Immanuel Kant
PRIMEIRA PARTE: Artigos preliminares de uma paz perpétua entre as nações
1.º) Não deve considerar-se válido um tratado
de paz que se tenha ajustado com a reserva mental de certos motivos capazes de
provocar, no futuro, outra guerra.
Sem dúvida, semelhante tratado seria um
simples armistício, uma interrupção das hostilidades, e nunca uma verdadeira
paz que significa o fim de todas as hostilidades; acrescentar-lhe o epíteto de
perpétua, seria já um pleonasmo suspeito. O tratado de paz aniquila por
completo as causas existentes para uma possível guerra futura, mesmo quando os
que negoceiam a paz não as vislumbrem nem suspeitem no momento das negociações;
aniquila, também, aquelas que possam logo descobrir-se por meio de hábeis e
penetrantes pesquisas nos documentos arquivados. A reserva mental, que consiste
em não falar, na altura, de certas pretensões que ambos os países se abstêm de
mencionar, porque estão demasiado cansados para prosseguir a guerra, mas com a
perversa intenção de aproveitar, mais tarde, a primeira conjuntura favorável
parta reproduzi-las, é coisa que entra em cheio na casuística jesuítica; tal proceder,
considerado em si, é indigno de um príncipe, e prestar-se a semelhantes manhas
é também indigno de um ministro. Este juízo parecerá, sem dúvida, uma pedantice
escolástica aos que pensam, segundo os esclarecidos princípios de prudência
política, que a verdadeira honra de um Estado consiste no contínuo acréscimo da
sua força, seja por que meio for.
2º) Nenhum Estado independente – pequeno ou
grande – poderá ser adquirido por outro por meio de herança, troca, compra ou
doação.
Um Estado não é – como é, por exemplo, o solo
que ocupa – um haver, um património. É uma sociedade de homens na qual ninguém,
senão ela própria, pode mandar e dispor. É um tronco com raízes próprias; por
conseguinte, incorporá-lo noutro Estado é o mesmo que anular a sua existência
de pessoa moral e fazer desta pessoa uma coisa. Este procedimento acha-se em
contradição com a ideia do contrato
originário, sem o qual não pode conceber-se nenhum direito sobre um povo (1).
Todo o mundo sabe bem a que perigos expôs a Europa esse prejuízo acerca do modo
de adquirir Estados, que as outras partes do mundo nunca conheceram. No nosso
tempo e em época muito recente, contraíram-se matrimónios entre Estados: era um
novo meio, já para acrescentar a própria potência mediante pactos de família,
sem nenhum dispêndio de forças, já para alargar os domínios territoriais. Pertence
também a este grupo de meios o aluguer de tropas que um Estado contrata com
outro, para as utilizar contra um terceiro que não é inimigo comum; neste caso
usa-se e abusa-se dos súbditos, o capricho, como se fossem coisas.
3.º) Os exércitos permanentes – miles
perpetuus – devem desaparecer por completo com o tempo.
Os exércitos permanentes são uma incessante
ameaça de guerra para os outros Estados, visto que estão sempre dispostos e
preparados para combater. Os diferentes Estados empenham-se em superar-se uns aos
outros em armamento, que aumentam sem cessar. E como, finalmente, os gastos
ocasionados pelo exército permanente chegam a tornar a paz ainda mais insuportável
do que uma guerra curta, acabam por ser eles próprios a causa de agressões,
cujo fim não é outro senão livrar o país do pesadelo dos gastos militares. Acrescente-se
a isto que ter pessoas a soldo para que morram ou matem, parece que implica um
uso do homem como mera máquina nas mãos de outro – o Estado; o que não é
compatível com os direitos da Humanidade na nossa própria pessoa.
Consideração merecem, pelo contrário, os
exercícios militares que os cidadãos realizam periodicamente, por sua própria
vontade, com o fim de se prepararem para defender a sua pátria contra os
ataques do inimigo exterior.
O mesmo aconteceria tratando-se da formação de
um tesouro ou reserva financeira, pois os outros Estados considerá-lo-iam como uma
ameaça e ver-se-iam obrigados a preveni-la, adiantando-se na agressão. Efectivamente,
das três formas do Poder, exército, alianças e dinheiro, seria, sem dúvida, a última
o mais seguro instrumento de guerra, se não fosse a dificuldade de apreciar bem
a sua magnitude.
4.º) O Estado não deve contrair dívidas que
tenham por fim sustentar a sua política exterior.
A emissão de divida, como ajuda que o Estado
procura, dentro ou fora das suas fronteiras, para fomentar a economia do país, reparação de estradas, colonização, criação de reservas para os anos maus, etc…
– nada tem de suspeito. Mas, se se considera como instrumento de acção e
reacção entre as potências, converte-se em sistema de crédito composto de dívidas
que vão aumentando sem cessar, ainda que garantidas de momento – visto que nem
todos os credores reclamarão ao mesmo tempo o pagamento dos seus créditos –, engenhosa
invenção dum povo comerciante do nosso século; funda-se desta forma uma
potência financeira muito perigosa, um tesouro de guerra que supera o de todos
os outros Estados juntos, e que nunca pode esgotar-se, senão por uma baixa
rápida dos valores, que ainda podem manter-se altos durante muito tempo por
meio do fomento do tráfico, que por sua vez tem repercussão na indústria e na
riqueza.
Esta facilidade de fazer a guerra, acrescida
de inclinação que para ela sentem 0s que tem a força, inclinação que parece
inata da natureza humana, é o mais poderoso obstáculo à paz perpétua.
Por isso é tanto mais necessário um artigo
preliminar que proíba a emissão de dívidas para tais fins, porque além da bancarrota
do Estado, que se tornaria inevitável, muitos outros Estados seriam arrastados
na catástrofe, sem culpa alguma da sua parte, o que seria uma pública lesão dos
interesses destes últimos Estados. Os outros Estados têm, pelo menos, o direito
de aliar-se contra o que proceda de tal forma e com tais pretensões.
5.º) Nenhum Estado deve imiscuir-se pela força
na constituição e governo de outro Estado.
Com que direito o faria? Acaso fundando-se no
escândalo e mau exemplo que um Estado dá aos súbditos de outro Estado. Mas, para
estes, o espectáculo dos grandes males que um povo se ocasiona a si próprio, vivendo
no desprezo da lei, é, sobretudo, útil como advertência exemplar; e além disso
o mau exemplo que uma pessoa livre dá a outra – scandalum acceptum – não
implica lesão desta última. Isto não é aplicável, sem dúvida, ao caso de um
Estado que, em consequência de discórdias interiores, se divide em duas partes,
representando cada uma um Estado particular, com a pretensão de representar o
Todo, porque neste caso, se qualquer outro Estado auxilia uma das partes, esta
acção não pode ser considerada como uma intromissão na constituição de outro,
visto que este está em pura anarquia.
Sem dúvida, também, enquanto essa divisão
interior não seja francamente manifesta, a intromissão de potências estranhas será
sempre uma violação dos direitos de um povo livre. Independente, que luta
sozinho contra o seu mal interior. Imiscuir-se nos pleitos domésticos seria um
escândalo que poria em perigo a autonomia de todos os outros Estados.
6.º) Nenhum Estado, que esteja em guerra
com outro, deve permitir-se o uso de hostilidades que impossibilitem a recíproca
confiança na paz futura; tais são, por exemplo, a utilização no Estado inimigo
de assassinos, de envenenadores. Da incitação a tração, etc.
Estes estratagemas são desonrosos. Pois mesmo
em plena guerra deve haver uma certa confiança na consciência do inimigo. De
contrário, nunca se poderia ajustar a paz, e as hostilidades degenerariam numa guerra
de extermínio. A guerra é um recurso necessário, por desgraça, nos casos de tal
natureza em que não há um tribunal para pronunciar-se e impor-se, para cada um
dos contendores afirmar os seus direitos pela força; nenhuma das duas partes
pode ser considerada inimigo ilegítimo – o que suporia já uma sentença judicial
– e o que decide de que lado está o direito é o êxito da luta como nos chamados
juízos de Deus.
Mas entre os Estados não se concebe urna guerra
de castigo – bellum punitivum – porque não existe entre eles a relação
de superior a inferior. Donde se conclui que uma guerra de extermínio, que
levasse consigo o aniquilamento das duas partes e a anulação de todo o direito,
tornaria impossível uma paz perpétua, que não fosse a do cemitério. Semelhante
guerra deve ser, pois, absolutamente proibida, e proibido também, portanto, o
uso dos meios que a ela conduzem. E é bem claro que os estratagemas citados
conduzem inevitavelmente àqueles resultados, porque o emprego dessas artes infernais,
em si próprias vis, não se contêm dentro dos limites da guerra, como sucede com
o uso de espias, que consiste em aproveitar a indignidade de outros, mas continuam
ainda depois de terminada a guerra, destruindo, assim, os próprios fins da paz.
* * *
Todas as leis que citei são objectivas, quere
dizer, que aqueles que possuem a força as devem considerar como «leis proibitivas».
Sem dúvida, algumas delas são «estritas» e válidas em todas as circunstâncias
exigindo uma execução imediata: – os números 1, 5. 6; as outras – 2, 3, 4 – são
mais amplas e admitem uma certa demora na sua aplicação. não porque haja
excepções à regra jurídica, mas porque tendo em conta o exercício dessa regra e
suas circunstâncias, admitem que se aumente subjectivamente a faculdade
executiva, e dão ocasião para demorar a aplicação sem, todavia, perder nunca de
vista o fim proposto.
Por exemplo: se se trata de restituir, segundo
o n.º 2, a certos Estados. a liberdade perdida, não valerá adiar a execução da
lei «ad calendas graecas» como fazia Augusto; quere dizer, não será lícito
não cumprir a lei, mas poder-se-á demorá-la, se houver receio de que uma restituição
precipitada seja contraproducente. De facto: a proibição refere-se só ao modo de
adquirir; mas não ao estado possessório que, ainda que careça do título
jurídico necessário, foi no seu tempo – da aquisição putativa – considerado
como legítimo pela opinião pública, então vigente, de todos os Estados.
Se existem leis permissivas da razão pura, além
dos mandatos – leges praeceptivae – e proibitivas – leges
prohibitivae –, é coisa que muitos, até agora, puseram em dúvida, não sem
motivo. De facto, as leis em geral contêm o fundamento da necessidade prática objectiva
de certas acções; a permissão, pelo contrário, fundamenta a contingência ou acidentalidade
prática de certas acções. Uma lei permissiva, portanto, viria a conter a obrigação
de realizar um acto a que ninguém pode ser obrigado; o que, se o conceito de
lei se mantém idêntico, é uma contradição patente.
Na lei permissiva de que nos ocupamos, a
proibição prévia refere-se, somente, ao modo futuro de adquirir um direito – por
exemplo, a herança – e o levantamento da proibição, ou seja a permissão,
refere-se à posse actual. Esta ao passar do estado de natureza ao estado civil,
pode continuar mantendo-se, por uma lei permissiva do direito natural, como
posse putativa, que, se bem que não esteja conforme com o direito, é, sem
dúvida, honesta; mesmo quando uma posse putativa. reconhecida como tal no
estado de natureza. passe a ser proibida, assim como toda a maneira semelhante
de adquirir, no estado civil posterior.
A permissão de continuar a possuir não poderia, pois, existir, no caso de que a aquisição putativa se tivesse realizado no estado civil, pois tal permissão implicaria uma lesão e, portanto, deveria desaparecer, tão depressa como fora descoberta a sua ilegitimidade.
Não me propus fazer aqui outra coisa senão
chamar, de passagem, a atenção dos mestres do direito natural para o conceito de
lei permissiva que se apresenta espontaneamente, quando a razão se propõe fazer
uma divisão sistemática da lei. Na legislação civil usa-se frequentemente desse
conceito, mas com a diferença de que a lei proibitiva apresenta-se bastando-se
a si própria, e a permissão, em lugar de ir incluída na lei, servindo de
condição limitativa, como deveria ser, vai entre as excepções. Estabelece-se: é
proibido isto ou aquilo; e acrescenta-se, logo, excepto nos casos 1.º, 2.º,
3.º, e assim indefinidamente. Vem, pois, as permissões acrescentar-se à
lei, mas ao acaso, sem princípios fixos, conforme os casos que vão aparecendo.
Ora as condições deveriam ser incluídas na fórmula da lei proibitiva que então
seria, ao mesmo tempo, lei permissiva.
É muito de lamentar que o problema, proposto
para o prémio do sábio e arguto conde de Windischgraetz, não tenha sido resolvido
por ninguém e fosse, tão depressa, abandonado. Referia-se a esta questão, que é
de grande importância porque a possibilidade de semelhantes fórmulas – parecidas
com as matemáticas – é a verdadeira pedra de toque duma legislação consequente.
Sem ela o jus certum será sempre um pio desejo. Sem ela poderá haver
leis gerais que valham em geral, mas não leis universais, de valor universal,
que é precisamente o valor que o conceito de lei parece exigir.
A Paz Perpétua, Immanuel Kant. Edição da Livraria Educação Nacional, Porto, 1941.
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