segunda-feira, 11 de julho de 2022

A nossa inefável burguesia, os fundos europeus e o FMI

 

Parece que provocou algum alvoroço a notícia de que um dos empresários nacionais, dos novos ricos surgidos depois do 25 de Abril e no Portugal inundado por muitos milhões de euros dos fundos europeus, irá receber, ao que dizem será para as suas empresas, cerca de 40 milhões de euros, ou seja, 52% do total da dita recapitalização estratégica já aprovada, 76,7 milhões de euros. O motivo de alarme será também o facto de o indivíduo estar a ser investigado por alegadamente ter usado offshores para fraude fiscal de seis milhões de euros, embora o caso seja já antigo. Mas mal se começara a falar no favorecimento, a Autoridade Tributária e Aduaneira, parecendo adormecida, logo desperta e confirma que o indivíduo é “suspeito de fraude qualificada e branqueamento de capitais”. Conhecendo-se a história de outros oligarcas, emergentes à custa dos dinheiros públicos e fundos europeus, que mais tarde são sempre pagos pelo povo e acrescidos dos devidos juros, onde está então a admiração?

Uma elite que vive dos negócios com o estado

Porque a história deste novo rico é igual à de muitos outros, subiu na vida à custa de protecção dos partidos do regime quando se encontram no governo, pôde explorar livremente os trabalhadores com salários miseráveis e jornadas de trabalho prolongadas, e os bens que adquiriu foram-no à custa invariavelmente da corrupção, e alguns políticos terão ficado igualmente ricos, embora pouco menos. Em processo que envolve o oligarca e a ex-candidata presidencial Ana Gomes, ouviu-se a acusação de que houve "alta corrupção" quanto à venda do navio pelos estaleiros de Viana do Castelo (ENVC), já em avançado estado de desmantelamento, ao mesmo empresário, e muito abaixo do seu real valor, o que terá permitido que passado pouco tempo o tivesses vendido por quase o dobro do preço (comprada por 9 milhões, vendida por 17 milhões, tendo custado ao estado 40 milhões de euros!).

A fim de criar uma opinião pública que lhes seja favorável estes oligarcas não hesitam em entrar na área dos media, assim se explica que o agora “suspeito de fraude qualificada e branqueamento de capitais” tenha adquirido 30% da TVI. Este caso, pelas principais características bastante semelhantes, faz lembrar uma outra família de emergentes, a de Belmiro de Azevedo, proprietária do grupo Sonae/Continente e do jornal Público, ou até do oligarca Paulo Fernandes, dono do grupo Cofina/Correio da Manhã e de várias celuloses e centrais de biomassa (Grupo Altri). Mas há mais, dando bem a ideia de uma burguesia subsídio-dependente, vivendo dos negócios com o estado, que então não é considerado “estado a mais”, ou beneficiando de facilidades que outros cidadãos não usufruem, quer por parte dos poderes públicos quer da banca; negócios sempre envoltos na mais pura e despudorada corrupção.

As etapas ou características do enriquecimento fácil

E, voltando à história do oligarca já falecido fundador do grupo Sonae, esta dá bem a medida do processo de enriquecimento destes novos ricos: primeiro, empréstimos “milagrosos” da banca para afastar a família do antigo sócio; segundo, privatizações envoltas em corrupção, caso do BPA, depois BCP; terceiro, engenharia financeira manhosa através de OPVs, facilitadas pelos governos de Cavaco, coadjuvado pelo ministro das Finanças Cadilhe e do secretário de estado Elias da Costa, que, talvez como recompensa, passou mais tarde para o universo Sonae; quarto, exploração desenfreada dos trabalhadores, ficando célebre a frase do patriarca “vale mais ter um salário baixo do que estar no desemprego”; quinto, fazer negócios com estado português, caso do Brasil; sexto, beneficiar em todas as operações em que se meteu de elevados benefícios fiscais; sétimo, não pagar ou pagar pouco impostos no país e deslocar a sede do grupo para a Holanda.

As virtudes do empresário português resumem-se a corrupção, roubo, exploração dos trabalhadores e protecção política. Uma banca facilitadora, que por vezes não parece acautelar os seus interesses (caso Berardo, por exemplo), onde a corrupção funciona como óleo lubrificante, porque sabe que o Estado é sempre o avalista; a mesma corrupção envolve as privatizações com a troca de favores, sendo incontáveis os ex-políticos que foram aterrar em conselhos de administração de bancos ou de empresas estrangeiras que abocanharam as empresas públicas nacionais; ou as grandes obras do regime, com os ex-ministros facilitadores a irem também para os conselhos das administrações das empresas que enriqueceram, casos mais conhecidos: Ferreira do Amaral e Jorge Coelho – pode-se perguntar para que empresas irão António Costa e seu pupilo Pedro Nuno Santos quando se “reformarem” da política?

O surgimento e o engordar da nossa classe empresarial, constantemente elogiada pelos media que ela própria possui, com jornalistas vozes-do-dono prontos à bajulação, assentam na mais despudorada a abjecta exploração dos trabalhadores, facilitada pela legislação continuamente alterada no sentido da eficiência na extorsão da mais valia. Sempre sob o mando e o controlo de Bruxelas e do FMI, que periodicamente por cá vai dando uns “conselhos” aos governantes, provando que o FMI, e a troika em geral, afinal não se foi embora.

O roubo sob o alto auspício do FMI e de Bruxelas

Esta prestimosa instituição preocupa-se com os ignaros governantes e com a própria plebe sobre o modo de bem gerir a riqueza que aqui é produzida, mas sempre com o mesmo resultado final, apesar de às vezes mudar ligeiramente o discurso quando os resultados anteriores são demasiados desastrosos, ou seja, fazer enriquecer ainda mais os capitalistas e empobrecer de forma irreversível os trabalhadores. Desta vez, o FMI quer mexidas no sistema de pensões, que devem ser ainda mais baixas e, embora não o diga abertamente, privatizar um dia destes todo o sistema de segurança social, como a vizinha Espanha pretende já fazer, não deixando de evocar demagogicamente a sua sustentabilidade. Ora, esta “sustentabilidade” mais não é do que manter e fazer aumentar o bolo que, depois, será tragado pelos bancos e fundos de investimento estrangeiros que já por aqui andam a rondar.

E o FMI vai ainda mais longe, quer controlo orçamental, alegando preocupação com a dívida pública, não dizendo que esta aumentou substancialmente devido à salvação da banca privada com os dinheiros públicos por sua imposição, mas agora serve de justificação para não se investir na parte social (saúde, educação, etc.), porque se trata de criar uma economia “mais resiliente” e permitir o crescimento económico; o que seria até contraditório se não se tratasse mais concretamente do crescimento da riqueza das empresas, nomeadamente e mais propriamente dos grandes acionistas. A contenção dos salários e a flexibilização do emprego fazem parte do pacote, daí o governo PS/Costa ter aprovado sozinho as alterações ao Código do Trabalho, e não será com certeza para fazer diminuir a precariedade ou o recurso ao segundo emprego por parte de muitos trabalhadores, sendo Portugal um dos países que mais viu crescer esta situação nos últimos tempos. A receita já é velha e relha, ricos mais ricos, trabalhadores mais pobres; foi com a pandemia, será com a guerra; mas a acumulação e concentração do capital acelera-se sempre nestes períodos, está-lhe na natureza.

Os fundos serão sempre “bem” entregues

O FMI poderá ficar também descansado no que toca às medidas financeiras e estruturais, e em relação às quais não se cansa de avisar, porque o governo que temos tem como ponto de honra ser um bom aluno. Quanto à sustentabilidade da banca que opera entre nós, o governo PS/Costa não olha a meios, por exemplo, de ir continuamente injectando mais uns milhões no Novo Banco que parece ser um poço sem fundo (talvez mais de 4 mil milhões de euros), agora foram 155 milhões de euros (de um total de 346 milhões de euros) que “desapareceram” só de três devedores, cujos bens o governo recusa expropriar a fim de se ressarcir dos prejuízos, mostrando que o crime quando praticado pelos grandes capitalistas compensa. Recentemente, a auditoria realizada pela Deloitte detetou um desvio de 61 milhões de euros em processo de reavaliação de 23 imóveis, conta que também será paga pelo Zé contribuinte. Com a desculpa da guerra da Ucrânia, Costa gaba-se de ter já gastado 1.682 milhões de euros para alegadamente “conter” a inflação; mas que, na realidade, à semelhança do que acontecera com a pandemia da covid-19, foi para financiar as empresas que não podem ver os seus lucros a baixar, em vez de tabelar os preços dos bens de primeira necessidade ou, caso houvesse açambarcamentos, intervir directamente na distribuição ou até na produção.

E em relação às medidas estruturais, concretamente quanto à distribuição dos dinheiros do PRR (Plano de Recuperação e Resiliência), igualmente não haverá motivo de preocupação, o governo PS/Costa está a dar bem conta do recado, como se comprova pelo caso, já relatado, do financiamento das empresas, ou mais do próprio, do oligarca Mário Ferreira, apesar das acusações já antigas de fuga ao fisco e branqueamento de capitais. O instrumento, que foi reclamado insistentemente pela nossa (pouco) laboriosa e (muito) imaginativa classe empresarial durante os últimos tempos, está a mostrar-se eficaz, porque não só distribui os milhões pelos capitalistas certos do regime como ele próprio fomenta e contém em si a corrupção: Banco de Fomento entregou seis milhões de euros em ajustes directos. Mais detalhadamente: fez 73 contratos sem concurso em 23 meses; contrata serviços especializados, mas perde pessoas da IFD; os serviços jurídicos custam 1,7 milhões de euros; e a consultora Oliver Wyman foi a que mais facturou. Decididamente, uma criança precoce e brilhante, com apenas 23 meses o “Banco Português de Fomento contratou externamente serviços e bens no valor de 8,8 milhões de euros, dos quais seis milhões foram entregues em 73 ajustes directos” – diz a imprensa.

Uma justiça de classe e ao serviço do enriquecimento da elite

Uma outra via para o enriquecimento fácil e rápido da prestimosa burguesia indígena emergente são os benefícios e perdões fiscais; e quando é intimada a pagar o que deve ao fisco, há invariavelmente um tribunal arbitral, constituído por advogados que litigam contra o estado e a favor das empresas caloteiras, acabando, como é óbvio, por estas ganharem a maioria das contendas: “Fisco só vence 23% dos processos no tribunal arbitral” (da imprensa). Ou seja, a Autoridade Tributária (o Estado) perde a grande maioria dos processos acima de 100 mil euros, que são julgados no Centro de Arbitragem, e se a empresa designar o árbitro (juiz), aquela tem a certeza quase absoluta de ganhar o processo, pela simples razão de que este esquema já foi montado com esse objectivo, safar os grandes contribuintes (empresas, capitalistas, especuladores, etc.) enquanto os pequenos pagam por eles todos.

Mas ainda mais perigoso, e que talvez tenha passado despercebido aos olhos da maioria dos portugueses comuns, é o recente acórdão do TC (Tribunal Constitucional) que abre a porta a processos de grandes investidores contra o Estado, ao dar razão aos centros comerciais sobre o não pagamento das rendas das pequenas lojas ali localizadas; durante a pandemia, estiveram fechadas, mas agora terá de ser o estado a indemnizar os acionistas das grandes superfícies que, pelos vistos, não podem ser prejudicados – ou como os custos da pandemia não foram repartidos de igual maneira por todos os cidadãos. Este acórdão, 468/2022, que vem reforçar “o direito de crédito”, é abertamente a favor da ganância e do enriquecimento ilícito e é produzido por um tribunal, no mínimo, inútil, para não dizer pernicioso, pelo facto de ser redundante, por já existir um Supremo Tribunal de Justiça, e dos seus titulares serem de nomeação política – ou como a justiça acaba por ser um instrumento para o enriquecimento abusivo.

A revolução poderá estar ao virar da esquina

O FMI – é sempre o FMI! – “aconselha” como “medidas de resposta à subida acentuada dos preços da energia”, mas de “forma temporária” por causa do défice das contas públicas, as estritamente necessárias para “mitigar o impacto nas famílias vulneráveis”. A preocupação não será exactamente o possível aprofundar das assimetrias e injustiças sociais, mas mais prevenir possíveis revoltas populares, como está a ocorrer presentemente no Sri Lanka, com o povo a derrubar na rua os principais responsáveis do estado e, empurrado pela sua situação de miséria, chegou ao ponto de invadir as residências oficiais e deitar-lhes o fogo. O grande capital financeiro, pela voz dos seus principais representantes internacionais, teme que a imposição de mais medidas de austeridade, embora revestidas pelo invólucro da “inevitabilidade”, falsamente justificadas pela guerra ou pandemia, possam desencadear revoltas pelo mundo fora e estas, por sua vez, desembocarem numa revolução a nível mundial. Por cá, a maioria absoluta não irá proteger nem o Costa nem o PS e nem a nossa supérflua, inútil e parasitária burguesia, caso o povo se revolte. Isso irá acontecer inevitavelmente, nem que seja pela razão do 25 de Abril ter sido, do ponto de vista do proletariado, uma revolução castrada ou uma falácia.

Imagem retirada do twitter de António Costa 

 

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