Devemos considerar no mínimo estranho que no dia de 10 de Junho de cada ano se comemore o “Dia” de “Portugal” – anteriormente era da “Raça”, este ano terá sido das “Forças Armadas” e da “arraia-miúda” –, aproveitando o dia em que morreu, segundo consta porque não se sabe ao certo, o poeta Luís de Camões, homem incompreendido e abandonado pelas elites de então em situação de doença e na mais absoluta miséria. Comemorar o dia de um país, independentemente do conceito que se tem de “país”, num dia em que houve um óbito não augura nada de bom para o futuro de quem quer que seja, muito menos de um país ou de um povo. Parece que o agoiro continua presente e bem para além das profecias do sapateiro ou do padre missionário, fazendo fé no que se passa no país.
Este ano de 2022 e em governo de maioria absoluta do partido socialista – fundado em 1973 com o dinheiro da social-democracia alemã – as comemorações não tiveram a honra da presença do primeiro-ministro, há seis anos no poder sem oposição, por se encontrar retido em casa, presumimos, devido a “doença”; pela informação do presidente Marcelo, não terá sido nada de grave, já foi anunciada para amanhã a sua ida a Londres, ao que consta, para assinar com o seu homólogo britânico um “acordo político global para regular as relações bilaterais luso-britânicas” após o Brexit. Marcelo esteve assim à vontade para explanar livremente as suas ideias quanto ao país, ao povo, denominado “arraia-miúda”, e quanto ao governo; mas quanto a este último de forma velada, coisa que parece ter escapado a alguns jornalistas e paineleiros televisivos, e, em particular, mandar umas indirectas ao Costa.
O presidente/rei começou pela “graxa”, no seu melhor estilo de sedução: “A nossa pátria é o povo”. Foi um longo elogio ao povo português, como referem os media mainstream, numa mistura de populismo e de adulteração da História de Portugal, bem retratados em "sem o povo, sem a arraia miúda, não teria havido Portugal". Sabemos que a história da humanidade é a história da luta de classes, como também se sabe que, desde o início da nacionalidade e ao longo dos séculos da existência de Portugal, a luta foi dirigida pelas diversas elites que se sucederam no poder, utilizando como meio a dita arraia-miúda que, quando se sentia prejudicava, não deixava de lutar pelos seus interesses, fazendo frustrar parcialmente algumas das pretensões da elite em ascensão. E a demagogia presidencial não se fez poupada quando refere às lutas liberais e, nomeadamente, evoca a Constituição de 1822 e a independência do Brasil, dois acontecimentos ainda abominados por boa parte da nossa elite saudosa do império colonial e do antigo regime autoritário – Salazar era um monárquico, à semelhança de Marcelo, que se regia pelo Código de Direito Canónico –, assim como o estudo do período do Liberalismo sempre foi desprezado antes e depois do 25 de Abril no ensino público.
Marcelo esteve à vontade para encher a boca com o povo, o que não deixa de ser irónico conhecendo-se a origem social da criatura e o facto de, graças a essa situação, não ter cumprido o serviço militar obrigatório, como aconteceu com todos os homens saudáveis da sua idade e geração, e para, fazendo jus à palavra de ordem da sua oligarquia, “defender a Pátria” no antigo Ultramar. A técnica é mais do que evidente, dar graxa ao povo, envolver-se num mar de multidão, mostrar que a sua popularidade não é inferior à do governo e, principalmente, à do seu rival político Costa. Se o governo possui a maioria absoluta através do voto, ele, Marcelo, tem o apoio entusiasta e incondicional do povo na rua; uma espécie de CGTP em modo plural em termos sociais, uma espécie de selecção nacional de futebol, é transversal. Marcelo seguiu a intervenção do caquético Jorge Miranda, o considerado “Pai” da Constituição da República mesmo depois das inúmeras revisões que já sofreu, no que concerne à formação do Portugal Liberal de 1820 e, contrariando os avisos deste último quanto ao perigo dos “populismos nacional-radicais”, entrou numa de populismo nacional em modo moderado. A arte da representação e da hipocrisia não ficou por mãos alheias e Costa que se cuide.
Em ambos os discursos, Marcelo e Miranda, reclamou-se “melhor democracia” e “melhor patriotismo”. Foi uma das tónicas dominantes, ficando-se com a sensação de que neste reino à beira-mar plantado tanto uma coisa como a outra não andarão lá muito bem; caso contrário, nem sequer seriam referidas ou seriam referidas com menos enfâse. A primeira é abertamente um recado dirigido ao governo e a Costa para não abusarem da maioria absoluta; Marcelo lá estará a marcar posição com o veto, que será quase de certeza de novo utilizado na Lei da Eutanásia recentemente aprovada pela Assembleia da República. Quanto a patriotismo, há muito que estamos conversados quanto à veracidade ou solidez deste sentimento. Bastará olhar para o comportamento das nossas elites ou parte significativa delas ao longo da História de Portugal quando este foi invadido por forças estrangeiras: ou viraram-se para o inimigo, fim da primeira dinastia e da perda da independência, ou fugiram, invasões napoleónicas, abandonando o povo e deixando o país entregue aos ingleses, tornando-se Portugal a partir desse momento num mero protectorado britânico. No tempo presente ouvir da boca de um Marcelo, o dignatário máximo do país e chefe supremo das forças armadas (que fugiu à tropa!) palavras como “patriotismo” é simplesmente caricato; ou provocatório se atendermos que se trata de um país que pertence à Nato e faz parte da União Europeia, sinónimo de falta de soberania monetária, económica e de segurança e, em suma, política (OE-22 depois de aprovado ainda vai ao aval de Bruxelas!)
O presidente da República, bem como o presidente da comissão organizadora das comemorações, colocou na agenda política/económica o mar como prioridade, justificando com o passado glorioso do povo português que se espalhou pelo mundo, escamoteando que a dita “epopeia marítima” foi um projecto da elite – colonial e que deu origem à actual globalização e agora em fim de vida – e não do povo; e se este quase despovoou o país – no final do século XVI terá emigrado cerca de um terço da população que existia no início – foi devido à miséria em que esse povo, agora tão glorificado, vivia. Exactamente à semelhança do que aconteceu no século passado, especialmente nas décadas de sessenta e setenta, e ainda no momento presente. Portugal é, juntamente com a Irlanda, o país europeu de onde mais se saiu para fugir à fome; ao contrário do País Basco, por exemplo, onde a luta contra as arbitrariedades políticas, as injustiças sociais e a adversidades da vida sempre esteve presente e constitui quase uma tradição; entre nós, é o individualismo que impera e o resultado está bem à vista. E se referirmos os indicadores económicos e sociais mais recentes, fica-se com a nítida sensação – e se persistirmos neste caminho, que mais não é que uma corrida cega para o precipício – de que Portugal como país não tem qualquer futuro. Esquecem-se de uma questão: na União Europeia, o mar já não é nosso.
Vale pelo simbolismo o acontecimento, noticiado ainda há pouco tempo, do roubo do canhão do reinado de D. João V da fortaleza de Valença. Não é somente a incúria pelo nosso património – património histórico que atesta a luta do povo pela independência do país – mas o saque de que o povo é vítima, constantemente e na maioria das impunidades, e do qual a nossa seráfica elite cobra sempre a devida percentagem. 10 de Junho será mais o dia dos finados.
Cartune: Afonso in "P"
Original em temposdecolera
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