quarta-feira, 30 de novembro de 2022

O lícito, o obrigatório e o proibido

 

Giorgio Agamben

Segundo juristas árabes, as ações humanas são classificadas em cinco categorias, que eles listam da seguinte forma: obrigatórias, recomendáveis, lícitas, repreensíveis, proibidas. O proibido opõe-se ao obrigatório, ao que merece louvor ao que deve ser reprovado. Mas a categoria mais importante é aquela que está no centro e que constitui, por assim dizer, o eixo da balança que pesa as ações humanas e mede sua responsabilidade (a responsabilidade se chama “peso” na linguagem jurídica árabe). Se o que é louvável, cuja prática é recompensada e cuja omissão não é proibida, e o que é condenável, cuja omissão é recompensada e cuja prática não é proibida, o lícito é aquilo sobre o qual a lei não pode deixar de permanecer em silêncio e, portanto, não é nem obrigatório nem proibido, nem louvável nem condenável. Corresponde ao estado paradisíaco, em que as ações humanas não produzem nenhuma responsabilidade, não são de forma alguma “pesadas” pela lei.
Na sociedade em que vivemos, está acontecendo exatamente o contrário. A zona do lícito diminui a cada dia e uma hipertrofia normativa sem precedentes tende a não deixar nenhuma área da vida humana fora da obrigação e da proibição. Gestos e hábitos que sempre foram considerados indiferentes à lei são agora meticulosamente regulamentados e pontualmente sancionados, a ponto de quase não haver esfera do comportamento humano que possa ser considerada simplesmente lícita. Razões de segurança inicialmente não identificadas e depois, cada vez mais, razões de saúde tornaram obrigatória a autorização para a prática dos atos mais habituais e inocentes, como andar na rua, entrar em locais públicos ou deslocar-se ao local de trabalho.

Uma sociedade que restringe a tal ponto o âmbito paradisíaco de condutas não ponderadas pela lei não é apenas, como acreditavam os juristas árabes, uma sociedade injusta, mas é verdadeiramente uma sociedade inviável, na qual toda ação deve ser burocraticamente autorizada e juridicamente sancionada e a facilidade e a liberdade dos costumes, a doçura das relações e das formas de vida vão-se reduzindo até desaparecerem. Além disso, a quantidade de leis, decretos e regulamentos é tal que não só torna-se necessário recorrer a especialistas para saber se determinada ação é lícita ou proibida, como também os responsáveis ​​pela aplicação das regras se confundem e se contradizem entre si.

Em tal sociedade, a arte da vida só pode consistir em reduzir ao mínimo a parte do obrigatório e do proibido e, inversamente, em alargar tanto quanto possível o âmbito do lícito, o único em que senão a felicidade, pelo menos uma alegria se torna possível. Mas é justamente isso que os infelizes que nos governam fazem de tudo para impedir e dificultar, multiplicando as regras e regulamentos, controles e fiscalizações. Até que a máquina sombria que eles construíram desmorona sobre si mesma, emperrada pelas mesmas regras e pelos mesmos dispositivos que deveriam permitir seu funcionamento.

28 de novembro de 2022

quodlibet

terça-feira, 22 de novembro de 2022

Anti-Dühring - Economia Política: Teoria da Violência (conclusão)

 

Friederich Engels

Paralelamente a este processo de formação de classes, ainda um outro se desenvolvia. O regime elementar de divisão do trabalho, implantado no seio da família lavradora, permitiu, ao ser atingido, um certo grau de bem-estar, a incorporação à família de uma ou várias forças de trabalho alheias à ela. Isso se deu, sobretudo, naqueles países em que o regime primitivo de propriedade do solo já se tinha desagregado, ou, pelo menos, tinha cedido lugar o sistema de exploração em comum ao cultivo individual das lotes de terra, pelas famílias isoladamente. A produção tinha-se desenvolvido em tais proporções que, então, a força humana de trabalho já era capaz de criar mais do que o necessário para o seu mero sustento. Contava-se com os meios indispensáveis para a manutenção de novas forças de trabalho, assim como com os meios necessários para dar-lhes ocupação. A força de trabalho adquiriu um valor. Mas nem a coletividade, por si mesma, nem o agrupamento de coletividades de que ela fazia parte podiam fornecer forças de trabalho disponíveis, excedentes. Fornecia-as a guerra, que já se efetuava a partir, pelo menos, dos tempos em que começaram a coexistir, lado a lado, distintos grupos sociais. Até essa época, não se tinha sabido, ainda, como empregar os prisioneiros de guerra, razão pela qual eram eles liquidados em vez de se os alimentar, como era costume em épocas anteriores. Ao chegar, porém, a esta etapa da evolução económica, os prisioneiros de guerra começaram a representar um valor. Por isso, deixaram-nos viver, a fim de aproveitarem-se de seu trabalho. Como vemos, a violência, longe de se impor sobre a situação económica, foi posta a serviço desta. Haviam sido lançadas as bases da instituição da escravidão. Não tardou esta em converter-se na forma predominante da produção em todos os povos que já haviam ultrapassado as limitações das comunidades primitivas, para terminar por ser uma das causas principais de sua ruína. Foi a escravidão que tornou possível a divisão do trabalho, em larga escala, entre a agricultura e a indústria, e foi graças a ela que pôde florescer o mundo antigo, o helenismo. Sem escravidão, não seria possível conceber-se o Estado grego, nem a arte e a ciência da Grécia. Sem escravidão não teria existido o Império Romano. E sem as bases do helenismo e do Império Romano não se teria chegado a formar a moderna Europa, Não nos deveríamos esquecer nunca que todo o nosso desenvolvimento económico, político e intelectual, nasceu de um estado de coisas em que a escravidão era uma instituição não somente necessária. mas também sancionada e reconhecida de um modo geral, Podemos, neste sentido, afirmar, legitimamente, que, sem a escravidão antiga, não existiria o socialismo moderno.

     Não há nada mais para fazer-se que lançar umas quantas frases melodramáticas contra a escravidão e contra tudo o que se lhe assemelha, derramando uma torrente de indignação moral contra semelhante ignomínia. Desgraçadamente, nada se consegue com isso, a não ser proclamar o que já todo o mundo sabe: que essas instituições dos tempos antigos já não se ajustam' à nossa época, nem aos sentimentos que essa época forma em cada um de nós. Por tal caminho, não conseguiríamos provar nem uma palavra sobre o modo por que nasceram essas instituições, nem como elas se mantiveram e o papel que desempenharam na História. Neste terreno, por mais paradoxal e mais herético que possa parecer, não temos outro remédio senão dizer que a implantação da escravidão representou, nas circunstâncias em que ocorreu, um grande progresso. É indiscutível que a humanidade saiu de um estado de animalidade e que necessitou utilizar, portanto, de meios bárbaros e quase bestiais para erguer-se desse estado de barbárie. As antigas comunidades, onde subsistem essas instituições, formam, desde milhares de anos, da Índia à Rússia, a base da mais tosca forma de Estado: o despotismo oriental. Somente onde essas comunidades primitivas se dissolveram, conseguiram os povos continuar progredindo por impulso próprio, e seu progresso econômico imediato consistiu precisamente em intensificar e desenvolver a produção por meio do trabalho dos escravos. Enquanto o trabalho humano era muito pouco produtivo, é claro que apenas fornecia um pequeno excedente, depois de satisfeitas as necessidades mais prementes da vida, não se podendo tratar da intensificação das forças produtivas, da ampliação do mercado, do aperfeiçoamento do Estado e do Direito, da fundação de nenhuma arte e de nenhuma ciência, a não ser pela mais reforçada divisão do trabalho, em cuja base estava, forçosamente, a grande divisão do trabalho entre as massas dedicadas ao simples trabalho manual e uns poucos privilegiados, ao cargo dos quais estava a direção dos trabalhos, o comércio, o trato dos negócios públicos e, mais tarde, o cultivo das artes e ciências. Pois bem; a forma mais simples e mais elementar de instituir essa divisão do trabalho foi a escravidão. Dentro das condições históricas do mundo antigo e, em especial, do mundo grego, o progresso que existia na instauração de uma sociedade baseada em antagonismos de classe, somente podia levar-se a cabo sob a escravidão. E representava esta instituição um progresso até para os próprios escravos: permitia, pelo menos, aos prisioneiros de guerra, entre os quais eram recrutados em seu maior número os escravos, que conservassem as vidas já que, até então, eram todos exterminados, no começo, por meio da fogueira, e, depois, por meio do cutelo.

     Já que a ocasião é propícia, queremos acrescentar que, até hoje, todas as diferenças históricas entre classes exploradoras e exploradas, dominantes e dominadas, tiveram a sua raiz nessa tão imperfeita produtividade relativa do trabalho humano. Enquanto a população realmente trabalhadora, absorvida por seu trabalho necessário, não teve nem um momento livre para se dedicar à direção dos interesses comuns da sociedade - direção dos trabalhos, dos negócios públicos, solucionamento dos litígios, arte, ciência, etc., tinha que haver necessariamente uma classe especial que, livre do trabalho efetivo, tratasse desses assuntos. Esta classe acabava sempre, infalivelmente por impor novas e novas sobrecargas de trabalho sobre os ombros das massas produtoras, além de explorá-las em seu proveito próprio. A gigantesca intensificação das forças produtivas, conseguida graças ao advento da grande indústria, é que tornou possível que o trabalho se possa distribuir, sem exceção, entre todos os membros da sociedade, reduzindo dessa forma a jornada de trabalho do indivíduo a tais limites, que deixem a todos um tempo livre suficiente para que cada um intervenha - teórica e praticamente - nos negócios coletivos da sociedade. Hoje somente é que se pode asseverar que toda classe dominante e exploradora é inútil e, mais ainda, prejudicial e entravadora do processo social. Até hoje, no entanto, não tinha chegado o momento em que essas classes deveriam ser suprimidas, como o serão, inelutavelmente, por mais que se defendam por detrás das trincheiras da"força imediata".

     O Sr. Dühring, que cerra as sobrancelhas ao falar dos gregos, por que o seu regime de vida estava baseado na escravidão, poderia também fechar-lhes a cara por não conhecerem a máquina a vapor e o telégrafo sem fios. E, quando afirma que a nossa moderna vassalagem assalariada não é mais que uma herança um pouco modificada da escravidão, sendo uma instituição que não se pode explicar por si mesma (isto é, pelas leis económicas da moderna sociedade). as suas palavras significam que, ou o trabalho assalariado e a escravidão são duas formas de dominação e império de uma classe sobre outra, coisa que qualquer criança já sabe, ou, no caso de não significarem tal coisa, elas são falsas, pois, com a mesma razão, poderíamos dizer que o trabalho assalariado somente pode ser explicado como uma forma mitigada da antropofagia, que era, primitivamente, o fim que se dava aos inimigos vencidos.

     Compreende-se com toda a clareza, do que ficou dito acima, qual o papel desempenhado pela violência, na História, com relação ao desenvolvimento económico. Em primeiro lugar, a força política se baseia, sempre, desde as suas origens, numa função económica, social, e ela se intensifica na medida em que, com a dissolução da primitiva comunidade, os indivíduos se convertem em produtores privados, aprofundando-se mais ainda a sua separação dos que dirigem as funções sociais coletivas. Em segundo lugar, assim que a força política adquire existência própria em relação à sociedade, convertendo-se os seus detentores de servidores em seus donos, pôde essa força passar a atuar em dois sentidos diferentes. As vezes atua no sentido e com a orientação das leis que regem o desenvolvimento económico. Neste caso, não há nenhuma discrepância entre os dois fatores, e a violência não faz mais que acelerar o processo económico. Outras vezes, entretanto, a força política atua em sentido contrário e, nestes casos, acaba sempre por sucumbir, com raras exceções, frente ao vigor da evolução económica. Essas raras exceções se referem a casos isolados de conquista, em que o invasor, menos civilizado, extermina ou persegue a população de um país, devastando ou deixando inutilizarem-se as forças produtivas do país invadido, com as quais nada sabe realizar. Foi o que os cristãos, na conquista da Espanha mourisca, fizeram com a maior parte das obras de irrigação, nas quais se baseava o progressista sistema de agricultura e de horticultura dos árabes. Toda a conquista de um país por parte de um povo inferior entorpece-lhe, indubitavelmente, o desenvolvimento económico e anula numerosas forças produtivas. Na imensa maioria dos casos, porém, casos em que a conquista é duradoura, o conquistador, se for um povo inferior ao conquistado, não tem outro remédio senão submeter-se à "situação económica" deste, que é superior, terminando a conquista com a assimilação do conquistador pelo conquistado, que lhe impõe, inclusive, na maior Parte das vezes, o seu próprio idioma.

     Nas situações em que a força, além dos casos de conquista, é representada pelo poder interior do Estado, e chega a se opor ao desenvolvimento económico do país. como vemos acontecer sempre com o poder político, num determinado grau de evolução, nestes casos, a luta termina sempre com a derrocada do poder político. A evolução económica vence todas as barreiras, sempre, inexoravelmente, sem exceção. Tivemos já oportunidade de citar o último exemplo histórico irrefutável desta lei: a Grande Revolução Francesa. Se a situação económica, e com ela o regime económico de cada país, estivesse na dependência simples da força encarnada no Poder político, como quer a teoria do Sr. Dühring, não se compreenderia por que, depois de 1848, Frederico Guilherme IV da Prússia, não houvesse podido, apesar de seu"maravilhoso exército", mandar fundir nas corporações medievais e noutras, quaisquer quimeras românticas as estradas de ferro, as máquinas a vapor, e toda a grande indústria que começava por aquela época a se desenvolver em seu país. Nem se compreende por que o imperador da Rússia, muito mais poderoso que o rei da Prússia, não seja capaz de pagar as suas dívidas, nem sequer consiga manter a sua "violência", sem se comprometer, correndo constantemente em busca de créditos, junto à"situação econômica" da Europa ocidental.

     Para o Sr. Dühring, a violência é a maldade absoluta. O primeiro ato de força é, em sua Bíblia, o pecado original, reduzindo-se todo o seu arrazoado a um sermão jeremíaco sobre o contágio do pecado original em todos os fatos históricos, e sobre a infame deturpação de todas as leis naturais e sociais por esse poder satânico, que é a força. Sabemos nós que a violência desempenha também, na história, um papel muito diferente, um papel revolucionário; sabemos que ela é, também, para usar uma expressão de Marx, a Parteira de toda a sociedade antiga, que traz em suas entranhas uma outra nova: que é ela um instrumento por meio do qual se faz efetiva a dinâmica social, fazendo saltar aos pedaços as formas políticas fossilizadas e mortas. Mas, a respeito de tal aspecto. nada nos diz o Sr. Dühring. Reconhece unicamente, entre suspiros e gemidos, que, para derrubar o regime de exploração, não há outro remédio senão usar a violência: desgraçadamente, acrescenta, pois o emprego da violência desmoraliza sempre a quem a utiliza. E diz-nos essas palavras, esquecendo-se do elevado impulso moral e espiritual que emana de toda revolução triunfante! E diz-nos tal coisa aqui, na Alemanha. onde um choque violento - que se pode impor em caso necessário, ao povo (quem o duvida?) - teria ao menos a vantagem de varrer da consciência nacional essa espécie de submissão servil que dela se apoderou desde a humilhação da guerra dos Trinta Anos! E será esse pregador desconexo, sem seiva e sem força, quem pretenderá impor sua doutrinas ao partido mais revolucionário que a história conhece?

Publicado: en Vorwärts, 3 de Janeiro 1877 - 7 de Julho 1878. 

sexta-feira, 11 de novembro de 2022

A revisão da Constituição e o cabo de esquadra Costa

A possibilidade de a Lei Fundamental do país ser revista mais uma vez, a oitava, foi levantada pelo partido da extrema-direita que tem assento na Assembleia da República, apesar de ainda não ter os estatutos legalizados, o que dá bem a ideia do tipo de estado de direito e democrático que temos, tendo sido de imediato seguido pelo principal partido da oposição, e finalmente pelo partido governamental que, e ao que aprece, não quer uma mas duas revisões. A imprensa corporativa afirma que “o governo quer mudar a Constituição para facilitar quarentenas e confinamentos”. Mas não só nem principalmente.

As 23 decisões do Tribunal Constitucional, a declararem inconstitucionais todas as medidas que foram adoptadas pelo Governo durante a pandemia, foram um nítido incómodo para o governo e para o Costa, que ainda se autodenomina “socialista”. Ora, chefiando um governo que beneficia de maioria absoluta na dita “casa da democracia”, fácil lhe é entortar o estado de molde a que seja de “direito” para as suas conveniências. E as suas conveniências são os interesses da classe dominante, que já está a assustar-se com o agravamento da crise económica, cujo fim o BCE não antevê para breve, bem pelo contrário, tal como a proliferação de greves e manifestações que estão a ocorrer por essas Europa fora. E, cá dentro, a paz social recém-conquistada pelo governo pode de um momento para o outro estalar rapidamente. É que estas coisas são contagiosas, mais do que a coivd-19.

Costa reagiu de forma intempestuosa, ameaçando com processo em tribunal, à notícia de que o ex-governador do Banco de Portugal Carlos Costa terá afirmado, em livro que só será publicado para a semana, ter sido pressionado pelo primeiro-ministro português para não retirar da direcção do BIC a filha do então presidente de Angola, visto que se tratava de um país amigo. A ameaça teve já o mérito de fazer publicidade ao livro e aguçar a curiosidade sobre o que lá estará escrito; Costa, mas o Carlos, começa a facturar ainda antes da publicação do livro. Quanto ao António, independentemente da veracidade da afirmação do banqueiro, mostra, por um lado, que reage mal quando a bajulação desaparece e, além do mais, sem ter sequer ter lido o livro e desconhecer o contexto das ditas palavras e dos factos. Estamos perante factos políticos, não se trata de assuntos pessoais, e será neste campo da política e dos factos que a questão deve ser dirimida. Estranhamos que Carlos Costa, sendo verdadeiro o que saiu agora na imprensa, faça este tipo de afirmação sem estar bem fundamentado e ciente do que está a dizer. Mas sem ser necessário ir buscar a repressão que Costa lançou sobre os trabalhadores, estivadores, motoristas e enfermeiros, com a requisição civil, só este facto confirma o aforismo popular: se queres ver um vilão, coloca-lhe um pau na mão.

Bruxelas não come as palavras e, desdizendo as bazófias de Costa e do seu homem das Finanças, o Medina da Câmara de Lisboa (parece que também está sob investigação da justiça), estima que a economia portuguesa trave a fundo em 2023 (crescendo apenas 0,7%) e que a inflação se mantenha elevada (5,8%), embora mais baixa que a de este ano, que já vai nos 10,1% (Outubro), considerado o valor mais alto desde 1994. Com este pretexto, a Comissão Europeia avisa para “as pressões do aumento dos salários da Função Pública”; aviso e preocupação já respondidos pelo governo que limitou a subida dos salários para este sector nos 2%. A perda do poder de compra dos trabalhadores do estado será de cerca de 80% de um salário e a dos do sector privado será à volta dos 60%, fácil se torna fazer as contas, fazendo fé nos números oficiais: “salário médio cai 4,7% em termos reais”.

Pouco tempo antes (28 de Outubro) a francesa que lidera o BCE alertara para a “recessão”, parece que foi a primeira vez que utiliza a palavra, prometendo simultaneamente agravar as taxas de juros. O FED (Sistema de Reserva Federal) norte-americano já vai nos 4%, e nós rapidamente lá iremos ter. Não será via para combater a inflação e evitar a recessão económica, será exactamente ao contrário, embora a propaganda dos media mainstream seja naquele sentido. A subida das taxas de juro pelo Banco Central Europeu serve única e exclusivamente para fazer aumentar os lucros dos bancos e concomitante enriquecimento, desbragado, dos seus acionistas. Mesmo que isso represente prejuízo para o resto da economia e para os países periféricos que estão no euro, ou seja, sem soberania monetária. Esta é uma das muitas contradições do capitalismo que o farão entrar, muito provavelmente dentro em breve, em colapso final. Perfeitamente compreensível e lógico o facto de no “Reino Unido, o rendimento dos grandes empresários subir duas vezes mais rápido que a inflação” (da imprensa). Entre nós, o país dos miseráveis, os lucros dos bancos nos primeiros nove meses foram de cerca de 1900 milhões de euros.

A riqueza flui na sociedade como em sistema de vasos comunicantes, indo dos que produzem, embora estando na base da pirâmide social, para os proprietários do capital, os que estão no vértice, ficando algumas migalhas para os seus políticos que lhes tratam dos negócios à vez e em turnos de quatro anos. Para se entender o fenómeno não é preciso nenhum doutoramento, basta olhar para os factos e sentir na carne e nos bolsos a exploração. O banco público CGD, gerido à boa maneira capitalista por um dos principais homens de mão do bicéfalo bloco central, teve um lucro de perto de 700 milhões de euros, mas à custa de menos 170 “colaboradores” e do encerramento de 27 agências; tudo ao fim de nove meses – que partos maravilhosos! Devemos olhar para o que diz o presidente da Associação Portuguesa de Bancos, Vítor Bento: “o trabalho dos bancos não é fazer caridade”, acrescentando não saber o que são lucros excessivos. Fala o experiente aposentado (antecipadamente aos 60 anos e com reforma de perto de 6 mil euros mensais) do Banco de Portugal.

Marcelo, irmão quase gémeo de Costa na criatividade política e mediática de atirar poeira para os olhos do Zé incauto, preocupou-se muito quando Lagarde veio dizer “recessão” e que irá continuar a fazer o seu trabalho, sodomizar (sentido figurado, bem entendido) os povos do sul da Europa, pedindo contenção na subida dos juros. O homem até se preocupa, nem deve dormir e deve ficar com a líbido embutida, com o empobrecimento do povo português, e, agora, mais uma vez preocupado, disfarçando que estes assuntos nem são do seu negócio, com a necessidade de se rever a Constituição da República. Antes do episódio revisionista uma outra vez se preocupou com assunto que nada lhe diz respeito, a distribuição dos dinheiros do PRR. Interpelar a ministra da Coesão Territorial, mais da “repartição” dos dinheiros do saque pelos lóbis nacionais, quis mostrar que a ministra responde perante ele e simultaneamente dar o coice ao primeiro-mistro que, por sua vez, responde perante a Assembleia da República. Claro que, e mais uma vez, os media corporativos retomaram a narrativa de que o PR monárquico é que é responsável último pela governação, como se estivéssemos em regime presidencial em que o Presidente também é primeiro-ministro, ou o nomeia. Será neste sentido que a revisão da Constituição será feita, os confinamentos e os metadados são meros pretextos.

O bastonário da Ordem dos Advogados não deixa de ter razão ao vir alertar para “uma deriva muito preocupante” e que com a proposta (ou todas elas) de revisão constitucional parece estar “mais em causa a supressão de direitos, liberdades e garantias”. Pois é exactamente isso que se trata, destruir os diretos e a liberdade de expressão, de manifestação e de organização política e cívica dos trabalhadores e do povo em geral, sob a pretensa defesa da “saúde pública” ou da “economia do país” e de que não há alternativa às medidas impostas. Em suma, justificar o cacete sobre quem trabalha e reclama pelos seus direitos e por uma vida digna, para si e para os seus filhos. O PS que tem sido usado pelas elites pela sua habilidade em usar a cenoura será em breve utilizado como cacete sobre todos nós, ou, caso claudique na missão, deixar os instrumentos prontos para uso de um governo formalmente de direita ou de extrema-direita, onde o “principal partido da oposição” não terá engulhos em se abraçar à extrema-direita que saliva pelo poder e que deu o pontapé de saída para este processo de revisão constitucional. A História tem ensinado que é a “social-democracia” ou o “socialismo democrático” que traz a si agarrado a fascismo e o nazismo, mesmo que seja “à portuguesa”. 

segunda-feira, 7 de novembro de 2022

À População: Camaradas operários, soldados, camponeses, todos os trabalhadores!

Camaradas operários, soldados, camponeses, todos os trabalhadores!

Lenine

A revolução operária e camponesa venceu definitivamente em Petrogrado, dispersando e prendendo os últimos restos do reduzido número de cossacos enganados por Kérenski. A revolução venceu também em Moscovo. Antes de ali terem chegado alguns comboios com forças militares vindos de Petrogrado, em Moscovo os cadetes e outros kornilovistas assinaram as condições de paz, o desarmamento dos cadetes e a dissolução do Comitê de Salvação.

Da frente e das aldeias chegam todos os dias e a todas as horas notícias de que a maioria esmagadora dos soldados nas trincheiras e dos camponeses nos uezd apoia o novo governo e as suas leis sobre a proposta da paz e a entrega imediata da terra aos camponeses. A vitória da revolução dos operários e dos camponeses está assegurada, pois a maioria do povo já se ergueu a seu favor.

É completamente compreensível que os latifundiários e os capitalistas, os altos empregados e funcionários, estreitamente ligados à burguesia, numa palavra, todos os ricos e todos os que estão com os ricos, acolham hostilmente a nova revolução, se oponham à sua vitória, ameacem paralisar a actividade dos bancos, sabotem ou paralisem o trabalho de diferentes instituições, o obstaculizem por todos os meios, o entravem directa ou indirectamente. Todo o operário consciente compreendeu perfeitamente que encontraríamos inevitavelmente tal resistência, toda a imprensa partidária dos bolcheviques o assinalou muitas vezes. As classes trabalhadoras não se assustarão um só instante com essa resistência, nem cederão minimamente Perante as ameaças e as greves dos partidários da burguesia.

A maioria do povo está por nós. A maioria dos trabalhadores e dos oprimidos de todo o mundo está por nós. A nossa causa é a causa da justiça. A nossa vitória está assegurada.

A resistência dos capitalistas e dos altos empregados será quebrada. Nenhuma pessoa será privada por nós dos seus bens sem uma lei especial do Estado sobre a nacionalização dos bancos e dos consórcios. Esta lei está a ser preparada. Nenhum trabalhador perderá um só copeque; pelo contrário, ser-lhe-á prestada ajuda. O governo não quer introduzir quaisquer outras medidas que não sejam o mais rigoroso registo e controlo, que não seja a cobrança sem ocultação dos impostos anteriormente estabelecidos.

Em nome destas justas reivindicações, a imensa maioria do povo uniu-se em torno do governo provisório operário e camponês.

Camaradas trabalhadores! Lembrai-vos que vós próprios dirigis agora o Estado. Ninguém vos ajudará se vós próprios não vos unirdes e não tomardes nas vossas mãos todos os assuntos do Estado. Os vossos Sovietes são a partir de agora órgãos do poder de Estado, órgãos plenipotenciários e decisivos.

Uni-vos em torno dos vossos Sovietes. Reforçai-os. Lançai mãos à obra na base, sem esperar por ninguém. Estabelecei a mais rigorosa ordem revolucionária, esmagai implacavelmente tentativas de anarquia por parte de bêbados, arruaceiros, cadetes, contra-revolucionários, kornilovistas e outros semelhantes.

Introduzi o mais rigoroso controlo da produção e do registo dos produtos. Prendei e entregai ao tribunal revolucionário do povo todos os que ousem prejudicar a causa popular, quer esse prejuízo se manifeste na sabotagem (deterioração, entravamento, subversão) da produção ou na ocultação de reservas de cereais e de víveres, quer na retenção de carregamentos de cereais ou na desorganização dos caminhos-de-ferro, dos correios, telégrafos e telefones ou em geral em qualquer resistência à grande causa da paz, à causa da entrega da terra aos camponeses, à causa da aplicação do controlo operário sobre a produção e a distribuição dos produtos.

Camaradas operários, soldados, camponeses e todos os trabalhadores! Ponde todo o poder nas mãos dos vossos Sovietes. Guardai, protegei como as meninas dos olhos, a terra, os cereais, as fábricas, os instrumentos, os produtos, os transportes — tudo isto será desde agora inteiramente vosso, patrimônio de todo o povo. Gradualmente, com o acordo e a aprovação da maioria dos camponeses, na base da experiência prática deles e dos operários, marcharemos firme e tenazmente para a vitória do socialismo, que os operários avançados dos países mais civilizados consolidarão e que dará aos povos uma paz duradoura e os libertará de todo o jugo e de toda a exploração.

5 de Novembro de 1917. Petrogrado.

O Presidente do Conselho de Comissários do Povo

V. Uliánov (Lénine) 

quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Immanuel Kant: Escritos sobre o Terramoto de Lisboa

 


ACERCA DAS CAUSAS DOS TREMORES DE TERRA, A PROPÓSITO DA CALAMIDADE QUE, PERTO DO FINAL DO ANO PASSADO, ATINGIU A ZONA OCIDENTAL DA EUROPA

Grandes acontecimentos que afetam o destino coletivo dos homens despertam, justificadamente, essa famosa ânsia de novidades que o que é extraordinário em todos suscita e nos obriga a inquirir das suas causas. Em tais casos, a obrigação do investigador da Natureza para com o público será prestar contas dos conhecimentos que a observação e a pesquisa lhe possam proporcionar. Pela parte que me toca, renuncio à honra da satisfação integral desse dever e cedo-a a quem, caso surja, se possa gabar de haver perscrutado minuciosamente o interior da Terra. As minhas reflexões serão meramente esquemáticas, ou, para me exprimir com clareza, vão abranger tudo o que de provável se pode até agora dizer sobre o assunto, mas não, seguramente, o suficiente para satisfazer o rigor daquele juízo que tudo submete à pedra-de-toque da certeza a temática. Vivemos tranquilos sobre um solo cujos alicerces são, por vezes, abalados. Construímos despreocupadamente sobre abóbadas cujos pilares, volta e meia, vacilam e ameaçam ruir. Inconscientes de um destino que talvez não esteja assim tão distante de nós, entregamo-nos à compaixão, em lugar do medo, quando vemos a destruição que a fatalidade emboscada sob os nossos pés semeia na vizinhança. Será, sem dúvida, por graça da Providência que permanecemos intocados pelo terror de um destino que preocupação nenhuma da nossa parte poderia, de alguma forma, impedir, não agravando assim os nossos males reais com o temor daqueles que sabemos possíveis.

O que, em primeiro lugar, merece a nossa atenção é que o solo sobre o qual nos encontramos é oco e as suas abóbadas estendem-se, de uma forma quase contínua, ao longo de vastas regiões, incluindo o fundo do mar. Não vou citar, a este propósito, nenhum exemplo da História. Não é minha intenção apresentar uma História dos terramotos. O barulho tremendo, semelhante ao bramir de um ciclone subterrâneo ou ao rolar de um veículo de carga numa calçada de pedra, que acompanha muitos tremores de terra, aliado ao efeito que estes simultaneamente exercem em regiões tão afastadas entre si como a Islândia e Lisboa -as quais, apesar de separadas por um mar de mais de 450 milhas alemãs, foram no mesmo dia vítimas de abalos sísmicos -são fenómenos que parecem confirmar inequivocamente a existência de uma interligação entre as abóbadas subterrâneas.

Ser-me-ia necessário recuar, na história do nosso planeta, até ao caos para conseguir dizer algo de compreensível acerca das causas que, no decurso da formação da Terra, determinaram a origem destas galerias. Essas explicações assumem, contudo, um aspeto demasiado fantasioso, quando não podemos inscrevê-las no quadro geral das razões que atestam a sua credibilidade. Independentemente, porém, de qual seja a causa, o que é certo é que o sentido destas galerias é paralelo ao das montanhas e, por uma conexão natural, também ao dos grandes rios, uma vez que estes ocupam aparte mais profunda de longos vales circunscritos de ambos os lados por montanhas paralelas. Ora, essa direção é precisamente aquela em que os tremores de terra preferencialmente se propagam. Nos terramotos que se estenderam pela maior parte da Itália, notou-se que os candelabros das igrejas acusavam um movimento de norte para quase exatamente sul; este último terramoto seguiu de oeste para leste, que é também a direção predominante das montanhas que atravessam a zona mais alta da Europa.

Se, em situações tão adversas, é permitido ao homem usar de alguma cautela, se, face a tão generalizados tormentos, não se considera um esforço temerário e vão propor algumas medidas preventivas que a razão nos oferece, não deveriam então as desoladoras ruínas de Lisboa fazer reponderar o projeto de reconstruir a cidade de novo na longitudinal do mesmo rio, que descreve a direção em que os tremores de terra nessa região naturalmente têm de acontecer? Gentil testemunha que, quando uma cidade é abalada a todo o comprimento por um terramoto que segue nessa mesma direção, todas as casas se desmoronam, ao passo que, quando a direção do abalo segue a da largura, a maior parte das casas mantém-se de pé. A razão é clara. A oscilação do solo desloca os edifícios da posição vertical. Ora, se uma fileira de edifícios começa a abanar desta forma, de leste para oeste, cada um deles não se limita já a suportar o seu peso individual, pois os situados a leste empurram, ao mesmo tempo, os do lado oeste, fazendo-os infalivelmente tombar uns sobre os outros; ao passo que, se a movimentação se der num sentido perpendicular ao anterior, em que cada edifício apenas tem de sustentar o seu próprio equilíbrio, os danos serão, em circunstâncias análogas, necessariamente menores. A tragédia de Lisboa parece, pois, ter sido agravada pela localização da cidade, construída na longitudinal do Tejo. Daí que, tendo em conta estas razões, nenhuma cidade de um país por diversas vezes vítima de tremores de terra, cuja direção seja possível determinar a partir da experiência, devesse ser construída em direção paralela à que estes seguem. Só que, em situações desta natureza, a maioria das pessoas é de opinião totalmente diferente. Porque o pavor lhes rouba a capacidade de reflexão, julgam ver, nestes casos de desgraça tão generalizada, um mal de tipo completamente diferente daqueles contra os quais é lícito tomar precauções, imaginando então que podem suavizar a dureza do destino se se submeterem cega e resignadamente aos favores e desfavores do Céu.

A linha principal do terramoto segue na direção das montanhas mais altas, sendo por isso predominantemente atingidas as terras que lhes estão próximas, e sobretudo quando estejam limitadas por duas filas de montanhas, caso em que se verifica uma conjugação de abalos de ambos os lados. Numa terra de planície, que não esteja ligada a cadeias montanhosas, os sismos são mais raros e mais fracos, daí que o Peru e o Chile sejam, entre todos os países do mundo, dos mais frequentemente sujeitos a tremores de terra. Mas aí observa-se o cuidado de só construir casas com um máximo de dois andares, dos quais apenas o primeiro tem paredes, sendo o segundo feito de canas e madeira leve, para que ninguém morra esmagado debaixo dele. Acrescente-se ainda que a Itália e até mesmo a ilha da Islândia, parcialmente situada na zona glaciar, assim como outras regiões altas da Europa, comprovam igualmente esta correlação.

O terramoto que, no passado mês de dezembro, entre o cair da noite e a manhã, se propagou pela França, Suíça, Suábia, Tirol e Berna seguiu predominantemente o rumo das regiões mais elevadas desta parte do mundo. Sabe-se, no entanto, que todas as principais montanhas dão origem a montes menores perpendiculares. Também nestes se vai progressivamente disseminando a combustão subterrânea que, após haver alcançado as regiões mais altas das montanhas suíças, se comunica igualmente às cavernas que, acompanhando paralelamente alinha do Reno, se prolongam até à Baixa Alemanha. A que se deverá então esta lei, segundo a qual a Natureza associou os terramotos sobretudo às regiões altas? Se é manifesto que estes tremores de terra têm origem numa combustão subterrânea, podemos facilmente concluir que, sendo as cavernas mais extensas em zonas montanhosas, a exalação de vapores inflamáveis se dará nelas com maior liberdade, e a junção destes com o ar encerrado nas regiões subterrâneas, sempre indispensável à combustão, processar-se-á igualmente com menos entraves. Neste aspeto, o conhecimento da natureza interna do solo terrestre, até ao ponto em que ao homem é permitido descobri-la, ensina-nos que as camadas em regiões montanhosas se encontram a muito maior profundidade do que nas zonas planas, e daí que as primeiras sejam mais sensíveis aos abalos do que as segundas. Caso, então, alguém perguntasse se a nossa pátria também tem razões para temer esta calamidade, eu, se tivesse por missão pregar a moralização dos costumes, deixaria a questão do temor – em virtude da impossibilidade geral de se chegar a acordo sobre este ponto – ao critério particular de cada um. Posto porém que, entre os motivos que podem incitar à devoção, os derivados do terramoto são seguramente os mais fracos, e o meu único propósito é aduzir razões físicas como matéria de conjetura, facilmente se poderá concluir que, sendo a Prússia não apenas um país sem montanhas como, melhor ainda, o prolongamento de uma região quase inteiramente plana, temos motivos acrescidos para confiar em que as disposições da Providência nos permitem ter esperança no contrário.

Eis-nos chegados ao momento de dizer algo acerca das causas dos terramotos.

Não é difícil, para um investigador da Natureza, simular os seus fenómenos. Peguemos em 25 libras de limalha de ferro, noutras tantas de enxofre, e misturemo-las com água vulgar. Em seguida, enterremos esta massa a um pé ou pé e meio de profundidade e calquemos bem aterra que a cobre. Decorridas algumas horas, poderemos observar a libertação de um fumo espesso, a terra estremecerá e chamas irromperão do solo. Não há que duvidar que as duas primeiras matérias se encontram frequentemente no interior da terra e a água que se infiltra pelas fendas e frinchas das rochas pode pô-las em fermentação. Com uma segunda experiência, podemos produzir vapores inflamáveis a partir de uma mistura de matérias frias que entram espontaneamente em combustão. Se adicionarmos cerca de uma dracma de vitríolo a quatro dracmas de água vulgar e as vertermos sobre uma dracma de limalha de ferro, produzir-se-á uma forte efervescência acompanhada de vapores que entram em combustão espontânea. E quem duvida de que no interior da Terra existem ácidos vitriólicos e fragmentos de ferro em abundância? Assim que a água os atinge e desencadeia a sua mútua reação, expelem vapores que, ao procurar expandir-se, revolvem o solo e irrompem em chamas pelas crateras dos vulcões.

já há muito se observou que uma região se vê livre de violentos tremores de terra quando, nas suas imediações, irrompe uma montanha vulcânica, através da qual os vapores conseguem encontrar saída. Sabe-se também que, em Nápoles, os terramotos são muito mais frequentes e assustadores se o Vesúvio tiver estado durante longo tempo inativo. É assim que o que nos causa susto se revela muitas vezes benéfico, o que nos permite concluir que, se acaso surgisse um vulcão nas montanhas de Portugal, isso poderia ser um sinal de que o risco de calamidade se ia tornando, pouco a pouco, mais remoto.

A impetuosa agitação das águas que, nesse fatídico Dia de Todos os Santos, se observou em tantas costas marítimas foi o que de mais singular este acontecimento nos ofereceu como matéria de espanto e investigação. É do conhecimento comum que os terramotos se estendem ao subsolo marítimo e sacodem os navios com violência idêntica à que estes experimentariam se estivessem em terra firme. Acontece que, nas zonas em que as águas entraram em ebulição, pelo menos a uma distância razoável da costa, não foi detetado qualquer sinal de terramoto. Todavia, esta agitação das águas não é totalmente inédita. No ano de 1692, por ocasião de um terramoto que atingiu quase o mundo inteiro, verificou-se o mesmo nas costas da Holanda, Inglaterra e Alemanha.

Presumo que muitos se inclinem – e não, na verdade, sem fundamento – a ver nesta ebulição das águas o prolongamento da agitação que o mar da costa portuguesa sofreu com o impacto direto do terramoto. Mas esta explicação parece colocar, logo de entrada, algumas dificuldades. Compreendo bem que, numa matéria líquida, uma pressão desse género tenha de se fazer sentir através de toda a sua massa; mas como poderia a pressão do mar português, depois de se haver expandido por centenas de milhas, provocar ainda uma elevação de alguns pés nas águas de Gluckstadt e Husum? Não dá ideia de que teriam de se ter erguido lá montanhas de água a tocar no céu para que aqui se levantasse uma ondulação quase impercetível? A isso respondo que existe uma dupla maneira de toda a massa de uma substância líquida ser posta em movimento por ação de uma causa situada em determinado lugar: ou através do movimento baloiçante de subir e descer, isto é, de uma forma ondulatória, ou através de uma pressão súbita que sacode a massa de água no seu interior e a impele como a um corpo sólido, sem lhe dar tempo de se esquivar à pressão por meio de uma efervescência tumultuosa, e assim disseminar gradualmente o seu movimento. A primeira hipótese é, sem dúvida, insuficiente para explicar o fenómeno em questão, mas, já no que toca à segunda, a situação é diferente: se considerarmos, com efeito, que a água resiste, à semelhança de um corpo sólido, a uma pressão súbita e violenta, e que essa compressão se expande para os lados com a mesma impetuosidade que impede que as águas adjacentes tenham tempo para se erguer acima da horizontal; se considerarmos também, por exemplo, a experiência de Carré na segunda parte dos Ensaios de Física da Academia das Ciências, p. 549, em que este disparou uma bala contra uma caixa cheia de água, feita de tábuas com duas polegadas de espessura, e o impacto exerceu tamanha pressão sobre a água que a caixa saltou em mil e um pedaços; se tivermos tudo isto em conta, dizia, poderemos ter uma noção de como se processa este tipo de movimentação das águas. Imaginemos, por exemplo, que toda a costa ocidental de Portugal e Espanha, desde o Cabo de S. Vicente até ao Cabo Finisterra, tinha sido atingida por um abalo numa extensão de cerca de 100 milhas alemãs, e que esse abalo se tinha alargado ao mar, para ocidente, numa área de idêntica superfície. Se isso acontecesse, veríamos 10 mil milhas quadradas alemãs do fundo do mar convulsionadas por um súbito tremor, cuja velocidade não sobrestimaríamos se a equiparássemos ao movimento desencadeado por uma mina de pólvora que projetasse os corpos que nela se encontrassem a uma altura de 15 pés, sendo, por conseguinte, capaz (de acordo com os princípios da mecânica) de percorrer 30 pés num segundo. A água oporia tal resistência a esta súbita agitação que, contrariamente ao que sucede em movimentações lentas, não cederia e não se encresparia em ondas. Em vez disso, absorveria toda a pressão e impeliria as águas circunjacentes para os lados com idêntica força, as quais, numa compressão tão repentina, devem ser vistas como um corpo sólido cuja extremidade mais distante terá uma velocidade de propulsão exatamente análoga àquela com que na outra é impelido. Assim sendo, não se verificaria qualquer decréscimo de movimento em nenhuma faixa de matéria líquida (se me é permitido usar esta expressão), tivesse ela 200 ou 300 milhas de extensão, desde que a imaginássemos encerrada num canal com uma abertura idêntica em ambos os lados. Só se a abertura do segundo extremo fosse mais ampla do que a do primeiro é que o movimento da água que a atravessa diminuiria na proporção inversa dessa diferença.

Aqui chegados, temos, porém, de imaginar a continuação do movimento da água em nosso redor como um círculo que se vai progressivamente alargando à medida que aumenta a distância do seu ponto central, e em cujo perímetro a intensidade do fluxo de água é proporcionalmente reduzida. É por isso que na costa do Holstein, situada acerca de 300 milhas alemãs do presumível epicentro do terramoto, o movimento das águas é seis vezes inferior ao que se regista na costa portuguesa, a qual, segundo se calcula, distará cerca de 50 milhas desse preciso ponto. O movimento das águas nas costas do Holstein e da Dinamarca será, pois, ainda suficientemente forte para percorrer cinco pés num segundo, um ímpeto equivalente ao de uma corrente muito rápida. Poder-se-ia aqui objetar que o avanço da pressão das águas no Mar do Norte só se poderia ter dado através do canal junto a Calais, onde o abalo, na medida em que se propagou num vasto mar, tem de ter enfraquecido extraordinariamente. Todavia, quando se considera que a pressão das águas entre as costas francesa e inglesa, antes de alcançarem o canal, teria de ter aumentado, pela compressão entre esses dois países, no mesmo grau em que posteriormente diminuiu ao expandir-se, verifica-se que não é possível extrair grandes conclusões das consequências do tremor de terra na citada costa do Holstein.

O mais surpreendente nesta compressão das águas é o facto de esta se ter feito sentir mesmo em lagos sem qualquer ligação visível com o mar, como sucede em Templin e na Noruega. Esta será, com toda a probabilidade, a prova mais concludente até hoje apresentada da comunicação subterrânea entre as águas mediterrânicas e o oceano. Para nos desembaraçarmos da dificuldade que perante isto se pode colocar, e que se prende com a questão do equilíbrio, temos de imaginar que as águas de um lago correm efetivamente pelos canais através dos quais este comunica com o mar, num movimento sempre descendente, em virtude da sua estreiteza, e que a perda de água que por este meio ocorre é compensada pelos regatos e rios que neles desaguam, razão pela qual esse escoamento acaba por não se notar.

Apesar da raridade desta situação, convém evitar os juízos prematuros, pois não é, na verdade, impossível que a agitação dos lagos interiores se possa também dever a outros motivos. O ar subterrâneo, posto em movimento pela erupção do fogo enraivecido, podia muito bem ter-se infiltrado através das fendas das camadas terrestres, camadas essas que, à exceção desse escape forçado, lhe vedam toda a passagem. Ora a Natureza só pouco apouco se desvenda, daí que não devamos, na nossa impaciência e com as nossas fantasias, tentar arrancar-lhe à força o que nos é ocultado, mas antes aguardar que ela, nas suas manifestações, nos revele clara e inequivocamente os seus segredos.

A causa do terramoto parece estender os seus efeitos até à atmosfera. Em frequentes ocasiões, algumas horas antes de a terra ser abalada, foi possível observar um céu vermelho e outros sinais indicativos de uma alteração das condições atmosféricas. Pouco tempo antes dos terramotos, os animais mostram-se apavorados. Os pássaros procuram refúgio nas casas, os ratos e ratazanas rastejam para fora das suas tocas. Nesse momento, surge infalivelmente o vapor quente, em vias de se inflamar, que irrompe pela abóbada superior da Terra. Prefiro nem pensar nas consequências que comporta. Serão, no mínimo, muito pouco agradáveis para o investigador da Natureza, pois que esperança pode ele ter de desocultar as leis segundo as quais as alterações da camada atmosférica se vão sucedendo, quando aos efeitos desta se mistura uma atmosfera subterrânea? E poderá haver alguma dúvida de que este fenómeno não deve ser muito frequente, pois então como se compreenderia que, na mudança de condições atmosféricas, e tendo em conta que as suas causas são em parte constantes, em parte periódicas, não se verifique qualquer recorrência dos citados efeitos?

Nota: a data do terramoto na Islândia, atrás indicada como 1 de novembro, deve ser corrigida para 11 de setembro, em conformidade com o fragmento 199 da Correspondência de Hamburgo.

As presentes considerações devem ser vistas como um exercício reflexivo preliminar sobre esse incontornável fenómeno natural que marcou a nossa época. A importância, bem como as múltiplas particularidades deste acontecimento, impelem-me a escrever um relato pormenorizado do terramoto, da sua propagação a outros países da Europa e dos aspetos curiosos de que se revestiu. Desta história e das reflexões que, a este propósito, se podem fazer darei parte ao público num minucioso ensaio, a ser editado, dentro de alguns dias, pela Tipografia Real da Corte e da Academia.

(Escritos sobre o Terramoto de Lisboa, Immanuel Kant. Edições 70, 2019)