domingo, 27 de fevereiro de 2022

À ESPERA DOS BÁRBAROS

À Espera dos Bárbaros

K. Kavafis

"Os Bárbaros" - Max Ernst, 1937

 O que esperamos nós em multidão no Forum?

Os Bárbaros, que chegam hoje.

Dentro do Senado, porque tanta inacção?
Se não estão legislando, que fazem lá dentro os senadores?

É que os Bárbaros chegam hoje.
Que leis haveriam de fazer agora os senadores?
Os Bárbaros, quando vierem, ditarão as leis.

Porque é que o Imperador se levantou de manhã cedo?
E às portas da cidade está sentado,
no seu trono, com toda a pompa, de coroa na cabeça?
Porque os Bárbaros chegam hoje.
E o Imperador está à espera do seu Chefe
para recebê-lo. E até já preparou
um discurso de boas-vindas, em que pôs,
dirigidos a ele, toda a casta de títulos.

E porque saíram os dois Cônsules, e os Pretores,
hoje, de toga vermelha, as suas togas bordadas?
E porque levavam braceletes, e tantas ametistas,
e os dedos cheios de anéis de esmeraldas magníficas?
E porque levavam hoje os preciosos bastões,
com pegas de prata e as pontas de ouro em filigrana?

Porque os Bárbaros chegam hoje,
e coisas dessas maravilham os Bárbaros.

E porque não vieram hoje aqui, como é costume, os oradores
para discursar, para dizer o que eles sabem dizer?

Porque os Bárbaros é hoje que aparecem,
e aborrecem-se com eloquências e retóricas.

Porque, subitamente, começa um mal-estar,
e esta confusão? Como os rostos se tornaram sérios!
E porque se esvaziam tão depressa as ruas e as praças,
e todos voltam para casa tão apreensivos?

Porque a noite caiu e os Bárbaros não vieram.
E umas pessoas que chegaram da fronteira
dizem que não há lá sinal de Bárbaros.
E agora, que vai ser de nós sem os Bárbaros?

Essa gente era uma espécie de solução.

[Antes de 1911]

Tradução de Jorge de Sena a partir de versão inglesa.

Konstantínos Kaváfis, poeta grego, considerado o maior nome da poesia em idioma grego moderno.

Nasceu no Egipto, Alexandria,1863, onde faleceu em 1933. 

domingo, 20 de fevereiro de 2022

A guerra é o estado natural

 

Foto in CNN

Antes do deflagrar da Primeira Guerra Mundial, todas as principais potências desejavam a guerra e preparavam-se afincadamente para o conflito, ao mesmo tempo que se desdobravam em declarações de paz; esperava-se apenas um pretexto e o pretexto foi o assassínio do arquiduque herdeiro do trono austríaco por um militante anarquista. A Segunda Guerra seguiu um guião semelhante, mas com menos rodeios. A causa última foi a crise profunda e insolúvel do capitalismo que, recorrendo à guerra, pode assim voltar a reconstruir a sua acumulação e elevar a taxa de lucro. Resolve, também e de uma penada, o excesso de forças de produção que não consegue controlar, o desemprego é resolvido pela mobilização e serviço militar obrigatório e pelo esforço produtivo de guerra. No tempo actual, parece que todos estão à espera da menor faúlha para incendiar a Europa e o mundo.

Antes da guerra já se experimentou a pandemia da covid-19, uma outra forma de guerra não sobre o vírus, mas contra os trabalhadores através dos confinamentos e estados de emergência. Igualmente um pretexto para explicar a crise e desculpar as políticas de austeridade sobre quem trabalha. Contudo, pelo que se está a ver, não foi suficiente e uma guerra a sério parece ser inevitável, só que ninguém quer ser acusado de ter sido o primeiro a premir o gatilho. As guerras são sempre a continuação da política por outros meios e ambas as partes não vêm outra saída para resolver não só a crise, mas também o problema da divisão do saque e das zonas de influência. Na Europa é o controlo dos recursos e a exploração da força de trabalho que se encontra em cima da mesa. Uns EUA decadentes que querem, por uma só cajadada, encurralar e enfraquecer a Rússia, o inimigo eternamente odiado, e controlar uma Europa dependente do gás natural e que jamais poderá ser uma rival na disputa económica. É no meio desta guerra que nos encontramos.

A crise é a crise do capitalismo

O ano começou, em continuidade agravada do ano anterior, com o aumento inusitado dos preços da energia e que, por sua vez, irá agravar ainda mais o preço de todos os produtos necessários à vida das pessoas. Por exemplo, a gasolina em Portugal é 8ª mais cara da Europa, leva 8,3% do salário médio. Se este aumento, explicado oficialmente de forma enviesada, tem como objectivo incentivar a passagem para os carros eléctricos, serve de igual modo para justificar o aumento dos preços na produção industrial, que foram de 17,9% no mês de Janeiro (aumento homólogo), e o gás das botijas aumentou no ano passado cinco vezes mais do que a inflação, cuja real dimensão é sempre ocultada pelo governo. Factores que são apontados para explicar a queda de produção industrial em Portugal, que foi de 0,2%, e de quase estagnação na zona euro, onde não ultrapassou os 2,5% no mês de Dezembro. Na ponta da cadeia encontra-se o capitalismo com as suas contradições insanáveis.

Olhando com um pouco mais de atenção, verifica-se que: se os capitalistas querem aumentar os seus lucros fazendo subir os preços, o povo consumidor, não vendo os seus salários aumentados na mesma ordem, irá forçosamente consumir menos e o mercado diminui. Ao virem dizer que as vendas de automóveis na UE tiveram “o pior arranque do ano de sempre”, estão a confirmar uma verdade que pretendem esconder como uma das razões das crises do capitalismo. Esta é uma das contradições da economia dita de mercado, se não há mercado, então, a produção terá de diminuir, porque nenhum capitalista tem as fábricas a produzir para o armazém, e desse jeito os lucros diminuirão e o capitalismo arrisca-se a implodir na justa medida em que o seu élan vital, a energia mística da acumulação sem limites, já não se pode realizar. A forma de ultrapassar este escolho, o capitalismo teve, como necessidade de sobrevivência, de inundar todas as áreas da actividade humana, não só a estritamente económica, chegando ao dilema, que é o que acontece no tempo actual, não haver mais nada para capitalizar e globalizar. Assim, a guerra torna-se inevitável.

Para concretizar esta ânsia do lucro, do crescimento do PIB (leia-se aumento sem limite dos lucros dos capitalistas), a burguesia não hesita em ser a primeira a desrespeitar as leis que ela própria cria. Diversos e inúmeros exemplos acontecem, o mais recente foi a trapalhada, montada intencionalmente, diga-se de passagem, da mistura dos votos com e sem identificação no círculo eleitoral da Europa, aliás, cuja contagem não irá alterar o arranjo dos partidos na Assembleia da República. Questão que há muito poderia estar resolvida caso houvesse interesse por parte dos dois principais partidos do regime. Veio a calhar, principalmente para o PS que assim pode estar a governar em modo de decreto durante mais dois meses, embora, e de forma hipócrita, venha dizer que até vai decidir apenas sobre “questões urgentes”, como o combate à seca (alterações climáticas) e à pandemia, os dois principais mantras da agenda política e que encobrem a recapitalização da economia falida – o reset de que se fala. Será uma questão de vida ou de morte para o sistema de exploração que tenta contar, outra vez, com a adesão dos próprios explorados, apesar dos dois parceiros, BE e PCP, estarem ainda amuados devido à infidelidade de Costa.

Apoios estatais às grandes empresas e empobrecimento do povo

A coberto do combate à pandemia, o governo tratou de dar algum ânimo à anémica e arruinada economia nacional com cerca de 7 mil milhões de euros, continuando agora com mais “verbas do apoio à família”, ou seja, vai pagar a 81 mil empresas (uma questão urgente!) 5,7 milhões de euros através da Segurança Social, que já tem um buraco de mais de 600 milhões de euros, porque o governo PS, obedecendo às receitas impostas por Bruxelas, entendeu financiar os capitalistas com os dinheiros dos descontos dos trabalhadores. No entanto, suspendeu o apoio covid-19 aos trabalhadores desempregados e às famílias pobres (cerca de 120 mil), apoiadas pela Segurança Social, que se viram cortadas de produtos essenciais nos cabazes alimentares, peixe, leite, azeite, arroz, por exemplo. E em contra-partida, a outra face da moeda, o valor das prestações de desemprego, dinheiro que não vem do Orçamento de Estado, mas dos trabalhadores, é em regra demasiado baixo, inclusivamente abaixo do limiar da pobreza, 534 vs 554 euros por mês; e metade das mulheres desempregadas não recebe qualquer prestação social, numa situação de duplamente exploradas e humilhadas. E o “apoio às rendas só foi concedido a um terço das famílias que o pediram”. O empobrecimento do povo é iniludível.

O primeiro-ministro «não quis ouvir» pequenos e médios empresários, acusação vinda do lado da Confederação Portuguesa das Micro, Pequenas e Médias Empresas (CPPME), que representará 99,6% do tecido económico nacional, e que não será também uma questão urgente, no entanto vai ouvindo as grandes empresas e de preferência de capital estrangeiro. A refinaria de Matosinhos irá dar lugar à cidade da inovação ligada às "energias do futuro", na linha também definida por Bruxelas e pelo grande capital financeiro internacional, enquanto as centrais termo-eléctricas de Sines e Pego foram encerradas, com os lucros da Galp a subirem para 152,8 milhões no quarto trimestre do ano passado. Os lucros da EDP Renováveis aumentaram 18%, em 2021, para 657 milhões de euros e que irão ser distribuídos pelos respectivos acionistas. Ficou-se a saber, depois dos três maiores bancos privados a operar em Portugal de capital maioritariamente espanhol apresentaram muitos milhões de lucro, que o banco público teve lucros de 583 milhões de euros, aumento de 18,7%, à custa da subida das comissões cobradas aos clientes, ao mesmo tempo que recusa aumentos decentes aos trabalhadores, fundamentando a extorsão pela necessidade de... pagar os salários aos trabalhadores, num cinismo que nada fica a dever ao do governo, que empobrece o povo, empurra as pequenas empresas para a falência e recapitaliza as grandes.

A estagnação económica da Europa cria condições para a guerra

Os sinais da estagnação da economia capitalista são mais que óbvios, de nada valendo as perspectivas e os palpites mais que optimistas, dos ditos responsáveis nacionais e europeus, quanto ao crescimento para os próximos dois anos: o PIB da zona euro cresceu 0,3% no último trimestre de 2021; as, já citadas, fracas vendas de automóveis na União Europeia; as principais bolsas europeias no vermelho, com especial destaque para a de Lisboa, e que são formas fraudulentas dos capitalistas financiaram as sua empresas e eles próprios, beneficiando, caso de Portugal, de quase completa isenção fiscal. Transferindo as dívidas particulares para a esfera pública, o próprio estado corre o sério risco de um dia destes (a Argentina infelizmente está a dar pela segunda vez o lamentável exemplo) entrar também em falência. Como curiosidade, o impacto directo das medidas do putativo combate à pandemia (justifica tudo e mais alguma coisa) nas contas públicas aumentou 1119 milhões de euros em 2021, quando comparado com o valor registado em 2020 (da imprensa). Os dinheiros do PRR de pouco ou nada valerão para o estado ou para as pequenas empresas, será canalizada para as grandes empresas e para enriquecimento das clientelas políticas.

Enquanto esmifra o povo trabalhador e contribuinte, o governo PS, que à semelhança da pescada, antes de o ser já era absoluto, vai governando em modo de decreto, ou seja, sem haver Assembleia da República sequer, aprovando centrais solares em montados autorizando o corte de sobreiros, serão 1079 sobreiros e 4 azinheiras cortados no concelho do Gavião, para a construção de mais uma central fotovoltaica, assim como uma outra em Penamacor, com o abate de 54 sobreiros e de 395 azinheiras, perante o silêncio dos restantes partidos e as lamúrias inúteis das ditas organizações ambientais financiadas... pelo governo. O país encontra-se a saque e em franca e rápida transformação sob domínio colonial, a favor de Bruxelas e dos grandes grupos económicos, limitando-se a fornecer mão-de-obra jovem e qualificada e de matérias primas, com o dito “ouro branco” em cena e pelo qual anda muita boa gente do burgo a babar-se no desejo de enriquecer fácil e rapidamente. São os políticos que entram na intermediação e alguns empresários nacionais chico-espertos, para além das empresas estrangeiras que irão fazer a exploração: a empresa Lusorecursos propõe entregar a Montalegre 0,5% dos lucros da mina de lítio; a corrupção é uma velha tradição que deve ser mantida. O povo que se dane.

O capitalismo é a guerra

Uma eventual revolta do povo, que vai despertando em lutas pontuais, pelo menos para já com a luta contra a exploração do lítio, esta sinónimo de destruição do meio ambiente e aumento da exploração do povo português. As lutas no horizonte fazem pensar a burguesia e levam-na a encontrar meios mais sofisticados de repressão. As consequências da exploração do lítio são facilmente previsíveis, basta olhar para o outro caso, o do tão propalado “ouro verde”, estando agora todos nós, povo português, a pagar com a exaustão dos solos devido à eucalipalização quase total do país, aumento dos períodos de seca e dos incêndios; estes, por sua vez, um grande negócio para alguns oportunistas da nossa praça e potenciadores da desertificação. Para que a exploração e a destruição dos nossos recursos naturais possa ser concretizada, não deixando o capitalismo por mãos alheias as suas credenciais de economia predadora seja qual for a cor com que se reveste, a repressão vai-se afiando e experimentando: "É nefasto chamar terrorismo ao caso do João e não à violência de extrema-direita", diz a investigadora de psicologia social na área do terrorismo e na prevenção da radicalização, Cátia Moreira de Carvalho. A partir de agora é preciso ter cuidado porque qualquer cidadão mais perturbado ou descuidado pode ser considerado um perigoso terrorista ainda antes de cometer qualquer acto terrorista, nem será necessário vir a agência de terror norte-americana FBI apontar o dedo, é a entrada em vigor do famoso “relatório minoritário” e que há muito deixou de ser ficção cinematográfica.

A seguir ao medo imposto pela pandemia, vem agora o medo suscitado pelo terrorismo, mesmo que este não chegue a acontecer, basta mencioná-lo. Com a população amedrontada e intimidada é fácil fazê-la aceitar medidas mais repressivas e mais restrições das liberdades e direitos dos cidadãos. A repressão exercida pelo estado é uma repressão de uma classe sobre outras e, assim, é de certa forma arriscado afirmar que o estado português é um estado democrático e de direito, quanto muito será qb; isto é, quando dá jeito e à medida do interesse da clique dominante. São as eleições a terem de ser repetidas, dando bem a imagem de que esta democracia e estas liberdades possuem igualmente um cunho de classe: democracia e liberdade para os ricos e poderosos e limitação ou falta delas para os trabalhadores e os pobres. É uma democracia cuja liberdade do cidadão se resume a enfiar o voto/cheque em branco de vez em quando, para que a sua exploração seja garantida por mais uns tempos e policiada pelos governantes/funcionários de turno. Não sendo isto suficiente, o governo do PS/Costa, fazendo jus à tradição dos partidos “socialistas” e sociais-democratas, quer enfiar o povo português numa guerra inter-imperialista, que agora se desenha na Europa e que irá acontecer mais cedo ou mais tarde: Portugal poderá enviar 619 efectivos para países da NATO na fronteira com a Ucrânia.

A história da humanidade sempre foi a história da luta entre as classes, e a guerra é o estado natural do capitalismo. A guerra, passe o horror e a incredulidade da pequena-burguesia, está sempre presente em capitalismo e inevitável em imperialismo, o capitalismo globalizado. O povo português não deve deixar-se arrastar no enfileirar por um dos lados, deve recusar ser carne para canhão na guerra inter-imperialista e exigir que o país saia da Nato, que esta organização, criada pelos EUA para dominar a Europa e atacar a antiga URSS, deve retirar todas as instalações e armamento que possua em Portugal. A solidariedade é com todos os povos europeus e do mundo – não com o governo fascista de Kiev, como defende o governo lacaio PS/Costa. A Europa dos povos deve também exigir a retirada de todas as tropas e armamentos, nomeadamente nucleares, americanos estacionados no continente – os EUA ficam do outro lado do Atlântico. A guerra do povo contra esta guerra e os seus agentes é o único meio de a esconjurar. A guerra imperialista, a acontecer, irá inevitavelmente despoletar a revolução proletária e dos povos. Estamos em guerra, é a realidade.

19 de Fevereiro

ANTÓNIO ALEIXO

 

Em tempo da mentira e da manipulação: pandemia, alterações climáticas, guerra na Ucrânia e o que mais está para vir...

Quadras da mentira e da verdade

P'ra mentira ser segura

e atingir profundidade,

tem que trazer à mistura

qualquer coisa de verdade.

 

Mentiu com habilidade,

fez quantas mentiras quis;

agora fala verdade

ninguém crê no que ele diz.

 

Gosto do preto no branco,

como costumam dizer:

antes perder por ser franco

que ganhar por não ser.

 

Julgando um dever cumprir,

Sem descer no meu critério,

- Digo verdades a rir

Aos que me mentem a sério!

*

 Não Creio nesse Deus

I
Não sei se és parvo se és inteligente
— Ao disfrutares vida de nababo
Louvando um Deus, do qual te dizes crente,
Que te livre das garras do diabo
E te faça feliz eternamente.

II
Não vês que o teu bem-estar faz d'outra gente
A dor, o sofrimento, a fome e a guerra?
E tu não queres p'ra ti o céu e a terra..
— Não te achas egoísta ou exigente?

III
Não creio nesse Deus que, na igreja,
Escuta, dos beatos, confissões;
Não posso crer num Deus que se maneja,
Em troca de promessas e orações,
P'ra o homem conseguir o que deseja.

IV
Se Deus quer que vivamos irmãmente,
Quem cumpre esse dever por que receia
As iras do divino padre eterno?...
P'ra esses é o céu; porque o inferno
É p'ra quem vive a vida à custa alheia!

 *

A Torpe Sociedade onde Nasci

I
Ao ver um garotito esfarrapado
Brincando numa rua da cidade,
Senti a nostalgia do passado,
Pensando que já fui daquela idade.

II
Que feliz eu era então e que alegria...
Que loucura a brincar, santo delírio!...
Embora fosse mártir, não sabia
Que o mundo me criava p'ra o martírio!

III
Já quando um homenzinho, é que senti
O dilema terrível que me impôs
A torpe sociedade onde nasci:
— De ser vítima humilde ou ser algoz...

IV
E agora é o acaso quem me guia.
Sem esperança, sem um fim, sem uma fé,
Sou tudo: mas não sou o que seria
Se o mundo fosse bom — como não é!

V
Tuberculoso!... Mas que triste sorte!
Podia suicidar-me, mas não quero
Que o mundo diga que me desespero
E que me mato por ter medo à morte...


segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Governo PS de maioria absoluta, mas já não era?!

 

Henricartoon

Nos próximos 4 anos iremos ter um governo de maioria absoluta de cor “rosa”. Era um governo deste género, que garanta a estabilidade política, o Santo Graal da gestão capitalista do estado e da economia, que era desejado pelas nossas elites, e por Bruxelas. Como pouca gente acreditava numa maioria socialista, e muito menos laranja, os desejos que se manifestavam eram, e em falta de melhor, o de um governo de bloco central, como aliás tem acontecido desde sempre até aqui, na prática e na maior parte do tempo. Nos últimos dois anos e sem geringonça formal a maior parte das leis aprovadas na Assembleia da República foi graças aos votos conjuntos de PS e PSD e contra os parceiros geringonços PCP e BE. O governo maioritário do PS&Costa passou de facto a jure, nada mais. E com o andar da carroça, em situação de agravamento profundo da crise da economia capitalista e subsequente revolta social, será o PS a exercer o fascismo e Costa o novo "racha-sindicalistas", parecido com o outro Costa da Primeira República e que ditou o fim da dita.

Costa pode agradecer aos patetas do regime

Costa arriscou, seria agora ou nunca, e a coisa até correu bem: será o senhor absoluto até 2026. E não se sentirá grande diferença porque temos assistido a uma governação por decreto do governo PS em todos os domínios, desde as medidas económicas, processo da concessão da exploração do lítio, por exemplo, até aos confinamentos e ajustes directos das aquisições de testes e vacinas, estas impostas por Bruxelas, a pretexto do combate à pandemia. A repressão sobre os cidadãos com as restrições de deslocação ou de frequência de locais públicos, com aberta e ostensiva limitação dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, em flagrante violação da Constituição da República, contando com o aval cego do Parlamento ou a arrepio do mesmo, mostra que o governo socialista já era um governo de maioria absoluta de facto. E com a colaboração de todos os partidos do regime que não atacaram a política já intrinsecamente fascista, a pretexto, do combate à pandemia, e, tal como o PS, se arvoraram em defensores do grande capital: caricato, no mínimo, ver o PCP e o BE (os arautos da esquerda) a defender os interesses da Big Pharma, pugnando pela vacinação em massa dos portugueses.

Os partidos da putativa “oposição”, tanto à esquerda como à direita, só se podem queixar deles próprios, estenderam a passadeira ao PS e ao Costa, devido ao seu oportunismo político, como, se lá estivessem no governo, também fariam o mesmo, porque sabem que é condição sine qua non para ter a mão no pote terem de aceitar caninamente as imposições do regime e de Bruxelas. Quando, por alguma razão, não houver partidos de coluna gelatinosa, então, não haverá eleições sequer. O que não acontecerá porque candidatos a lacaios ou funcionários zelosos nunca faltarão, na medida em que, neste país, sempre houve, e haverá, gente que vende a alma ao diabo por pouco dinheiro. Basta olhar para a História nos momentos mais decisivos, em que o país perdeu a independência ou teve que lutar para a não perder, séculos XIV, XVI, XVII e XIX e actualmente com a entrada na CEE/UE. O medo incutido nas pessoas a propósito da pandemia como que adormeceu muitos cidadãos das classes médias mais temerosos e foi fácil ao Costa, aproveitando esse estado de alguma apatia, surgir como um slavador da pátria. no entanto, o efeito será o oposto.

Vêm agora os analistas encartados e os media mainstream tentar justificar a vitória do PS pela indecisão de um grande número de cidadãos que só resolveu votar, e pelo candidato que achou melhor, à última da hora, o que terá baralhado as sondagens. Não se diz, contudo, que as sondagens são sempre manipuladoras, para induzir o voto no sentido do partido que no momento melhor condições reúne para defender os interesses do capitalismo nacional e de Bruxelas. Ou então encontrar explicação virada pelo avesso, diabolizando os patetas dos parceiros da geringonça que reprovaram o Orçamento, quando todos os partidos, incluindo o PSD, tomaram a mesma posição. Nestas ocasiões há sempre quem se ponha a jeito para bombo da festa. Durante a campanha eleitoral, principalmente durante os debates televisivos, Costa não encontrou oposição, parecendo que todos os noves partidos do regime se encontravam de acordo no que concerne ao essencial das políticas seguidas.

Quanto aos que levaram ao colo o PS à maioria absoluta, talvez valha a pena fazer o balanço: em, 2015, quando se formou a “geringonça”, o BE tinha 19 deputados e 550.892 (10,19%) votos e o PCP/PEV 17 deputados e 445.980 (8,25%) votos, enquanto o PS tinha 86 deputados e 1.747.685 (32,31%) votos, não tendo ganho sequer as eleições. O PCP, mais o seu anexo PEV, e o BE entenderam por bem viabilizar um governo PS, pensando que, com esta Santa Aliança de Esquerda, iriam resolver os problemas do país, ou aquilo que entendem por “país”, e, eventualmente, ter acesso ao pote. As concessões que receberam foram umas parcas migalhas, reposição dos dois meses de salários retirados pelo governo anterior do PSD/PP/CDS aos trabalhadores do estado, ligeira subida das pensões e reformas, e pouco mais. O governo entendeu não reverter as alterações das leis laborais e, inclusivamente, ainda as piorou a contento dos patrões.

No governo, o PS foi comprando os votos

O governo PS/Costa passou o tempo todo a agitar a bandeira da subida do salário mínimo nacional enquanto os restantes salários iam encolhendo por efeito da inflação, com o perigo de um dia destes a maior parte dos trabalhadores vir a auferir o SMN. Costa prometeu acabar com a precariedade do emprego e os salários miseráveis, muitas das vezes inferiores ao salário mínimo, mas foi quem mais promoveu essa precariedade dentro do estado, dando o exemplo pela negativa aos patrões. O sector onde mais trabalhadores a prazo foram contratados foi na SNS, devido à pandemia covid-19, precisamente aquele que foi mais degradado (intencionalmente), com o claro intuito de acelerar a sua privatização, tendo agora um excelente pretexto: a pandemia. BE e PCP sempre apararam o jogo, oferecendo a paz social a troco de nada. Durante o governo da geringonça, entre 2015 a 2019, nunca houve tão poucas greves e aquelas que aconteceram, por terem fugido ao controlo da CGTP/PCP, levaram com a requisição civil em cima, fazendo corar de inveja Marcelo Caetano ou até Salazar, estivadores, enfermeiros e motoristas de matéria perigosa. Assim se explica que em 2019, o BE tenha perdido 50.875 votos, embora mantenha o mesmo número de deputados, e o PCP 113.507 votos e 5 deputados, enquanto o PS tenha ficado com 1.908.036 votos e 108 deputados, podendo fazer um governo sem geringonços.

Não tendo nada aprendido, BE e PCP continuaram a apoiar o governo, deixando passar os Orçamentos, ou com abstenção ou com voto contra, sabendo de antemão que não seriam inviabilizados; ou seja, mantiveram o oportunismo político que lhes é habitual. O PCP parece que tem medo de ser ilegalizado algum dia, não ganhou para o susto em 1975 aquando do golpe de 25 de Novembro, que obrigou o secretário-geral Cunhal a refugiar-se na embaixada da então Checoslováquia. E o BE continua a sonhar num futuro, que parece cada vez menos próximo, vir substituir o PS na governação quando ele desaparecer, à semelhança do que aconteceu com o PASOK. Mas as coisas não têm acontecido como este partido esperava porque o PS ainda se vai aguentando, devido à habilidade do Costa (temos de reconhecer) e à fé que a Alemanha ainda vai mantendo no partido que ajudou a criar em 1973, através da Fundação Friedrich Ebert da social democracia de Willy Brandt, o reconhecido informador encartado da CIA. Soares e PS desempenharam um papel crucial na derrota da revolução de 75 ao serviço não só da Alemanha, mas dos Estados Unidos, como bem atestou Frank Carlucci, embaixador em Lisboa nos tempos quentes do dito PREC. Roma ainda vai pagando aos traidores.

Depois de seis anos de historial de oportunismo e traição, de que se queixam BE e PCP, para falar agora só destes? De ingratidão, de pouca sorte, de falta de reconhecimento do povo e dos trabalhadores pela bondade das medidas que, embora decretadas pelo PS, eram da sua autoria? Pois é, o povo é burro e atrasado! Os resultados não poderiam ser outros, dois anos depois: o PS subiu para 2.246.637 (41,68 %) votos e 117 mandatos, e os três patetas da política, ou idiotas úteis do regime, ficaram apenas com 240.265 (4,46%) votos e 5 mandatos, e 236.635 (4,39%) votos e 6 mandatos, respectivamente; no total “deram” ao PS 25 deputados e 519.972 votos. É o resultado da política calculista, em benefício exclusivo dos seus interesses particulares, e o espelho da natureza de partidos da pequena burguesia. Não ousam enfrentar a burguesia e o capitalismo, preferem lamber-lhes a sola dos pés e ficar com as migalhas. Mas em tempos de crise crónica e profunda do capitalismo, correm o sério risco de desaparecerem, porque imprestáveis.

Costa já não precisa das muletas porque soube comprar os votos e deixar em seco o seu principal rival que é o PSD, ainda o partido por excelência da nossa burguesia conservadora e ainda com laivos de nacionalismo e saudosismos coloniais. Comprou o voto de muitos patrões e de alguns trabalhadores com a história dos layoffs, ao todo foram 7.744 milhões de euros, o que dizem ter “a pandemia custado ao estado em 2021”; as empresas ainda vão receber “compensação” pelo aumento do salário mínimo, isto é, este vai ser subsidiado com os impostos e descontos dos trabalhadores; já foram disponibilizados 650 milhões para capitalizar empresas, no âmbito do PRR; com o Fundo de Capitalização e Resiliência a arrancar com 50% da dotação global para recapitalizar empresas “de interesse estratégico nacional”, que já sabemos são as grandes e/ou de capital estrangeiro. Mas, como se sói dizer, “quem não chora não mama”, um dos incontornáveis pedintes dos dinheiros dos outros (contribuintes) já veio fazer saber, e talvez com alguma razão, que "O comércio é claramente menosprezado na proposta do PRR".

Costa comprou à direita e à esquerda, parece que foram os idosos e pensionistas (temerosos da pandemia!?) que, à última da hora, resolveram votar e a favor do PS, isto é, naquele que está e dá segurança, porque se não dá muito, também não tira: 10 euros para as reformas mínimas e em Maio, no quadro do futuro Orçamento, haverá um aumento extraordinário. Só que agora haverá uma ressalva: não será preciso tirar, basta não aumentar as pensões ou os salários em taxa igual à da inflação. A inflação irá funcionar como o governo troikiano de Passos/Portas, e tudo indica que a inflação em Portugal irá ultrapassar facilmente os 5% já atingidos em média na União Europeia, visto que em Janeiro chegou aos 3,3%. Em 2026, no final do mandato do governo absoluto do PS/Costa (e se chegar ao fim!), as pensões e os salários serão ainda mais miseráveis do que agora.

Os tempos que se aproximam serão de austeridade e de revolta

Os tempos que aí vêm são mais que sombrios: Lagarde admite “preocupação unânime” no BCE sobre inflação e pistas sobre juros só em Março. E estas pistas para a adivinhação facilmente se encontram nas palavras do vice-presidente da Comissão Europeia Valdis Dombrovskis e do comissário para a Economia Paolo Gentiloni: o cenário de suspensão da disciplina orçamental europeia além deste ano só ocorrerá em caso de um novo “choque brutal”. Inflação elevada e por tempo indeterminado, subida das taxas de juro em dimensão ainda desconhecida, que farão disparar enormemente os custos das dívidas pública e privada, obrigatoriedade de se respeitar as regras de disciplina orçamental, nada de bom será para os nossos reformados, trabalhadores e povo em geral, porque somos nós que, em última estância, pagamos a dívida contraída pelos capitalistas e recapitalizamos as suas empresas. No entanto, em 2026, teremos mais desemprego e mais pequenos empresários arruinados.

Costa agitou o espantalho do fascismo, na pessoa de André Ventura e do seu agrupamento de jagunços e fascistas que ousaram sair do armário do PSD e CDS, para meter medo à pequena burguesia medrosa: ou votam em nós ou vem aí o fascismo! Esta tem sido a receita usada em países como a França com a FN e a família Le Pen, que chegaram à final de uma eleição presidencial em que o candidato politicamente correcto afinal defendia os mesmos interesses e as mesmas elites do que os apontados como “tenebrosos fascistas”. Em Portugal parece que querem replicar a estratégia e, para melhor compreensão do fenómeno, seria bom conhecer não apenas quem financia o Ventura mas quem afinal também financia o Costa, e ver que entre os dois não há diferenças de monta quanto a interesses económicos ou de classes possidentes a quem servem. Ambos defendem o capitalismo, em particular o grande capital financeiro (os bancos, que estão no fim da linha do capitalismo), Bruxelas (Alemanha) e, com maior proximidade, a nossa inútil e rentista burguesia. As diferenças, como já referimos anteriormente e em ralação ao PSD, está apenas no modo e no tempo. Daqui para a frente, repetir-se-á a estratégia, mas como a História demonstrou: com o povo em luta, o fascismo é um tigre de papel, apesar de acarretar custos enormes. Matar o capitalismo é matar o fascismo, não o contrário, é cortar a cabeça à serpente.

O dirigente sindical amarelo e filho querido dos capitalistas não se coibiu de afirmar, pouco tempo antes do dia das eleições, que: "A maioria absoluta é um cenário que não rejeito". Querendo dar a entender que o sector dos trabalhadores que ele pretende representar até veria com bons olhos um governo de maioria, não seria um mal vindo ao mundo, bem pelo contrário. E logo que se soube da vitória absoluta do PS, as agências de anotação financeira vieram logo a terreiro, com a Fitch: “resultados eleitorais trazem estabilidade e diminuem risco político”, e com “Eleições pintam Bolsa de Lisboa a verde. CTT disparam 4,46%”. O capital financeiro rejubila e Bruxelas mantem a confiança num partido e num governo capazes de impor os ditames para a recapitalização das grandes empresas e bancos, mesmo que isso custe aos trabalhadores e aos pequenos patrões nacionais muitos sacrifícios, incluindo a sobrevivência. Se o governo de maioria absoluta, com o Costa a afirmar que “"Uma maioria absoluta não é o poder absoluto", é capaz ou não de fazer frente e dobrar a contestação social será uma coisa ainda para se ver, assim como o PCP e o BE ainda estarão na disposição de colaborar nessa infame e ingrata missão, como tem acontecido até agora.

Os partidos saídos do 25 de Abril perecerão com o regime

Mas como já disséramos, em artigo anterior, os partidos vão e vêm conforme as circunstâncias políticas e a necessidade da classe ou estrato de classe que pretendem representar. Os partidos que nasceram após o 25 de Abril, fruto das suas circunstâncias, irão de vela quando essas mesmas circunstâncias desaparecerem ou forem alteradas profundamente. Percebendo-se assim que o CDS está em vias de desaparecimento porque há muito que esgotou a sua missão, que lhe foi entregue pelo governo de Vasco Gonçalves de reter e controlar os fascistas do regime recém deposto; mais tarde e já em plena decadência foi aproveitado por Portas para enriquecimento pessoal. PSD, fundado por Sá Carneiro, simbólico representante da nossa velha burguesia, agora com perda acentuada da sua tradicional base social de apoio e dominado por toda a sorte de caciques, dá todos os indícios de fragmentação; iremos ver se terá capacidade de regeneração ou será substituído pelo IL ou outros que se acharem por mais conveniente. Costa teve a perspicácia de, caso se tivesse aliado ao PSD em 2015 ou em 2019, teria sido ele a sofrer com o abraço do urso, assim foram os trouxas do BE e do PCP; aprendeu com o que aconteceu com o PASOK que desapareceu por se ter aliado ao partido de direita Nova Democracia.

Quanto ao BE e PCP, são dois partidos da pequena burguesia, o primeiro da pequena burguesia urbana e com formação académica mais elevada, o segundo de uma pequena burguesia menos escolarizada e até rural, e a sua base proletária é cada vez mais minguada. O PCP já nem chega a ser o tradicional partido revisionista, o dito partido burguês (pela ideologia) para (consumo) operários. São ambos partidos que abraçaram a social-democracia, rendidos às delícias do capitalismo e que a troco de algumas benesses e sinecuras institucionais não lhes repugna ir enganando as massas operárias e populares. Mas, caso a sua influência se verifique diminuta, e isso mede-se em parte pelos resultados eleitorais, serão imediatamente descartáveis. E jamais para lugares da governação, é que tudo que tenha o rótulo de “esquerda” ou de “comunista” é repelido pela nossa ignorante burguesia e mesmo por Bruxelas, tal é a fobia do comunismo. O desaparecimento de um PCP, que pode ser uma coisa mais provável do que se possa pensar, mesmo que substituam o bronco secretário geral, cujo mundo já desapareceu há muito, será sempre uma coisa boa, deixa campo aberto para o surgimento de alternativas revolucionárias.

Contra o governo de maioria absoluta, só poderá haver luta absoluta.

03 de Fevereiro 2022

Deixe-o coçar onde está a sarna

 Giorgio Agamben

 

Eles não vão dizer: os tempos eram escuros,

mas: por que você se calou?

                                   Bertold Brecht

 


Mas, no entanto, todas as mentiras removidas

toda a sua visão se manifesta

e deixe coçar onde está a sarna.

Que sua voz será problemática

no primeiro gosto, nutrição vital

ele sairá quando for digerido.

                                   Dante Alighieri

 

Em algum lugar há uma folha na qual está escrito o nome daqueles que, num mundo de mentiras, testemunharam a verdade. Esta folha existe, mas está ilegível. Depois, há outra folha, perfeitamente legível, que regista esses mesmos nomes: está nas mãos de polícias e jornalistas.

 

Quodlibet