Aquilino Ribeiro
(…)
Um marçano dos sítios veio debaixo, decomposto
a deitar os bofes, inflectiu para as Taipas. Interpelaram-no. Sem se deter
atirou ao vento frases truncadas em que me pareceu ouvir marulhar como
estribilho a palavra morte. O marouço agora, encapelando-se e desenvolvendo-se
em bulcões, tinha jeitos de carregar à Avenida cada vez mais medonho: ahaaa!
Demos conta, até onde nos alcançava a vista,
que cerravam portas, tomadas da mesma quartã, a tinturaria do gato preto, a
tasca dos lampeanistas e varredores, e que acabavam por ir no embrulho a botica
e o lugar. O coureiro a seguir. Depois de abanar a cabeçorra e torcer duas
vezes a beiça, tomando-nos como testemunhas do seu cepticismo, como se
praticasse um preito imerecido a caprichosa e despótica divindade, fechou a
porta a sete chaves e girou rua fora a assobiar o medo fanfarrão. Calçada acima
– notámos depois – passaram às upas dois meninos, esporeados pela criada que
lhes levava a bolsa dos livros. E logo após, como se houvessem aberto as
comportas a um rio, desatou a passar gente, rapazes em cabelo, homens de chapéu
na mão, varinas, bufarinheiros, fora de compasso, falazando ou soltando vozes
truncadas.
– Houve sangue! – Houve sangue! – murmurava
Patarroxa.
Veio-me um apetite irreprimível de descer à
praça e interrogar aquelas criaturas, decerto informadas do que acontecera. Mas
refreou-me um último escrúpulo de prudência, e empurrei Humberto:
– Vai ver! Que é o que te custa?!...
A vaga sinistra, com um resfolegadoiro tão
estranho que parecia trazer em si a peste, a fome e a guerra, crescia para a
periferia, alagando tudo sob a sua ululação infernal. Mortificada, a mãe
Benedita postara-se na janela ao lado e, batendo as matracas dos queixais,
rezava: seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu... O
Patarroxa animou-se e desceu à rua a averiguar. Não se demorou. Vinha pálido, a
tremelicar das pernas, os lábios a mascar a terrível palavra que eu, entretanto,
julgara surpreender na boca do sujeito que ia acorrer:
– Mataram o rei!
– Mataram o rei! – balbuciava Patarroxa. – Ai
que erro! Ai que erro! Não é o que se tinha planeado.
Mataram o rei! E o nosso primeiro impulso,
seguramente meu e de Patarroxa, e creio que igual em toda a gente, foi fugir de
nós próprios, da personalidade atávica que incarnava o respeito sagrado pelo
nosso amo de tantos séculos.
Mas como pôde isso ser, encontrarem-se homens
forros de preconceitos, mãos de todo isentas da submissão ancestral que tiveram
o ousio de se erguerem contra o ungido de Deus, o César, o soberano? Ah, mas
dar-se-á o caso que estejamos implicados em semelhante crime? O Patarroxa
tinha-se prontificado a tomar parte no assalto à casa do ministro, eu, além de
ser um evadido das cadeias, tinha a pesar-me na consciência os meus desejos
feros, os meus desejos de pé-fresco que está sempre pronto a despachar o
sátrapa desta para melhor. De facto, metendo a mão no peito, reconheço-me
cúmplice de quem se arrojou a levantar o ferro contra o príncipe do povo, o
nosso Agamémnon, dentro do próprio arraial. Que ninguém o saiba, mas eu ajudei
a matar o rei, confesso-o aqui à mesa da consciência. Ninguém o soube, ninguém
me viu, respiro. Sim, ninguém me viu e como tal goza-se da impunidade esse
outro ser, ser rastejante, de todo nocturnal, escravo das unhas dos pés à
coruta dos cabelos, que imprevistamente acordou em mim do sono das gerações.
Dissipada essa coca sem consistência, dado como irresponsável em suma o lorpa
do imprevisto alter-ego, toma-me novo calafrio. Dou conta que o mesmo sucede
com Patarroxa. Vem aí desaçaimada a bicharada que comia da mão real, que comia
pela mão do morto. De colmilhos afiados hão-de estracinhar quem no caminho lhes
cheire a huguenote. Por onde arremetam, deixam um rasto de iniquidades.
Compreendo. Na fase heróica do género humano era de lei prestar ao chefe caído
holocaustos humanos. Antes de ser eleito o novo caudilho, eram queimados na
pira votiva as virgens mais apetecidas e os efebos mais gentis. Os prisioneiros
eram rachados de meio a meio, e a tribo, embriagada de luto, oferecia aos manes
do grande morto montanhas de vísceras palpitantes.
O cita moderno, como o seu avô dos tempos
ominosos, não podia deixar de requerer igualmente sangue expiatório. Sem a
oferenda de vítimas cruentas não tem descanso no Hades a alma do finado. E a
turba-multa que ouço bramir, remontando do Terreiro do Paço, foge à prática do
rito bárbaro, acicatada pela memória trágica que sobrenada na tradição dos
povos. Aí está. O pânico contagioso que palpito na multidão alucinada, que
observo no seleiro lanzudo, na pata-choca da hortaliceira, na negra da
Benedita, em Patarroxa, em mim, não tem outra origem. Todos sentimos
marinhar-nos pela espinha o temor da matilha real açulada e, se a nós dois a
nova colhesse de surpresa na Rua do Ouro, por certo que deitaríamos a correr
como os mais, de cabelos no ar, soltando vozes roucas, intraduzíveis, varados
de angústia. Tudo ânsia de escapar à fogueira da imolação e à faca dos arúspices
consagrados ao desagravo e glorificação do amo.
Mataram o rei! Mas, ah, se de começo cada um
teve medo de si, depois desvairaram com medo uns dos outros. O comerciante que
se precipitou a descer a porta de aço, a senhora que se desunhava a recolher a
casa, o conselheiro da oposição que se atirou lívido para dentro do primeiro
fiacre que pilhou a jeito, toda a malta que dava com os calcanhares na bunda,
que se esgalgava por avenidas e praças em bichas uivantes, absurdas,
acontecendo que uns foram parar a Santarém, outros perderam a fala por horas e
horas, oh, não haja dúvida, fugia às represálias dos janízaros!
Mas semelhante estado de hipertensão tinha de
ser como nos macaréus de curta dura e o revulsivo contra o terror pouco a pouco
foi operando. Todos e cada um acabaram por assentar que não havia relacionação
jurídica entre os matadores e os seus anelos íntimos, a sua raiva surda de
honrados patriotas, o seu ódio de pacíficos burgueses, e as suas ameaças ao
trono de políticos no ostracismo. Em fim de contas podia dizer-se que o braço
dos executores galvanizou-se tanto com a encíclica Rerum Novarum como
com as estrofes vermelhas do Finis Patriae . Colaborámos todos para a
fatalidade dessa efeméride como na lei cíclica do pôr do Sol se concentram
todos os factores sensíveis ou ignorados do ocaso. E a irresponsabilidade do
indivíduo e a responsabilidade colectiva saltaram aos olhos do entendimento.
Taboso chegou com notícias.
Vagarosamente as descargas eléctricas a que
esteve submetida a minha espinal medula foram-se atenuando. Deixaram de
tamborilar as meninges. Como a ressaca suja dum cais – vasa, esgotos, trapiche
– o susto foi-se desprendendo da alma de todos e de cada um de modo a poder
reflexionar-se sobre o facto: tinham matado o rei.
– Não era o que se tinha planeado! –
continuava a gazear Patarroxa.
Deixa não ser. Exaltados revolucionários,
fanáticos da liberdade, haviam disparado sobre a família real a peito
descoberto, no meio da guarda do corpo, como se estivessem em pleno sertão a
caçar a pacaça. Como foi possível antes de mais nada perderem o respeito
atávico? Depois, como se aventuraram a correr este cartel suicida, sem exemplo,
sem preparo, sem ligações, sem mandato do clã, semelhante a um holocausto pura
mente voluntário à Codro? E ainda como é que esses amoucos chegaram a perder o
horror do sarrabulho humano, riscando do campo da consciência essa tremenda
inibição: matar?
Por fás ou por nefas, esse homenzarrão louro
que herdara sem orgulho a grei pacatissima, que não reinou, mas deixava reinar
os ministros com o discricionário que comporta esta palavra, não soube ser
simpático ao povo, em especial ao povo de Lisboa. Tê-lo-ia sido algum dos
antecessores na longa série de três dinastias, em regra diminutos, tiranetes,
devassos uns, megalómanos outros, tratando a sal e vinagre as mataduras do Zé,
quando a pretendida idolatria que lhes votava o servo era computada pelos
escrivães de ofício, fradalhões sem pejo, plumitivos amesendados ao trinchante
régio? Um dia se verificará, porventura quando se faça a análise espectral
desta monarquia sem vassalos, como dizia o defunto monarca.
Este rei não era amado do povo. Nunca lhe dera
a sentir, mísero, sofredor, trabalhado por mil necessidades do corpo e da alma,
o reconforto duma estima calorosa e vigilante. Tão-pouco assumira alguma vez em
relação à parte civilizada da nação o fácil papel de mediador plástico. Para
que servia no século XX, o século das realizações desmedidas, da ebulição
febril, da planificação geral do problema humano, um rei tirado do baralho de
jogar? Não bastava que fosse um homem amável, boa escopeta, sibarita generoso,
desempoeirado do espírito, nada carola como é de recomendar ao príncipe dum
povo enfartado de padre-nossos, até artista nas suas horas. Era preciso ser tão
útil na qualidade de soberano como o fiel o é na balança, determinando-se com
agilidade e independentemente da natureza das coisas que vêm à pesagem, árbitro
sempre presente e imparcial, atributos estes mercê dos quais a balança é
balança Ora este rei era rei para ele; para ele e para meia dúzia, no conceito
de singular, digamos de supertemporalidade com que a história revestiu o termo.
No demais – o infinito – deixava-se pear atrás da Carta numa atitude de
obséquio, que era a da comodidade. Um dia, tendo-se desmanchado as pregaturas
do manto de arminho com que escondia os adiantamentos pedidos à Fazenda
Nacional, sacudiu com dois piparotes o constitucionalismo outorgado por seu avô
e jurado por ele, e no guarda-roupa do Paço envergou o justilho de D. João II.
Arvorou em João das Regras um obcecado regedor de aldeia, que se limitou a
apertar a tarraxa das leis repressivas e a ter bem escorvadas as armas nos
quartéis. Julgou que era o suficiente e enganou-se com os tempos, em que
ninguém se resigna a ser carneiro, andar diante de chibata, e com as
possibilidades inúmeras dos especuladores da política. A força de insânias, de
violências, de gestos inúteis e impulsivos, desafios indistintamente aos homens
de brio e aos desenvergonhados, este Frederico o Pequeno e o seu granadeiro deram
com os burrinhos na água. Do acalcamento tumultuário e disparatado de todo
saíram os regicidas. Que virá a resultar da carnificina? Na melhor das
hipóteses, nada de irremediável para o progresso da ideia política. A meu ver o
epitáfio que se ajusta à lousa duns e doutros é: INUTILIDADE. Uns porque não
estavam à altura do seu ministério, outros porque, se deceparam a fronde à
árvore do mal, não tocaram, não podiam tocar no cepo, que voltará a reflorir. O
cepo é tudo o que para aí está, barbárie por dentro e por fora, pobreza e
companhia, presunção e água benta, e uma raça que parece acabou de voltar dos
trópicos combalida dos ossos e com a alma tisnada.
Uns e outros entraram na história pelo braço
de Ares, como diz Homero dos seus guerreiros. Funesta sina a dos matadores e
contingente o veredicto do seu feito. Serão heróis coroados de louros ou
assassinos de repulsiva memória consoante o curso dos acontecimentos. A palavra
definitiva de julgamento ditá-la-á o futuro. Com Guilherme Tell veio o resgate
e ficou sagrado o seu nome. Se com estes raiar nova aurora à família
portuguesa, regenerada da canceração política, teremos novos ídolos nos
altares. De contrário, oxalá que o sangue das vítimas, mormente o sangue
inocente, não recaia sobre nós todos e particularmente sobre os filhos dos
vingadores!
Ficámos a cogitar num mundo de coisas enquanto
as portas onduladas volviam a enrolar-se e os garotos pregoavam as gazetas da
noite com voz sensacional. O sereno entretanto cobria de blandícia lá em baixo,
no jardim, a imponente e preciosa parkinsonia aculeata. À medida
que escurecia, estrelavam-se de luzes as colinas. E, quando anoiteceu de todo,
na poalha luminosa, contínua e geométrica segundo a linha das ruas, nossos
olhos feridos pela fulguração da tragédia só viam passamanes, os longos
passamanes de amarelo mortiço com que ia ser raiado o negro profundo do
catafalco real.
(“Lápides Partidas”, Aquilino Ribeiro, Livraria Bertrand. Lisboa, 1969)
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