Susan Sontag
A iconografia do sofrimento tem uma longa
genealogia. O sofrimento mais frequentemente reconhecido como digno de
representação é aquele que se considera fruto da ira, divina ou humana. (O
sofrimento por causas naturais, como a doença ou o parto, raramente foi
representado na história da arte; o que é causado por acidente a bem dizer
nunca o foi – como se o sofrimento devido a negligência ou infortúnio nunca
tivesse existido.) O conjunto escultórico do contorcido Laoconte e dos seus
filhos, as inúmeras versões em pintura e escultura da paixão de Cristo, e o
inexaurível catálogo visual das diabólicas execuções dos mártires cristãos –
são temas obviamente pensados para comover e provocar, assim como para servir
de lição e exemplo. O espectador pode apiedar-se da dor do sofredor – e, no
caso dos santos cristãos, sentir-se exortado ou inspirado por tal fé e coragem
modelares – mas trata-se de destinos para além da piedade ou da revolta.
Ao que parece o apetite por imagens
representando corpos sofredores é tão forte, quase, como o desejo de imagens de
corpos nus. Durante muitos séculos, na arte cristã, as representações do
Inferno ofereciam estes dois prazeres elementares. O pretexto podia ser uma
história bíblica de decapitação (Holofernes, João Baptista), ou uma lenda de
massacres (a matança dos hebreus recém-nascidos, as onze mil virgens), ou
outras do género, com o estatuto de acontecimento histórico verdadeiro e de um
destino implacável. Havia também o repertório das crueldades que-custa-a-ver da
antiguidade clássica, os mitos pagãos, mais ainda do que as histórias cristãs
têm de tudo para todos os gostos. Não há nenhuma carga moral associada à
representação de tais crueldades. Apenas a provocação: podes olhar para isto?
Há a satisfação de se ser capaz de olhar para a imagem sem estremecer. Há O
prazer de estremecer.
Arrepiar-se com a imagem que Goltzius nos dá,
na sua gravura O Dragão Devorando os Companheiros de Cadmus (1588),
de um rosto humano a ser devorado, é muito diferente do arrepio que se sente ao
ver uma fotografia de um veterano da Primeira Guerra Mundial com a cara
desfeita por um tiro. O primeiro destes horrores desenrola-se no contexto de um
tema complexo – figuras numa paisagem – que exibe o talento de visão e mãos do
artista. O outro é um registo de uma câmara, de muito perto, da indizivelmente
horrorosa mutilação de uma pessoa real; isso e só isso. Um horror inventado
pode ser avassalador. (Eu, por exemplo, tenho dificuldade em olhar para a
grande pintura de Ticiano do esfolamento de Marsias, ou no fundo qualquer
imagem deste tema.) Mas há vergonha tanto como choque ao olhar para um grande
plano de um horror verdadeiro. Talvez as únicas pessoas que têm direito a ver
imagens de sofrimento verdadeiro de ordem tão extrema sejam aquelas que podem
fazer alguma coisa para o aliviarem – como os médicos no hospital militar onde
a fotografia foi tirada - ou aquelas que possam aprender com isso alguma coisa.
O resto de nós é voyeurs , quer queiramos quer não.
Em cada um desses momentos, o macabro
convida-nos a ser ou espectadores ou cobardes, incapazes de olhar. Os que têm
estômago para olhar desempenham um papel autorizado por muitas e gloriosas
representações do sofrimento. O tormento, um tema artístico canónico, é muitas
vezes representado em pintura como um espectáculo, uma coisa que é vista (ou
ignorada) por outras pessoas. A implicação é: não, não se pode parar – e a
mistura de espectadores atentos e distraídos sublinha isso mesmo.
A prática de representar sofrimentos atrozes
como devendo ser deplorados e, se possível, terminados, entra na história das
imagens com um tema específico: os sofrimentos suportados por uma população
civil à mercê de um exército vitorioso descontrolado. É um tema
quintessencialmente secular, que emerge no século XVII quando os realinhamentos
de poder da época se tornaram material para os artistas. Em 1633, Jacques
Callot publicou uma série de dezoito gravuras intitulada Les Miseres et
les Malheurs de ta Guerre (“As Misérias e Infortúnios da Guerra”),
representando as atrocidades cometidas contra os civis pelas tropas francesas
durante a invasão e ocupação da sua Lorena natal em princípios da década de
1630. (Seis pequenas gravuras sobre o mesmo tema que Callot executara antes
daquela série apareceram em 1635, ano da sua morte.) Avista é ampla e profunda;
trata-se de cenas com muitas figuras, cenas de uma história; e cada legenda é
um comentário sentencioso em verso acerca das várias forças e fados
representados nas imagens. Callot começa com um painel mostrando o recrutamento
dos soldados; põe a nu combates ferozes, massacres, pilhagens e violações, os
engenhos da tortura e de execução (a polé, a forca, o pelotão de fuzilamento, o
garrote, a roda), a vingança dos camponeses contra os soldados; e acaba com a
distribuição de recompensas. A insistência gravura a gravura na barbárie do
exército vitorioso é surpreendente e sem precedentes, mas os soldados franceses
são apenas a cabeça dos malfeitores na orgia de violência, pois na
sensibilidade humanista cristã de Callot há espaço não só para chorar o fim do
ducado independente da Lorena, mas ainda para registar a condição dos soldados
miseráveis acocorados nas bermas das estradas a pedir esmola.
Callot teve sucessores, como Hans Ulrich
Franck, um artista alemão menor, que, em 1643, próximo do fim da Guerra dos
Trinta Anos, começou a fazer aquilo que (cerca de 1656) viriam a ser vinte e
cinco gravuras representando soldados amatar camponeses. Mas o olhar mais
notável sobre os horrores da guerra e a vileza da soldadesca desvairada é o de
Goya em princípios do século XIX. Los Desastres de la Guerra , uma
sequência numerada de oitenta e três gravuras feitas entre 1810 e 1820 (e
publicadas pela primeira vez, com excepção de três das gravuras, publicadas em
1863, trinta e cinco anos depois da sua morte), representa as atrocidades
cometidas pelos soldados napoleónicos que invadiram a Espanha em 1808 para
subjugar a insurreição contra a dominação francesa. As imagens de Goya
emocionam quem as vê quase até ao horror. Todas as armadilhas do espectacular
foram suprimidas: a paisagem é uma atmosfera, uma escuridão, a bem dizer apenas
esboçada. E a série impressa de Goya não é uma narrativa: cada imagem,
acompanhada por uma pequena frase lamentando a iniquidade dos invasores, a
monstruosidade dos sofrimentos que infligiam, vale por si própria,
independentemente das outras. O efeito cumulativo é devastador. A crueldade
macabra dos Desastres da Guerra tem por finalidade despertar, chocar, ferir o
espectador. A arte de Goya, como a de Dostoievski, parece ser um ponto de
viragem na história dos sentimentos morais e da dor – igualmente profunda,
original, exigente. Com Goya, entra no mundo da arte um novo padrão de
sensibilidade ao sofrimento. (E novos temas para sentimentos análogos: como,
por exemplo, a sua pintura de um trabalhador ferido a ser levado do local de
construção.) O relato das atrocidades da guerra está construído como um assalto
à sensibilidade de quem vê. As frases expressivas manuscritas por baixo de cada
imagem são um comentário sobre essa provocação. Enquanto a imagem, como toda a
imagem, é um convite a olhar, a legenda, as mais das vezes, insiste na
dificuldade de o fazer. Uma voz, presumivelmente a do artista, atormenta o
espectador: és capaz de olhar para isto? Uma legenda diz: No se puede mirar. Outra
diz: Esto es malo. Outra replica: Esto es peor. Outra
brada: Esto es lo peor! Outra clama: Bárbaros! Grita
outra: Que locura! E outra: Fuerte cosa es! E
outra: Por qué?
A legenda de uma fotografia é tradicionalmente
neutra, informativa: uma data, um local, nomes. Seria pouco provável que uma
fotografia de reconhecimento da Primeira Guerra Mundial (a primeira guerra em
que as máquinas fotográficas foram usadas em grande escala pelos serviços de
informação militares) tivesse como legenda «Estamos impacientes por arrasar
isto!» ou uma radiografia de uma fractura múltipla apresentar a anotação: «O
paciente provavelmente vai ficar a coxear!» Nem deveria haver necessidade de
uma fotografia falar com a voz do fotógrafo, apresentando garantias de veracidade,
como Goya faz em Os Desastres da Guerra, escrevendo por baixo de uma
imagem: Yo lo ví. E por baixo de outra: Esto es lo
verdadero. Claro que o fotógrafo viu aquilo. E a não ser que tenha havido
qualquer manipulação ou falsa representação, aquilo é verdade.
A linguagem comum estabelece a diferença entre
imagens feitas à mão como as de Goya e as fotografias, através da convenção de
que os artistas «fazem» desenhos e pinturas, ao passo que os fotógrafos «tiram»
fotografias. Mas a imagem fotográfica, até na medida em que é um vestígio (não
uma construção feita de variados vestígios fotográficos), não pode ser
simplesmente uma transparência de uma coisa que aconteceu. É sempre a imagem
que alguém escolheu; fotografar é enquadrar, e enquadrar é excluir. Além disso,
o «trabalhar» fotografias antecede em muito tempo a era das manipulações da
fotografia digital e do Photoshop: foi sempre possível conseguir que uma
fotografia falseasse uma representação. Uma pintura ou um desenho são
considerados uma falsificação quando se descobre não serem do artista a que
tinham sido atribuídos. Uma fotografia – ou um documento filmado que se vê na
televisão ou na internet – é considerado uma falsificação quando se
descobre que engana quem o vê quanto à cena que afirma representar.
O facto de as atrocidades perpetradas pelos soldados franceses em Espanha não terem acontecido exactamente como são mostradas - se, por exemplo, aquela vítima não era exactamente assim, aquilo não aconteceu junto a uma árvore - em nada desvaloriza Os Desastres da Guerra . As imagens de Gora são uma síntese. Afirmam: coisas como estas aconteceram. Pelo contrário, uma fotografia em particular ou um filme afirma representar exactamente o que estava diante da lente da câmara. Uma fotografia é feita não para evocar mas para mostrar. É por isso que as fotografias, ao contrário das imagens feitas à mão, podem contar como prova. Mas prova de quê? A persistente suspeita de que a fotografia de Capa, Morte de Um Soldado Republicano, pode não mostrar o que diz que mostra (uma hipótese levantada é de que mostra um exercício de treino perto da linha da frente) continua a assombrar as discussões sobre a fotografia de guerra. Todos são literalistas quando se trata de fotografia.
(Retirado do livro “Olhando o Sofrimento dos
Outros” de Susan Sontag. 2003. Gótica; Desenhos de Goya Os Desastres da
Guerra )
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