sábado, 15 de março de 2025

O escândalo ético: crise de governo ou o regime em crise?

 

O PR Marcelo falou ao país e, depois de ter auscultado o seu conselho de estado, anunciou a dissolução da Assembleia da República e marcou eleições legislativas antecipadas para o próximo dia 18 de Maio, isto é, depois dos católicos irem rezar a Fátima, comunidade religiosa onde ele e o seu partido se incluem. Deverão esperar por milagre ou por outra revelação da Virgem. A responsabilidade pelo facto de marcar as terceiras eleições para o Parlamento em pouco mais de três anos e juntar quatro eleições em menos de um ano, Marcelo não teve pejo em atribui-la à pessoa do primeiro-ministro, que persistiu em colocar a moção de confiança a votação depois de duas moções de rejeição terem sido chumbadas e de não ter até ao momento fornecido explicações claras e precisas quanto ao imbróglio de ter mantido a empresa familiar após a tomada de posse como chefe do governo. O governo cai por “falta de ética e moral”, a “desconfiança dos portugueses” em relação aos partidos do arco da governação não se pode estender ao regime democrático; contudo, não disse que a porta da instabilidade e da desconfiança foi ele que a abriu com o derrube do governo de maioria absoluta de Costa/PS. Marcelo, o rei da intriga, faz o mal e a caramunha.

Candidatura a salvador da pátria

As reações por parte do PSD e do anexo CDS-PP não se fizeram esperar: “Pedro Nuno Santos fez pior à democracia nestes últimos seis dias do que André Ventura nos últimos seis anos”, diz a dita “segunda figura de estado”; "Isto é o caminho para a ditadura", perora a fulana que sugeriu a suspensão da democracia por uns tempos para se arrumar a casa; o gajo que que levou com o escândalo ético em cima da cabeça incha o peito e arrota que “não vai desistir” e está “para dar e durar”; e o candidato a Bonaparte não se coibiu de, no seu jeito casernático e boçal, botar igualmente faladura: “não desejo apoios de nenhum partido”, aproveitando assim, embora negando, da crise política e criar “distrações”. Fica-se com a ideia de que estes gajos estão todos feitos uns com os outros e tudo fizeram para criar a crise e tirar proveito da mesma, cada um à sua maneira e segundo os seus interesses. Os partidos da putativa oposição são unanimes em afirmar que não estavam interessados em mais eleições, mas não passa de um engano, inclusivamente aqueles que se arriscam a desaparecer do Parlamento a breve prazo. Todos fazem bluff.

Ao contrário de alguma opinião, o governo não se suicidou e Montenegro actuou segundo plano pré-estabelecido, isto não quer dizer que as coisas lhe irão correr de feição, essa será outra história que ele não poderá controlar, para conseguir uma maioria absoluta. O homenzinho não se desfez da empresa familiar em tempo útil pela simples razão de que não quis, e, por arrogante, achou e acha que sairá vitorioso da peleja que ele próprio provocou, por carácter e por ganância, porque a dita empresa parece não passar de uma habilidade para lavagem das comissões (luvas, propinas) do negócio de lobbing (em português, tráfico de influências) que parece ser uma das principais fontes de rendimento. E o negócio é de tal modo evidente que dividiu o próprio partido, e levou ao manhoso Marcelo a distanciar-se e a aproveitar o facto para esconder as suas responsabilidades pela instabilidade governativa a até de descrédito de todo o regime – como demonstramos em crónica anterior, logo após a realização das eleições de 10 de março de 2024. Estamos apenas a assistir ao episódio seguinte de uma novela que estará longe de terminar.

O chefe do governo demissionário aspira a ser um chefete capaz de impor ao povo português as medidas que Bruxelas e a elite indígena reivindicam para fazer face à grave crise económica que já está a grassar em toda a União Europeia e que, mais cedo ou mais tarde e francamente ampliada, chegará a Portugal. Crise bem expressa pela recessão económica dos países mais ricos, daí também o risco de um confronto armado generalizado no espaço europeu, como forma de a debelar, e a militarização, com o duplo fim de relançar a economia em estagnação, por exemplo, o grupo Volkswagen já decidiu investir em equipamento militar. A crise já foi formalmente decretada. E, caso necessário, a vontade de impor a lei do cacete aos trabalhadores, na eventualidade de se revoltarem, também existe, haverá de se encontrar o cabo de esquadra adequado. Para a boa resolução destas questões, o homem até parecer possuir algumas qualidades: arrogância, ambição, teimosia e pouca inteligência.

E vejamos: questionado quanto à empresa, declara arrogantemente: “tenho mais que fazer do que vos estar a responder diariamente”, fazendo lembrar o Cavaco, que raramente tinha dúvidas e nunca se enganava: “para serem mais honestos do que eu têm que nascer duas vezes”. Deu muitas explicações quanto à empresa mas nunca disse tudo e levantou ainda mais dúvidas e suspeições. A Polícia Judiciária pediu-lhe para entregar os documentos da casa em Espinho, que parece ter sido beneficiada, quer pela câmara quer pelo fisco, entregou-os mas não a quem os pediu. Diz que é candidato a primeiro-ministro mesmo que seja constituído arguido, como se as eleições não fossem para deputados mas para um chefe presidencialista. Faz orelhas moucas a algumas críticas que vêm do interior do partido: “Num Governo normal, num tempo normal e num país normal, um primeiro-ministro nestas circunstâncias não se recandidata. Luís Montenegro está completamente agarrado ao poder", diz o ex-ministro experiente em assuntos de segurança e repressão. Como se constata, candidatos a chefetes, cabos de esquadra ou Bonapartes, não faltam em Portugal.

A diluição do regime

Esta gente não se cansa em esforços com o fim de degradar e liquidar o regime democrático, saído do golpe militar de 25 de Abril. O regime completou no ano passado cinquenta anos e por este andar o futuro é incerto, muito longe nos encontramos de uma “democracia madura”, como o rei beato gosta de referir. A tal “segunda figura ada nação”, ela também ligada ao negócio do imobiliário, faz por isso: “vivemos hoje uma crise de disponibilidade das pessoas de bem para a política”, e alerta para “problema transversal” de atrair os “melhores” para a política num ambiente mediático “armadilhado” de “desconfiança” e “voyeurista”. Traduzindo: a política é para os doutores, já dizia o velho das botas, e como tal devem ser remunerados como tal. Os trabalhadores, os operários, os mais deserdados da sociedade, a esses cabe-lhes unicamente de enfiar de quando em vez, um papel dobrado na urna e caucionar as patifarias de toda a sorte de oportunistas, arrivistas e chulos que venham a ocupar os lugares de deputado ou de governantes. Parece que ninguém ousa defender que um deputado da Nação não deve auferir mais do que o salário médio de um trabalhador, já que se trata de se servir a res publica, é que assim abria-se espaço para que houvesse deputados saídos da classe de quem trabalha e produz, porque é ela que sente na pele os verdadeiros problemas que afligem o país.

O chefe que quer ser chefete ri-se das acusações, goza com quem o critica e borrifa-se para a indignação do povo português porque sente-se protegido e imune. Parece que o Ministério Público irá investigar o que se passa com a empresa – que não é dele mas da mulher e dos filhos, mas que a eles terá passado depois de já a não ter (este gajo pensa que o povo é burro!) – já depois de ter arquivado o caso da casa de Espinho. Começará por uma “averiguação preventiva”, figura que não existe em lado nenhum no edifício legislativo português, em vez de um inquérito. Será a intenção, porque é a ideia com que se fica, de dar tempo para que sejam destruídas as provas das eventuais ilegalidades praticadas? Assim, não vão ser investigadas as contas bancárias, informações da família à Autoridade Tributária, nem os pagamentos feitos pelas empresas clientes à Spinumviva. Venham cá depois com a treta da separação dos poderes, legislativo e judicial no caso, porque o poder é só um, o da elite; ou seja e repetimos, estão todos feitos uns com os outros, uma verdadeira mafia.

Por onde quer que se espreite, só se vislumbra corrupção, ela é uma espécie de óleo lubrificante que faz rodar a engrenagem do sistema. Por exemplo, a Inspeção-Geral de Finanças (IGF) detectou que o estado (governo) concedeu 8.005 milhões de euros em subvenções e benefícios públicos, cerca de 3% do PIB, e mais de metade, 4.985 milhões de euros, foi atribuída a empresas do sector privado sem qualquer controlo. Nesta verba não se incluem os negócios feitos entre o estado e privados, concursos, ajustes directos, nem benefícios e perdões fiscais, fuga de capitais, dívidas à Segurança Social e ao Fisco que ficam por liquidar, etc.. Acrescentar ainda as privatizações, que estão suspensas devido à queda do governo, mas que serão para retomar com este ou outro governo mais rosado, das rodoviárias e ferroviárias às do aeroporto de Lisboa e da Saúde. Está projectada a passagem para a gestão privada de cinco hospitais e mais os 174 centros de saúde que lhes são agregados. Agora, já se entende para que foram cridas as denominadas ULS: facilitar a privatização, que vai em pacotes e embrulhada na mais despudorada corrupção.

Os media mainstream, em especial os mais conservadores, já estão a comparar a actual crise política com a da I República, 1910-26, através do número de eleições por ano e duração dos governos: “Quatro eleições legislativas em cinco anos e meio? Nem na 1.ª República” (Público, jornal da família oligarca Azevedo). Uma lógica de descredibilização do regime em vigor e, sub-repticiamente, deixando no ar a ideia de que a solução poderá ser uma saída autoritária, e o almirante até talvez venha a dar jeito, razão pela qual a mesma imprensa o tem levado ao colo desde há algum tempo. Há um sector da elite que aposta abertamente numa solução bonapartista para a crise económica e política: a estabilidade dos cemitérios. Esquece-se que se esse caminho vier a ser percorrido, o seu fim será apressado. Mal por mal, este ainda é o regime que mantem o povo mais entretido e sossegado, embora apenas até certo ponto, dependendo do grau em que os bolsos dos trabalhadores são esvaziados.

A crise económica está na raiz

Parece que os patrões “chumbam” as eleições antecipadas: “Já basta o elevado clima de incerteza de origem internacional” – dizem. Mas é só treta para que ninguém os acuse de desejarem a instabilidade política e a possível deterioração do regime democrático. Apenas mais um exercício de hipocrisia, muito semelhante aos praticados pelos seus funcionários políticos. As palavras do chefe da oposição e líder do PS sobre a incompetência do PSD em gerir a administração do estado, após o chumbo da moção de confiança, são mais que esclarecedoras sobre a verdadeira função dos partidos do establishment: gerir os negócios dos capitalistas e colocar ao seu serviço os instrumentos e os recursos públicos. Marx e Engels, no Manifesto Comunista, redigido entre Dezembro de 1847 e Janeiro de 1848, já tinham visto a realidade por tão evidente que ela era: “O governo do Estado moderno não é mais do que uma junta que administra os negócios comuns de toda a classe burguesa”.

Temos afirmado constantemente, e iremos continuar a fazê-lo – porque não se pode apenas ver a árvore mas sempre a floresta –, de que a crise política é uma consequência da crise económica, e ela está bem evidente, apesar dos (des)governates passem quase todo o tempo a dizer o contrário. A dívida das famílias, empresas e estado, subiu, em termos absolutos, para 814.100 milhões de euros em 2024, dividindo-se em: 454.600 milhões de euros do setor privado (empresas privadas e particulares) e 359.400 milhões de euros do setor público. Como se pode ver, a dívida privada é superior à pública, e essa diferença não é maior porque o estado (governos) tem assumido parte dos prejuízos das empresas privadas, nomeadamente dos bancos, e durante a pandemia essa transferência foi particularmente brutal: “medidas de resposta à Covid-19 custaram 16,5 mil milhões em três anos”. Para se entender também para que serviu a pandemia, os confinamentos e tudo o mais a ela relacionada. Outros exemplos mostram que a pobreza tem aumentado em Portugal: “Mais de mil pessoas vivem em barracas em bairro de Almada”; “Funcionárias da fábrica Temasa protestam contra encerramento e acusam patrão de maus-tratos”; “Mais de 40% dos trabalhadores do alojamento e da restauração recebem o salário mínimo”; “Fábrica da Yazaki Saltano vai despedir 364 trabalhadores em Ovar”. Os despedimentos colectivos vão ser a epidemia de 2025 e que muito provavelmente irá prolongar-se pelos próximos tempos.

Dizer não ao mais do mesmo

Para rematar. Daqui a 2 meses vai haver de novo eleições, estamos curiosos em saber em que medida a desconfiança, que existe, de muitos cidadãos portugueses se vai traduzir em votos nos partidos mais marginalizados do sistema ou em abstenção, onde se pode incluir votos em branco ou nulos. É por demais evidente a necessidade de alternativa, seja em novos partidos seja em políticas que desmontem toda a artimanha da burguesia, que responda às reivindicações mais sentidas pela maioria do povo e dos trabalhadores portugueses. Reivindicações antigas, diga-se de passagem, e que o actual regime parlamentar burguês não conseguiu ou não quis responder: Pão, Paz, Habitação, Saúde e Educação. A Paz foi conseguida porque os soldados em Portugal se recusaram a a embarcar para as antigas colónias e continuar a guerra, mas agora tanto o PS como o PSD/CDS-PP querem a guerra, defendem a militarização, e se puderem vão enfiar os nossos jovens numa guerra ainda mais violenta do que a que passamos durante quatorze anos. E quanto a outras, Democracia e Liberdade, foram qb e estão prestes a irem pelo esgoto abaixo.

Decididamente que nem PS nem PSD (incluindo anexo CDS/PP) são a solução, mas quase de certeza que um deles vai ganhar de novo as eleições e, com Montenegro às voltas com as mentiras em relação à empresa ou sem ele, a crise não irá acabar, quanto muito será adiada. O PS só é de “esquerda” quando está na oposição, no governo é a direita a governar; a diferença está enquanto o PSD faz o papel de polícia mau, o PS faz o de polícia bom. Não basta mudar de política, como alguns partidos mais à esquerda defendem na ilusão de que o PS se for bem acompanhado até poderá de mudar de agulha, puro engano e que já por vezes demais experimentamos, é obrigatório mudar principalmente de partido.

Notas:

1. A crise económica mobiliza a tropa - Viva a caserna!

2. As eleições do dia 10: a instabilidade veio para ficar

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