Nicolau Maquiavel
De principati civili (Do principado civil)
Mas voltemos à outra hipótese, quando um
cidadão se torna senhor do seu país não por perfídia ou outra violência
execrável, mas, sim, pelo favor dos seus concidadãos, o que se pode chamar
principado civil (e para o conseguir não tem necessidade de possuir a
maior virtù ou a mais feliz das sortes, mas, antes, uma astúcia
afortunada). Alcança-se esta dignidade ou pelo favor popular ou pelo dos
grandes, pois em todas as cidades se encontram estas duas tendências diferentes,
resultantes do facto de o popular não gostar de ser mandado nem oprimido pelos
mais poderosos e de os poderosos terem sede de mandar e oprimir o povo. Destes
dois apetites diferentes resulta nas cidades um dos três efeitos seguintes:
principado, ou liberdade, ou desregramento.
O principado provém do povo ou dos grandes,
conforme a oportunidade se oferece a um ou aos outros. Os mais ricos, ao verem
que não podem resistir ao povo, começam a criar fama a um deles e constituem-no
seu príncipe, a fim de, à sua sombra, poderem saciar os seus apetites. Pelo seu
lado, o povo apenas dá fama a um só quando compreende que, de outro modo, não
pode fazer frente aos grandes, e elege-o príncipe para que o defenda. O que
chega a príncipe com a ajuda dos ricos mantém-se com mais dificuldade do que
escolhido pelo povo, pois, vendo-se príncipe no meio de outros que lhe parecem
seus iguais, não os pode comandar nem afeiçoar a seu gosto. Mas aquele que
chega a príncipe pelo favor do povo encontra-se sozinho e não tem à sua volta
ninguém – ou então tem muito poucos – que não esteja pronto a obedecer-lhe. Não
se pode honestamente, e sem prejudicar os outros, contentar os grandes, mas
deve-se contentar o povo, porque o desejo deste é mais honesto do que o
daqueles que procuram atormentar os pequenos, que não querem ser atormentados.
Aliás, um príncipe com um povo hostil nunca se pode sentir em segurança, pois o
povo é muito numerosos, mas pode-se precaver dos grandes. Que são poucos. O
pior que pode acontecer a um príncipe cujo povo é seu inimigo é ser abandonado
por ele, mas, se os grandes lhe são contrários, deve temer não só que o
abandonem, mas também que lhe caiam em cima, porque, possuidores de melhor
visão e de mais astúcia do que o povo, nunca perdem tempo, tratam logo de se
pôr a salvo e de procurar as boas graças de qualquer outro que o vença.
Acontece ainda que o príncipe é obrigado a viver sempre com o mesmo povo, mas
pode passar bem sem os grandes, pode criá-los e destruí-los todos os dias,
tirar-lhes e dar-lhes poder e autoridade quando lhe aprouver.
Para melhor entender este ponto, digo que os
grandes se podem analisar de duas maneiras principais. Ou, pelo seu
procedimento, se governam de tal modo que se associam em todas as coisas, à
sorte do príncipe, ou não se associam. Aqueles que se sujeitam e não pilham
devem ser honrados e amados; aqueles que não procedem assim devem ser encarados
de duas maneiras. Ou são como são por falta de ânimo e cobardia natural, e
nesse caso o príncipe deve servir-se deles, principalmente dos que são bons
conselheiros, porque o honram, quando as coisas correm bem, e na adversidade
não lhe podem fazer mal. Mas quando não se querem comprometer por cálculo e
ambição, é sinal de que pensam mais neles do que no príncipe, e, nesse caso,
este deve precaver-se e temê-los como se fossem inimigos declarados, pois na
adversidade ajudarão sempre a arruiná-lo.
Assim, quem chegar a príncipe com a ajuda do
povo deve conservar sempre a sua amizade – o que lhe será fácil, visto o povo
só desejar que não o oprimam. Mas aquele que se torna príncipe contra o povo e
pelo favor dos grandes deve esforçar-se, acima de tudo, por aliciar o povo, por
ganhar a sua amizade – o que lhe será fácil, se o tomar sob a sua protecção. E
como os homens são de tal natureza que, se recebem bem daqueles de que
esperavam mal, se sentem mais gratos do que se sentiriam de qualquer outro
modo, o povo amá-lo-á ainda mais do que se ele próprio o tivesse eleito. O
príncipe poderá conquistá-lo de muitas maneiras, das quais, em virtude de
mudarem conforme os súbditos, não se pode indicar a regra certa e, por isso,
não falarei. Repetirei apenas ser necessário que um príncipe se faça amar pelo
seu povo, porque de contrário não terá nenhum remédio nas suas adversidades.
Nábis, rei de Esparta, resistiu ao ataque de toda a Grécia e de um exército
romano, que se ufanava de diversas vitórias, e para defender a sua pátria e os
seus estados contra esse perigo bastou-lhe precaver-se contra poucas pessoas.
Isso não lhe bastaria se o povo o odiasse. E não me venham, para rebater a
minha opinião, com o provérbio de que «quem se apoia no povo constrói
sobre o lodo» .É bem verdade que, quando um simples cidadão tem essa veleidade
e imagina que o povo o libertará se inimigos ou magistrados o oprimem, verifica,
muitas vezes, que só recebe ofensas, como sucedeu aos Gracos, em Roma, e a
Messere Jorge Scali, em Florença. Mas se aquele que se apoiar no povo for um
príncipe capaz de comandar, e se for homem de ânimo a quem os perigos e os
reveses não assustem, e se encorajar todos com a firmeza do seu espírito e as
ordens que der, se for um príncipe assim, verá que o povo nunca o deixará mal,
verá que construiu sobre bons alicerces.
Estes principados tornam-se periclitantes
quando saltam de um governo civil para um governo absoluto, porque tais
príncipes mandam ou por si próprios ou por intermédio de magistrados. No
segundo caso, a sua situação mais fraca e perigosa, visto dependerem
inteiramente da vontade daqueles que têm tais dignidades, os quais os podem
arruinar facilmente, sobretudo em tempo de adversidade, voltando-se contra eles
ou deixando de lhes obedecer. Em momento de perigo já não é altura de o
príncipe pensar em retomar a autoridade, porque os cidadãos e os súbditos, que
se habituaram às ordens dos magistrados, não sentem inclinação, em
circunstâncias de crise, para obedecer às suas. Em épocas duvidosas, um tal
príncipe terá sempre poucos em quem possa confiar. Não se poderá basear no que
viu em tempo tranquilo, quando os cidadãos têm necessidade do Estado, pois
então todos o lisonjeiam, todos lhe
fazem promessas e todos querem morrer por ele,
visto a morte estar longe; mas quando a fortuna é adversa e o Estado precisa
dos cidadãos, encontra poucos. E a experiência é mais perigosa, ainda, porque
só pode ser feita uma vez. Por isso, um príncipe sensato e prudente deve achar
maneira de os seus súbditos terem necessidade dele e do Estado em todas as
circunstâncias de fortuna ou infortúnio. Assim, ser-lhe-ão sempre fiéis.
“O Príncipe”, Nicolau Maquiavel. 1972.
Publicações Europa-América.
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