Friederich Engels
Paralelamente a este processo de formação de
classes, ainda um outro se desenvolvia. O regime elementar de divisão do
trabalho, implantado no seio da família lavradora, permitiu, ao ser atingido,
um certo grau de bem-estar, a incorporação à família de uma ou várias forças de
trabalho alheias à ela. Isso se deu, sobretudo, naqueles países em que o regime
primitivo de propriedade do solo já se tinha desagregado, ou, pelo menos, tinha
cedido lugar o sistema de exploração em comum ao cultivo individual das lotes
de terra, pelas famílias isoladamente. A produção tinha-se desenvolvido em tais
proporções que, então, a força humana de trabalho já era capaz de criar mais do
que o necessário para o seu mero sustento. Contava-se com os meios
indispensáveis para a manutenção de novas forças de trabalho, assim como com os
meios necessários para dar-lhes ocupação. A força de trabalho adquiriu um
valor. Mas nem a coletividade, por si mesma, nem o agrupamento de coletividades
de que ela fazia parte podiam fornecer forças de trabalho disponíveis,
excedentes. Fornecia-as a guerra, que já se efetuava a partir, pelo menos, dos
tempos em que começaram a coexistir, lado a lado, distintos grupos sociais. Até
essa época, não se tinha sabido, ainda, como empregar os prisioneiros de
guerra, razão pela qual eram eles liquidados em vez de se os alimentar, como
era costume em épocas anteriores. Ao chegar, porém, a esta etapa da evolução
económica, os prisioneiros de guerra começaram a representar um valor. Por
isso, deixaram-nos viver, a fim de aproveitarem-se de seu trabalho. Como vemos,
a violência, longe de se impor sobre a situação económica, foi posta a serviço
desta. Haviam sido lançadas as bases da instituição da escravidão. Não tardou
esta em converter-se na forma predominante da produção em todos os povos que já
haviam ultrapassado as limitações das comunidades primitivas, para terminar por
ser uma das causas principais de sua ruína. Foi a escravidão que tornou
possível a divisão do trabalho, em larga escala, entre a agricultura e a
indústria, e foi graças a ela que pôde florescer o mundo antigo, o helenismo.
Sem escravidão, não seria possível conceber-se o Estado grego, nem a arte e a ciência
da Grécia. Sem escravidão não teria existido o Império Romano. E sem as bases
do helenismo e do Império Romano não se teria chegado a formar a moderna
Europa, Não nos deveríamos esquecer nunca que todo o nosso desenvolvimento
económico, político e intelectual, nasceu de um estado de coisas em que a
escravidão era uma instituição não somente necessária. mas também sancionada e
reconhecida de um modo geral, Podemos, neste sentido, afirmar, legitimamente,
que, sem a escravidão antiga, não existiria o socialismo moderno.
Não há nada mais
para fazer-se que lançar umas quantas frases melodramáticas contra a escravidão
e contra tudo o que se lhe assemelha, derramando uma torrente de indignação
moral contra semelhante ignomínia. Desgraçadamente, nada se consegue com isso,
a não ser proclamar o que já todo o mundo sabe: que essas instituições dos
tempos antigos já não se ajustam' à nossa época, nem aos sentimentos que essa
época forma em cada um de nós. Por tal caminho, não conseguiríamos provar nem
uma palavra sobre o modo por que nasceram essas instituições, nem como elas se
mantiveram e o papel que desempenharam na História. Neste terreno, por mais
paradoxal e mais herético que possa parecer, não temos outro remédio senão
dizer que a implantação da escravidão representou, nas circunstâncias em que
ocorreu, um grande progresso. É indiscutível que a humanidade saiu de um estado
de animalidade e que necessitou utilizar, portanto, de meios bárbaros e quase
bestiais para erguer-se desse estado de barbárie. As antigas comunidades, onde
subsistem essas instituições, formam, desde milhares de anos, da Índia à
Rússia, a base da mais tosca forma de Estado: o despotismo oriental. Somente
onde essas comunidades primitivas se dissolveram, conseguiram os povos continuar
progredindo por impulso próprio, e seu progresso econômico imediato consistiu
precisamente em intensificar e desenvolver a produção por meio do trabalho dos
escravos. Enquanto o trabalho humano era muito pouco produtivo, é claro que
apenas fornecia um pequeno excedente, depois de satisfeitas as necessidades
mais prementes da vida, não se podendo tratar da intensificação das forças
produtivas, da ampliação do mercado, do aperfeiçoamento do Estado e do Direito,
da fundação de nenhuma arte e de nenhuma ciência, a não ser pela mais reforçada
divisão do trabalho, em cuja base estava, forçosamente, a grande divisão do
trabalho entre as massas dedicadas ao simples trabalho manual e uns poucos
privilegiados, ao cargo dos quais estava a direção dos trabalhos, o comércio, o
trato dos negócios públicos e, mais tarde, o cultivo das artes e ciências. Pois
bem; a forma mais simples e mais elementar de instituir essa divisão do
trabalho foi a escravidão. Dentro das condições históricas do mundo antigo e,
em especial, do mundo grego, o progresso que existia na instauração de uma
sociedade baseada em antagonismos de classe, somente podia levar-se a cabo sob
a escravidão. E representava esta instituição um progresso até para os próprios
escravos: permitia, pelo menos, aos prisioneiros de guerra, entre os quais eram
recrutados em seu maior número os escravos, que conservassem as vidas já que,
até então, eram todos exterminados, no começo, por meio da fogueira, e, depois,
por meio do cutelo.
Já que a ocasião
é propícia, queremos acrescentar que, até hoje, todas as diferenças históricas
entre classes exploradoras e exploradas, dominantes e dominadas, tiveram a sua
raiz nessa tão imperfeita produtividade relativa do trabalho humano. Enquanto a
população realmente trabalhadora, absorvida por seu trabalho necessário, não
teve nem um momento livre para se dedicar à direção dos interesses comuns da
sociedade - direção dos trabalhos, dos negócios públicos, solucionamento dos
litígios, arte, ciência, etc., tinha que haver necessariamente uma classe
especial que, livre do trabalho efetivo, tratasse desses assuntos. Esta classe
acabava sempre, infalivelmente por impor novas e novas sobrecargas de trabalho
sobre os ombros das massas produtoras, além de explorá-las em seu proveito
próprio. A gigantesca intensificação das forças produtivas, conseguida graças
ao advento da grande indústria, é que tornou possível que o trabalho se possa
distribuir, sem exceção, entre todos os membros da sociedade, reduzindo dessa
forma a jornada de trabalho do indivíduo a tais limites, que deixem a todos um
tempo livre suficiente para que cada um intervenha - teórica e praticamente -
nos negócios coletivos da sociedade. Hoje somente é que se pode asseverar que
toda classe dominante e exploradora é inútil e, mais ainda, prejudicial e
entravadora do processo social. Até hoje, no entanto, não tinha chegado o
momento em que essas classes deveriam ser suprimidas, como o serão,
inelutavelmente, por mais que se defendam por detrás das trincheiras
da"força imediata".
O
Sr. Dühring, que cerra as sobrancelhas ao falar dos gregos, por que o seu
regime de vida estava baseado na escravidão, poderia também fechar-lhes a cara
por não conhecerem a máquina a vapor e o telégrafo sem fios. E, quando afirma
que a nossa moderna vassalagem assalariada não é mais que uma herança um pouco
modificada da escravidão, sendo uma instituição que não se pode explicar por si
mesma (isto é, pelas leis económicas da moderna sociedade). as suas palavras
significam que, ou o trabalho assalariado e a escravidão são duas formas de
dominação e império de uma classe sobre outra, coisa que qualquer criança já
sabe, ou, no caso de não significarem tal coisa, elas são falsas, pois, com a
mesma razão, poderíamos dizer que o trabalho assalariado somente pode ser
explicado como uma forma mitigada da antropofagia, que era, primitivamente, o
fim que se dava aos inimigos vencidos.
Compreende-se
com toda a clareza, do que ficou dito acima, qual o papel desempenhado pela
violência, na História, com relação ao desenvolvimento económico. Em primeiro
lugar, a força política se baseia, sempre, desde as suas origens, numa função
económica, social, e ela se intensifica na medida em que, com a dissolução da
primitiva comunidade, os indivíduos se convertem em produtores privados,
aprofundando-se mais ainda a sua separação dos que dirigem as funções sociais
coletivas. Em segundo lugar, assim que a força política adquire existência
própria em relação à sociedade, convertendo-se os seus detentores de servidores
em seus donos, pôde essa força passar a atuar em dois sentidos diferentes. As
vezes atua no sentido e com a orientação das leis que regem o desenvolvimento
económico. Neste caso, não há nenhuma discrepância entre os dois fatores, e a
violência não faz mais que acelerar o processo económico. Outras vezes,
entretanto, a força política atua em sentido contrário e, nestes casos, acaba
sempre por sucumbir, com raras exceções, frente ao vigor da evolução económica.
Essas raras exceções se referem a casos isolados de conquista, em que o
invasor, menos civilizado, extermina ou persegue a população de um país,
devastando ou deixando inutilizarem-se as forças produtivas do país invadido,
com as quais nada sabe realizar. Foi o que os cristãos, na conquista da Espanha
mourisca, fizeram com a maior parte das obras de irrigação, nas quais se
baseava o progressista sistema de agricultura e de horticultura dos árabes.
Toda a conquista de um país por parte de um povo inferior entorpece-lhe,
indubitavelmente, o desenvolvimento económico e anula numerosas forças
produtivas. Na imensa maioria dos casos, porém, casos em que a conquista é
duradoura, o conquistador, se for um povo inferior ao conquistado, não tem
outro remédio senão submeter-se à "situação económica" deste, que é
superior, terminando a conquista com a assimilação do conquistador pelo
conquistado, que lhe impõe, inclusive, na maior Parte das vezes, o seu próprio
idioma.
Nas situações em
que a força, além dos casos de conquista, é representada pelo poder interior do
Estado, e chega a se opor ao desenvolvimento económico do país. como vemos
acontecer sempre com o poder político, num determinado grau de evolução, nestes
casos, a luta termina sempre com a derrocada do poder político. A evolução
económica vence todas as barreiras, sempre, inexoravelmente, sem exceção.
Tivemos já oportunidade de citar o último exemplo histórico irrefutável desta
lei: a Grande Revolução Francesa. Se a situação económica, e com ela o regime
económico de cada país, estivesse na dependência simples da força encarnada no
Poder político, como quer a teoria do Sr. Dühring, não se compreenderia
por que, depois de 1848, Frederico Guilherme IV da Prússia, não
houvesse podido, apesar de seu"maravilhoso exército", mandar fundir
nas corporações medievais e noutras, quaisquer quimeras românticas as estradas
de ferro, as máquinas a vapor, e toda a grande indústria que começava por
aquela época a se desenvolver em seu país. Nem se compreende por que o
imperador da Rússia, muito mais poderoso que o rei da Prússia, não seja capaz
de pagar as suas dívidas, nem sequer consiga manter a sua
"violência", sem se comprometer, correndo constantemente em busca de
créditos, junto à"situação econômica" da Europa ocidental.
Para o
Sr. Dühring, a violência é a maldade absoluta. O primeiro ato de força é,
em sua Bíblia, o pecado original, reduzindo-se todo o seu arrazoado a um sermão
jeremíaco sobre o contágio do pecado original em todos os fatos históricos, e
sobre a infame deturpação de todas as leis naturais e sociais por esse poder
satânico, que é a força. Sabemos nós que a violência desempenha também, na
história, um papel muito diferente, um papel revolucionário; sabemos que ela é,
também, para usar uma expressão de Marx, a Parteira de toda a sociedade antiga,
que traz em suas entranhas uma outra nova: que é ela um instrumento por meio do
qual se faz efetiva a dinâmica social, fazendo saltar aos pedaços as formas
políticas fossilizadas e mortas. Mas, a respeito de tal aspecto. nada nos diz o
Sr. Dühring. Reconhece unicamente, entre suspiros e gemidos, que, para
derrubar o regime de exploração, não há outro remédio senão usar a violência:
desgraçadamente, acrescenta, pois o emprego da violência desmoraliza sempre a
quem a utiliza. E diz-nos essas palavras, esquecendo-se do elevado impulso
moral e espiritual que emana de toda revolução triunfante! E diz-nos tal coisa
aqui, na Alemanha. onde um choque violento - que se pode impor em caso
necessário, ao povo (quem o duvida?) - teria ao menos a vantagem de varrer da
consciência nacional essa espécie de submissão servil que dela se apoderou
desde a humilhação da guerra dos Trinta Anos! E será esse pregador desconexo,
sem seiva e sem força, quem pretenderá impor sua doutrinas ao partido mais
revolucionário que a história conhece?
Publicado: en Vorwärts, 3 de Janeiro 1877 - 7 de Julho 1878.
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