domingo, 26 de fevereiro de 2023

A PAZ PERPÉTUA

 

Immanuel Kant

PRIMEIRA PARTE: Artigos preliminares de uma paz perpétua entre as nações

1.º) Não deve considerar-se válido um tratado de paz que se tenha ajustado com a reserva mental de certos motivos capazes de provocar, no futuro, outra guerra.

Sem dúvida, semelhante tratado seria um simples armistício, uma interrupção das hostilidades, e nunca uma verdadeira paz que significa o fim de todas as hostilidades; acrescentar-lhe o epíteto de perpétua, seria já um pleonasmo suspeito. O tratado de paz aniquila por completo as causas existentes para uma possível guerra futura, mesmo quando os que negoceiam a paz não as vislumbrem nem suspeitem no momento das negociações; aniquila, também, aquelas que possam logo descobrir-se por meio de hábeis e penetrantes pesquisas nos documentos arquivados. A reserva mental, que consiste em não falar, na altura, de certas pretensões que ambos os países se abstêm de mencionar, porque estão demasiado cansados para prosseguir a guerra, mas com a perversa intenção de aproveitar, mais tarde, a primeira conjuntura favorável parta reproduzi-las, é coisa que entra em cheio na casuística jesuítica; tal proceder, considerado em si, é indigno de um príncipe, e prestar-se a semelhantes manhas é também indigno de um ministro. Este juízo parecerá, sem dúvida, uma pedantice escolástica aos que pensam, segundo os esclarecidos princípios de prudência política, que a verdadeira honra de um Estado consiste no contínuo acréscimo da sua força, seja por que meio for.

2º) Nenhum Estado independente – pequeno ou grande – poderá ser adquirido por outro por meio de herança, troca, compra ou doação.

Um Estado não é – como é, por exemplo, o solo que ocupa – um haver, um património. É uma sociedade de homens na qual ninguém, senão ela própria, pode mandar e dispor. É um tronco com raízes próprias; por conseguinte, incorporá-lo noutro Estado é o mesmo que anular a sua existência de pessoa moral e fazer desta pessoa uma coisa. Este procedimento acha-se em contradição com  a ideia do contrato originário, sem o qual não pode conceber-se nenhum direito sobre um povo (1). Todo o mundo sabe bem a que perigos expôs a Europa esse prejuízo acerca do modo de adquirir Estados, que as outras partes do mundo nunca conheceram. No nosso tempo e em época muito recente, contraíram-se matrimónios entre Estados: era um novo meio, já para acrescentar a própria potência mediante pactos de família, sem nenhum dispêndio de forças, já para alargar os domínios territoriais. Pertence também a este grupo de meios o aluguer de tropas que um Estado contrata com outro, para as utilizar contra um terceiro que não é inimigo comum; neste caso usa-se e abusa-se dos súbditos, o capricho, como se fossem coisas.

3.º) Os exércitos permanentes – miles perpetuus – devem desaparecer por completo com o tempo.

Os exércitos permanentes são uma incessante ameaça de guerra para os outros Estados, visto que estão sempre dispostos e preparados para combater. Os diferentes Estados empenham-se em superar-se uns aos outros em armamento, que aumentam sem cessar. E como, finalmente, os gastos ocasionados pelo exército permanente chegam a tornar a paz ainda mais insuportável do que uma guerra curta, acabam por ser eles próprios a causa de agressões, cujo fim não é outro senão livrar o país do pesadelo dos gastos militares. Acrescente-se a isto que ter pessoas a soldo para que morram ou matem, parece que implica um uso do homem como mera máquina nas mãos de outro – o Estado; o que não é compatível com os direitos da Humanidade na nossa própria pessoa.

Consideração merecem, pelo contrário, os exercícios militares que os cidadãos realizam periodicamente, por sua própria vontade, com o fim de se prepararem para defender a sua pátria contra os ataques do inimigo exterior.

O mesmo aconteceria tratando-se da formação de um tesouro ou reserva financeira, pois os outros Estados considerá-lo-iam como uma ameaça e ver-se-iam obrigados a preveni-la, adiantando-se na agressão. Efectivamente, das três formas do Poder, exército, alianças e dinheiro, seria, sem dúvida, a última o mais seguro instrumento de guerra, se não fosse a dificuldade de apreciar bem a sua magnitude.

4.º) O Estado não deve contrair dívidas que tenham por fim sustentar a sua política exterior.

A emissão de divida, como ajuda que o Estado procura, dentro ou fora das suas fronteiras, para fomentar a economia do país, reparação de estradas, colonização, criação de reservas para os anos maus, etc… – nada tem de suspeito. Mas, se se considera como instrumento de acção e reacção entre as potências, converte-se em sistema de crédito composto de dívidas que vão aumentando sem cessar, ainda que garantidas de momento – visto que nem todos os credores reclamarão ao mesmo tempo o pagamento dos seus créditos –, engenhosa invenção dum povo comerciante do nosso século; funda-se desta forma uma potência financeira muito perigosa, um tesouro de guerra que supera o de todos os outros Estados juntos, e que nunca pode esgotar-se, senão por uma baixa rápida dos valores, que ainda podem manter-se altos durante muito tempo por meio do fomento do tráfico, que por sua vez tem repercussão na indústria e na riqueza.

Esta facilidade de fazer a guerra, acrescida de inclinação que para ela sentem 0s que tem a força, inclinação que parece inata da natureza humana, é o mais poderoso obstáculo à paz perpétua.

Por isso é tanto mais necessário um artigo preliminar que proíba a emissão de dívidas para tais fins, porque além da bancarrota do Estado, que se tornaria inevitável, muitos outros Estados seriam arrastados na catástrofe, sem culpa alguma da sua parte, o que seria uma pública lesão dos interesses destes últimos Estados. Os outros Estados têm, pelo menos, o direito de aliar-se contra o que proceda de tal forma e com tais pretensões.

5.º) Nenhum Estado deve imiscuir-se pela força na constituição e governo de outro Estado.

Com que direito o faria? Acaso fundando-se no escândalo e mau exemplo que um Estado dá aos súbditos de outro Estado. Mas, para estes, o espectáculo dos grandes males que um povo se ocasiona a si próprio, vivendo no desprezo da lei, é, sobretudo, útil como advertência exemplar; e além disso o mau exemplo que uma pessoa livre dá a outra – scandalum acceptum – não implica lesão desta última. Isto não é aplicável, sem dúvida, ao caso de um Estado que, em consequência de discórdias interiores, se divide em duas partes, representando cada uma um Estado particular, com a pretensão de representar o Todo, porque neste caso, se qualquer outro Estado auxilia uma das partes, esta acção não pode ser considerada como uma intromissão na constituição de outro, visto que este está em pura anarquia.

Sem dúvida, também, enquanto essa divisão interior não seja francamente manifesta, a intromissão de potências estranhas será sempre uma violação dos direitos de um povo livre. Independente, que luta sozinho contra o seu mal interior. Imiscuir-se nos pleitos domésticos seria um escândalo que poria em perigo a autonomia de todos os outros Estados.

6.º) Nenhum Estado, que esteja em guerra com outro, deve permitir-se o uso de hostilidades que impossibilitem a recíproca confiança na paz futura; tais são, por exemplo, a utilização no Estado inimigo de assassinos, de envenenadores. Da incitação a tração, etc.

Estes estratagemas são desonrosos. Pois mesmo em plena guerra deve haver uma certa confiança na consciência do inimigo. De contrário, nunca se poderia ajustar a paz, e as hostilidades degenerariam numa guerra de extermínio. A guerra é um recurso necessário, por desgraça, nos casos de tal natureza em que não há um tribunal para pronunciar-se e impor-se, para cada um dos contendores afirmar os seus direitos pela força; nenhuma das duas partes pode ser considerada inimigo ilegítimo – o que suporia já uma sentença judicial – e o que decide de que lado está o direito é o êxito da luta como nos chamados juízos de Deus.

Mas entre os Estados não se concebe urna guerra de castigo – bellum punitivum – porque não existe entre eles a relação de superior a inferior. Donde se conclui que uma guerra de extermínio, que levasse consigo o aniquilamento das duas partes e a anulação de todo o direito, tornaria impossível uma paz perpétua, que não fosse a do cemitério. Semelhante guerra deve ser, pois, absolutamente proibida, e proibido também, portanto, o uso dos meios que a ela conduzem. E é bem claro que os estratagemas citados conduzem inevitavelmente àqueles resultados, porque o emprego dessas artes infernais, em si próprias vis, não se contêm dentro dos limites da guerra, como sucede com o uso de espias, que consiste em aproveitar a indignidade de outros, mas continuam ainda depois de terminada a guerra, destruindo, assim, os próprios fins da paz.

* * *

Todas as leis que citei são objectivas, quere dizer, que aqueles que possuem a força as devem considerar como «leis proibitivas». Sem dúvida, algumas delas são «estritas» e válidas em todas as circunstâncias exigindo uma execução imediata: – os números 1, 5. 6; as outras – 2, 3, 4 – são mais amplas e admitem uma certa demora na sua aplicação. não porque haja excepções à regra jurídica, mas porque tendo em conta o exercício dessa regra e suas circunstâncias, admitem que se aumente subjectivamente a faculdade executiva, e dão ocasião para demorar a aplicação sem, todavia, perder nunca de vista o fim proposto.

Por exemplo: se se trata de restituir, segundo o n.º 2, a certos Estados. a liberdade perdida, não valerá adiar a execução da lei «ad calendas graecas» como fazia Augusto; quere dizer, não será lícito não cumprir a lei, mas poder-se-á demorá-la, se houver receio de que uma restituição precipitada seja contraproducente. De facto: a proibição refere-se só ao modo de adquirir; mas não ao estado possessório que, ainda que careça do título jurídico necessário, foi no seu tempo – da aquisição putativa – considerado como legítimo pela opinião pública, então vigente, de todos os Estados.

Se existem leis permissivas da razão pura, além dos mandatos – leges praeceptivae – e proibitivas – leges prohibitivae –, é coisa que muitos, até agora, puseram em dúvida, não sem motivo. De facto, as leis em geral contêm o fundamento da necessidade prática objectiva de certas acções; a permissão, pelo contrário, fundamenta a contingência ou acidentalidade prática de certas acções. Uma lei permissiva, portanto, viria a conter a obrigação de realizar um acto a que ninguém pode ser obrigado; o que, se o conceito de lei se mantém idêntico, é uma contradição patente.

Na lei permissiva de que nos ocupamos, a proibição prévia refere-se, somente, ao modo futuro de adquirir um direito – por exemplo, a herança – e o levantamento da proibição, ou seja a permissão, refere-se à posse actual. Esta ao passar do estado de natureza ao estado civil, pode continuar mantendo-se, por uma lei permissiva do direito natural, como posse putativa, que, se bem que não esteja conforme com o direito, é, sem dúvida, honesta; mesmo quando uma posse putativa. reconhecida como tal no estado de natureza. passe a ser proibida, assim como toda a maneira semelhante de adquirir, no estado civil posterior.

A permissão de continuar a possuir não poderia, pois, existir, no caso de que a aquisição putativa se tivesse realizado no estado civil, pois tal permissão implicaria uma lesão e, portanto, deveria desaparecer, tão depressa como fora descoberta a sua ilegitimidade.

Não me propus fazer aqui outra coisa senão chamar, de passagem, a atenção dos mestres do direito natural para o conceito de lei permissiva que se apresenta espontaneamente, quando a razão se propõe fazer uma divisão sistemática da lei. Na legislação civil usa-se frequentemente desse conceito, mas com a diferença de que a lei proibitiva apresenta-se bastando-se a si própria, e a permissão, em lugar de ir incluída na lei, servindo de condição limitativa, como deveria ser, vai entre as excepções. Estabelece-se: é proibido isto ou aquilo; e acrescenta-se, logo, excepto nos casos 1.º, 2.º, 3.º, e assim indefinidamente. Vem, pois, as permissões acrescentar-se à lei, mas ao acaso, sem princípios fixos, conforme os casos que vão aparecendo. Ora as condições deveriam ser incluídas na fórmula da lei proibitiva que então seria, ao mesmo tempo, lei permissiva.

É muito de lamentar que o problema, proposto para o prémio do sábio e arguto conde de Windischgraetz, não tenha sido resolvido por ninguém e fosse, tão depressa, abandonado. Referia-se a esta questão, que é de grande importância porque a possibilidade de semelhantes fórmulas – parecidas com as matemáticas – é a verdadeira pedra de toque duma legislação consequente. Sem ela o jus certum será sempre um pio desejo. Sem ela poderá haver leis gerais que valham em geral, mas não leis universais, de valor universal, que é precisamente o valor que o conceito de lei parece exigir.

A Paz Perpétua, Immanuel Kant. Edição da Livraria Educação Nacional, Porto, 1941. 

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Em Portugal está tudo bem! Por cá estamos todos bem!

 

Costa, arvorando-se em porta voz privilegiado de Bruxelas e das elites caseiras, defende que os dinheiros do PRR (Programa de Recuperação e Resiliência) vão alterar o “perfil” da economia portuguesa; ou seja, mudar-lhe a estrutura e, quiçá, a natureza de molde a torná-la mais resistente aos ditos “choques externos”, vulgo “concorrência” estrangeira, iludindo que a economia aberta de que os indígenas se orgulham mais não é que frágil e rota embarcação a meter água por todos os rombos e por várias razões, devido à ausência de controlo da moeda, das taxas de juro e das relações externas, só para citar as mais importantes. Anda-se à deriva e sabe-se, mas esconde-se.

A transferência da riqueza do trabalho para o capital não tem deixado de aumentar

O ministro da Economia, talvez por não ter ainda o estofo de mentiroso típico dos políticos do sistema, não consegue evitar que a boca lhe fuja para a verdade e daí evacuar que a “recuperação” não se traduzir ainda no bolso dos portugueses (cidadãos comuns), fazendo lembrar as palavras memoráveis de Montenegro, quando o seu partido se encontrava no governo, de "a vida das pessoas não está melhor mas a do País está muito melhor", foi em Janeiro de 2014, em plena troika, e os portugueses cuja vida não está melhor lembram-se bem.

Facilmente se infere que as políticas seguidas quer pelo PSD quer pelo PS, quando no governo, são bem semelhantes e distinguir-se-ão somente em pormenores de tempo e de intensidade – um será mais pelo cacete, o outro mais pela cenoura, pelo menos enquanto houver cenouras.

E como se encontra a vida dos portugueses? A dita “classe média”, a pequena-burguesia dos serviços e do comércio não tem grandes razões para se encontrar satisfeita e sentir-se feliz. Os dados recentes dizem-nos que “professores e investigadores perderam entre 22% a 27% do poder de compra desde 2004, isto é ainda não recuperaram do tempo da troica e das bacoradas do ora auto-promovido chefe da oposição ao governo.

Os pequenos comerciantes terão levado igualmente a ripada, e não terá sido apenas na capital do país: “um quarto das lojas da Baixa de Lisboa não reabriu desde a pandemia”. E os trabalhadores em geral, o salário médio por trabalhador diminui 4,0% em termos reais só no ano passado, em 2022, e, a título de curiosidade, inferior em média em 634 euros por mês do que os trabalhadores espanhóis. Em termos reais, metade de um salário mensal esfumou-se.

E o desemprego encontra-se a subir nos últimos 19 meses, estando agora nos 6,7%, o que significa uma real descida do real nominal devido ao aumento de competição entre os trabalhadores – “Portugal foi o país da OCDE onde desemprego mais subiu entre Julho e Dezembro” (da imprensa).

A transferência da riqueza flui do trabalho para o capital de diversas maneiras e não só do valor da mais-valia que não é paga aquando da venda da força de trabalho do assalariado, os lucros acrescidos não vêm apenas da diminuição do salário, mas igualmente pelo aumento do preço das mercadorias, ou seja, pelo aumento, desmesurado e brusco, neste caso, dos bens consumidos pelos cidadãos, para além de outras vias mais indirectas.

Os bancos estão sempre à cabeça no arrecadar de mais e cada vez mais lucros, sugam os trabalhadores mas igualmente os restantes sectores, só grande grupos económicos têm condições para se financiarem na banca aos juros que estão em vigor: Lagarde já anunciou para Março mais uma subida 50 pontos o que levará até ao fim do ano a uma taxa de 4%, igual à do FED e do Banco de Inglaterra.

Madina, gabarola por ofício e por caracter gabou-se ainda há pouco que uma das  razões seria a estabilidade e solidez da “banca nacional”, ora onde se encontra a tal banca já que a maior parte dos bancos a operar em território nacional são estrangeiros, predominantemente espanhóis; nacional, só a Caixa Geral de Depósitos e pouco mais, e mesmo aquela possui gestão capitalista com os restantes bancos, só lhe interessa o lucro.

Como curiosidade: lucro do Santander Totta quase duplica para 568,5 milhões de euros em 2022, mais 270,3 milhões face a 2021; lucro do BPI melhora 19% para 365 milhões de euros. São ambos bancos espanhóis. De onde veio o dinheiro? A maior parte veio das comissões extorquidas aos cidadãos que têm a necessidade de recorrer aos seus serviços e da rentabilidade dos depósitos sobre os quais não pagam juros e pelos quais se vão financiando. O cidadão vai assim de forma directa pagar a bancarrota provocada ou pela má gestão ou pela própria crise do capitalismo.

A GALP aumentou os lucros para quase o dobro, 881 milhões de euros, em 2022, o que revela que a carestia de vida dos que trabalham traduz-se sempre no aumento da riqueza dos capitalistas. A razão pela qual o governo se recusa terminantemente em fixar o preço dos combustíveis, considerando este exemplo, ou até intervir directamente na venda, e produção, dos combustíveis com a renacionalização deste sector estratégico da economia, prova que a sua agenda não é a agenda do trabalho, mas sim a do grande capital.

Quem ainda pensa na sinceridade socialista é gente que acredita no Pai Natal – os 23 % da inflação do preço dos alimentos (cabaz DECO) encontra-se mais próxima da realidade do que os números do INE. Resultado final em 2022: há 1910 famílias em Portugal que têm entre 10 a 100 milhões de euros e há 4,4milhões de pobres que vivem com menos de 550 euros.

"Não há risco de recessão em Portugal"

Parece uma fatalidade, mas na realidade não é, o facto de o défice comercial português ser crónico ao longo dos tempos, atravessando os diversos regimes políticos que vigoraram em Portugal desde, pelo menos, os últimos trezentos anos. E tem sido e continuará a ser uma fatalidade pela simples razão de que o país, ao longo destes anos, tem sido uma colónia ou um protetorado da potência predominante da época, mesmo quando mantinha as colónias, e mesmo aí mais não passava de um intermediário das grande empresas europeias, predominantemente inglesas durante todo o século XIX, arcando com o prejuízo da administração e defesa dos domínios coloniais.

Mas esta função de intermediação é tão antiga e está tão arreigada nas nossas elites que ainda se mantém, foi com este espírito e exercendo o papel de catar as migalhas deixadas pelo rapinanço imperialista que a elite actual, mais os seus capangas políticos, se predispôs a desempenhar, uma outra vez, quando apostou na então CEE e agora UE.

Foi nesta qualidade de lacaio para toda a obra que o funcionário das Finanças, Medina, vai tentando desempenhar a função da melhor forma, exorcizando os fantasmas da bancarrota com a declaração constante e repetida de que “não há risco de recessão em Portugal”. Faz de caixa de ressonância do BCE (Banco Central Europeu) e da sua sucursal Banco de Portugal.

Centeno, no Fórum de Davos, foi claro: a “economia nacional” encontra-se melhor porque as empresas estão agora “menos endividadas do que em 2019”, isto é, antes da pandemia. O quer dizer que esta terá sido o pretexto para recapitalizar (como denunciámos na altura) as empresas falidas ou prestes a falir e, principalmente, reforçar ainda mais os grupos económicos estrangeiros que aqui vão beneficiando de todos os apoios fiscais e da nossa mão-de-obra baratinha.

Continuar a deitar dinheiro em uma economia falida, arrancado ao suor e sangue dos trabalhadores, é trabalho inútil no que concerne à economia considerada no seu todo, servirá apenas para fazer engordar o património e as contas bancárias dos capitalistas nacionais, como já aconteceu com dinheiros europeus anteriores – a economia nacional está irremediavelmente duplamente condenada… porque capitalista e subsidiária.

 E vamos aos números e aos factos. O INE diz que "as exportações e as importações aumentaram 23,1% e 31,2%, respetivamente no ano de 2022, tendo o défice da balança comercial aumentado 11,256 mil milhões de euros para 30,783 mil milhões de euros", e também diz que o rácio do défice comercial terminou em 13% do PIB, o maior desde 2008, e, salienta a imprensa mainstream, “Portugal volta a ser tão dependente de compras ao estrangeiro como no tempo de Sócrates”.

Uma economia que, usando uma moeda cara (o marco alemão sob o nome de euro) acaba sempre por comprar caro e vender barato, sendo inevitável o endividamento do país; e um país com uma dívida permanente, independentemente de ser pública ou privada, é um país inviável e sem futuro. A recessão será sempre inevitável e quando acontecer será maior que nos restantes países da União Europeia.

Meias verdade e mentiras inteiras

Contudo, o governo PS & Costa tenta tapar o sol com a peneira, querendo fazer crer ao povoléu (tratando-nos como ignorantes) que a dívida pública “diminuiu” em 2022; claro que diminuiu a sua relação com o PIB visto que este aumentou 6,7%, valor de que o governo também se vangloriou. Com estas meias-verdades esconde duas realidades e diz duas mentiras: uma, a dívida pública não desceu mas aumentou em valor absoluto, foram mais 3,3 mil milhões de euros; outra, o aumento do PIB foi pífio, comparado com 2019, porque a quebra foi de tal maneira grande em 2020 e 2022, tendo sido uma das recuperações mais baixas da União Europeia.

E a prova de que a dívida pública está sempre a aumentar em termos absolutos é o facto de o estado continuar a pedir mais dinheiro ao estrangeiro, tendo acabado de realizar um leilão de dívida a 3 e a 11 meses para angariar até 1000 milhões de euros e a juros muito mais elevados, e já lançou outro leilão para 750 milhões de euros, e a procura pelos certificados de aforro atingiu novo record. O governo vai-se valendo de alguma iliteracia por parte do povo, que pensará que “vender dívida” é coisa boa, esquecendo-se por vezes que é ele que paga sempre a conta.

O dinheiro da corrupção, exemplo, os 444 milhões com novos aviões Airbus da TAP, ser-lhe-á fatalmente endossado, assim como todo o dinheiro ali enterrado para a transportadora aérea ser entregue a um grande grupo económico europeu, muito provavelmente será a alemã Lufthansa, à semelhança de outras empresas importantes, reforçando a posição de Portugal de economia subalterna e subsidiária, qualquer dia ficará apenas como nacional o ar e pouco mais.

O caso da TAP, onde o governo já estorricou perto de 4 mil milhões de euros, faz-nos lembrar outros casos, os dos bancos, onde foram injectados muitos milhões, BPN, Banif, BES, que deverão totalizar mais de 20 mil milhões de euros, para depois serem entregues ao grande capital financeiro estrangeiro e conforme plano traçado por Bruxelas, com a agravante de que a TAP é uma empresa pública. Em todos estes casos, os governos de turno em Lisboa têm cumprido bem a tarefa, a dos gestores dos negócios do capital. O problema está em ser sempre o povo a pagar, com salários mais baixos, impostos mais altos, piores serviços públicos, piores transportes, piores cuidados de saúde, pior educação, pior habitação, sempre tudo pior ou então ausência total. As guerras do capital traduzem-se sempre em mais fome e miséria para o povo que trabalha.

Em Portugal está tudo bem, estamos em guerra com a Rússia!

O PS sempre se armou em partido da guerra: Costa reúne-se com o agente americano na Ucrânia e declara guerra à Rússia e Marcelo prepara-se para conceder a Ordem da Liberdade a um chefe de estado que proibiu todos os partidos da oposição e mandou queimar todos os livros de autores russos. Ambos se colocam em bicos de pés na bajulação ao partido da guerra existente em Bruxelas e em Washington, são dois estrénuos guerreiros apesar de nenhum ter feito o serviço militar, já deram armas e material de guerra aos nacionalistas integralistas ucranianos, descendentes dos bandeiristas que se colocaram ao serviço de Hitler, e anunciaram continuar com a tarefa. A ministra da dita “Defesa” (será mais da Guerra) alinha pela mesma cartilha, aplicar as directivas aprovadas na Cimeira de Madrid da NATO, ou seja, reforçar a presença militar no Leste da Europa (a boca fugiu-lhe para a verdade) e aumentar a despesa no rearmamento. Esta gente arma-se em guerreira porque conta com o sangue dos outros, não com o deles ou dos seus familiares.

A sanha belicista desta gente não se dirige para a solução dos problemas dos trabalhadores, e dos professores em particular já que são estes que no memento se encontram na primeira linha de luta, bem pelo contrário, a raiva é para ser lançada contra eles – é a luta de classes. Esta uma verdade elementar que a pequena-burguesia, assustada que venha aí uma revolução mas igualmente temerosa pela proletarização em que se encontra, tenta escamotear. Isto acontece porque ainda não surgiu uma direcção revolucionária e proletária que unifique todas as lutas e de todos os sectores das massas, e esta é a condição sine qua non para que a actual luta dos professores não venha a morrer mais uma vez na paria do fracasso. Tenhamos esperança de ela sempre aparecer porque só na luta isso é possível. 

A luta dos professores, bem como todas as outras que irão inevitavelmente surgir, devem merecer e vão merecer o apoio da grande maioria do povo português. E pelas condições actuais na Europa, as lutas irão rapidamente espalhar-se por todo o continente, porque só a revolução proletária poderá esconjurar a guerra inter-imperialista. A luta será internacionalista!

Imagem de destaque: Guerra na Europa - Alemanha e Portugal são os dois únicos países que até ao momento já prepararam tanques (17) com destino à guerra da Ucrânia.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

Giorgio Agamben: O lugar da política; A verdade e a vergonha

 O lugar da política

Giorgio Agamben

As forças que impulsionam a unidade política mundial parecem ser tão mais fortes do que aquelas dirigidas a uma unidade política mais limitada, como a Europa, que se poderia escrever que a unidade da Europa só poderia ser «uma garantia de produto, para não dizer desperdício, da unidade global do planeta». Na realidade, as forças que impulsionam a realização da unidade têm-se revelado tão insuficientes para o planeta como para a Europa. Se a unidade europeia, para dar vida a uma verdadeira assembleia constituinte, teria pressuposto algo como um "patriotismo europeu", que não existia em lado nenhum (e a primeira consequência foi o fracasso dos referendos para aprovar a chamada constituição europeia, que, do ponto de vista legal, não é uma constituição, mas apenas um acordo entre os estados), a unidade política do planeta pressupunha um "patriotismo da espécie e/ou da humanidade" ainda mais difícil de encontrar. Como Gilson apontou com razão, uma sociedade de sociedades políticas não pode ser ela mesma política, mas precisa de um princípio metapolítico, como foi a religião, pelo menos no passado.

É possível, então, que o que os governos tentaram alcançar por meio da pandemia seja apenas um “patriotismo da espécie”. Mas só podiam fazê-lo parodicamente sob a forma de um terror partilhado face a um inimigo invisível, cujo resultado não era a produção de uma pátria e de laços comunitários, mas sim de uma massa fundada numa separação sem precedentes, provando essa distância sob em nenhuma circunstância poderia - como afirmava um slogan odioso e obsessivamente repetido - constituir um vínculo "social". Aparentemente mais eficaz foi a utilização de um princípio capaz de substituir a religião, que foi imediatamente identificado na ciência (no caso, a medicina). Mas aqui também a medicina como religião mostrou sua inadequação.

O projeto de criar uma espécie de patriotismo fracassou de tal forma que acabou por ser necessário mais uma vez e descaradamente recorrer à criação de um determinado inimigo político, identificado não por acaso entre aqueles que já haviam desempenhado esse papel: a Rússia, China, Irão.

Nesse sentido, a cultura política do Ocidente não deu um único passo em uma direção diferente daquela em que sempre se moveu, e somente se todos os princípios e valores nos quais ela se baseia forem questionados será possível pensar de outra forma o lugar da política, além tanto dos Estados-nação quanto do estado económico global.

9 de janeiro de 2023

quodlibet

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A verdade e a vergonha

Depois do que aconteceu nos últimos dois anos, é difícil não se sentir diminuído de alguma forma, não sentir – gostemos ou não – uma espécie de vergonha. Não é a vergonha que Marx definia como "uma espécie de raiva dirigida a si mesmo", na qual via uma possibilidade de revolução. Trata-se antes daquela "vergonha de ser homem", de que falava Primo Levi a propósito dos campos, a vergonha de quem viu acontecer o que não devia acontecer. É uma pena destas - já se disse com razão - que, guardadas as devidas distâncias, nos sintamos perante uma vulgaridade demasiado grande, perante certas emissões televisivas, os rostos dos seus apresentadores e o sorriso certeiro dos especialistas, jornalistas e políticos que conscientemente sancionaram e espalharam a mentira.

Quem já passou por essa vergonha sabe que não se tornou melhor por isso. Ao contrário, ele sabe, como Saba costumava repetir, que está «muito menos do que antes» – mais sozinho, mesmo que tenha procurado amigos e associados, mais mudo, mesmo que tenha tentado testemunhar, mais impotente, mesmo se alguém ouviu a sua palavra. Uma coisa, porém, ele não perdeu, pelo contrário, ganhou de alguma forma inesperada: uma certa proximidade com algo para o qual não encontra outro nome senão "verdade", a capacidade de distinguir o som daquela palavra, que, se você ouvir para isso, você não pode acreditar que é verdade. Por isso e por isso ele pode testemunhar. É possível – mas não é certo – que o tempo, como diz o ditado, acabe revelando a verdade e dando a ele – quem sabe quando – a razão. Mas não foi isso que seu depoimento levou em consideração.

24 de janeiro de 2023

quodlibet

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

O REGICIDIO

Aquilino Ribeiro

(…)

Um marçano dos sítios veio debaixo, decomposto a deitar os bofes, inflectiu para as Taipas. Interpelaram-no. Sem se deter atirou ao vento frases truncadas em que me pareceu ouvir marulhar como estribilho a palavra morte. O marouço agora, encapelando-se e desenvolvendo-se em bulcões, tinha jeitos de carregar à Avenida cada vez mais medonho: ahaaa!

Demos conta, até onde nos alcançava a vista, que cerravam portas, tomadas da mesma quartã, a tinturaria do gato preto, a tasca dos lampeanistas e varredores, e que acabavam por ir no embrulho a botica e o lugar. O coureiro a seguir. Depois de abanar a cabeçorra e torcer duas vezes a beiça, tomando-nos como testemunhas do seu cepticismo, como se praticasse um preito imerecido a caprichosa e despótica divindade, fechou a porta a sete chaves e girou rua fora a assobiar o medo fanfarrão. Calçada acima – notámos depois – passaram às upas dois meninos, esporeados pela criada que lhes levava a bolsa dos livros. E logo após, como se houvessem aberto as comportas a um rio, desatou a passar gente, rapazes em cabelo, homens de chapéu na mão, varinas, bufarinheiros, fora de compasso, falazando ou soltando vozes truncadas.

– Houve sangue! – Houve sangue! – murmurava Patarroxa.

Veio-me um apetite irreprimível de descer à praça e interrogar aquelas criaturas, decerto informadas do que acontecera. Mas refreou-me um último escrúpulo de prudência, e empurrei Humberto:

– Vai ver! Que é o que te custa?!...

A vaga sinistra, com um resfolegadoiro tão estranho que parecia trazer em si a peste, a fome e a guerra, crescia para a periferia, alagando tudo sob a sua ululação infernal. Mortificada, a mãe Benedita postara-se na janela ao lado e, batendo as matracas dos queixais, rezava: seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu... O Patarroxa animou-se e desceu à rua a averiguar. Não se demorou. Vinha pálido, a tremelicar das pernas, os lábios a mascar a terrível palavra que eu, entretanto, julgara surpreender na boca do sujeito que ia acorrer:

– Mataram o rei!

– Mataram o rei! – balbuciava Patarroxa. – Ai que erro! Ai que erro! Não é o que se tinha planeado.

Mataram o rei! E o nosso primeiro impulso, seguramente meu e de Patarroxa, e creio que igual em toda a gente, foi fugir de nós próprios, da personalidade atávica que incarnava o respeito sagrado pelo nosso amo de tantos séculos.

Mas como pôde isso ser, encontrarem-se homens forros de preconceitos, mãos de todo isentas da submissão ancestral que tiveram o ousio de se erguerem contra o ungido de Deus, o César, o soberano? Ah, mas dar-se-á o caso que estejamos implicados em semelhante crime? O Patarroxa tinha-se prontificado a tomar parte no assalto à casa do ministro, eu, além de ser um evadido das cadeias, tinha a pesar-me na consciência os meus desejos feros, os meus desejos de pé-fresco que está sempre pronto a despachar o sátrapa desta para melhor. De facto, metendo a mão no peito, reconheço-me cúmplice de quem se arrojou a levantar o ferro contra o príncipe do povo, o nosso Agamémnon, dentro do próprio arraial. Que ninguém o saiba, mas eu ajudei a matar o rei, confesso-o aqui à mesa da consciência. Ninguém o soube, ninguém me viu, respiro. Sim, ninguém me viu e como tal goza-se da impunidade esse outro ser, ser rastejante, de todo nocturnal, escravo das unhas dos pés à coruta dos cabelos, que imprevistamente acordou em mim do sono das gerações. Dissipada essa coca sem consistência, dado como irresponsável em suma o lorpa do imprevisto alter-ego, toma-me novo calafrio. Dou conta que o mesmo sucede com Patarroxa. Vem aí desaçaimada a bicharada que comia da mão real, que comia pela mão do morto. De colmilhos afiados hão-de estracinhar quem no caminho lhes cheire a huguenote. Por onde arremetam, deixam um rasto de iniquidades. Compreendo. Na fase heróica do género humano era de lei prestar ao chefe caído holocaustos humanos. Antes de ser eleito o novo caudilho, eram queimados na pira votiva as virgens mais apetecidas e os efebos mais gentis. Os prisioneiros eram rachados de meio a meio, e a tribo, embriagada de luto, oferecia aos manes do grande morto montanhas de vísceras palpitantes.

O cita moderno, como o seu avô dos tempos ominosos, não podia deixar de requerer igualmente sangue expiatório. Sem a oferenda de vítimas cruentas não tem descanso no Hades a alma do finado. E a turba-multa que ouço bramir, remontando do Terreiro do Paço, foge à prática do rito bárbaro, acicatada pela memória trágica que sobrenada na tradição dos povos. Aí está. O pânico contagioso que palpito na multidão alucinada, que observo no seleiro lanzudo, na pata-choca da hortaliceira, na negra da Benedita, em Patarroxa, em mim, não tem outra origem. Todos sentimos marinhar-nos pela espinha o temor da matilha real açulada e, se a nós dois a nova colhesse de surpresa na Rua do Ouro, por certo que deitaríamos a correr como os mais, de cabelos no ar, soltando vozes roucas, intraduzíveis, varados de angústia. Tudo ânsia de escapar à fogueira da imolação e à faca dos arúspices consagrados ao desagravo e glorificação do amo.

Mataram o rei! Mas, ah, se de começo cada um teve medo de si, depois desvairaram com medo uns dos outros. O comerciante que se precipitou a descer a porta de aço, a senhora que se desunhava a recolher a casa, o conselheiro da oposição que se atirou lívido para dentro do primeiro fiacre que pilhou a jeito, toda a malta que dava com os calcanhares na bunda, que se esgalgava por avenidas e praças em bichas uivantes, absurdas, acontecendo que uns foram parar a Santarém, outros perderam a fala por horas e horas, oh, não haja dúvida, fugia às represálias dos janízaros!

Mas semelhante estado de hipertensão tinha de ser como nos macaréus de curta dura e o revulsivo contra o terror pouco a pouco foi operando. Todos e cada um acabaram por assentar que não havia relacionação jurídica entre os matadores e os seus anelos íntimos, a sua raiva surda de honrados patriotas, o seu ódio de pacíficos burgueses, e as suas ameaças ao trono de políticos no ostracismo. Em fim de contas podia dizer-se que o braço dos executores galvanizou-se tanto com a encíclica Rerum Novarum como com as estrofes vermelhas do Finis Patriae . Colaborámos todos para a fatalidade dessa efeméride como na lei cíclica do pôr do Sol se concentram todos os factores sensíveis ou ignorados do ocaso. E a irresponsabilidade do indivíduo e a responsabilidade colectiva saltaram aos olhos do entendimento. Taboso chegou com notícias.

Vagarosamente as descargas eléctricas a que esteve submetida a minha espinal medula foram-se atenuando. Deixaram de tamborilar as meninges. Como a ressaca suja dum cais – vasa, esgotos, trapiche – o susto foi-se desprendendo da alma de todos e de cada um de modo a poder reflexionar-se sobre o facto: tinham matado o rei.

– Não era o que se tinha planeado! – continuava a gazear Patarroxa.

Deixa não ser. Exaltados revolucionários, fanáticos da liberdade, haviam disparado sobre a família real a peito descoberto, no meio da guarda do corpo, como se estivessem em pleno sertão a caçar a pacaça. Como foi possível antes de mais nada perderem o respeito atávico? Depois, como se aventuraram a correr este cartel suicida, sem exemplo, sem preparo, sem ligações, sem mandato do clã, semelhante a um holocausto pura mente voluntário à Codro? E ainda como é que esses amoucos chegaram a perder o horror do sarrabulho humano, riscando do campo da consciência essa tremenda inibição: matar?

Por fás ou por nefas, esse homenzarrão louro que herdara sem orgulho a grei pacatissima, que não reinou, mas deixava reinar os ministros com o discricionário que comporta esta palavra, não soube ser simpático ao povo, em especial ao povo de Lisboa. Tê-lo-ia sido algum dos antecessores na longa série de três dinastias, em regra diminutos, tiranetes, devassos uns, megalómanos outros, tratando a sal e vinagre as mataduras do Zé, quando a pretendida idolatria que lhes votava o servo era computada pelos escrivães de ofício, fradalhões sem pejo, plumitivos amesendados ao trinchante régio? Um dia se verificará, porventura quando se faça a análise espectral desta monarquia sem vassalos, como dizia o defunto monarca.

Este rei não era amado do povo. Nunca lhe dera a sentir, mísero, sofredor, trabalhado por mil necessidades do corpo e da alma, o reconforto duma estima calorosa e vigilante. Tão-pouco assumira alguma vez em relação à parte civilizada da nação o fácil papel de mediador plástico. Para que servia no século XX, o século das realizações desmedidas, da ebulição febril, da planificação geral do problema humano, um rei tirado do baralho de jogar? Não bastava que fosse um homem amável, boa escopeta, sibarita generoso, desempoeirado do espírito, nada carola como é de recomendar ao príncipe dum povo enfartado de padre-nossos, até artista nas suas horas. Era preciso ser tão útil na qualidade de soberano como o fiel o é na balança, determinando-se com agilidade e independentemente da natureza das coisas que vêm à pesagem, árbitro sempre presente e imparcial, atributos estes mercê dos quais a balança é balança Ora este rei era rei para ele; para ele e para meia dúzia, no conceito de singular, digamos de supertemporalidade com que a história revestiu o termo. No demais – o infinito – deixava-se pear atrás da Carta numa atitude de obséquio, que era a da comodidade. Um dia, tendo-se desmanchado as pregaturas do manto de arminho com que escondia os adiantamentos pedidos à Fazenda Nacional, sacudiu com dois piparotes o constitucionalismo outorgado por seu avô e jurado por ele, e no guarda-roupa do Paço envergou o justilho de D. João II. Arvorou em João das Regras um obcecado regedor de aldeia, que se limitou a apertar a tarraxa das leis repressivas e a ter bem escorvadas as armas nos quartéis. Julgou que era o suficiente e enganou-se com os tempos, em que ninguém se resigna a ser carneiro, andar diante de chibata, e com as possibilidades inúmeras dos especuladores da política. A força de insânias, de violências, de gestos inúteis e impulsivos, desafios indistintamente aos homens de brio e aos desenvergonhados, este Frederico o Pequeno e o seu granadeiro deram com os burrinhos na água. Do acalcamento tumultuário e disparatado de todo saíram os regicidas. Que virá a resultar da carnificina? Na melhor das hipóteses, nada de irremediável para o progresso da ideia política. A meu ver o epitáfio que se ajusta à lousa duns e doutros é: INUTILIDADE. Uns porque não estavam à altura do seu ministério, outros porque, se deceparam a fronde à árvore do mal, não tocaram, não podiam tocar no cepo, que voltará a reflorir. O cepo é tudo o que para aí está, barbárie por dentro e por fora, pobreza e companhia, presunção e água benta, e uma raça que parece acabou de voltar dos trópicos combalida dos ossos e com a alma tisnada.

Uns e outros entraram na história pelo braço de Ares, como diz Homero dos seus guerreiros. Funesta sina a dos matadores e contingente o veredicto do seu feito. Serão heróis coroados de louros ou assassinos de repulsiva memória consoante o curso dos acontecimentos. A palavra definitiva de julgamento ditá-la-á o futuro. Com Guilherme Tell veio o resgate e ficou sagrado o seu nome. Se com estes raiar nova aurora à família portuguesa, regenerada da canceração política, teremos novos ídolos nos altares. De contrário, oxalá que o sangue das vítimas, mormente o sangue inocente, não recaia sobre nós todos e particularmente sobre os filhos dos vingadores!

Ficámos a cogitar num mundo de coisas enquanto as portas onduladas volviam a enrolar-se e os garotos pregoavam as gazetas da noite com voz sensacional. O sereno entretanto cobria de blandícia lá em baixo, no jardim, a imponente e preciosa parkinsonia aculeata. À medida que escurecia, estrelavam-se de luzes as colinas. E, quando anoiteceu de todo, na poalha luminosa, contínua e geométrica segundo a linha das ruas, nossos olhos feridos pela fulguração da tragédia só viam passamanes, os longos passamanes de amarelo mortiço com que ia ser raiado o negro profundo do catafalco real.

(“Lápides Partidas”, Aquilino Ribeiro, Livraria Bertrand. Lisboa, 1969)