segunda-feira, 9 de maio de 2022

DA GUERRA

 

Carl Von Clausewitz

Numa palavra, a arte da guerra no seu ponto máximo é a política mas, sem dúvida, uma política que trava batalhas em vez de escrever actas.

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De um modo geral, nada na vida é mais importante que descobrir o ponto de vista certo de onde se devem ver e julgar todas as coisas, e mantermo-nos fiéis a ele; porque só de um ponto estável poderemos apreender a massa dos acontecimentos na sua unidade; e só o mantermo-nos fiéis sempre ao mesmo ponto nos livra de inconsistências.

Portanto, se ao traçar um plano de guerra não é permissível ter um ponto de vista duplo ou triplo donde se olhe para as coisas, umas vezes com os olhos de um soldado, depois os de um administrador, e depois ainda os de um político, etc., então a próxima questão que se põe é saber se a política é necessariamente primordial, com todo o resto a ela subordinado.

Pressupõe-se que a política reúne e reconcilia em si todos os interesses da administração interna, até os da humanidade e quaisquer outros assuntos racionais, porque nada é em si mesma, além de simples representante e exponente de todos esses interesses perante os outros Estados. Não nos diz aqui respeito o facto de a política poder tomar uma direcção errada e, com deslealdade, defender os fins ambiciosos, os interesses privados ou a vaidade dos governantes; porque, sob nenhuma circunstância poderá a arte da guerra ser considerada seu mentor, e aqui só podemos considerar a política como a representante dos interesses em geral de toda a comunidade.

A única questão que se põe, portanto, é saber se, ao elaborar os planos para uma guerra, o ponto de vista político não deveria ceder o lugar ao ponto de vista puramente militar (se tal coisa for concebível), ou seja, se não deveria desaparecer por completo ou a ele se subordinar, ou se o ponto de vista político deverá continuar a ser o ponto dominante e o militar considerado seu subordinado.

Que o ponto de vista político desapareça completamente quando uma guerra começa, só é concebível em lutas que são guerras de morte, travadas por puro ódio: mas as guerras na realidade, como já dissemos, são apenas expressões ou manifestações da própria política. A subordinação do ponto de vista político ao militar seria contrária a todo o senso comum, pois foi a política que declarou a guerra; ela é a faculdade inteligente e a guerra apenas o instrumento, e não o oposto. A subordinação do ponto de vista militar ao político é, pois, a única via possível.

Se pensarmos na natureza real da guerra e nos lembrarmos do que foi dito no cap. III deste livro, que qualquer guerra deveria ser considerada, antes de mais, de acordo com as probabilidades do seu carácter, e os seus traços essenciais com o que deles puder ser deduzido a partir das forças e proporções políticas, e que muitas vezes – na verdade, nos nossos dias podemos com segurança afirmar, quase sempre – a guerra deve ser considerada como um todo orgânico. Do qual não se podem isolar os ramos separadamente, em que, porta o, qualquer actividade individual flui para o todo e tem também sua origem na ideia desse todo, então tornar-se-á certo e palpável para nós que o superior ponto de partida para a condução da guerra, de onde devem proceder as suas linhas gerais, não pode ser outro que não a política.

É desse ponto de vista que jorram os planos, como se de um mote; então, torna-se mais fácil e natural a sua apreensão e julgamento; as nossas convicções, respeitando-os, ganham em força, os motivos são mais satisfatórios e a história mais inteligível.

Em todo o caso, com este ponto de vista, já não há na natureza das coisas um conflito necessário entre os interesses políticos e militares e onde parecer que existe, deve ser considerado apenas como conhecimento imperfeito. A hipótese de que a política faz à guerra exigências que ela não pode satisfazer, seria contrária à suposição de que a política conhece o instrumento que vai usar, logo contrária a uma suposição natural e indispensável. Mas se a política calcula correctamente a marcha dos acontecimentos militares é assunto inteiramente seu determinar quais os acontecimentos e qual a direcção dos acontecimentos mais favoráveis ao grande objectivo último da guerra.

Numa palavra, a arte da guerra no seu ponto máximo é a política mas, sem dúvida, uma política que trava batalhas em vez de escrever actas.

De acordo com este ponto de vista, entregar um grande empreendimento militar, ou o plano para ele, a um julgamento e decisão puramente militares é uma distinção que se não pode permitir, que é mesmo prejudicial; na verdade, é um procedimento irracional consultar soldados profissionais sobre o plano de uma guerra, para que dêem uma opinião puramente militar acerca do que o Gabinete deveria fazer; mas mais absurdo ainda é a exigência dos teóricos de que se apresente ao general uma declaração de todos os meios de guerra disponíveis, para que, de acordo com esses meios, ele trace um plano puramente militar para a guerra ou uma campanha. Em geral, a experiência ensina-nos também que, apesar da multiplicidade dos ramos e do carácter científico da arte militar dos nossos dias, contudo sempre as linhas essenciais de uma guerra são determinadas pelo Gabinete ou, para empregar uma linguagem mais técnica, por um órgão político e não militar.

Isto é perfeitamente natural. Nenhum dos principais planos exigidos por uma guerra pode ser feito sem considerar as relações políticas; e, na realidade, quando as pessoas, como muitas vezes acontece, falam da influência perniciosa da política sobre a condução da guerra, estão na verdade a dizer algo de muito diferente daquilo que pretendem. Não é nesta influência que se deve ver o mal, mas na própria política. Se a política está certa, ou seja, se consegue acertar no objectivo, então só pode actuar na guerra com vantagem. Se esta influência da política causa divergências a respeito do objectivo, a causa só pode ser procurada numa política errada.

DA GUERRA, Carl Von Clausewitz. Europa-América

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