domingo, 26 de fevereiro de 2023

A PAZ PERPÉTUA

 

Immanuel Kant

PRIMEIRA PARTE: Artigos preliminares de uma paz perpétua entre as nações

1.º) Não deve considerar-se válido um tratado de paz que se tenha ajustado com a reserva mental de certos motivos capazes de provocar, no futuro, outra guerra.

Sem dúvida, semelhante tratado seria um simples armistício, uma interrupção das hostilidades, e nunca uma verdadeira paz que significa o fim de todas as hostilidades; acrescentar-lhe o epíteto de perpétua, seria já um pleonasmo suspeito. O tratado de paz aniquila por completo as causas existentes para uma possível guerra futura, mesmo quando os que negoceiam a paz não as vislumbrem nem suspeitem no momento das negociações; aniquila, também, aquelas que possam logo descobrir-se por meio de hábeis e penetrantes pesquisas nos documentos arquivados. A reserva mental, que consiste em não falar, na altura, de certas pretensões que ambos os países se abstêm de mencionar, porque estão demasiado cansados para prosseguir a guerra, mas com a perversa intenção de aproveitar, mais tarde, a primeira conjuntura favorável parta reproduzi-las, é coisa que entra em cheio na casuística jesuítica; tal proceder, considerado em si, é indigno de um príncipe, e prestar-se a semelhantes manhas é também indigno de um ministro. Este juízo parecerá, sem dúvida, uma pedantice escolástica aos que pensam, segundo os esclarecidos princípios de prudência política, que a verdadeira honra de um Estado consiste no contínuo acréscimo da sua força, seja por que meio for.

2º) Nenhum Estado independente – pequeno ou grande – poderá ser adquirido por outro por meio de herança, troca, compra ou doação.

Um Estado não é – como é, por exemplo, o solo que ocupa – um haver, um património. É uma sociedade de homens na qual ninguém, senão ela própria, pode mandar e dispor. É um tronco com raízes próprias; por conseguinte, incorporá-lo noutro Estado é o mesmo que anular a sua existência de pessoa moral e fazer desta pessoa uma coisa. Este procedimento acha-se em contradição com  a ideia do contrato originário, sem o qual não pode conceber-se nenhum direito sobre um povo (1). Todo o mundo sabe bem a que perigos expôs a Europa esse prejuízo acerca do modo de adquirir Estados, que as outras partes do mundo nunca conheceram. No nosso tempo e em época muito recente, contraíram-se matrimónios entre Estados: era um novo meio, já para acrescentar a própria potência mediante pactos de família, sem nenhum dispêndio de forças, já para alargar os domínios territoriais. Pertence também a este grupo de meios o aluguer de tropas que um Estado contrata com outro, para as utilizar contra um terceiro que não é inimigo comum; neste caso usa-se e abusa-se dos súbditos, o capricho, como se fossem coisas.

3.º) Os exércitos permanentes – miles perpetuus – devem desaparecer por completo com o tempo.

Os exércitos permanentes são uma incessante ameaça de guerra para os outros Estados, visto que estão sempre dispostos e preparados para combater. Os diferentes Estados empenham-se em superar-se uns aos outros em armamento, que aumentam sem cessar. E como, finalmente, os gastos ocasionados pelo exército permanente chegam a tornar a paz ainda mais insuportável do que uma guerra curta, acabam por ser eles próprios a causa de agressões, cujo fim não é outro senão livrar o país do pesadelo dos gastos militares. Acrescente-se a isto que ter pessoas a soldo para que morram ou matem, parece que implica um uso do homem como mera máquina nas mãos de outro – o Estado; o que não é compatível com os direitos da Humanidade na nossa própria pessoa.

Consideração merecem, pelo contrário, os exercícios militares que os cidadãos realizam periodicamente, por sua própria vontade, com o fim de se prepararem para defender a sua pátria contra os ataques do inimigo exterior.

O mesmo aconteceria tratando-se da formação de um tesouro ou reserva financeira, pois os outros Estados considerá-lo-iam como uma ameaça e ver-se-iam obrigados a preveni-la, adiantando-se na agressão. Efectivamente, das três formas do Poder, exército, alianças e dinheiro, seria, sem dúvida, a última o mais seguro instrumento de guerra, se não fosse a dificuldade de apreciar bem a sua magnitude.

4.º) O Estado não deve contrair dívidas que tenham por fim sustentar a sua política exterior.

A emissão de divida, como ajuda que o Estado procura, dentro ou fora das suas fronteiras, para fomentar a economia do país, reparação de estradas, colonização, criação de reservas para os anos maus, etc… – nada tem de suspeito. Mas, se se considera como instrumento de acção e reacção entre as potências, converte-se em sistema de crédito composto de dívidas que vão aumentando sem cessar, ainda que garantidas de momento – visto que nem todos os credores reclamarão ao mesmo tempo o pagamento dos seus créditos –, engenhosa invenção dum povo comerciante do nosso século; funda-se desta forma uma potência financeira muito perigosa, um tesouro de guerra que supera o de todos os outros Estados juntos, e que nunca pode esgotar-se, senão por uma baixa rápida dos valores, que ainda podem manter-se altos durante muito tempo por meio do fomento do tráfico, que por sua vez tem repercussão na indústria e na riqueza.

Esta facilidade de fazer a guerra, acrescida de inclinação que para ela sentem 0s que tem a força, inclinação que parece inata da natureza humana, é o mais poderoso obstáculo à paz perpétua.

Por isso é tanto mais necessário um artigo preliminar que proíba a emissão de dívidas para tais fins, porque além da bancarrota do Estado, que se tornaria inevitável, muitos outros Estados seriam arrastados na catástrofe, sem culpa alguma da sua parte, o que seria uma pública lesão dos interesses destes últimos Estados. Os outros Estados têm, pelo menos, o direito de aliar-se contra o que proceda de tal forma e com tais pretensões.

5.º) Nenhum Estado deve imiscuir-se pela força na constituição e governo de outro Estado.

Com que direito o faria? Acaso fundando-se no escândalo e mau exemplo que um Estado dá aos súbditos de outro Estado. Mas, para estes, o espectáculo dos grandes males que um povo se ocasiona a si próprio, vivendo no desprezo da lei, é, sobretudo, útil como advertência exemplar; e além disso o mau exemplo que uma pessoa livre dá a outra – scandalum acceptum – não implica lesão desta última. Isto não é aplicável, sem dúvida, ao caso de um Estado que, em consequência de discórdias interiores, se divide em duas partes, representando cada uma um Estado particular, com a pretensão de representar o Todo, porque neste caso, se qualquer outro Estado auxilia uma das partes, esta acção não pode ser considerada como uma intromissão na constituição de outro, visto que este está em pura anarquia.

Sem dúvida, também, enquanto essa divisão interior não seja francamente manifesta, a intromissão de potências estranhas será sempre uma violação dos direitos de um povo livre. Independente, que luta sozinho contra o seu mal interior. Imiscuir-se nos pleitos domésticos seria um escândalo que poria em perigo a autonomia de todos os outros Estados.

6.º) Nenhum Estado, que esteja em guerra com outro, deve permitir-se o uso de hostilidades que impossibilitem a recíproca confiança na paz futura; tais são, por exemplo, a utilização no Estado inimigo de assassinos, de envenenadores. Da incitação a tração, etc.

Estes estratagemas são desonrosos. Pois mesmo em plena guerra deve haver uma certa confiança na consciência do inimigo. De contrário, nunca se poderia ajustar a paz, e as hostilidades degenerariam numa guerra de extermínio. A guerra é um recurso necessário, por desgraça, nos casos de tal natureza em que não há um tribunal para pronunciar-se e impor-se, para cada um dos contendores afirmar os seus direitos pela força; nenhuma das duas partes pode ser considerada inimigo ilegítimo – o que suporia já uma sentença judicial – e o que decide de que lado está o direito é o êxito da luta como nos chamados juízos de Deus.

Mas entre os Estados não se concebe urna guerra de castigo – bellum punitivum – porque não existe entre eles a relação de superior a inferior. Donde se conclui que uma guerra de extermínio, que levasse consigo o aniquilamento das duas partes e a anulação de todo o direito, tornaria impossível uma paz perpétua, que não fosse a do cemitério. Semelhante guerra deve ser, pois, absolutamente proibida, e proibido também, portanto, o uso dos meios que a ela conduzem. E é bem claro que os estratagemas citados conduzem inevitavelmente àqueles resultados, porque o emprego dessas artes infernais, em si próprias vis, não se contêm dentro dos limites da guerra, como sucede com o uso de espias, que consiste em aproveitar a indignidade de outros, mas continuam ainda depois de terminada a guerra, destruindo, assim, os próprios fins da paz.

* * *

Todas as leis que citei são objectivas, quere dizer, que aqueles que possuem a força as devem considerar como «leis proibitivas». Sem dúvida, algumas delas são «estritas» e válidas em todas as circunstâncias exigindo uma execução imediata: – os números 1, 5. 6; as outras – 2, 3, 4 – são mais amplas e admitem uma certa demora na sua aplicação. não porque haja excepções à regra jurídica, mas porque tendo em conta o exercício dessa regra e suas circunstâncias, admitem que se aumente subjectivamente a faculdade executiva, e dão ocasião para demorar a aplicação sem, todavia, perder nunca de vista o fim proposto.

Por exemplo: se se trata de restituir, segundo o n.º 2, a certos Estados. a liberdade perdida, não valerá adiar a execução da lei «ad calendas graecas» como fazia Augusto; quere dizer, não será lícito não cumprir a lei, mas poder-se-á demorá-la, se houver receio de que uma restituição precipitada seja contraproducente. De facto: a proibição refere-se só ao modo de adquirir; mas não ao estado possessório que, ainda que careça do título jurídico necessário, foi no seu tempo – da aquisição putativa – considerado como legítimo pela opinião pública, então vigente, de todos os Estados.

Se existem leis permissivas da razão pura, além dos mandatos – leges praeceptivae – e proibitivas – leges prohibitivae –, é coisa que muitos, até agora, puseram em dúvida, não sem motivo. De facto, as leis em geral contêm o fundamento da necessidade prática objectiva de certas acções; a permissão, pelo contrário, fundamenta a contingência ou acidentalidade prática de certas acções. Uma lei permissiva, portanto, viria a conter a obrigação de realizar um acto a que ninguém pode ser obrigado; o que, se o conceito de lei se mantém idêntico, é uma contradição patente.

Na lei permissiva de que nos ocupamos, a proibição prévia refere-se, somente, ao modo futuro de adquirir um direito – por exemplo, a herança – e o levantamento da proibição, ou seja a permissão, refere-se à posse actual. Esta ao passar do estado de natureza ao estado civil, pode continuar mantendo-se, por uma lei permissiva do direito natural, como posse putativa, que, se bem que não esteja conforme com o direito, é, sem dúvida, honesta; mesmo quando uma posse putativa. reconhecida como tal no estado de natureza. passe a ser proibida, assim como toda a maneira semelhante de adquirir, no estado civil posterior.

A permissão de continuar a possuir não poderia, pois, existir, no caso de que a aquisição putativa se tivesse realizado no estado civil, pois tal permissão implicaria uma lesão e, portanto, deveria desaparecer, tão depressa como fora descoberta a sua ilegitimidade.

Não me propus fazer aqui outra coisa senão chamar, de passagem, a atenção dos mestres do direito natural para o conceito de lei permissiva que se apresenta espontaneamente, quando a razão se propõe fazer uma divisão sistemática da lei. Na legislação civil usa-se frequentemente desse conceito, mas com a diferença de que a lei proibitiva apresenta-se bastando-se a si própria, e a permissão, em lugar de ir incluída na lei, servindo de condição limitativa, como deveria ser, vai entre as excepções. Estabelece-se: é proibido isto ou aquilo; e acrescenta-se, logo, excepto nos casos 1.º, 2.º, 3.º, e assim indefinidamente. Vem, pois, as permissões acrescentar-se à lei, mas ao acaso, sem princípios fixos, conforme os casos que vão aparecendo. Ora as condições deveriam ser incluídas na fórmula da lei proibitiva que então seria, ao mesmo tempo, lei permissiva.

É muito de lamentar que o problema, proposto para o prémio do sábio e arguto conde de Windischgraetz, não tenha sido resolvido por ninguém e fosse, tão depressa, abandonado. Referia-se a esta questão, que é de grande importância porque a possibilidade de semelhantes fórmulas – parecidas com as matemáticas – é a verdadeira pedra de toque duma legislação consequente. Sem ela o jus certum será sempre um pio desejo. Sem ela poderá haver leis gerais que valham em geral, mas não leis universais, de valor universal, que é precisamente o valor que o conceito de lei parece exigir.

A Paz Perpétua, Immanuel Kant. Edição da Livraria Educação Nacional, Porto, 1941. 

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