quarta-feira, 28 de junho de 2023

Um Salário Justo Para Uma Jornada de Trabalho Justa

 

Friederich Engels, 1881

A propósito das recentes palavras da chefe do BCE (Banco Central Europeu) de "temos de assegurar que as expectativas de inflação permanecem ancoradas, perante o desenrolar do processo de convergência em alta dos salários".

 *

"Em vez do lema conservador: um salário justo para um dia de trabalho justo!, a classe operária tem que inscrever na sua bandeira a palavra de ordem revolucionária: Abolição do salariato!".

K. Marx, 1865 

Foi esta a palavra de ordem ("um salário justo para uma jornada de trabalho justa") do movimento da classe operária inglesa ao longo dos últimos cinquenta anos. Prestou inicialmente grandes serviços, na época em que os sindicatos retomavam a actividade depois da revogação, em 1824, da infame lei contra o direito de associação (1), depois melhores serviços ainda na época do glorioso movimento cartista (2), quando os operários ingleses marchavam à cabeça da classe operária da Europa.

Contudo, a história avança, e muitas coisas que eram desejáveis e úteis há 50 anos ou mesmo há 30 anos, agora envelheceram e passaram completamente de uso. Esta antiga e venerável palavra de ordem está nessa situação. (3) . Um salário justo para uma jornada de trabalho justa? Mas o que é um salário justo, e o que é uma jornada de trabalho justa? Como serão eles determinados pelas leis sobre que vive e se desenvolve a sociedade moderna? Para responder a esta pergunta, não devemos socorrer-nos da moral, do direito ou da equidade, nem mesmo dum qualquer sentimento de humanidade, de justiça, ou até de caridade. Com efeito, o que é equitativo do ponto de vista da moral, ou mesmo do direito, pode estar longe de o ser do ponto de vista social. Aquilo que, do ponto de vista social, é ou não justo é determinado por uma só ciência: a que trata dos factos materiais da produção e da distribuição, a ciência da economia política.

Ora, que significa um salário justo e uma jornada de trabalho justa para a economia política? Muito simplesmente a taxa de salário bem como a duração e intensidade de trabalho de um dia, tal como são determinados pela concorrência entre empresários e operários no mercado livre. E a que nível som fixados?

Em circunstâncias normais, um salário justo é a quantia necessária ao operário para adquirir os meios de subsistência necessários para o manterem em estado de trabalhar e propagar a sua espécie, em conformidade com as condições de vida do seu meio e do seu país. Segundo as flutuações da economia, o salário real está quer acima, quer abaixo dessa quantia; assim, nas condições justas, esta soma é a média de todas as oscilações.

Uma jornada de trabalho equitativa corresponde a uma duração e a uma intensidade da jornada de trabalho que absorve completamente a força de trabalho – de um dia – do operário sem afectar as suas faculdades de produzir, no amanhã e nos dias seguintes, a mesma quantidade de trabalho.

Consequentemente, a transacção pode descrever-se como se segue: o operário cede ao capitalista toda a sua força de trabalho, isto é, tudo o que pode dar sem tornar impossível a constante renovação da transacção; em troca, obtém precisamente a quantidade de meios de subsistência – e não mais – que lhe são necessárias para recomeçar cada dia o mesmo trabalho. O operário dá o máximo e o capitalista o mínimo daquilo que a natureza da transacção admite. Muito singular espécie de equidade esta!

Mas vejamos as coisas ainda um pouco mais de perto. Como, segundo os economistas, o salário e a jornada de trabalho som determinados pela concorrência, a equidade parece exigir que as duas partes desfrutem à partida de condições idênticas. Ora, nada disso se passa. Se não consegue entender-se com o operário, o capitalista pode permitir-se esperar, já que pode viver do seu capital. O operário não tem essa possibilidade. Para viver, tem apenas o seu salário, de modo que é obrigado a aceitar o trabalho quando, onde e como se lhe apresenta. O ponto de partida já não é equitativo para o operário. A fome representa para ele uma terrível desvantagem. Contudo aos olhos da economia política capitalista, isso é o cúmulo da equidade!  

Mas isso não é, de maneira nenhuma, essencial. A introdução dos meios mecânicos e do maquinismo nos ramos de novas indústrias, bem como a aplicação de máquinas mais aperfeiçoadas aos ramos já submetidos ao maquinismo, lançam cada vez mais operários para o desemprego, e isto processa-se a um ritmo bem mais rápido que aquele com que a indústria pode absorver e reempregar os braços tornados supérfluos. Esta mão-de-obra em excesso representa um autêntico exército de reserva para o capital. Quando os negócios são maus, os desempregados podem morrer de fome, mendigar, roubar ou ir para as prisões que som as Workhouses (casas de trabalho); quando som bons, constituem um reservatório que os capitalistas utilizam para aumentar a produção.

E enquanto o último homem, a última mulher e a última criança não tiver encontrado trabalho – o que só acontece nos momentos de superprodução desenfreada –, os salários são comprimidos pela concorrência deste exército de reserva, cuja simples existência assegura ao capital um acréscimo de poder na sua luta contra o trabalho. Na competição com o capital, a fome não é somente uma desvantagem para o trabalho, é uma verdadeira grilheta presa aos seus pés. E é a isto que a economia política burguesa chama equidade!

Vejamos agora com que paga o capital estes salários tão equitativos. Com capital evidentemente. No entanto, o capital não cria nenhum valor, já que, além da terra, o trabalho é a única fonte de riqueza. Com efeito, o capital acumula unicamente o produto do trabalho. Daqui decorre que os salários do trabalho são pagos com trabalho, sendo o operário remunerado com o produto do seu próprio trabalho.

Segundo o que habitualmente se chama equidade, o salário do operário deveria corresponder à totalidade do produto do seu trabalho, mas segundo a economia política isso não seria equitativo. Com efeito, o capitalista apropria-se do produto do trabalho do operário, e este não recebe mais do que lhe é necessário para continuar a subsistir. E o resultado desta concorrência tão "equitativa" é o produto daqueles que trabalham acumular-se invariavelmente nas mãos dos que não trabalham e nelas tornar-se a mais poderosa arma para reforçar a escravatura daqueles que som os únicos e verdadeiros produtores.

Que resta, portanto, do salário justo para uma jornada de trabalho justa? Haveria ainda muitas coisas a dizer sobre a jornada de trabalho justa que é também tão "justa" como o salário quotidiano. Mas deixaremos isso para outra vez. Mas, desde já, a conclusão é absolutamente clara para nós: a velha palavra de ordem fez a sua época, e actualmente já não resulta.

A equidade da economia política, tal como a determinam as leis gerais que regem a actual sociedade, só é completa para um dos lados: o do capital. É, portanto, preciso enterrar de uma vez para sempre essa velha fórmula e substitui-la por esta outra:

A classe operária deve, ela mesma, apropriar-se dos meios de trabalho, isto é, das matérias-primas, fábricas e máquinas.

NOTAS: 

A legislação contra as organizações dos trabalhadores proibia a criação e a actividade de toda e qualquer organização operária. Ela foi abolida por um acto do Parlamento em 1824, mas foi praticamente restabelecida em 1825 por novas leis sobre as associações. Estas consideravam como "abuso" e "violência" o recrutamento para a entrada nos sindicatos e a agitação para a participação numa greve, comparando-os a um delito criminal.

2- O cartismo foi o primeiro movimento revolucionário de massas da classe operária na história que eclodiu em Inglaterra nos anos 30 e 40 do século XIX. Os cartistas realizaram numerosos comícios e manifestações em todo o país que contaram com a participação de milhões de operários e demais trabalhadores.

3- Tal como afirmou Marx na sua comunicação nas sessões de 20 e 27 de Junho de 1865 do Conselho Geral da I Internacional, "Em vez do lema conservador: um salário justo para um dia de trabalho justo!, a classe operária tem que inscrever na sua bandeira a palavra de ordem revolucionária: Abolição do salariato!".

Escrito: 1-2 de Maio 1881. Sob o título "O Sistema de Trabalho Assalariado" foram ao longo dos anos editados os 11 artigos de Engels publicados no jornal londrino The Labour Standard em 1881.

Fonte. marxists.org

Imagem de destaque: A justiça nos salários (Ilustração: Samuel Casal)

terça-feira, 20 de junho de 2023

Na República das Bananas, fogos, assaltos e corrupção

 

Crónica escrita há meia dúzia de anos sobre os fogos de Pedrógão, o assalto ao paiol de Tancos, a corrupção e o mais correlacionado.

Os acontecimentos que ocorreram nos últimos dias mostram bem que vivemos numa espécie de república das bananas que revela, contudo, alguma polidez para se diferenciar das já conhecidas repúblicas da América Latina, já que estamos na União Europeia, um conjunto de países que bailam segundo a música germânica, uma velha Europa dita civilizada, mas que tem sido ela quem tem despoletado as guerras mais sangrentas que têm até agora flagelado o mundo.

Os fogos “inevitáveis”

Foram os incêndios que provocaram 64 mortes e cerca de 250 feridos, que ficarão sempre na memória colectiva, cuja origem ainda está para se apurar, e mais recentemente foi o assalto aos paióis nacionais do polígono militar de Tancos e cujas responsabilidades estão a ser atiradas para cima do PS, como se os restantes partidos do arco da governação, PSD e CDS, estivessem isentos de culpas, e não fosse este sistema económico capitalista, exclusivamente virado para o lucro, e o poder político da burguesia tida como democrática e liberal, em última instância, a causa de tudo o que aconteceu e ainda irá acontecer.

Não deixa de ser curioso que estas calamidades aconteçam no preciso momento em que as coisas relacionadas com a economia e as contas públicas estão a correr tão bem para o governo PS (acolitado por PCP e BE). É a saída do procedimento por défice excessivo, o défice reduziu para número já esquecido, assim como o desemprego (9,3% em Abril), e até o investimento e o PIB dispararam, e o FMI foi reembolsado antecipadamente em 1000 milhões de euros, levando aquela instituição do capitalismo internacional a rever em alta o PIB nacional e a considerar a meta do défice de 1,5% como perfeitamente atingível. E, imagine-se!, até a confiança dos consumidores voltou a crescer em Junho, chegando a valores que já não se viam há pelo menos 20 anos.

O assalto ao paiol de Tancos

Não deixa de ser hilariante ouvir dirigentes da esquerda e, com mais gravidade, de uma esquerda autodenominada de "comunista", considerar o roubo de material de guerra um facto de extrema gravidade para a segurança do país, como se o exército, e as forças armadas em geral, não fossem um exército burguês, reaccionário, constituído actualmente exclusivamente por mercenários, que serve única e exclusivamente para defender a elite que se encontra no poder. Que um reaccionário de extrema-direita, como é Ângelo Correia, até se entende, agora gente que se diz comunista, é obra! E diz bem do papel desempenhado por esta gente no campo de luta de classe em Portugal.

Ao longo da história, quando o país é invadido, as elites e os chefes das forças armadas permanentes, estes pelo menos na sua maioria, ou desertam ou bandeiam-se para o lado do inimigo, sendo depois o povo, com ou sem ajuda estrangeira, a organizar a defesa do país. Foi assim no reinado de D. Fernando, com a invasão do rei de Leão; foi assim depois da morte deste rei, tendo depois a burguesia ascendente sobe a chefia de D. João a lutar pela independência; foi assim em 1580, com a perda da dita; foi assim com as invasões francesas, a corte desertou apavorada para o Brasil, deixando pela rua enormes riquezas que foram saqueados pelo povo.

A corrupção

Um dos papéis do PS quando está no governo é ou completar os mesmos negócios iniciados pelo PSD/CDS quando estes estão no governo e não tiveram tempo, como aconteceu com o contrato SIRESP, ou é iniciar outros negócios de que a direita vai beneficiar mais tarde, e então é ver figurões saltarem do conselho de administração de empresas para pastas ministeriais, facilitando os negócios das ditas com o estado, e depois voltarem para os mesmos conselhos de administração, estando o assalto consumado. Desta feita, foram 500 milhões de euros e o PS mais tarde conseguiu um descontozinho, "poupou" umas migalhas ao erário público – normalmente é esse o seu papel de regularização das negociatas.

Não é espanto para ninguém que o PS venha agora dizer que não houve "mão humana" no desaparecimento da informação dos 10 mil milhões que foram para off-shores, foi mais outra "falha informática", exactamente quando o secretário de estado da tutela era advogado que já trabalhava para os capitalistas com especial tentação para a fuga aos impostos, mostrando-lhes a melhor maneira de enganar o estado, regressando depois ao mesmo ofício quando deixou o governo. PS e PSD são as faces da mesma moeda e é fácil perceber porquê, sem necessidade de grandes explicações, é o bloco central de interesses instituído há mais de 40 anos.

Veio também a saber-se que o governo PS/Costa ilibou o SIRESP de qualquer responsabilidade quanto às falhas no incêndio de Pedrógão Grande (todo o Pinhal Interior), entretanto os acionistas distribuíram entre si 13 milhões de euros de dividendos e irão receber mais uns 200 milhões; se o sistema de comunicações da dita "Protecção Civil" não falhou, esta pela lógica também não terá falhado, e até o presidente Marcelo afirmou sem rebuço que "não era possível fazer mais".

A “conspiração” contra o governo PS

Parece que há um complô contra o PS ou, também é válida a hipóteses, o PS só serve para acudir nos momentos difíceis, não exactamente para o país ou para o povo português, mas para o capitalismo nacional e a burguesia parasitária que dele se alimenta e é razão da sua (dela, burguesia) existência. As interrogações irão persistir por muito tempo: afinal, quem é que deitou fogo ao eucaliptal e quem e como assaltou o paiol (que obviamente deveria estar vigiado 24 horas por dia por soldados armados, como no velho tempo da guerra colonial)?

Ah!, quanto ao assalto ao paiol (quase que faz lembrar os filmes de Bruce Willis), o supremo magistrado da Nação, o comandante em chefe das forças armadas, diz que "ainda não é o momento" de falar sobre o assunto. Com um homem de extrema-direita (sorridente e cheia de afectos) no cargo de PR, é natural que a extrema-direita nas Forças Armadas ponha as garras de fora, descontente com a “gestão política” das supra-citadas. Este incidente faz-nos lembrar um análogo, que ocorreu no tempo do governo PS/Guterres, com o Alberto Costa como ministro da Administração Interna, que o opôs ao comandante nacional da PSP, um general retintamente fascista, que passou à provocação ao governo com a repressão desmedida sobre os trabalhadores de uma empresa têxtil, em vias de encerramento do Norte.

Um outro caso foi a morte de um dos delinquentes em consequência dos disparos dos polícias que já estavam à espera de um assalto a uma ourivesaria em Évora, se não estamos em erro, um assalto que teve a particularidade de ter sido morto, ao que parece, o bufo da PSP e autor da ideia do assalto (era o que corria nos bastidores políticos, na altura); o fascista general acabou por ser demitido, mas tarde, após muito conciliação. Seria interessante conhecer as verdadeiras razões que estão por detrás do pedido insistente da demissão dos ministros da Defesa e da Administração Interna, para além de se querer arranjar problemas ao Costa e forçar a sua demissão.

Para além das aparentes "tramóias" (com ou sem aspas) feitas ao PS dos incêndios e do furto de algumas toneladas de armamento (que só poderia acontecer com a colaboração de gente de dentro e bem colocada, atendendo a que se trata de algumas toneladas que não passam discretamente pelo buraco da rede, a exoneração dos cinco responsáveis militares só vem confirmar a suspeita), o governo PS/Costa até está bem, apesar do pedido da demissão dos dois ministros em causa feito pela oposição de direita e pelo "grande educador", ainda ressabiado com o Costa; segundo as sondagens, Costa não sai chamuscado e a possibilidade de ganhar as eleições mantém-se.

PSD/CDS não sabem o que fazer para descredibilizar o governo: ora, inventam quedas de avião; ora, arranjam uns suicídios ou uns parassuicídios internados em hospital qualquer; ora, escandalizam-se com o roubo do armamento, querendo dar a entender que eles nunca foram governo e se fossem agora nada disto teria acontecido – uns farsantes da pior espécie. Enquanto esta oposição se enreda cada vez mais nas suas contradições e é ela própria que se vai descredibilizando, assiste-se a uns arremedos de greves, como acontece no início deste mês, com a dita "recusa" dos enfermeiros especialistas ou especializados em prestar serviço especializado na sua área, blocos de partos e saúde mental. Uma greve inventada pelo PSD/bastonária do Ordem dos Enfermeiros (com a Ordem arvorada em entidade sindical), depois dos dois sindicatos afectos à UGT/PSD terem, há algum tempo, decretada uma greve de zelo (!?). Uma paródia a que desta vez os sindicatos da CGTP não aderiram.

PS e PSD, as duas faces da mesma moeda

O PS não difere em nada do PSD/CDS, excepto no estilo e no discurso, porque a política é a mesma e com um único objectivo: bem gerir os negócios do capital, assegurando que o estado, que não é neutro, cumpre bem a missão de os defender e promover, para além de simultaneamente garantir a sua função repressiva. São ilustrativas as palavras do ministro da Agricultura (parece que o homem tem lugar cativo no cargo sempre que o PS é governo, terá alguma avença da Celbi, empresa de que Pinto Balsemão é accionista?), o PS não está contra o eucalipto (pouco tempo antes fora aprovado concurso de 9 milhões de euros para o eucaliptal, de um total de 27 milhões para a dita floresta industrial), quer sim é uma melhor gestão da floresta, mais concretamente, “queremos ter mais metros cúbicos de eucalipto para alimentar as celuloses, que são fundamentais para o país, mas na mesma área”.

Resumindo, o PS quer uma melhor gestão do capitalismo, de preferência com algum "rosto humano", traduzido pela restituição de uma pequena, senão pequeníssima, parcela do que foi retirado aos trabalhadores. O PSD vai mais à bruta, não está com subtilezas nem com rodriguinhos, daí defender que o eucalipto não contribui para o aumento dos incêndios já que, na sua douta-ignorante opinião, é uma árvore que custa a arder e fácil de apagar quando incendiada (não se trata de patologia de mentiroso compulsivo, mas de canalha sem o mínimo de escrúpulos para mostrar que ele e o seu partido são os mais eficientes na gestão da acumulação capitalista). Existe entre estes dois partidos quanto muito uma diferença de grau, ou seja, PS = capitalismo com regras (com vaselina), PSD/CDS = capitalismo sem freio (sem vaselina). No fundo, a mesma coisa.

3 de Julho 2017 

terça-feira, 13 de junho de 2023

A desunião nacional e os cartazes racistas

 

in 24sapo.pt

No passado dia 10 de junho comemorou-se mais um dia da pátria, das comunidades, uma versão soft do antigo dia da raça; no fim, será tudo o mesmo porque se enaltece um regime, uma elite e um sistema de produção económica. A comemoração não é asséptica nem supraclassista, apesar de se encher a boca de “união nacional”, com a diferença de que este ano o Marcelo PR avançou com a ideia de se cortar “os ramos mortos” da árvore, que será o governo – o espírito do antigamente de “quem não é por nós, é contra nós”, agora revisitado, revela que o slogan da “união”, mesmo dentro da elite, não é mais do que isso, um slogan.

Provocador que não gosta de ser provocado

As novidades a salientar destas comemorações serão algumas: a necessidade de se cortar a cabeça ao ministro Galamba, falamos em termos metafóricos, manifestada pelo inefável Marcelo, que mais tarde não teve a coragem de assumir a quem especificamente se dirigia; a irritação de Costa com os cartazes empunhados por um grupos de professores que o retratavam com focinho de porco, figura corriqueiramente usada para retratar o capitalismo ou quem servilmente lhe presta favores, ao mesmo tempo que mandava calar a mulher que, mais papista que o papa, vituperava os antigos colegas de profissão; a provocação de Costa a Marcelo ao levar consigo o ministro de quem se pede a cabeça. Costa gosta de provocar, mas arma-se em virgem ofendida ao ver-se retratado em cartazes satíricos. Mal estaremos se a sátira e a crítica forem proibidas ou limitadas, chegaram 48 anos de censura e de repressão.

Se levarmos a coisa à risca, como Costa faz para o seu lado, então, a caricatura será branda de mais. E vendo bem a caricatura não tem nada de especial se comparada com outras onde os traços fisionómicos de homem não caucasiano são caricaturalmente exagerados, faça-se a revisão de desenhos dos principais caricaturistas nacionais, por exemplo, Vasco Gargalo ou Henrique Monteiro. O alegado “racismo” invocado, e talvez sugerido pelos spin doctors de serviço, enquadra-se naquilo que as elites têm vindo a colocar na prática, a cultura wooke. Quem ousa atacar o autoritarismo leva com o “racismo” ou o “fascismo” em cima, já se tenta identificar o S.TO.P. e os manifestantes com o Chega, quem ousa criticar algumas bizarrias da comunidade LGBT é rotulado de “homofóbico”, quem ousa denunciar o sionismo leva com o “anti-semitismo” na cabeça, e por aí fora. É o “politicamente correcto” a encobrir um fascismo brando que se vai instalando insidiosamente.

 

"O Salvador" - henricartoon

A manifestação com os cartazes, assunto que ainda irá fazer correr muitos rios de tinta, foi de imediato considerada de “excessiva”, de “mau gosto”, “insultuosa”, “inaceitável”, “racista”, “grotesca”, “inqualificável”, “sátira que se aproveita das características físicas” (disse uma comentadeira ex-ministra que por sinal tem mais de diâmetro do que altura), “radical”, “perigosa”, porque coloca em perigo a “nossa” democracia. E só citamos alguns dos adjectivos usados por alguns paineleiros políticos avençados que, estranhamente, se têm desunhado até agora em criticar o governo. Esquecem-se que já houve manifestações bem piores, em tempos do governo pafioso, onde se agitou um coelho morto pendurado num pau, mas agora parece que ninguém se lembra.

Não deixa de ser interessante observar que a grande maioria dos media corporativos, exactamente aqueles que mais se têm distinguido na exigência da demissão do ministro e da remodelação/demissão do governo, tomem por suas as dores do Costa quanto à manifestação dos professores e dos “horrendos” cartazes. Até o moço de recados do presidente que opina na SIC esteve de acordo na crítica aos cartazes. Será uma relação de amor e ódio. Deitar abaixo o governo mas manter incólume o regime, contudo há o perigo de juntamente com a água do banho lançar fora a criança.

A musculação do regime

Logo que Costa se irritou, o professor/caricaturista maldito foi de imediato investigado em termos inquisitoriais pelos media de referência, a fim de se saber quem é, o que faz e onde mora. Muito provavelmente a esta hora estará com a sua vida particular a ser devassada e a ser minuciosamente vigiado pelo SIS, porque, ao contrário do que muita boa gente pensa, a PIDE não acabou depois do 25 de Abril, só se tornou mais civilizada e moderna. Por enquanto, não prende, mas não faltará muito, basta que os trabalhadores se deixem de hesitações e ousem lutar de forma consequente pelas suas mais que justas reivindicações. A economia está em crise e não há dinheiro disponível, a não ser para a acumulação capitalista, para fazer face à contagem do tempo perdido pelos professores e por outras categorias profissionais da administração pública, ou pelo aumento geral dos salários acima da taxa de inflação. O tempo das lutas fofinhas já passou.

A partir de agora, os professores devem contar com a repressão aberta por parte do governo, que depressa irá abandonar a cenoura e as falinhas mansas para usar o cacete. O anátema de “racismo” foi o mote para mobilizar alguma opinião pública contra os professores e dividir a classe isolando a facção mais determinada na luta e que poderá ser representada pelo grupo que ousou afrontar o governo e a pessoa do Costa. Marcelo até já veio dar uma ajudinha, na sua táctica dúplice e pérfida, declarando que “não ofende quem quer, só quem pode”. Mais uma vez Costa mostra a face, pouco oculta, de autoritarismo do PS que, caso seja necessário ou receba ordens de Bruxelas, não se coibirá, e muito menos ficará com peso na consciência, de se arvorar em governo autocrático. Relembremos que foi a social democracia (SPD, patrocinou e financiou a criação do PS) que na República de Weimar esmagou o movimento operário e ordenou o assassínio de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht.

Costa e o seu PS já se disponibilizaram a levar a cabo este processo de musculação da democracia parlamentar, vamos ver o que sairá da revisão constitucional que se encontra neste momento na forja, e a dúvida estará na questão se merecem ou não a confiança da classe dominante nacional, visceralmente retrógrada e reaccionária, na capacidade de levar a tarefa a bom porto, é que o nome de “socialista” faz arrepiar muitos burgueses saudosos da escravatura a que os trabalhadores estavam remetidos antes do 25 de Abril. A confiança manifestada por Bruxelas talvez não seja suficiente. É que tempestades se avizinham.

Ao contrário do que Costa se ufana, os positivos índices macro-económicos nacionais não se reflectem nem na vida nem nos bolsos da maioria dos portugueses, incluindo uma grande parte da classe média, e os números estão aí, recolectados em sondagem, mesmo que feita em amostra um pouco enviesada e a mando de quem foi: “os portugueses estão insatisfeitos”: 91% quanto aos impostos; 90% em relação à distribuição da riqueza; 88% quanto à crise da habitação; 87% no que concerne ao combate à corrupção; 76% quanto à falta de progressão nas carreiras; 74% no que diz respeito à qualidade do SNS. Se recorremos a outros dados colhidos por Eugénio Rosa, a realidade não melhora: a quebra das remunerações médias líquidas dos trabalhadores das administrações públicas é de -14,6%, entre 2011 e 2023. A situação dos trabalhadores do estado dá em larga medida o retrato dos trabalhadores do país em geral.

Voltando às comemorações do 10 de Junho de este ano, os apelos à “união nacional” dirigem-se ao povo que trabalha, no sentido de se unir a quem o explora, ideia que colherá quanto muito entre a diáspora portuguesa, alguma classe média ou então uma pequena minoria de fascistas saudosos. As bicadas de Marcelo e as provocações de Costa são a evidência que nem a elite se encontra unida. Fica-nos a dúvida sobre quem quer, concretamente, que Galamba seja escorraçado do governo, porque o homem até já deu boas provas de bem servir os lóbis ligados à dita “renovação energética”, hidrogénio e lítio?! São 55 mil milhões de euros que chegarão de Bruxelas até 2027 a disputar. Serão cem cães atrás do osso, o PSD e anexos IL e Chega também quererão enfiar a mão no pote. Como poderá haver união?

"O náufrago" in CM - Vasco Gargalo

E finalmente, não deixa de ser enternecedor ver o sindicalismo colaboracionista e “responsável”, ao cabo e ao resto igualmente fofinho, vir em socorro do primeiro Costa, carpindo pela honra ferida de uma “pessoa de bem”, mas que pouco se importa que os portugueses estejam pior, sem médico de família, sem escola pública de qualidade e sem dinheiro suficiente para pagar a prestação ou a renda da casa, ou para colocar comida na mesa. Se havia alguma dúvida, os professores ficarão daqui em diante esclarecidos ao que andam na realidade estes sindicalistas profissionais, com certeza que não é a defender os interesses da classe; outros interesses ligados ao establishment falarão mais alto, nem que seja o seu modo de vida desligado do trabalho.

Outros sindicalismos, outros partidos e novos rumos são necessários.

sexta-feira, 9 de junho de 2023

Os Relvas e os genros do Silva

 

"O Pesadelo do Relvas" in "Henricartoon"

(Foi há 10 anos…)

Apresentamos estes dois exemplos, como poderiam ser outros dois quaisquer, para ilustrar como em Portugal há dois mundos, dois países e nem tudo é povo trabalhador e sacrificado. Relvas e genros do Silva são duas formas de subir na vida e dão bem a ideia como se formou a classe de emergentes, de novos-ricos paridos por este regime de democracia pós-25 de Abril.

Relvas representa os oportunistas que fazem carreira na política, gente sem profissão e que para dourar o curriculum compram o canudo numa universidade privada, e que sairão da política só depois de ricos: Duarte Limas há vários e são paradigmáticos.

A outra espécie é constituída por exemplares que singram no mundo dos negócios, não vão para a política, mas valem-se das relações familiares e também partidárias para alcançar o sucesso através de negócios chorudos feitos com e à custa do estado. O espécimen mais na moda por estar na ribalta mediática é o “empresário de eventos”, uma nova e rentável área de enriquecimento descoberta pós-25 de Abril, por sinal, genro do senhor Silva de Boliqueime.

O outro mundo, lutando pela sobrevivência, é um povo que trabalha e que produz para os primeiros, sacrificado pelas políticas de austeridade para salvar a economia de exploração capitalista; um povo a empobrecer a olhos vistos como se pode comprovar pelas estatísticas oficiais: entre 2009 e 2010, o Coeficiente de Gini, que mede o nível de desigualdade existente num país, aumentou de 33,7% para 34,2%; o número de vezes que o rendimento dos 10% mais ricos da população é superior ao rendimento dos 10% mais pobres da população passou de 9,2 vezes para 9,4 vezes. Em 2012 a situação é francamente pior!

O maçon Relvas gastou em 2006, quando ainda era presidente da Assembleia Municipal de Tomar, 4 mil euros em chamadas pagas pela autarquia, cujo défice vai em 39 milhões de euros. Em todo o tempo em que ocupou aquele cargo gastou 26.463 euros em chamadas por telemóvel, pagas por todos nós, quanto não terá sido o montante das restantes prebendas inerentes ao cargo?

Assim também se compreende como as autarquias se endividaram e quem beneficiou e continua a beneficiar da dívida pública, que agora querem que seja paga por quem não contribuiu para ela nem dela beneficiou. Foram os Relvas quem sempre viveu e continua, pelos vistos, a viver acima das possibilidades do país que trabalha. Dois mundos completamente antagónicos. Este exemplo simples, mas bem expressivo quanto à forma como funciona o estado burguês e capitalista, é claro quanto há questão de que não pode haver conciliação, como bem pretende um BE, quanto à resolução da crise: para um mundo sobreviver o outro terá forçosamente de ser destruído.

A outra camarilha, que vive em simbiose com os Relvas, mama do estado de forma mais subtil e até menos comprometedora, já que não ocupa cargos públicos e utiliza aqueles como intermediários. No caso concreto, o empresário de sucesso, que se encontra endividado perante o próprio estado, acaba de fazer um negócio da China, comprando um equipamento público que custou perto de 50 milhões por pouco mais de 21 milhões de euros; o que se pode dizer, uma autêntica pechincha!

Não deixa de ser curioso, por outro lado, que no negócio esteja metido o BES, o banco omnipresente em todos os negócios que prejudicam o erário público; anteriormente foi o caso, agora investigado pela polícia, da privatização da participação pública na EDP e da REN. O equipamento em causa, o Pavilhão Atlântico, foi vendido ao preço da uva mijona, mas para disfarçar a vigarice, o próprio governo dirigiu o processo, abrindo-o à oferta pública e entregando o presente à quem ofereceu melhor preço.

in "Henricartoon"

Tudo aparentemente legal e transparente, mas sabendo-se como funcionam os cambalachos quando se trata de concursos públicos, fica-se esclarecido. E ficamos mais esclarecidos quanto ao perfil do comprador (cuja identidade empresarial difere da pessoal, convém esclarecer): deve ao fisco; tem processos pendentes em tribunal por dívidas, mas é genro do senhor Silva de Boliqueime. Ainda antes da polícia investigar os meandros do negócio, o empresário de sucesso venderá a sua posição por bom dinheiro, estando aí o ganho e não exactamente na exploração do equipamento que, ao que parece, até dá lucro.

O outro mundo que convive forçadamente (esclareça-se também) com este da vigarice e do compadrio, são as listas negras de portugueses que não pagam as suas contas da luz e de gás. O governo fascista e lacaio PSD/CDS/PP comprometeu-se a criar uma lista negra para o povo “caloteiro” cujas dívidas de electricidade ou gás ultrapassem os 75 euros. Uma provocação, um serviço de pide e de lacaio prestado por um governo bandalho (para já não nos lembramos de adjectivo mais adequado) ao serviço dos grandes capitalistas. Mas em outro país que não este dos devedores de 75 euros, a chefia da EDP, constituída por 7 magníficos gestores, mete ao bolso 6 milhões de euros por ano; e a Galp, beneficiando da liberalização do preço dos combustíveis, arrecada 178 milhões de euros de lucros neste primeiro semestre do ano. Afinal, quem são os ladrões e os verdadeiros caloteiros?

A distância entre os dois mundos não pára de aumentar: «a diferença entre os ricos e os pobres está a aumentar no país: os ricos estão a tornarem-se mais ricos, e os pobres, que constituem a maioria da população portuguesa, recebem uma parte cada vez menor do rendimento produzido no país. Entre 2009 e 2010, o Coeficiente de Gini, que mede o nível de desigualdade existente num país, aumentou de 33,7% para 34,2%; o número de vezes que o rendimento dos 20% mais ricos da população é superior ao rendimento dos 20% mais pobres subiu de 5,6 para 5,7 vezes; e o número de vezes que o rendimento dos 10% mais ricos da população é superior ao rendimento dos 10% mais pobres da população passou de 9,2 vezes para 9,4 vezes. A tendência de agravamento das desigualdades no nosso país é clara, e tenha-se presente que a situação piorou depois de 2010 com a política de austeridade violenta e iníqua que está a ser imposta aos portugueses.» São os dados do INE que revelam a outra realidade.

Estes dois mundos são incompatíveis, um deles terá forçosamente por perecer para o outro sobreviver. Não há possibilidade de conciliação nem existe meio termo.

Os Bárbaros
31 de Julho 2012