Em 50 anos de democracia de Abril, vamos no
governo nº24, ou seja, já passaram 23 governos de turno e chegou-se às duas
dúzias – são dois números redondos, é para se dizer que à dúzia é mais barato.
Este governo é apresentado pelos media de referência como «um Governo de
“capacidades e talentos” que está a ser “preparado” há mais de um ano», ou o «Governo
muito mais técnico e feminino», características por si só suficientes para
ultrapassar a falta de “experiência no poder”. São dezassete ministros e 41
secretários de estado que já tiraram a “fotografia de família” na vila de
Óbidos e onde, muito provavelmente, não deixaram de apreciar a famosa ginjinha
e comido o copo de chocolate. Mas, talvez por essa razão, o primeiro-ministro
já anteriormente declarara que irá governar por decreto e os mesmos media
mainstream já apelam de forma veemente à estabilidade, quando até à véspera das
eleições não se cansavam de desestabilizar o governo de maioria absoluta do PS.
O bloco central de interesses e a agenda da
extrema-direita
O país tem sido governado, na maior parte do
tempo, à vez: ora governa PS, ora governa PSD, só ou acompanhado pelo anexo.
Mas, em questões fundamentais para as elites indígenas ou em relação às
“orientações” de Bruxelas, tem havido sempre acordo entre os dois partidos,
usualmente denominado de “pacto de regime”. Neste momento, parece que estamos a
assistir a uma crise deste namoro ou união de facto pela introdução de um
terceiro elemento, o partido da extrema-direita; ou, então, a uma sucessão de
truques, ou seja, a mais uma encenação de que estes dois principais partidos da
governação são exímios. Também poderá ser uma mistura das duas coisas, ambos
continuarem a apresentar-se perante o povo que os elege e sustenta como
partidos “responsáveis”, amantes da estabilidade, mas só quando lhes interessa,
e simultaneamente usarem o terceiro partido como instrumento de manipulação. PS
empurra o PSD para os braços do mal-amado para o acusar de faltar à palavra (“não
é não”), entretanto o PSD vitimiza-se pela má fé do PS. No final, a comédia
está sempre presente.
Nos entrementes, assiste-se à união das
diversas forças políticas e de influência social mais conservadores e
reaccionárias existentes no seio da sociedade portuguesa. A apresentação do
livro pelo ex-primeiro-ministro Coelho, que martirizou o povo trabalhador com
austeridade redobrada, gabando-se de ter ido além das imposições da troika,
onde critica as políticas de “esquerda” dos governos PS no sentido da
legalização do aborto e da eutanásia e da aceitação da ideologia identitária do
lóbi LGBTQI+, tem o efeito, para além de mobilizar toda a elite que se revês
nos valores “sagrados” do “Deus, Pátria e Família”, de impor ao governo esta
agenda, em claro revivalismo do fascismo. Não foi por acaso que os dois
principais e mais mediáticos dirigentes do terceiro partido estiveram presentes
na apresentação da obra e um deles sentiu-se à vontade para sugerir Passo
Coelho como possível e desejado candidato a Belém.
O chefe do governo AD tem sido criticado pelo
facto do seu primeiro acto, logo após a tomada de posse do governo, ter sido a
mudança do famigerado logótipo do governo da República, que teria sido alterado
pelo governo anterior em aberta falta de respeito pelos símbolos mais do que
sagrados da “bandeira nacional”, por óbvia ausência de programa credível para a
resolução dos principais problemas do país, um sinónimo de inépcia. Mas a
questão é simbólica e é muito mais importante do que possa parecer, foi o
primeiro sinal de que a agenda do governo ou as linhas com que se vai cozer vão
muito para além do programa com que se apresentou ao eleitorado. Vai ser o
programa, puro e duro, do grande capital financeiro e do sector mais
trauliteiro da burguesia nacional e, caso seja aplicado, irá doer muito mais do
que aquele que foi ditado pela troika, com a alegação de que o país estaria
prestes em entrar na bancarrota. Agora, será o povo português em entrar em
bancarrota completa se o plano seguir em frente.
A mudança de discurso e a Igreja na
política
Ainda não se conhecia toda a constituição
governamental e já o discurso dos partidos da AD era outro, ficou-se agora a
saber, como fosse diferente no governo anterior, que o governo se vê “forçado a
ajustar programa económico às novas regras de Bruxelas”. Já não há dinheiro
para tudo o que se prometeu, embora se continue a afirmar abertura ao diálogo
com toda a gente, e polícias, militares, professores, oficiais de justiça,
médicos, enfermeiros e os mais que venham a reivindicar as justas atualizações salariais
e de carreira terão de esperar ou contar com menos. Novo “plano orçamental de
médio prazo” vai ter de respeitar as normas impostas por Bruxelas.
O líder do “principal partido da oposição”,
lugar disputado pelo chefe do terceiro partido que promete “oposição” ao
governo e à “oposição” se necessário, já escreveu a Montenegro, estará
disponível para acordo com condições para aprovar orçamento retificativo, onde
se incluem melhorias para as carreiras da função pública. Aquele terá
manifestado inteira disponibilidade, mas “o tempo e o modo” serão definidos
pelo governo. Coloca-se a questão pertinente: será só para isso ou para mais
alguma coisa? O mais provável é que as “oposições” sejam mais no nome do que
nos factos, daí termos enfiado a palavra entre comas.
Marcelo quis lembrar ao país que o eleitorado entendeu
dar a vitória aos "moderados" e não aos "radicais",
deixando no ar que numa próxima vez isso poderá não acontecer, querendo
possivelmente chantagear os partidos que à esquerda se oponham à governação da
AD. E, algum tempo depois, o bispo do Porto não esteve com meias palavras:
"a Igreja tem de se meter na política", não exactamente através dos
paroquianos como afirmou, mas directamente como partido informal, uma força de
pressão, que ousa já dar a cara. Quase ao mesmo tempo, o Patriarca de Lisboa vem
dizer que o “país”, isto é, o povo, tem de “reencontrar força” para “superar
dificuldades”, que já são esperadas pelas elites e que as pretendem resolver à
custa de mais sacrifícios, não delas mas dos que trabalham.
O endurecimento do regime no seu
cinquentenário
As mensagens são claras: o governo da AD
governará com o programa da extrema-direita. Não são apenas os velhos e novos
fascistas que se vão reunindo e juntando forças, recuperando velhos princípios
e consignas, o governo já assumiu esses valores, quer na constituição do governo,
quer na nomeação de algumas figuras cinzentas disfarçadas de “independentes” e de
“tecnocratas”. O ministério da Cultura desapareceu, o Ensino Superior ficou
diluído no super-ministério da Educação, e o detentor do cargo é um conhecido
economista defensor do capitalismo selvagem e dos cortes permanentes dos
subsídios salariais aos trabalhadores. O ataque por parte da elite mais
conservadora contra os trabalhadores, começa pela cultura, os operários não
precisam de ser cultos, basta-lhes saber ler e escrever, e não devem receber
salários elevados. Em vez de bifes de lombo ou da vazia, comam hambúrgueres de
larva de gafanhoto. O salário sempre foi o preço da reprodução da força de
trabalho.
O ex-economista-chefe do BCP na secretaria de
estado do Orçamento diz bem sobre o papel deste governo quanto à Economia, um
braço do grande capital financeiro. O presidente da Associação Portuguesa de
Bancos e reformado do Banco de Portugal, com uma pensão de cerca de 6 mil
euros mensais aos 60 anos (2014), quando defendia que os trabalhadores deviam
trabalhar mais tempo para ajudar as “gerações mais entaladas”, já veio propor
algumas medidas para “desentalar” os patrões, redução do IRC para 15%, e os
bancos, exigindo reunião com o novo/velho governo da AD para acabar com o “excesso
da tributação extra”. Por outro lado, devemos salientar que a despesa pública
com o setor financeiro ascende a 24,6 mil milhões de euros (2010 a 2023), mais
de 9% do PIB (2023), e, só no ano passado, aumentou mais de 5,6% por causa da
Parvalorem (BPN) e do Novo Banco; ou seja, o maior aumento em três anos (dados
do INE). Com certeza que os bancos salivam por mais com este governo, o povo
pagará a conta no final, e se não for a bem, será a mal, como nos tem habituado
os governos com o PSD.
Se a nível interno é o que se vislumbra,
então, quanto a política externa, ficamos suficientemente esclarecidos. O novel
ministro dos Negócios Estrangeiros, colocando-se em bicos de pés e sem ter
ingerido qualquer bebida alcoólica, presumimos, inchou o peito e criticou "algumas hesitações" do anterior Governo sobre a adesão da Ucrânia à União
Europeia. A partir de agora, será sempre a bombar: quanto à Ucrânia e à guerra,
Bruxelas ou a Nato/Otan dizem “mata”, o governo da AD dirá logo “esfola”. O
regresso do serviço militar obrigatório (conscrição) está na ordem do dia, bem
como o aumento, para além dos 2% do PIB, das despesas militares, sobretudo em
armamento comprado aos EUA. Quanto à conscrição, a coisa irá ser feita com
alguma cautela, de forma gradual, porque é tema pouco popular, principalmente
entre a juventude. No entanto, na lógica do capitalismo, será considerada uma
boa medida, porque irá “acabar” com o desemprego enviando-se os jovens para a
guerra contra a Rússia. Não poderá ser para outro objectivo, já que Portugal
não está sob ameaça iminente de invasão militar.
A falácia do combate à corrupção
No momento em que escrevemos esta linhas decorre
no tribunal da Guarda um megaprocesso, mais um infindável, com 149 arguidos
acusados de fraude com fundos comunitários na compra de maquinaria agrícola,
envolvendo 136 testemunhas e 70 advogados. Lá para as calendas e se não houver
umas amnistias pelo meio e umas prescrições no fim (os arguidos eram em maior
número mas alguns já morreram) haverá um resultado previamente conhecido; os
factos ocorreram entre 2010 e 2013, há mais de 10 anos. Sabe-se que estas
fraudes com os fundos europeus superam os 70 milhões em apenas nos últimos três anos. Ora, com os cerca de 20 mil
milhões de euros só do PRR, mais uns 30 mil milhões de outros projectos até
2027, será o fartar vilanagem! E vem a ministra da Justiça aventar o diálogo
com os partidos sobre corrupção, quando todos eles se encontram metidos até aos
gorgomilos nas negociatas ou com elas pactuam. Só poderá estar a gozar!
Os governantes ao prometer mundos e fundos ao
eleitorado e, quando se vêm no governo, fazem o oposto, colocando em posição de
quatro patas perante os interesses dos diversos lóbis indígenas e os ditames de
Bruxelas, são isso mesmo, são políticos corruptos. Gente sem princípios que só
olha para o umbigo, o mais importante é o protagonismo ou/e a conta bancária, é
praticamente, e com raras excepções, o normal dentro dos vários governos que
têm gerido os interesses do capital em Portugal desde o 25 de Abril. E dentro
do actual governo há um pouco de tudo: desde um ex-ministro que assinou 300
despachos na última noite antes sair do governo beneficiando uns tantos grupos
de interesses privados, agora é secretário de estado; passando por um ex-presidente
de câmara a contas com a justiça por adjudicar serviços a uma empresa em
pré-falência, sem equipamentos nem funcionários, no último dia de mandato; ou
um ex-secretário de estado que propôs alteração à lei para facilitar a cunha da
filha de um então ministro que não tinha média para entrar na faculdade; até ao
actual ministro das Infraestruturas que está a ser investigado pela PJ quanto a corrupção na Câmara de Cascais e à campanha de candidatura à liderança do PSD, em 2020, quando era vice-presidente da autarquia.
O PSD para conquistar votos à direita e fazer
concorrência ao irmão da extrema-direita entendeu assumir como prioridade este
tema da corrupção, assim como outros, mas parece que vamos ter muitos casos e
casinhos se conseguir manter-se no governo durante algum tempo. Para além dos
ministros já com curriculum na praça e de conhecimento público, outros haverá
que prometem uma auspiciosa carreira. E um deles poderá ser a titular da pasta
da Saúde, que tudo fará para transformar o Serviço Nacional de Saúde em “Sistema”,
onde caibam todos na gamela, desde clínicas privadas a santa casas da
misericórdia, que pouca misericórdia terão com os nossos dinheiros. Esta
ministra, quando bastonária da Ordem dos Farmacêuticos e durante a pandemia,
geriu, juntamente com o então bastonário da Ordem dos Médicos e agora deputado
da Nação, mais de 1,3 milhões de euros provenientes da indústria farmacêutica,
utilizando uma conta pessoal. Será de esperar que o lóbi dos grandes
laboratórios farmacêuticas esteja neste momento a pular de contente, sabendo-se
que este ministério é um dos que mais dinheiro e interesses envolve. Será um
maná!
Programa sempre no interesse do grande
capital financeiro
Quando estávamos a finalizar esta crónica
ficou-se a saber da entrega do programa do governo à Assembleia da República,
não se conhecem pormenores, mas algumas “novidades”, que não espantam ninguém conhecendo-se
a matriz dos partidos que o constituem, já fizeram manchete. A mais notória é o
governo querer “revisitar” mudanças ao Código do Trabalho efectuadas pelo
governo do PS/Costa, que já foram em benefício do patronato, mas como este quer
mais haverá então de satisfazer a vontade e quanto antes: despedimentos mais
baratos, salários mais baixos e indexados à “produtividade”, como se esta dependesse
inteiramente dos trabalhadores e não da gestão da empresa ou de outros custos,
que não o custo trabalho. O SNS será reduzido a um “sistema” que permita aos
lóbis privados da saúde (doença) arrecadar lucros como de uma qualquer outra área
de actividade económica se tratasse. Os “peritos” do Livro Verde da
Sustentabilidade da Segurança Social, encomendado pelo governo PS, já vieram
propor algumas alterações ao sistema de pensões, no sentido de garantir a “sustentação”
da Segurança Social, ou seja, o velho mantra para que um dia destes os
dinheiros, descontados pelos trabalhadores durante uma vida inteira, sejam
entregues aos bancos e aos fundos de investimento privados. Entretanto os polícias,
professores e oficiais de justiça irão levar “música” para que o programa seja
aprovado no Parlamento.
O BE veio agora manifestar receio de o PS
querer fazer “abertura à direita” por aceitar reunião com aquela força política
só depois do debate de programa. O PCP já apresentara moção de rejeição ao
governo e obteve como “solidariedade” do PS a não votação desta moção. O PS irá
apresentar uma moção autónoma, irá abster-se, ninguém sabe. Mas conhecendo-se o
que aconteceu com a eleição da segunda figura do estado, será sempre de admitir
que, e apesar de o discurso de “esquerda” do actual chefe socialista, o PS tente
o suicídio ao assumir-se como muleta do governo AD; ou seja, uma de partido “responsável”
do regime, fazendo lembrar a hilariante “abstenção violenta, mas construtiva” do
pusilânime José Seguro, enquanto “líder” da oposição do governo pafioso de
Coelho/Portas, na negociação do OE-2012. Por vontade do PS, quase de certeza
que este governo irá durar para além de Dezembro e, muito possivelmente, até ao
fim do mandato. Terá sempre medo de ser penalizado em termos eleitorais pelo
facto de eventualmente ser acusado de responsável pelo derrube do governo e não
contribuir para a estabilidade, embora tenha sido vítima da desestabilização
levada acabo por toda a direita e sob o alto patrocínio do PR Marcelo, que até
condecorou o fundador da rede bombista que actuou durante o PREC mas sem que
ninguém soubesse.
Quanto à questão da duração do governo AD
dependerá somente da paciência dos trabalhadores e do povo português. Com certeza
que as medidas incluídas no programa da legislatura ou no Plano de Estabilidade 2024-28,
a ser apresentado na próxima segunda feira, irão desencadear uma resistência e
uma revolta directamente proporcionais ao prejuízo que tragam para a vida das
pessoas. E com uma agravante é que o PSD não possui a mesma arte do PS em
comprar a paz social.