quarta-feira, 28 de junho de 2023

Um Salário Justo Para Uma Jornada de Trabalho Justa

 

Friederich Engels, 1881

A propósito das recentes palavras da chefe do BCE (Banco Central Europeu) de "temos de assegurar que as expectativas de inflação permanecem ancoradas, perante o desenrolar do processo de convergência em alta dos salários".

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"Em vez do lema conservador: um salário justo para um dia de trabalho justo!, a classe operária tem que inscrever na sua bandeira a palavra de ordem revolucionária: Abolição do salariato!".

K. Marx, 1865 

Foi esta a palavra de ordem ("um salário justo para uma jornada de trabalho justa") do movimento da classe operária inglesa ao longo dos últimos cinquenta anos. Prestou inicialmente grandes serviços, na época em que os sindicatos retomavam a actividade depois da revogação, em 1824, da infame lei contra o direito de associação (1), depois melhores serviços ainda na época do glorioso movimento cartista (2), quando os operários ingleses marchavam à cabeça da classe operária da Europa.

Contudo, a história avança, e muitas coisas que eram desejáveis e úteis há 50 anos ou mesmo há 30 anos, agora envelheceram e passaram completamente de uso. Esta antiga e venerável palavra de ordem está nessa situação. (3) . Um salário justo para uma jornada de trabalho justa? Mas o que é um salário justo, e o que é uma jornada de trabalho justa? Como serão eles determinados pelas leis sobre que vive e se desenvolve a sociedade moderna? Para responder a esta pergunta, não devemos socorrer-nos da moral, do direito ou da equidade, nem mesmo dum qualquer sentimento de humanidade, de justiça, ou até de caridade. Com efeito, o que é equitativo do ponto de vista da moral, ou mesmo do direito, pode estar longe de o ser do ponto de vista social. Aquilo que, do ponto de vista social, é ou não justo é determinado por uma só ciência: a que trata dos factos materiais da produção e da distribuição, a ciência da economia política.

Ora, que significa um salário justo e uma jornada de trabalho justa para a economia política? Muito simplesmente a taxa de salário bem como a duração e intensidade de trabalho de um dia, tal como são determinados pela concorrência entre empresários e operários no mercado livre. E a que nível som fixados?

Em circunstâncias normais, um salário justo é a quantia necessária ao operário para adquirir os meios de subsistência necessários para o manterem em estado de trabalhar e propagar a sua espécie, em conformidade com as condições de vida do seu meio e do seu país. Segundo as flutuações da economia, o salário real está quer acima, quer abaixo dessa quantia; assim, nas condições justas, esta soma é a média de todas as oscilações.

Uma jornada de trabalho equitativa corresponde a uma duração e a uma intensidade da jornada de trabalho que absorve completamente a força de trabalho – de um dia – do operário sem afectar as suas faculdades de produzir, no amanhã e nos dias seguintes, a mesma quantidade de trabalho.

Consequentemente, a transacção pode descrever-se como se segue: o operário cede ao capitalista toda a sua força de trabalho, isto é, tudo o que pode dar sem tornar impossível a constante renovação da transacção; em troca, obtém precisamente a quantidade de meios de subsistência – e não mais – que lhe são necessárias para recomeçar cada dia o mesmo trabalho. O operário dá o máximo e o capitalista o mínimo daquilo que a natureza da transacção admite. Muito singular espécie de equidade esta!

Mas vejamos as coisas ainda um pouco mais de perto. Como, segundo os economistas, o salário e a jornada de trabalho som determinados pela concorrência, a equidade parece exigir que as duas partes desfrutem à partida de condições idênticas. Ora, nada disso se passa. Se não consegue entender-se com o operário, o capitalista pode permitir-se esperar, já que pode viver do seu capital. O operário não tem essa possibilidade. Para viver, tem apenas o seu salário, de modo que é obrigado a aceitar o trabalho quando, onde e como se lhe apresenta. O ponto de partida já não é equitativo para o operário. A fome representa para ele uma terrível desvantagem. Contudo aos olhos da economia política capitalista, isso é o cúmulo da equidade!  

Mas isso não é, de maneira nenhuma, essencial. A introdução dos meios mecânicos e do maquinismo nos ramos de novas indústrias, bem como a aplicação de máquinas mais aperfeiçoadas aos ramos já submetidos ao maquinismo, lançam cada vez mais operários para o desemprego, e isto processa-se a um ritmo bem mais rápido que aquele com que a indústria pode absorver e reempregar os braços tornados supérfluos. Esta mão-de-obra em excesso representa um autêntico exército de reserva para o capital. Quando os negócios são maus, os desempregados podem morrer de fome, mendigar, roubar ou ir para as prisões que som as Workhouses (casas de trabalho); quando som bons, constituem um reservatório que os capitalistas utilizam para aumentar a produção.

E enquanto o último homem, a última mulher e a última criança não tiver encontrado trabalho – o que só acontece nos momentos de superprodução desenfreada –, os salários são comprimidos pela concorrência deste exército de reserva, cuja simples existência assegura ao capital um acréscimo de poder na sua luta contra o trabalho. Na competição com o capital, a fome não é somente uma desvantagem para o trabalho, é uma verdadeira grilheta presa aos seus pés. E é a isto que a economia política burguesa chama equidade!

Vejamos agora com que paga o capital estes salários tão equitativos. Com capital evidentemente. No entanto, o capital não cria nenhum valor, já que, além da terra, o trabalho é a única fonte de riqueza. Com efeito, o capital acumula unicamente o produto do trabalho. Daqui decorre que os salários do trabalho são pagos com trabalho, sendo o operário remunerado com o produto do seu próprio trabalho.

Segundo o que habitualmente se chama equidade, o salário do operário deveria corresponder à totalidade do produto do seu trabalho, mas segundo a economia política isso não seria equitativo. Com efeito, o capitalista apropria-se do produto do trabalho do operário, e este não recebe mais do que lhe é necessário para continuar a subsistir. E o resultado desta concorrência tão "equitativa" é o produto daqueles que trabalham acumular-se invariavelmente nas mãos dos que não trabalham e nelas tornar-se a mais poderosa arma para reforçar a escravatura daqueles que som os únicos e verdadeiros produtores.

Que resta, portanto, do salário justo para uma jornada de trabalho justa? Haveria ainda muitas coisas a dizer sobre a jornada de trabalho justa que é também tão "justa" como o salário quotidiano. Mas deixaremos isso para outra vez. Mas, desde já, a conclusão é absolutamente clara para nós: a velha palavra de ordem fez a sua época, e actualmente já não resulta.

A equidade da economia política, tal como a determinam as leis gerais que regem a actual sociedade, só é completa para um dos lados: o do capital. É, portanto, preciso enterrar de uma vez para sempre essa velha fórmula e substitui-la por esta outra:

A classe operária deve, ela mesma, apropriar-se dos meios de trabalho, isto é, das matérias-primas, fábricas e máquinas.

NOTAS: 

A legislação contra as organizações dos trabalhadores proibia a criação e a actividade de toda e qualquer organização operária. Ela foi abolida por um acto do Parlamento em 1824, mas foi praticamente restabelecida em 1825 por novas leis sobre as associações. Estas consideravam como "abuso" e "violência" o recrutamento para a entrada nos sindicatos e a agitação para a participação numa greve, comparando-os a um delito criminal.

2- O cartismo foi o primeiro movimento revolucionário de massas da classe operária na história que eclodiu em Inglaterra nos anos 30 e 40 do século XIX. Os cartistas realizaram numerosos comícios e manifestações em todo o país que contaram com a participação de milhões de operários e demais trabalhadores.

3- Tal como afirmou Marx na sua comunicação nas sessões de 20 e 27 de Junho de 1865 do Conselho Geral da I Internacional, "Em vez do lema conservador: um salário justo para um dia de trabalho justo!, a classe operária tem que inscrever na sua bandeira a palavra de ordem revolucionária: Abolição do salariato!".

Escrito: 1-2 de Maio 1881. Sob o título "O Sistema de Trabalho Assalariado" foram ao longo dos anos editados os 11 artigos de Engels publicados no jornal londrino The Labour Standard em 1881.

Fonte. marxists.org

Imagem de destaque: A justiça nos salários (Ilustração: Samuel Casal)

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