terça-feira, 22 de novembro de 2022

Anti-Dühring - Economia Política: Teoria da Violência (conclusão)

 

Friederich Engels

Paralelamente a este processo de formação de classes, ainda um outro se desenvolvia. O regime elementar de divisão do trabalho, implantado no seio da família lavradora, permitiu, ao ser atingido, um certo grau de bem-estar, a incorporação à família de uma ou várias forças de trabalho alheias à ela. Isso se deu, sobretudo, naqueles países em que o regime primitivo de propriedade do solo já se tinha desagregado, ou, pelo menos, tinha cedido lugar o sistema de exploração em comum ao cultivo individual das lotes de terra, pelas famílias isoladamente. A produção tinha-se desenvolvido em tais proporções que, então, a força humana de trabalho já era capaz de criar mais do que o necessário para o seu mero sustento. Contava-se com os meios indispensáveis para a manutenção de novas forças de trabalho, assim como com os meios necessários para dar-lhes ocupação. A força de trabalho adquiriu um valor. Mas nem a coletividade, por si mesma, nem o agrupamento de coletividades de que ela fazia parte podiam fornecer forças de trabalho disponíveis, excedentes. Fornecia-as a guerra, que já se efetuava a partir, pelo menos, dos tempos em que começaram a coexistir, lado a lado, distintos grupos sociais. Até essa época, não se tinha sabido, ainda, como empregar os prisioneiros de guerra, razão pela qual eram eles liquidados em vez de se os alimentar, como era costume em épocas anteriores. Ao chegar, porém, a esta etapa da evolução económica, os prisioneiros de guerra começaram a representar um valor. Por isso, deixaram-nos viver, a fim de aproveitarem-se de seu trabalho. Como vemos, a violência, longe de se impor sobre a situação económica, foi posta a serviço desta. Haviam sido lançadas as bases da instituição da escravidão. Não tardou esta em converter-se na forma predominante da produção em todos os povos que já haviam ultrapassado as limitações das comunidades primitivas, para terminar por ser uma das causas principais de sua ruína. Foi a escravidão que tornou possível a divisão do trabalho, em larga escala, entre a agricultura e a indústria, e foi graças a ela que pôde florescer o mundo antigo, o helenismo. Sem escravidão, não seria possível conceber-se o Estado grego, nem a arte e a ciência da Grécia. Sem escravidão não teria existido o Império Romano. E sem as bases do helenismo e do Império Romano não se teria chegado a formar a moderna Europa, Não nos deveríamos esquecer nunca que todo o nosso desenvolvimento económico, político e intelectual, nasceu de um estado de coisas em que a escravidão era uma instituição não somente necessária. mas também sancionada e reconhecida de um modo geral, Podemos, neste sentido, afirmar, legitimamente, que, sem a escravidão antiga, não existiria o socialismo moderno.

     Não há nada mais para fazer-se que lançar umas quantas frases melodramáticas contra a escravidão e contra tudo o que se lhe assemelha, derramando uma torrente de indignação moral contra semelhante ignomínia. Desgraçadamente, nada se consegue com isso, a não ser proclamar o que já todo o mundo sabe: que essas instituições dos tempos antigos já não se ajustam' à nossa época, nem aos sentimentos que essa época forma em cada um de nós. Por tal caminho, não conseguiríamos provar nem uma palavra sobre o modo por que nasceram essas instituições, nem como elas se mantiveram e o papel que desempenharam na História. Neste terreno, por mais paradoxal e mais herético que possa parecer, não temos outro remédio senão dizer que a implantação da escravidão representou, nas circunstâncias em que ocorreu, um grande progresso. É indiscutível que a humanidade saiu de um estado de animalidade e que necessitou utilizar, portanto, de meios bárbaros e quase bestiais para erguer-se desse estado de barbárie. As antigas comunidades, onde subsistem essas instituições, formam, desde milhares de anos, da Índia à Rússia, a base da mais tosca forma de Estado: o despotismo oriental. Somente onde essas comunidades primitivas se dissolveram, conseguiram os povos continuar progredindo por impulso próprio, e seu progresso econômico imediato consistiu precisamente em intensificar e desenvolver a produção por meio do trabalho dos escravos. Enquanto o trabalho humano era muito pouco produtivo, é claro que apenas fornecia um pequeno excedente, depois de satisfeitas as necessidades mais prementes da vida, não se podendo tratar da intensificação das forças produtivas, da ampliação do mercado, do aperfeiçoamento do Estado e do Direito, da fundação de nenhuma arte e de nenhuma ciência, a não ser pela mais reforçada divisão do trabalho, em cuja base estava, forçosamente, a grande divisão do trabalho entre as massas dedicadas ao simples trabalho manual e uns poucos privilegiados, ao cargo dos quais estava a direção dos trabalhos, o comércio, o trato dos negócios públicos e, mais tarde, o cultivo das artes e ciências. Pois bem; a forma mais simples e mais elementar de instituir essa divisão do trabalho foi a escravidão. Dentro das condições históricas do mundo antigo e, em especial, do mundo grego, o progresso que existia na instauração de uma sociedade baseada em antagonismos de classe, somente podia levar-se a cabo sob a escravidão. E representava esta instituição um progresso até para os próprios escravos: permitia, pelo menos, aos prisioneiros de guerra, entre os quais eram recrutados em seu maior número os escravos, que conservassem as vidas já que, até então, eram todos exterminados, no começo, por meio da fogueira, e, depois, por meio do cutelo.

     Já que a ocasião é propícia, queremos acrescentar que, até hoje, todas as diferenças históricas entre classes exploradoras e exploradas, dominantes e dominadas, tiveram a sua raiz nessa tão imperfeita produtividade relativa do trabalho humano. Enquanto a população realmente trabalhadora, absorvida por seu trabalho necessário, não teve nem um momento livre para se dedicar à direção dos interesses comuns da sociedade - direção dos trabalhos, dos negócios públicos, solucionamento dos litígios, arte, ciência, etc., tinha que haver necessariamente uma classe especial que, livre do trabalho efetivo, tratasse desses assuntos. Esta classe acabava sempre, infalivelmente por impor novas e novas sobrecargas de trabalho sobre os ombros das massas produtoras, além de explorá-las em seu proveito próprio. A gigantesca intensificação das forças produtivas, conseguida graças ao advento da grande indústria, é que tornou possível que o trabalho se possa distribuir, sem exceção, entre todos os membros da sociedade, reduzindo dessa forma a jornada de trabalho do indivíduo a tais limites, que deixem a todos um tempo livre suficiente para que cada um intervenha - teórica e praticamente - nos negócios coletivos da sociedade. Hoje somente é que se pode asseverar que toda classe dominante e exploradora é inútil e, mais ainda, prejudicial e entravadora do processo social. Até hoje, no entanto, não tinha chegado o momento em que essas classes deveriam ser suprimidas, como o serão, inelutavelmente, por mais que se defendam por detrás das trincheiras da"força imediata".

     O Sr. Dühring, que cerra as sobrancelhas ao falar dos gregos, por que o seu regime de vida estava baseado na escravidão, poderia também fechar-lhes a cara por não conhecerem a máquina a vapor e o telégrafo sem fios. E, quando afirma que a nossa moderna vassalagem assalariada não é mais que uma herança um pouco modificada da escravidão, sendo uma instituição que não se pode explicar por si mesma (isto é, pelas leis económicas da moderna sociedade). as suas palavras significam que, ou o trabalho assalariado e a escravidão são duas formas de dominação e império de uma classe sobre outra, coisa que qualquer criança já sabe, ou, no caso de não significarem tal coisa, elas são falsas, pois, com a mesma razão, poderíamos dizer que o trabalho assalariado somente pode ser explicado como uma forma mitigada da antropofagia, que era, primitivamente, o fim que se dava aos inimigos vencidos.

     Compreende-se com toda a clareza, do que ficou dito acima, qual o papel desempenhado pela violência, na História, com relação ao desenvolvimento económico. Em primeiro lugar, a força política se baseia, sempre, desde as suas origens, numa função económica, social, e ela se intensifica na medida em que, com a dissolução da primitiva comunidade, os indivíduos se convertem em produtores privados, aprofundando-se mais ainda a sua separação dos que dirigem as funções sociais coletivas. Em segundo lugar, assim que a força política adquire existência própria em relação à sociedade, convertendo-se os seus detentores de servidores em seus donos, pôde essa força passar a atuar em dois sentidos diferentes. As vezes atua no sentido e com a orientação das leis que regem o desenvolvimento económico. Neste caso, não há nenhuma discrepância entre os dois fatores, e a violência não faz mais que acelerar o processo económico. Outras vezes, entretanto, a força política atua em sentido contrário e, nestes casos, acaba sempre por sucumbir, com raras exceções, frente ao vigor da evolução económica. Essas raras exceções se referem a casos isolados de conquista, em que o invasor, menos civilizado, extermina ou persegue a população de um país, devastando ou deixando inutilizarem-se as forças produtivas do país invadido, com as quais nada sabe realizar. Foi o que os cristãos, na conquista da Espanha mourisca, fizeram com a maior parte das obras de irrigação, nas quais se baseava o progressista sistema de agricultura e de horticultura dos árabes. Toda a conquista de um país por parte de um povo inferior entorpece-lhe, indubitavelmente, o desenvolvimento económico e anula numerosas forças produtivas. Na imensa maioria dos casos, porém, casos em que a conquista é duradoura, o conquistador, se for um povo inferior ao conquistado, não tem outro remédio senão submeter-se à "situação económica" deste, que é superior, terminando a conquista com a assimilação do conquistador pelo conquistado, que lhe impõe, inclusive, na maior Parte das vezes, o seu próprio idioma.

     Nas situações em que a força, além dos casos de conquista, é representada pelo poder interior do Estado, e chega a se opor ao desenvolvimento económico do país. como vemos acontecer sempre com o poder político, num determinado grau de evolução, nestes casos, a luta termina sempre com a derrocada do poder político. A evolução económica vence todas as barreiras, sempre, inexoravelmente, sem exceção. Tivemos já oportunidade de citar o último exemplo histórico irrefutável desta lei: a Grande Revolução Francesa. Se a situação económica, e com ela o regime económico de cada país, estivesse na dependência simples da força encarnada no Poder político, como quer a teoria do Sr. Dühring, não se compreenderia por que, depois de 1848, Frederico Guilherme IV da Prússia, não houvesse podido, apesar de seu"maravilhoso exército", mandar fundir nas corporações medievais e noutras, quaisquer quimeras românticas as estradas de ferro, as máquinas a vapor, e toda a grande indústria que começava por aquela época a se desenvolver em seu país. Nem se compreende por que o imperador da Rússia, muito mais poderoso que o rei da Prússia, não seja capaz de pagar as suas dívidas, nem sequer consiga manter a sua "violência", sem se comprometer, correndo constantemente em busca de créditos, junto à"situação econômica" da Europa ocidental.

     Para o Sr. Dühring, a violência é a maldade absoluta. O primeiro ato de força é, em sua Bíblia, o pecado original, reduzindo-se todo o seu arrazoado a um sermão jeremíaco sobre o contágio do pecado original em todos os fatos históricos, e sobre a infame deturpação de todas as leis naturais e sociais por esse poder satânico, que é a força. Sabemos nós que a violência desempenha também, na história, um papel muito diferente, um papel revolucionário; sabemos que ela é, também, para usar uma expressão de Marx, a Parteira de toda a sociedade antiga, que traz em suas entranhas uma outra nova: que é ela um instrumento por meio do qual se faz efetiva a dinâmica social, fazendo saltar aos pedaços as formas políticas fossilizadas e mortas. Mas, a respeito de tal aspecto. nada nos diz o Sr. Dühring. Reconhece unicamente, entre suspiros e gemidos, que, para derrubar o regime de exploração, não há outro remédio senão usar a violência: desgraçadamente, acrescenta, pois o emprego da violência desmoraliza sempre a quem a utiliza. E diz-nos essas palavras, esquecendo-se do elevado impulso moral e espiritual que emana de toda revolução triunfante! E diz-nos tal coisa aqui, na Alemanha. onde um choque violento - que se pode impor em caso necessário, ao povo (quem o duvida?) - teria ao menos a vantagem de varrer da consciência nacional essa espécie de submissão servil que dela se apoderou desde a humilhação da guerra dos Trinta Anos! E será esse pregador desconexo, sem seiva e sem força, quem pretenderá impor sua doutrinas ao partido mais revolucionário que a história conhece?

Publicado: en Vorwärts, 3 de Janeiro 1877 - 7 de Julho 1878. 

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