “Não faz diferença”, pensou. “Para voltar posso sempre guiar-me pelo resplendor de Havana. Ainda faltam duas horas para o pôr do sol e pode ser que ele venha à tona antes disso. Se assim não for, pode ser que venha para cima com a lua. E se isso também não acontecer, pode ser que se decida a vir à tona com o nascer do sol. Não tenho cãibras e sinto-me forte. Quem tem o anzol na boca é ele. Mas que peixe deve ser para puxar desta maneira! Deve ter a boca fechada sobre o anzol. Gostaria de poder vê-lo. Gostaria de ver uma só vez para saber o que tenho pela frente.”

O peixe não mudou de rumo ou de direcção durante toda a noite, ou, pelo menos, que o pescador, pelo que lhe diziam as estrelas, tivesse notado. Fizera muito frio depois do pôr do sol e o suor secara-lhe nas costas, nos braços e nas velhas pernas, arrefecendo-o ainda mais. Durante o dia tirara o saco que cobria a caixa da isca e estendera-o ao sol para secar. Depois que o sol desaparecera no horizonte, atara-o à volta do pescoço, de forma a cair-lhe sobre as costas, e colocara cuidadosamente um pedaço de pano debaixo da linha, que agora levava presa ao ombro. O saco servia de almofada à linha e o velho descobrira uma maneira de se curvar para a frente de encontro ao mastro, de modo que chegava a ser quase confortável. Na realidade a posição era um pouco mais tolerável mas ele a considerava quase confortável.

“Não posso fazer nada com ele, e ele não pode fazer nada comigo”, pensou o velho pescador. “Ou pelo menos, enquanto continuar com este andamento.”

Teve de se levantar uma vez para fazer suas necessidades pela borda fora e aproveitou a ocasião para olhar para as estrelas e saber o rumo que levavam. A linha parecia um raio de luz fosforescente na água que lhe nascia nos ombros. Agora iam mais devagar e era menor o clarão da cidade de Havana que se via ao longe. Por isso o velho sabia que a corrente os devia estar levando para leste. “Se o clarão de Havana desaparecer de todo, quer dizer que estamos indo para leste”, pensou ele. “Mas se a direcção que o peixe leva, continuara mesma, deverei avistar o resplendor da cidade durante muitas horas ainda. Quais teriam sido hoje os resultados do baseball nas Ligas principais? Seria maravilhoso se eu tivesse um aparelho de rádio.” Depois disse de si para si: “Pense constantemente no peixe. Pense no que está fazendo. Você não deve distrair-se nem um minuto.”

E em voz alta:

– Gostaria tanto de ter aqui o rapaz! Para me ajudar e para ver isto.

“Pessoas da minha idade nunca deviam estar sozinhas", pensou ele. “Mas é inevitável. Tenho de comer aquele atum antes que comece a luta, para estar forte. Lembre-se de que, mesmo que não tenha fome, você precisa comer de manhãzinha. Lembre-se”, repetiu-o em pensamento.

Durante a noite dois porcos-marinhos aproximaram-se do barco e o velho ouviu-os a rolar na água e a soprar com força. Notou a diferença entre o soprar do macho e o da fêmea.

– São bons, murmurou o velho. Brincam e fazem partidas um ao outro e amam-se. São nossos irmãos, tal como os peixes-voadores.

Depois começou a ter pena do enorme peixe que agarrara. “É maravilhoso e estranho e quem saberá que idade tem?!” pensou o velho. “Nunca pesquei um peixe tão pesado e tão estranho. Talvez seja demasiadamente inteligente para saltar. Podia acabar comigo se saltasse ou se se lançasse numa disparada louca. Mas talvez já tenha sido engodado mais vezes e saiba que é assim que deve levar a cabo a sua luta. Não tem meios de saber que sou apenas um homem contra ele, nem que sou apenas um velho. Mas que grande peixe que é ele e que fortuna deve valer no mercado, se tiver boa carne. Agarra na isca como um macho e puxa como um macho e na sua luta não há pânico. Terá algum plano ou estará tão desesperado como eu?”

Lembrou-se do tempo em que pescara um casal de espadartes. O peixe macho deixa sempre que a fêmea se alimente primeiro e de fato assim fora: a fêmea mordeu a isca e, sentindo-se presa, encheu-se de medo, lançando-se numa luta selvagem e desesperada que depressa a cansou. E durante todo esse tempo o macho ficou ao lado dela, atravessando a linha e circundando-lhe em volta à tona da água. Andara tão perto, que o velho chegara a ter medo que ele cortasse a linha com a cauda, tão aguçada e quase tão grande como uma foice das maiores. Quando o velho a enganchou e lhe deu uma série de pancadas que a deixaram quase morta e, depois, com a ajuda do rapaz, a içou para bordo, o macho ainda continuou junto ao barco. Depois, quando o velho estava limpando as linhas e preparando o arpão, deu um grande salto no ar mesmo ao lado do barco, para ver onde estava a fêmea, e voltou a mergulhar nas profundezas, com as asas brancas, as barbatanas peitorais, completamente abertas. E ficou imóvel nessa posição. Era lindo, lembrava-se o velho pescador. E assim permanecera durante muito tempo, de barbatanas abertas, numa posição majestosa e dolorida.

“Foi a coisa mais triste que vi desde que ando a pescá-los”, pensou o velho. “O rapaz também ficou triste e pedimos desculpas ao peixe fêmea e cortamo-lo muito depressa.”

– Gostaria tanto que o rapaz estivesse aqui, disse em voz alta. Ajeitou-se de encontro à madeira arredondada do barco, sentindo o peso do grande peixe na linha que aguentava aos ombros, a afastar-se regularmente em direcção de fosse qual fosse o lugar que havia escolhido.

“Porque, afinal, foi por causa da minha traição que ele se viu obrigado a escolher um local para onde fugir”, pensou o velho.

“A sua escolha inicial fora a de se esconder nas águas escuras e profundas, para além de todos os laços, armadilhas e traições. A minha escolha fora a de ir procurá-lo onde jamais alguém ousara ir. Sim, onde alguém jamais ousara ir. E agora estavam juntos um ao outro e assim se encontravam desde o meio-dia. E não havia ninguém para ajudar nem a um nem a outro.”

“Talvez eu não devesse ter escolhido a vida de pescador", pensou o velho. “Mas foi para isso que eu nasci. Não posso esquecer-me de comer a albacora logo que amanhecer.”

Um pouco antes do nascer do dia alguma coisa mordeu a isca de uma das outras linhas que vinham sendo arrastadas pelo barco. Ouviu avara partir-se e a linha começar a correr sobre a amurada do barco. Na escuridão tirou a faca da bainha e, com o peso todo do peixe aos ombros, dobrou-se para trás num esforço enorme e cortou a outra linha contra a madeira da amurada. Depois cortou a linha que estava mais perto dele e na escuridão ligou as pontas soltas dos rolos de reserva das duas linhas que cortara. Trabalhava habilidosamente apenas com uma mão pondo o pé sobre os rolos enquanto apertava os nós com força. Agora tinha seis rolos de reserva que poderia usar na linha que segurava o peixe. Quatro dos rolos eram das linhas que cortara e os outros dois eram da linha que agora usava e estavam todos ligados entre si.

“Quando amanhecer”, pensou o velho, “tenho de alcançar aquela outra linha de setenta metros, cortá-la também e ligar mais esses dois rolos de reserva. Perderei ao todo uns cento e oitenta metros de bom cordel catalão além dos anzóis. Mas tudo isso pode ser substituído. E o que poderia substituir este peixe, se outros peixes mordessem o anzol e se enredassem todas as linhas? Não sei que peixe terá há pouco mordido a isca. Podia ter sido um atum ou um golfinho ou então um tubarão. Nem o cheguei a sentir. Tive de soltá-lo depressa demais.”

– Gostaria tanto de ter aqui o rapaz.... disse em voz alta.

“Mas o rapaz não está aqui”, pensou. “Você só tem a você mesmo e agora o melhor que tem a fazer é chegar àquela outra linha, escuro ou não escuro, cortá-la e depois ligar os dois rolos de reserva.”

E assim fez. Na escuridão era difícil fazê-lo e a certa altura O peixe deu um salto que esticou a corda e o atirou ao fundo do barco, ocasionando-lhe um talho debaixo do olho. O sangue correu-lhe pelo rosto abaixo, embora não fosse um ferimento muito grande, e coagulou mesmo antes de chegar ao queixo. O velho ergueu-se, voltou para o banco e encostou-se de encontro à madeira da amurada. Ajustou o saco e, cuidadosamente, moveu a linha de maneira que passasse para o outro lado do ombro e, com ela atravessada pelas costas, sentiu o peso do peixe, que corria cada vez mais depressa. Meteu a mão dentro da água e calculou a velocidade que a canoa levava.

“Gostaria de saber por que é que ele deu aquele salto”, pensou o velho. A linha deve ter escorregado no seu enorme dorso. Mas certamente que as minhas costas estão mais doridas do que as dele. É impossível que possa continuar a arrastar assim o barco. Mesmo que seja um gigante, não poderá continuar assim durante muito mais tempo. Agora já eliminei tudo que poderia trazer complicações e tenho uma grande reserva de linha; um pescador não precisa de mais.”

– Peixe, falou ele, não o largo enquanto viver.

"E ele também não me abandonará, suponho”, pensou o velho, esperando ansiosamente que o dia nascesse. Agora, antes do alvorecer, fazia muito frio e ele encostou-se mais ao banco para se aquecer. “Posso aguentar tanto tempo como ele”, pensou o velho.

Com a primeira luz da madrugada viu a linha que se estendia sobre a água e mergulhava obliquamente

a poucos metros da canoa. O barco movia-se muito regularmente e quando o sol apareceu veio-lhe aquecer o ombro direito.

– Vai com rumo norte, disse o pescador. “A corrente, ter-nos-ia levado mais para o nascente”, pensou. “Gostaria mais que ele fosse ao sabor da corrente. Isso significaria que já está cansado.”

Quando o sol se levantou mais no horizonte, o velho Santiago compreendeu que o peixe ainda não estava cansado. Só havia uma indicação favorável. A inclinação da linha mostrava que ele estava nadando mais à tona. Isso não queria necessariamente dizer que ele fosse saltar ou lutar. Mas podia ser que sim.

– Deus queira que ele salte, disse o velho. Tenho bastante linha para dar-lhe.

“Talvez, se eu aumentar um pouco a pressão, ele se magoe e se decida a saltar. Agora que já está dia claro tenho que o fazer saltar, para que os sacos da espinha dorsal se encham de ar e ele não possa ir para o fundo e lá morrer.”

Tentou aumentar a pressão, mas a linha fora esticada ao máximo desde que agarrara o peixe e ele sentiu a aspereza quando puxou, percebendo que não poderia esticá-la mais. “Não posso agitar a linha”, pensou ele. “Cada sacudidela alarga a ferida do anzol que poderá desprender-se quando ele começar a saltar. De todos os modos sinto-me agora melhor com o sol a aquecer-me e sem ter que olhá-lo de frente.”

Viam-se algas amarelas agarradas à linha, mas o velho sabia que apenas representavam mais peso para o peixe puxar e este pensamento lhe foi agradável. Eram algas amarelas do Gulf Stream , daquelas que produziam tanta fosforescência durante a noite.

– Peixe, disse o velho, eu gosto muito de você e o respeito muito. Mas vou matá-lo antes do fim do dia.

“Ou pelo menos assim espero”, completou em pensamento.

Um pequeno pássaro, vindo do Norte, veio em direcção ao barco. Era uma ave canora e voava muito baixo, quase à tona da água. O velho compreendeu que ela estava muito cansada.

O pássaro conseguiu chegar ao barco e pousou na proa. Depois esvoaçou à volta da cabeça do velho e foi pousar na linha, onde estava mais confortável.

– Que idade você tem? perguntou o velho à avezinha. Será esta a sua primeira viagem?

O pássaro olhou para ele quando ouviu a voz. Estava tão cansado que nem olhou para a linha e ali ficou a tremer, com as delicadas patas agarradas nervosamente à linha.

– Não tenha medo, a linha está segura, bem segura, disse-lhe o velho. Demasiado segura e quieta. Você não devia estar assim tão cansado depois de uma noite sem vento. Por que será que os pássaros vêm para aqui?

“Para alimentar os falcões”, pensou ele, “que vêm para o mar procurá-los.” Mas não disse nada disto à avezinha, que de qualquer modo não podia compreender e que depressa travaria conhecimento com os falcões.

– Repouse bem, pequena ave, aconselhou-lhe o velho. Depois siga viagem e arrisque-se como qualquer homem, pássaro ou peixe.

O velho sentia-se melhor conversando com o pássaro, pois as costas lhe tinham endurecido durante a noite e agora doíam de verdade.

– Fique aqui na minha casa se quiser, avezinha. Lamento não poder içar a vela e levá-la para terra com a pequena brisa que está soprando. Mas agora estou com um amigo.

Nesse momento o peixe deu um esticão que atirou o velho para a proa e o teria lançado ao mar se ele não se tivesse agarrado com força e dado mais linha rapidamente.

O pássaro levantara voo quando a linha estremeceu o velho nem sequer o viu desaparecer no céu. Com muito cuidado apalpou a linha com a mão direita e notou que ela estava sangrando.

– Alguma coisa o magoou naquele momento, disse em voz alta, e puxou a linha para ver se o peixe continuava a oferecer a mesma resistência. Mas quando a linha tornou a esticar-se ao ponto máximo, em que bastava uma pressão um pouco maior para parti-la, o velho tornou a sentar-se e a aguentá-la como até então.

– Já a está sentindo, meu peixe, disse o velho, e eu, Deus o sabe, também estou.

Voltou à procura do pássaro porque gostava da sua companhia. Mas o pássaro tinha desaparecido.

“Você não ficou muito tempo”, pensou o pescador. “Mas antes de chegar à costa vai apanhar mau tempo todo o caminho. Como é que eu deixei que o peixe me cortasse a mão com aquele esticão súbito? Devo estar ficando muito estúpido. Ou talvez estivesse a olhar para o pássaro e a pensar nele. Agora tenho de prestar toda atenção ao que estou fazendo; preciso também comer o atum para que as forças não me faltem.”

– Gostaria tanto que o rapaz estivesse aqui e também de ter um pouco de sal...

Mudando o peso da linha para o ombro esquerdo e ajoelhando-se cautelosamente, lavou a mão no oceano e deixou-a ficar, submersa, durante mais de um minuto, observando o sangue que se espalhava pela água e o movimento da água de encontro à mão à medida que o barco avançava.

- Já vai muito mais devagar, disse o velho pescador.

Teria gostado de conservar mais tempo a mão na água salgada, mas tinha medo de que o peixe desse outro esticão inesperado e levantou-se a custo, erguendo a mão para o sol. Fora apenas a fricção da linha que lhe ferira a carne. Mas era na parte mais necessária da mão. Sabia que precisaria usar as duas mãos antes de tudo acabar e não gostava de se ferir antes do começo do fim.

– Agora, murmurou, quando a mão, aquecida pelo sol, secou completamente, tenho de comer o pequeno atum. Posso puxá-lo com o gancho e comê-lo aqui sem ter de me levantar de novo.

Pegou no gancho, estendeu-o para a popa onde estava o atum e puxou-o para junto de si, tendo cuidado em não embaraçar os rolos de linha. Tornando a colocar a linha sobre o ombro esquerdo e usando o braço esquerdo, tirou o peixe do gancho e tornou a arrumá-lo no seu lugar. Pôs um joelho sobre o atum e começou a cortar desde a cabeça à cauda, tiras longitudinais de carne vermelho-escura. Cortava-as do começo da espinha dorsal até a ourela da barriga. Depois de cortar seis tiras, estendeu-se no fundo da proa, limpou a faca nas calças, pegou na carcaça do peixe pela cauda e atirou-a na água.

– Não me parece que possa comer o peixe todo, disse em voz alta, e passou a faca por uma das tiras. Sentia a pressão contínua da linha e tinha cãibras na mão esquerda. Tinha a mão agarrada à volta da linha, rígida e inerte, e olhou-a com uma expressão aborrecida.

-Que espécie de mão é esta? perguntou com desprezo. Toda cheia de cãibras. Até parece uma garra sem vida. Não presta para nada.

“Vamos”, pensou, olhando para o declive da linha a mergulhar obliquamente nas escuras águas. “Coma o atum agora para dar mais força às mãos. Aquela mão não tem culpa e já se passaram muitas horas desde que senti o peixe pela primeira vez. Mas, se calhar, terei de andar atrás dele a vida toda. Coma agora.”

Pegou numa das tiras e levou-a à boca, mastigando-a lentamente. Não era desagradável.

“Mastigue bem”, pensou o velho, “saboreie o suco. Não seria nada mau se pudesse comê-lo acompanhado de limão e sal.”

– Como é que você se sente, mão? perguntou ele à mão tomada de cãibras, tão inerte que parecia de uma rigidez cadavérica. Vou comer mais por sua causa.

Comeu a outra parte do pedaço que cortara em dois. Mastigou lentamente e depois cuspiu a pele no mar.

– E agora está melhor, mão? Ou ainda é muito cedo para o sentir.

Pegou noutra tira e meteu-a toda na boca, mastigando-a cuidadosamente.

– Era um peixe forte e saudável, disse ele. Tive sorte em o apanhar, em vez de um golfinho. Os golfinhos são demasiado doces. Este quase não é doce e tem um sangue fresco e forte.

“Não é bom pensar no que não é possível nem razoável, mas gostaria tanto de ter aqui um pouco de sal! Não sei se o sol secará ou apodrecerá o resto do peixe e o melhor é que eu acabe de comê-lo apesar de não ter fome nenhuma: O peixe agora está mais calmo, nadando mais devagar. Vou acabar de comer e depois terei mais forças para a luta final.”

– Tenha paciência, mão, disse ele. Estou comendo isto para lhe dar forças.

“Gostaria de poder alimentar o peixe”, pensou. “Ele é como se fosse meu irmão. Mas tenho de matá-lo e ganhar forças para o fazer.”

Lenta e conscienciosamente comeu todas as tiras de peixe que restavam.

Endireitou-se, limpando a mão nas calças.

– E agora, mão, você pode largar a linha, que vou usar apenas o braço direito até que passe essa estúpida cãibra.

Pôs o pé esquerdo na pesada linha que estivera segura pela mão esquerda e dobrou-se para trás a fim de resistir melhor à sua pressão.

– Deus ajude essa cãibra a ir-se embora, pois não sei o que o peixe vai fazer e como é que hei de combatê-lo.

“Mas agora parece calmo”, pensou o velho, “e dir-se-ia seguir um plano bem definido. Que plano será esse?” continuou o velho a pensar. “E qual é o meu plano? O meu terá de ser improvisado conforme ele agir, pois é um peixe muito grande. Se ele saltar, posso matá-lo. Mas ainda nem sequer veio à tona. Por isso melhor é continuar a pensar que não virá para cima tão depressa.”

Esfregou a mão da cãibra nas calças, e tentou mover os dedos. Mas a mão não queria abrir-se. “Talvez se abra com o sol”, pensou. “Talvez se abra quando a carne forte do atum cru for digerida. Se não puder prescindir dela, tenho de abri-la, custe o que custar. Mas por enquanto não quero abri-la à força. Esperarei que se abra naturalmente e recupere a mobilidade por si própria. Afinal de contas, devo reconhecer que abusei dela durante a noite, quando foi necessário desprender e atar as diversas linhas.”

Olhou para o mar que se perdia no horizonte e verificou quão só estava agora. Só podia ver os prismas na água profunda e alinha estendendo-se à frente do barco e a estranha ondulação calma do mar. As nuvens estavam subindo cada vez mais, por causa da mudança do vento. O velho olhou para o norte e viu um bando de patos bravos a delinear-se no céu sobre o mar. Depois desapareceu e tornou a aparecer ao longe. Na verdade, no mar alto, nunca se está completamente só.

Pensou naqueles homens que temiam afastar-se muito da costa num barco pequeno e sabia que eles tinham razão nos meses de mau tempo. Mas agora estava-se em mês de ciclones e, quando não há ciclones, estes meses são os melhores do ano.

“Quando há um ciclone, vêem-se sempre sinais no céu alguns dias antes, se se estiver no mar, naturalmente. Em terra firme não os sabem prever porque não conhecem os sinais”, pensou ele. “A forma das nuvens também deve ser diferente; em terra firme. Mas agora não há o menor sinal de tempestade ou ciclone.”

Olhou para o céu e viu os brancos cúmulos amontoados como agradáveis pilhas de sorvetes e, mais para cima, as frágeis plumas dos cirros distinguiam-se nitidamente no céu límpido de Setembro.

-Brisa ligeira, disse o velho. Melhor tempo para mim do que para você, peixe.

Ainda tinha a maldita cãibra na mão esquerda, mas ia recuperando os movimentos lentamente.

“Detesto as cãibras”, pensou o velho pescador. “É uma traição do corpo. É humilhante ser atacado de diarreia devido a um envenenamento de ptomaínas ou, pela mesma causa, nos vermos obrigados a vomitar.” Mas uma cãibra, se não era humilhante ante os outros, era-o sobretudo perante ele mesmo, muito especialmente quando estava sozinho.

“Se o rapaz estivesse aqui podia friccionar-me a mão e aliviar-me o antebraço”, pensou. “Mas espero que isto logo fique bom.”

De repente, sentiu na mão direita uma diferença na pressão da linha, antes de ver a mudança de declive na água. Depois, à medida que se curvava para aguentar melhor a linha e dava socos violentos com a mão esquerda na perna, viu a linha subir lentamente para a tona da água.

– Está subindo! exclamou o velho. Vamos mão. Acorde, por favor.

A linha começou a erguer-se lenta e cautelosamente e pouco depois a superfície do oceano agitou-se à proa do barco e o peixe apareceu. Apareceu à tona d'água e parecia nunca acabar. A água deslizava-lhe mansamente pelo enorme dorso. Brilhou à luz do sol. A cabeça e o dorso eram purpúreos, e as barbatanas abriram-se, imensas, cor de violeta pálida. Tinha a espádua mais comprida do que um bat de baseball, rematada com um estoque, e saiu da água completamente, tomando depois a mergulhar, suavemente, como um mergulhador. O velho viu a cauda em forma de foice desaparecer e começou a dar-lhe linha

– Tem pelo menos mais setenta centímetros do que o comprimento da canoa, murmurou o velho. A linha estava correndo veloz mas bem firme, e o peixe não parecia aterrorizado. O velho procurava, com as duas mãos, conservar a linha o mais esticada possível mas sem atingir o limite. Sabia que, se não pudesse diminuir a velocidade do peixe com uma pressão regular, este podia levar toda a linha atrás de si e parti-la.

“É um peixe enorme e tenho de dominá-lo. Não posso deixar que ele compreenda a força que possui, nem o que poderia fazer se aumentasse a velocidade. Se eu fosse ele, reuniria agora todas as minhas forças e começaria a correr com toda a velocidade até que qualquer coisa se partisse. Mas, graças a Deus, não são tão inteligentes como nós, nós que os matamos, embora sejam mais nobres e mais valiosos.”

(O Velho e o Mar, Ernest Hemingway. Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 1985)