domingo, 22 de maio de 2022

Olhando o Sofrimento dos Outros

 

Susan Sontag

A iconografia do sofrimento tem uma longa genealogia. O sofrimento mais frequentemente reconhecido como digno de representação é aquele que se considera fruto da ira, divina ou humana. (O sofrimento por causas naturais, como a doença ou o parto, raramente foi representado na história da arte; o que é causado por acidente a bem dizer nunca o foi – como se o sofrimento devido a negligência ou infortúnio nunca tivesse existido.) O conjunto escultórico do contorcido Laoconte e dos seus filhos, as inúmeras versões em pintura e escultura da paixão de Cristo, e o inexaurível catálogo visual das diabólicas execuções dos mártires cristãos – são temas obviamente pensados para comover e provocar, assim como para servir de lição e exemplo. O espectador pode apiedar-se da dor do sofredor – e, no caso dos santos cristãos, sentir-se exortado ou inspirado por tal fé e coragem modelares – mas trata-se de destinos para além da piedade ou da revolta.

Ao que parece o apetite por imagens representando corpos sofredores é tão forte, quase, como o desejo de imagens de corpos nus. Durante muitos séculos, na arte cristã, as representações do Inferno ofereciam estes dois prazeres elementares. O pretexto podia ser uma história bíblica de decapitação (Holofernes, João Baptista), ou uma lenda de massacres (a matança dos hebreus recém-nascidos, as onze mil virgens), ou outras do género, com o estatuto de acontecimento histórico verdadeiro e de um destino implacável. Havia também o repertório das crueldades que-custa-a-ver da antiguidade clássica, os mitos pagãos, mais ainda do que as histórias cristãs têm de tudo para todos os gostos. Não há nenhuma carga moral associada à representação de tais crueldades. Apenas a provocação: podes olhar para isto? Há a satisfação de se ser capaz de olhar para a imagem sem estremecer. Há O prazer de estremecer.

Arrepiar-se com a imagem que Goltzius nos dá, na sua gravura O Dragão Devorando os Companheiros de Cadmus (1588), de um rosto humano a ser devorado, é muito diferente do arrepio que se sente ao ver uma fotografia de um veterano da Primeira Guerra Mundial com a cara desfeita por um tiro. O primeiro destes horrores desenrola-se no contexto de um tema complexo – figuras numa paisagem – que exibe o talento de visão e mãos do artista. O outro é um registo de uma câmara, de muito perto, da indizivelmente horrorosa mutilação de uma pessoa real; isso e só isso. Um horror inventado pode ser avassalador. (Eu, por exemplo, tenho dificuldade em olhar para a grande pintura de Ticiano do esfolamento de Marsias, ou no fundo qualquer imagem deste tema.) Mas há vergonha tanto como choque ao olhar para um grande plano de um horror verdadeiro. Talvez as únicas pessoas que têm direito a ver imagens de sofrimento verdadeiro de ordem tão extrema sejam aquelas que podem fazer alguma coisa para o aliviarem – como os médicos no hospital militar onde a fotografia foi tirada - ou aquelas que possam aprender com isso alguma coisa. O resto de nós é voyeurs , quer queiramos quer não.

Em cada um desses momentos, o macabro convida-nos a ser ou espectadores ou cobardes, incapazes de olhar. Os que têm estômago para olhar desempenham um papel autorizado por muitas e gloriosas representações do sofrimento. O tormento, um tema artístico canónico, é muitas vezes representado em pintura como um espectáculo, uma coisa que é vista (ou ignorada) por outras pessoas. A implicação é: não, não se pode parar – e a mistura de espectadores atentos e distraídos sublinha isso mesmo.

A prática de representar sofrimentos atrozes como devendo ser deplorados e, se possível, terminados, entra na história das imagens com um tema específico: os sofrimentos suportados por uma população civil à mercê de um exército vitorioso descontrolado. É um tema quintessencialmente secular, que emerge no século XVII quando os realinhamentos de poder da época se tornaram material para os artistas. Em 1633, Jacques Callot publicou uma série de dezoito gravuras intitulada Les Miseres et les Malheurs de ta Guerre (“As Misérias e Infortúnios da Guerra”), representando as atrocidades cometidas contra os civis pelas tropas francesas durante a invasão e ocupação da sua Lorena natal em princípios da década de 1630. (Seis pequenas gravuras sobre o mesmo tema que Callot executara antes daquela série apareceram em 1635, ano da sua morte.) Avista é ampla e profunda; trata-se de cenas com muitas figuras, cenas de uma história; e cada legenda é um comentário sentencioso em verso acerca das várias forças e fados representados nas imagens. Callot começa com um painel mostrando o recrutamento dos soldados; põe a nu combates ferozes, massacres, pilhagens e violações, os engenhos da tortura e de execução (a polé, a forca, o pelotão de fuzilamento, o garrote, a roda), a vingança dos camponeses contra os soldados; e acaba com a distribuição de recompensas. A insistência gravura a gravura na barbárie do exército vitorioso é surpreendente e sem precedentes, mas os soldados franceses são apenas a cabeça dos malfeitores na orgia de violência, pois na sensibilidade humanista cristã de Callot há espaço não só para chorar o fim do ducado independente da Lorena, mas ainda para registar a condição dos soldados miseráveis acocorados nas bermas das estradas a pedir esmola.

Callot teve sucessores, como Hans Ulrich Franck, um artista alemão menor, que, em 1643, próximo do fim da Guerra dos Trinta Anos, começou a fazer aquilo que (cerca de 1656) viriam a ser vinte e cinco gravuras representando soldados amatar camponeses. Mas o olhar mais notável sobre os horrores da guerra e a vileza da soldadesca desvairada é o de Goya em princípios do século XIX. Los Desastres de la Guerra , uma sequência numerada de oitenta e três gravuras feitas entre 1810 e 1820 (e publicadas pela primeira vez, com excepção de três das gravuras, publicadas em 1863, trinta e cinco anos depois da sua morte), representa as atrocidades cometidas pelos soldados napoleónicos que invadiram a Espanha em 1808 para subjugar a insurreição contra a dominação francesa. As imagens de Goya emocionam quem as vê quase até ao horror. Todas as armadilhas do espectacular foram suprimidas: a paisagem é uma atmosfera, uma escuridão, a bem dizer apenas esboçada. E a série impressa de Goya não é uma narrativa: cada imagem, acompanhada por uma pequena frase lamentando a iniquidade dos invasores, a monstruosidade dos sofrimentos que infligiam, vale por si própria, independentemente das outras. O efeito cumulativo é devastador. A crueldade macabra dos Desastres da Guerra tem por finalidade despertar, chocar, ferir o espectador. A arte de Goya, como a de Dostoievski, parece ser um ponto de viragem na história dos sentimentos morais e da dor – igualmente profunda, original, exigente. Com Goya, entra no mundo da arte um novo padrão de sensibilidade ao sofrimento. (E novos temas para sentimentos análogos: como, por exemplo, a sua pintura de um trabalhador ferido a ser levado do local de construção.) O relato das atrocidades da guerra está construído como um assalto à sensibilidade de quem vê. As frases expressivas manuscritas por baixo de cada imagem são um comentário sobre essa provocação. Enquanto a imagem, como toda a imagem, é um convite a olhar, a legenda, as mais das vezes, insiste na dificuldade de o fazer. Uma voz, presumivelmente a do artista, atormenta o espectador: és capaz de olhar para isto? Uma legenda diz: No se puede mirar. Outra diz: Esto es malo. Outra replica: Esto es peor. Outra brada: Esto es lo peor! Outra clama: Bárbaros! Grita outra: Que locura! E outra: Fuerte cosa es! E outra: Por qué?

A legenda de uma fotografia é tradicionalmente neutra, informativa: uma data, um local, nomes. Seria pouco provável que uma fotografia de reconhecimento da Primeira Guerra Mundial (a primeira guerra em que as máquinas fotográficas foram usadas em grande escala pelos serviços de informação militares) tivesse como legenda «Estamos impacientes por arrasar isto!» ou uma radiografia de uma fractura múltipla apresentar a anotação: «O paciente provavelmente vai ficar a coxear!» Nem deveria haver necessidade de uma fotografia falar com a voz do fotógrafo, apresentando garantias de veracidade, como Goya faz em Os Desastres da Guerra, escrevendo por baixo de uma imagem: Yo lo ví. E por baixo de outra: Esto es lo verdadero. Claro que o fotógrafo viu aquilo. E a não ser que tenha havido qualquer manipulação ou falsa representação, aquilo é verdade.

A linguagem comum estabelece a diferença entre imagens feitas à mão como as de Goya e as fotografias, através da convenção de que os artistas «fazem» desenhos e pinturas, ao passo que os fotógrafos «tiram» fotografias. Mas a imagem fotográfica, até na medida em que é um vestígio (não uma construção feita de variados vestígios fotográficos), não pode ser simplesmente uma transparência de uma coisa que aconteceu. É sempre a imagem que alguém escolheu; fotografar é enquadrar, e enquadrar é excluir. Além disso, o «trabalhar» fotografias antecede em muito tempo a era das manipulações da fotografia digital e do Photoshop: foi sempre possível conseguir que uma fotografia falseasse uma representação. Uma pintura ou um desenho são considerados uma falsificação quando se descobre não serem do artista a que tinham sido atribuídos. Uma fotografia – ou um documento filmado que se vê na televisão ou na internet – é considerado uma falsificação quando se descobre que engana quem o vê quanto à cena que afirma representar.

O facto de as atrocidades perpetradas pelos soldados franceses em Espanha não terem acontecido exactamente como são mostradas - se, por exemplo, aquela vítima não era exactamente assim, aquilo não aconteceu junto a uma árvore - em nada desvaloriza Os Desastres da Guerra . As imagens de Gora são uma síntese. Afirmam: coisas como estas aconteceram. Pelo contrário, uma fotografia em particular ou um filme afirma representar exactamente o que estava diante da lente da câmara. Uma fotografia é feita não para evocar mas para mostrar. É por isso que as fotografias, ao contrário das imagens feitas à mão, podem contar como prova. Mas prova de quê? A persistente suspeita de que a fotografia de Capa, Morte de Um Soldado Republicano, pode não mostrar o que diz que mostra (uma hipótese levantada é de que mostra um exercício de treino perto da linha da frente) continua a assombrar as discussões sobre a fotografia de guerra. Todos são literalistas quando se trata de fotografia.

(Retirado do livro “Olhando o Sofrimento dos Outros” de Susan Sontag. 2003. Gótica; Desenhos de Goya Os Desastres da Guerra )

segunda-feira, 16 de maio de 2022

No Reino da Dinamarca

 

João Botelho em entrevista ao jornal “Eco”, na apresentação do seu último filme, “Um Filme em Forma de Assim”, diz que “os portugueses ainda são piores do que a Pide” e que “este é um país de chibos”, referindo-se ao medo pelo Outro facilmente aceite aquando dos estados de emergência, impostos com o pretexto do combate à pandemia, chegando a citar o poeta Alexandre O’Neill. Para o cineasta, as pessoas habituadas às maneiras de vida exibicionista perderam não só a coragem mas igualmente a capacidade de viver de forma clandestina, aceitando pacificamente as regras que a partir de agora se impõem em todo o lado, lembrando o fascismo de antes de 25 de Abril. Assim, “a liberdade será coisa muito difícil de se achar, até na noite”, e “o desejo de liberdade” terá sido convertido na facilidade da vida fútil; ou seja, terá acabado na prática e muito por iniciativa dos portugueses. Este pessimismo reflecte a impotência de alguma pequena-burguesia intelectual perante o processo de fascização a ocorrer neste momento em Portugal; processo este que não deixa de ter inspiração europeia.

Estado de direito e democrático… mas pouco

O governo PS do mister Costa, gelatinoso perante todos os ditames de Bruxelas e mais recentemente da Nato (Otan) a propósito da guerra da Ucrânia, tem discretamente tentado em colocar em forma lei a situação de facto criada em nome da pandemia Covid-19 e a bem daquilo que antes do 25 de Abril se convencionava por “nação”. São diversos os exemplos. É a Lei dos Metadados cuja revisão é considerada insustentável porque violará direitos da União Europeia, segundo opinião do bastonário da Ordem dos Advogados, como a própria lei é tida como ilegal desde 2009, ano em que foi criada, pelo Tribunal Constitucional. Ora como o sapato não cabe no pé, vamos então cortar o pé e não modificar o sapato, tendo de imediato surgido alguém a sugerir a necessidade de se rever a Constituição. O primeiro-ministro teve a ideia, a segunda figura do estado, para não deixar os pergaminhos de caceteiro por mão alheias, também já alvitrara que o combate à desinformação requer revisão constitucional. O PR Marcelo, parecendo gostar mais da Constituição de 1933 e sem abrir por completo a alma, responde a Costa, afiançando que as revisões cirúrgicas da Lei Fundamental são impossíveis, elas terão de ser mais gerais e profundas.

Costa, em suprema hipocrisia, não deixou de declarar ainda há pouco que sobre a gestão da pandemia: “as medidas não foram sempre coerentes”, e talvez para estabelecer a coerência perdida vem desta vez com a Lei de Emergência Sanitária, teoricamente para lidar com futuras pandemias sem ferir a Constituição, e cujo projecto já foi considerando “aberrante e inconstitucional” por diversos juristas, e Marcelo, sempre em cima dos acontecimentos, já prometeu enviar a futura lei para o Tribunal Constitucional, adivinhando-se facilmente mais um chumbo e não tardando que aquele órgão institucional venha a ser considerado mais uma “força de bloqueio”, à semelhança do que acontecera com o governo de má memória PSD/PP/Coelho/Portas. Parece-nos que será mais um motivo para a revisão da Constitucional tão reclamada pelos partidos colocados formalmente mais à direita no sentido da fascização.

O governo PS/Costa já ensaiara, em termos legislativos, outras manobras para fazer retroceder os direitos e liberdades dos cidadãos, mais concretamente em relação às mulheres. A inclusão do aborto e das doenças sexualmente transmissíveis como critérios na avaliação dos médicos de família tinha por objectivo mais atacar as mulheres do que propriamente exigir uma medicina preventiva de qualidade. E foi a forte e justamente indignada reacção da quase totalidade da classe médica, bem como de outros sectores da dita sociedade civil, que fez com que o governo recuasse, com a retirada imediata de tais incompreensíveis critérios, e obrigasse a que a ministra Marta Temido, como porta-voz e relações públicas de Costa, viesse a terreiro justificar-se com o “sentir social” (ao que parece só acontece às vezes) e de longe a ideia “de estar em causa o direito das mulheres”. Para se ficar com alguma luz sobre a natureza e o que move esta gente que gere a máquina do estado, soube-se que o candidato a juiz do TC, António Almeida Costa, recusa a legalização do aborto; o homenzinho, que terá sido indicado pela "ala direita" (não se diz fascista porque é feio!), escreveu em 1984 que “as mulheres violadas raramente engravidam”. Os fascistas não terão acabado no 25 de Abril.

O aparelho de estado é um instrumento de domínio de uma classe por outra

Esta fascização do país, através do reforço do figurino legislativo e aparelho judiciário, não será tarefa muito difícil atendendo à distracção e alguma indiferença dos cidadãos, que nunca confiaram nesta justiça, e ao facto do 25 de Abril jamais ter passado por este sector da máquina do estado; lembremo-nos que os juízes do antigo tribunal político da Boa Hora, que sentenciavam os presos políticos pelas indicações directas da Pide e de Salazar, não foram sequer sancionados criminalmente pelo regime democrático, saído da dita revolução, como ainda foram agraciados com chorudas reformas e deixados viver em feliz e bonançosa velhice. A justiça que se herdou do fascismo sempre foi fascista e a democratização nem de adorno chegou a ser; os juízes consideram-se acima da plebe… e da lei, jamais escrutinados pelo voto do cidadão e funcionam em perfeita sintonia, senão simbiose, com o poder político, quer executivo quer legislativo, tornando a tão incensada “separação de poderes” uma rematada mentira, uma autêntica fraude.

É possível que a questão da Lei dos Metadados provoque alguma confusão, especialmente entre a nossa temerosa classe média, já que se ameaça com a possibilidade de muitos criminosos condenados e com os processos transitados em julgado possam vir a ser libertados e os processos considerados nulos, mas a razão é outra e perfeitamente clara: usar as escutas telefónicas como principal meio de prova, aliviar o trabalho de investigação e, quiçá, alguma incompetência das polícias que são responsáveis por este trabalho, e, fundamentalmente, usar esses dados para espiolhar todo o inocente e incauto cidadão em verdadeiro e mundo kafkiano de controlo social. Vem isto também a propósito da questão levantada pelo jornal “Expresso” quanto à utilização de dois cidadãos russos na recepção dos refugiados ucranianos na Câmara de Setúbal e de hipoteticamente terem fornecido os dados à embaixada da Rússia; fica-se com a ideia de que há boas relações entre os media do grupo Impresa/Balsemão e as secretas portuguesas e que para bufos chegam os portugueses, não sendo necessário cidadãos estrangeiros porque até daria mais nas vistas. Será bom relembrar que a Pide possuía 50 mil informadores e muitos deles eram-no por iniciativa própria e não renumerados, umas das razões pela qual o regime durou quase meio século. A pequena burguesia teme mais a revolução proletária do que o fascismo… até um dia.

O aparelho de estado é um instrumento de domínio de uma classe por outra, tem sempre um carácter de classe, e não é neutro, embora pareça; o seu objectivo e natureza é a repressão das classes subjugadas, em relação ao qual o povo português sempre teve uma profunda e antiga aversão, para não dizer ódio. A História diz-nos de inúmeras revoltas ao longo do tempo, desde que o estado moderno foi instituído a partir dos meados do século XIX, logo após as lutas liberais quando a domínio político da burguesia se torna efectivo, passando pelo fascismo, até aos dias de hoje. E a luta tem sido sempre contra as tentativas desse estado em extorquir os diversos estratos da classe trabalhadora, incluindo pequenos proprietários e camponeses. Neste momento assiste-se ao repor a recapitalização de empresas nacionais, nomeadamente as ligadas à saúde e as estrangeiras do negócio das vacinas, justificando com o aparente inusitado aumento do número de casos de covid-19, mas que mais não são do que “casos” de testes positivos, na enorme maioria falsos positivos. É a quarta dose para os idosos com mais de 80 anos e para os trabalhadores da saúde; e a quinta dose está prometida para o final do Verão. Há quem, com as mãos bem untadas pelo governo e farmacêuticas, defenda o retrocesso no aliviar das restrições e… mais vacinas numa população, segundo dizem as entidades oficiais, está quase 90% vacinada, o que é um paradoxo. Mas alguém mais avisado já alertou: "Se houver recuo nas restrições, não sei como as pessoas reagirão" (psiquiatra Júlio Machado Vaz). O Costa não se acautele, porque o cocktail é perigoso: restrições+estados de emergência+inflação+escassez de alimentos+desemprego….

Este Portugal é um país muito pouco recomendável

No país onde campeia a corrupção e a impunidade, possa não parecer porque o povo é até de brandos costumes (como dizia o “botas”), a revolta poderá estar ao virar da esquina. E não é para mais no país onde: «Tribunal Europeu vem a Portugal preocupado com "escassez" na produção de lítio» visto que foi um dos que mais financiamento recebeu para a exploração do dito; «MP arquiva processo contra Eduardo Cabrita no caso do atropelamento. A justiça mantém apenas a acusação ao motorista do veículo que seguia na A6 e que vitimou mortalmente um funcionário de uma empresa que fazia limpeza de bermas»; «Abusos na Igreja: Comissão já recolheu 326 testemunhos, mas o número de potenciais vítimas pode chegar às “muitas centenas”»; «PJ deteve filho de Marco ‘Orelhas’, suspeito da morte de um jovem na noite dos festejos do título do FC Porto»; «Adiado julgamento de casal acusado de sujeitar 14 pessoas a trabalho escravo»; «"Patrão dos patrões" analisa salários: "Portugal está a pagar cada vez melhor"» quando se sabe que «Mercado de trabalho: Não trabalhávamos tanto há mais de uma década. Salários já estão a travar. Com o emprego a bater recordes, está também em máximos o número daqueles que acumulam mais do que um trabalho»; e para cúmulo da desfaçatez e da provocação «Berardo avança contra bancos e pede 900 milhões de indemnização. Queixa recai sobre BCP, CGD, BES e NB, que acusa de terem lesado a Fundação e a Metalgest ao não terem dado informação sobre o risco real das instituições…».

Para se dizer: se nada mudar, este Portugal é um país muito pouco recomendável; e quanto ao tão propalado “estado de direito”, estamos conversados.

Título: empréstimo sem pedir de Alexandre O'neill 

Imagem: do blog mirante

segunda-feira, 9 de maio de 2022

DA GUERRA

 

Carl Von Clausewitz

Numa palavra, a arte da guerra no seu ponto máximo é a política mas, sem dúvida, uma política que trava batalhas em vez de escrever actas.

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De um modo geral, nada na vida é mais importante que descobrir o ponto de vista certo de onde se devem ver e julgar todas as coisas, e mantermo-nos fiéis a ele; porque só de um ponto estável poderemos apreender a massa dos acontecimentos na sua unidade; e só o mantermo-nos fiéis sempre ao mesmo ponto nos livra de inconsistências.

Portanto, se ao traçar um plano de guerra não é permissível ter um ponto de vista duplo ou triplo donde se olhe para as coisas, umas vezes com os olhos de um soldado, depois os de um administrador, e depois ainda os de um político, etc., então a próxima questão que se põe é saber se a política é necessariamente primordial, com todo o resto a ela subordinado.

Pressupõe-se que a política reúne e reconcilia em si todos os interesses da administração interna, até os da humanidade e quaisquer outros assuntos racionais, porque nada é em si mesma, além de simples representante e exponente de todos esses interesses perante os outros Estados. Não nos diz aqui respeito o facto de a política poder tomar uma direcção errada e, com deslealdade, defender os fins ambiciosos, os interesses privados ou a vaidade dos governantes; porque, sob nenhuma circunstância poderá a arte da guerra ser considerada seu mentor, e aqui só podemos considerar a política como a representante dos interesses em geral de toda a comunidade.

A única questão que se põe, portanto, é saber se, ao elaborar os planos para uma guerra, o ponto de vista político não deveria ceder o lugar ao ponto de vista puramente militar (se tal coisa for concebível), ou seja, se não deveria desaparecer por completo ou a ele se subordinar, ou se o ponto de vista político deverá continuar a ser o ponto dominante e o militar considerado seu subordinado.

Que o ponto de vista político desapareça completamente quando uma guerra começa, só é concebível em lutas que são guerras de morte, travadas por puro ódio: mas as guerras na realidade, como já dissemos, são apenas expressões ou manifestações da própria política. A subordinação do ponto de vista político ao militar seria contrária a todo o senso comum, pois foi a política que declarou a guerra; ela é a faculdade inteligente e a guerra apenas o instrumento, e não o oposto. A subordinação do ponto de vista militar ao político é, pois, a única via possível.

Se pensarmos na natureza real da guerra e nos lembrarmos do que foi dito no cap. III deste livro, que qualquer guerra deveria ser considerada, antes de mais, de acordo com as probabilidades do seu carácter, e os seus traços essenciais com o que deles puder ser deduzido a partir das forças e proporções políticas, e que muitas vezes – na verdade, nos nossos dias podemos com segurança afirmar, quase sempre – a guerra deve ser considerada como um todo orgânico. Do qual não se podem isolar os ramos separadamente, em que, porta o, qualquer actividade individual flui para o todo e tem também sua origem na ideia desse todo, então tornar-se-á certo e palpável para nós que o superior ponto de partida para a condução da guerra, de onde devem proceder as suas linhas gerais, não pode ser outro que não a política.

É desse ponto de vista que jorram os planos, como se de um mote; então, torna-se mais fácil e natural a sua apreensão e julgamento; as nossas convicções, respeitando-os, ganham em força, os motivos são mais satisfatórios e a história mais inteligível.

Em todo o caso, com este ponto de vista, já não há na natureza das coisas um conflito necessário entre os interesses políticos e militares e onde parecer que existe, deve ser considerado apenas como conhecimento imperfeito. A hipótese de que a política faz à guerra exigências que ela não pode satisfazer, seria contrária à suposição de que a política conhece o instrumento que vai usar, logo contrária a uma suposição natural e indispensável. Mas se a política calcula correctamente a marcha dos acontecimentos militares é assunto inteiramente seu determinar quais os acontecimentos e qual a direcção dos acontecimentos mais favoráveis ao grande objectivo último da guerra.

Numa palavra, a arte da guerra no seu ponto máximo é a política mas, sem dúvida, uma política que trava batalhas em vez de escrever actas.

De acordo com este ponto de vista, entregar um grande empreendimento militar, ou o plano para ele, a um julgamento e decisão puramente militares é uma distinção que se não pode permitir, que é mesmo prejudicial; na verdade, é um procedimento irracional consultar soldados profissionais sobre o plano de uma guerra, para que dêem uma opinião puramente militar acerca do que o Gabinete deveria fazer; mas mais absurdo ainda é a exigência dos teóricos de que se apresente ao general uma declaração de todos os meios de guerra disponíveis, para que, de acordo com esses meios, ele trace um plano puramente militar para a guerra ou uma campanha. Em geral, a experiência ensina-nos também que, apesar da multiplicidade dos ramos e do carácter científico da arte militar dos nossos dias, contudo sempre as linhas essenciais de uma guerra são determinadas pelo Gabinete ou, para empregar uma linguagem mais técnica, por um órgão político e não militar.

Isto é perfeitamente natural. Nenhum dos principais planos exigidos por uma guerra pode ser feito sem considerar as relações políticas; e, na realidade, quando as pessoas, como muitas vezes acontece, falam da influência perniciosa da política sobre a condução da guerra, estão na verdade a dizer algo de muito diferente daquilo que pretendem. Não é nesta influência que se deve ver o mal, mas na própria política. Se a política está certa, ou seja, se consegue acertar no objectivo, então só pode actuar na guerra com vantagem. Se esta influência da política causa divergências a respeito do objectivo, a causa só pode ser procurada numa política errada.

DA GUERRA, Carl Von Clausewitz. Europa-América