domingo, 22 de maio de 2022

Olhando o Sofrimento dos Outros

 

Susan Sontag

A iconografia do sofrimento tem uma longa genealogia. O sofrimento mais frequentemente reconhecido como digno de representação é aquele que se considera fruto da ira, divina ou humana. (O sofrimento por causas naturais, como a doença ou o parto, raramente foi representado na história da arte; o que é causado por acidente a bem dizer nunca o foi – como se o sofrimento devido a negligência ou infortúnio nunca tivesse existido.) O conjunto escultórico do contorcido Laoconte e dos seus filhos, as inúmeras versões em pintura e escultura da paixão de Cristo, e o inexaurível catálogo visual das diabólicas execuções dos mártires cristãos – são temas obviamente pensados para comover e provocar, assim como para servir de lição e exemplo. O espectador pode apiedar-se da dor do sofredor – e, no caso dos santos cristãos, sentir-se exortado ou inspirado por tal fé e coragem modelares – mas trata-se de destinos para além da piedade ou da revolta.

Ao que parece o apetite por imagens representando corpos sofredores é tão forte, quase, como o desejo de imagens de corpos nus. Durante muitos séculos, na arte cristã, as representações do Inferno ofereciam estes dois prazeres elementares. O pretexto podia ser uma história bíblica de decapitação (Holofernes, João Baptista), ou uma lenda de massacres (a matança dos hebreus recém-nascidos, as onze mil virgens), ou outras do género, com o estatuto de acontecimento histórico verdadeiro e de um destino implacável. Havia também o repertório das crueldades que-custa-a-ver da antiguidade clássica, os mitos pagãos, mais ainda do que as histórias cristãs têm de tudo para todos os gostos. Não há nenhuma carga moral associada à representação de tais crueldades. Apenas a provocação: podes olhar para isto? Há a satisfação de se ser capaz de olhar para a imagem sem estremecer. Há O prazer de estremecer.

Arrepiar-se com a imagem que Goltzius nos dá, na sua gravura O Dragão Devorando os Companheiros de Cadmus (1588), de um rosto humano a ser devorado, é muito diferente do arrepio que se sente ao ver uma fotografia de um veterano da Primeira Guerra Mundial com a cara desfeita por um tiro. O primeiro destes horrores desenrola-se no contexto de um tema complexo – figuras numa paisagem – que exibe o talento de visão e mãos do artista. O outro é um registo de uma câmara, de muito perto, da indizivelmente horrorosa mutilação de uma pessoa real; isso e só isso. Um horror inventado pode ser avassalador. (Eu, por exemplo, tenho dificuldade em olhar para a grande pintura de Ticiano do esfolamento de Marsias, ou no fundo qualquer imagem deste tema.) Mas há vergonha tanto como choque ao olhar para um grande plano de um horror verdadeiro. Talvez as únicas pessoas que têm direito a ver imagens de sofrimento verdadeiro de ordem tão extrema sejam aquelas que podem fazer alguma coisa para o aliviarem – como os médicos no hospital militar onde a fotografia foi tirada - ou aquelas que possam aprender com isso alguma coisa. O resto de nós é voyeurs , quer queiramos quer não.

Em cada um desses momentos, o macabro convida-nos a ser ou espectadores ou cobardes, incapazes de olhar. Os que têm estômago para olhar desempenham um papel autorizado por muitas e gloriosas representações do sofrimento. O tormento, um tema artístico canónico, é muitas vezes representado em pintura como um espectáculo, uma coisa que é vista (ou ignorada) por outras pessoas. A implicação é: não, não se pode parar – e a mistura de espectadores atentos e distraídos sublinha isso mesmo.

A prática de representar sofrimentos atrozes como devendo ser deplorados e, se possível, terminados, entra na história das imagens com um tema específico: os sofrimentos suportados por uma população civil à mercê de um exército vitorioso descontrolado. É um tema quintessencialmente secular, que emerge no século XVII quando os realinhamentos de poder da época se tornaram material para os artistas. Em 1633, Jacques Callot publicou uma série de dezoito gravuras intitulada Les Miseres et les Malheurs de ta Guerre (“As Misérias e Infortúnios da Guerra”), representando as atrocidades cometidas contra os civis pelas tropas francesas durante a invasão e ocupação da sua Lorena natal em princípios da década de 1630. (Seis pequenas gravuras sobre o mesmo tema que Callot executara antes daquela série apareceram em 1635, ano da sua morte.) Avista é ampla e profunda; trata-se de cenas com muitas figuras, cenas de uma história; e cada legenda é um comentário sentencioso em verso acerca das várias forças e fados representados nas imagens. Callot começa com um painel mostrando o recrutamento dos soldados; põe a nu combates ferozes, massacres, pilhagens e violações, os engenhos da tortura e de execução (a polé, a forca, o pelotão de fuzilamento, o garrote, a roda), a vingança dos camponeses contra os soldados; e acaba com a distribuição de recompensas. A insistência gravura a gravura na barbárie do exército vitorioso é surpreendente e sem precedentes, mas os soldados franceses são apenas a cabeça dos malfeitores na orgia de violência, pois na sensibilidade humanista cristã de Callot há espaço não só para chorar o fim do ducado independente da Lorena, mas ainda para registar a condição dos soldados miseráveis acocorados nas bermas das estradas a pedir esmola.

Callot teve sucessores, como Hans Ulrich Franck, um artista alemão menor, que, em 1643, próximo do fim da Guerra dos Trinta Anos, começou a fazer aquilo que (cerca de 1656) viriam a ser vinte e cinco gravuras representando soldados amatar camponeses. Mas o olhar mais notável sobre os horrores da guerra e a vileza da soldadesca desvairada é o de Goya em princípios do século XIX. Los Desastres de la Guerra , uma sequência numerada de oitenta e três gravuras feitas entre 1810 e 1820 (e publicadas pela primeira vez, com excepção de três das gravuras, publicadas em 1863, trinta e cinco anos depois da sua morte), representa as atrocidades cometidas pelos soldados napoleónicos que invadiram a Espanha em 1808 para subjugar a insurreição contra a dominação francesa. As imagens de Goya emocionam quem as vê quase até ao horror. Todas as armadilhas do espectacular foram suprimidas: a paisagem é uma atmosfera, uma escuridão, a bem dizer apenas esboçada. E a série impressa de Goya não é uma narrativa: cada imagem, acompanhada por uma pequena frase lamentando a iniquidade dos invasores, a monstruosidade dos sofrimentos que infligiam, vale por si própria, independentemente das outras. O efeito cumulativo é devastador. A crueldade macabra dos Desastres da Guerra tem por finalidade despertar, chocar, ferir o espectador. A arte de Goya, como a de Dostoievski, parece ser um ponto de viragem na história dos sentimentos morais e da dor – igualmente profunda, original, exigente. Com Goya, entra no mundo da arte um novo padrão de sensibilidade ao sofrimento. (E novos temas para sentimentos análogos: como, por exemplo, a sua pintura de um trabalhador ferido a ser levado do local de construção.) O relato das atrocidades da guerra está construído como um assalto à sensibilidade de quem vê. As frases expressivas manuscritas por baixo de cada imagem são um comentário sobre essa provocação. Enquanto a imagem, como toda a imagem, é um convite a olhar, a legenda, as mais das vezes, insiste na dificuldade de o fazer. Uma voz, presumivelmente a do artista, atormenta o espectador: és capaz de olhar para isto? Uma legenda diz: No se puede mirar. Outra diz: Esto es malo. Outra replica: Esto es peor. Outra brada: Esto es lo peor! Outra clama: Bárbaros! Grita outra: Que locura! E outra: Fuerte cosa es! E outra: Por qué?

A legenda de uma fotografia é tradicionalmente neutra, informativa: uma data, um local, nomes. Seria pouco provável que uma fotografia de reconhecimento da Primeira Guerra Mundial (a primeira guerra em que as máquinas fotográficas foram usadas em grande escala pelos serviços de informação militares) tivesse como legenda «Estamos impacientes por arrasar isto!» ou uma radiografia de uma fractura múltipla apresentar a anotação: «O paciente provavelmente vai ficar a coxear!» Nem deveria haver necessidade de uma fotografia falar com a voz do fotógrafo, apresentando garantias de veracidade, como Goya faz em Os Desastres da Guerra, escrevendo por baixo de uma imagem: Yo lo ví. E por baixo de outra: Esto es lo verdadero. Claro que o fotógrafo viu aquilo. E a não ser que tenha havido qualquer manipulação ou falsa representação, aquilo é verdade.

A linguagem comum estabelece a diferença entre imagens feitas à mão como as de Goya e as fotografias, através da convenção de que os artistas «fazem» desenhos e pinturas, ao passo que os fotógrafos «tiram» fotografias. Mas a imagem fotográfica, até na medida em que é um vestígio (não uma construção feita de variados vestígios fotográficos), não pode ser simplesmente uma transparência de uma coisa que aconteceu. É sempre a imagem que alguém escolheu; fotografar é enquadrar, e enquadrar é excluir. Além disso, o «trabalhar» fotografias antecede em muito tempo a era das manipulações da fotografia digital e do Photoshop: foi sempre possível conseguir que uma fotografia falseasse uma representação. Uma pintura ou um desenho são considerados uma falsificação quando se descobre não serem do artista a que tinham sido atribuídos. Uma fotografia – ou um documento filmado que se vê na televisão ou na internet – é considerado uma falsificação quando se descobre que engana quem o vê quanto à cena que afirma representar.

O facto de as atrocidades perpetradas pelos soldados franceses em Espanha não terem acontecido exactamente como são mostradas - se, por exemplo, aquela vítima não era exactamente assim, aquilo não aconteceu junto a uma árvore - em nada desvaloriza Os Desastres da Guerra . As imagens de Gora são uma síntese. Afirmam: coisas como estas aconteceram. Pelo contrário, uma fotografia em particular ou um filme afirma representar exactamente o que estava diante da lente da câmara. Uma fotografia é feita não para evocar mas para mostrar. É por isso que as fotografias, ao contrário das imagens feitas à mão, podem contar como prova. Mas prova de quê? A persistente suspeita de que a fotografia de Capa, Morte de Um Soldado Republicano, pode não mostrar o que diz que mostra (uma hipótese levantada é de que mostra um exercício de treino perto da linha da frente) continua a assombrar as discussões sobre a fotografia de guerra. Todos são literalistas quando se trata de fotografia.

(Retirado do livro “Olhando o Sofrimento dos Outros” de Susan Sontag. 2003. Gótica; Desenhos de Goya Os Desastres da Guerra )

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