quinta-feira, 9 de junho de 2022

O direito à resistência

 

Giorgio Agamben

Tentarei compartilhar com vocês algumas reflexões sobre a resistência e a guerra civil. Não estou lembrando que já existe um direito de resistência no mundo antigo, que tem uma tradição de louvar o tiranicídio, e na Idade Média. Tomás resumiu a posição da teologia escolástica no princípio de que o regime tirânico, na medida em que substitui um interesse partidário pelo bem comum, não pode ser iustum. A resistência – Thomas diz a perturbatio – contra esse regime não é, portanto, uma seditio.

Escusado será dizer que a questão comporta necessariamente um certo grau de ambiguidade quanto à definição do carácter tirânico de um determinado regime, como atesta a cautela de Bartolo, que no seu Tratado sobre os guelfos e os gibelinos distingue um tirano a ex defectu tituli de um tirano ex parte exercitii, mas depois tem dificuldade em identificar uma iusta causa resistendi.

Essa ambiguidade reaparece nas discussões de 1947 sobre a inclusão de um direito de resistência na constituição italiana. Dossetti havia proposto, como você sabe, que o texto incluísse um artigo que dizia: "A resistência individual e coletiva a actos do poder público que violem as liberdades fundamentais e os direitos garantidos por esta Constituição é um direito e um dever dos cidadãos".
O texto, que também foi apoiado por Aldo Moro, não foi incluído e Meuccio Ruini, que presidiu a chamada Comissão dos 75 que deveria preparar o texto da Constituição e que, alguns anos depois, como presidente do Senado, teve de se destacar pela forma como tentou impedir a discussão parlamentar sobre a chamada lei da fraude, preferiu adiar a decisão para a votação da assembleia, que sabia que seria negativa.

Não se pode negar, porém, que as hesitações e objeções de juristas – inclusive de Costantino Mortati – não foram isentas de argumentos, quando apontaram que a relação entre direito positivo e revolução não pode ser regulada juridicamente. É o problema que, no que diz respeito à figura do partidário, tão importante na modernidade, Schmitt definiu como o problema da "regulação do irregular". É curioso que os juristas estivessem falando da relação entre direito positivo e "revolução": ter-me-ia parecido mais precisamente falar de "guerra civil". De fato, como traçar uma linha entre o direito de resistência e a guerra civil? A guerra civil não é o resultado inevitável de um direito de resistência seriamente entendido?

A hipótese que hoje pretendo propor a vocês é que essa forma de abordar o problema da resistência negligencia o essencial, ou seja, uma mudança radical que diz respeito à própria natureza do Estado moderno - ou seja, do Estado pós-napoleónico. Não podemos falar de resistência sem antes refletirmos sobre essa transformação.

O direito público europeu é essencialmente um direito de guerra. O Estado moderno se define não apenas, em geral, pelo monopólio da violência, mas, mais concretamente, pelo monopólio do jus belli. O Estado não pode renunciar a esse direito, mesmo ao custo, como vemos hoje, de inventar novas formas de guerra.

jus belli não é apenas o direito de fazer e travar guerras, mas também o direito de regular legalmente a condução da guerra. Distinguiu-se assim entre o estado de guerra e o estado de paz, entre o inimigo público e o criminoso, entre a população civil e o exército combatente, entre o soldado e o guerrilheiro.

Agora sabemos que precisamente essas características essenciais do jus belli desapareceram há muito tempo e minha hipótese é precisamente que isso implica uma mudança igualmente essencial na natureza do Estado.
Já durante a Segunda Guerra Mundial, a distinção entre a população civil e o exército combatente havia sido progressivamente obliterada.

Uma luz indicadora é que as convenções de Genebra de 1949 reconhecem um status legal para a população que participa da guerra sem pertencer ao exército regular, com a condição, no entanto, de que os comandantes possam ser identificados, que as armas sejam exibidas e que haja algum marca.

Mais uma vez, estas disposições não me interessam porque conduzem ao reconhecimento do direito de resistência – aliás, como viram, muito limitado: um partidário que exibe as suas armas não é um partidário, é um partidário inconsciente – mas porque implicam uma transformação do mesmo estado, como titular do jus belli.

Como vimos e continuamos a ver, o Estado, que do ponto de vista estritamente jurídico, entrou agora definitivamente no estado de excepção, não abole o jus belli, mas ipso facto perde a possibilidade de distinguir entre guerra regular e guerra civil. Estamos diante de um Estado que está conduzindo uma espécie de guerra civil planetária, que não pode de forma alguma reconhecer como tal.

A resistência e a guerra civil são, portanto, classificadas como actos de terrorismo e não será descabido aqui recordar que a primeira aparição do terrorismo após a guerra foi obra de um general do exército francês, Raoul Salan, comandante supremo das forças armadas francesas na Argélia, que havia criado em 1961 a OEA, que significa: Organização armée secrète. Pense na fórmula "exército secreto": o exército regular se torna irregular, o soldado se confunde com o terrorista.

Parece-me claro que em face deste Estado não se pode falar de um "direito de resistência", possivelmente codificável na constituição ou dela adquirível. Pelo menos por duas razões: a primeira é que a guerra civil não pode ser regulamentada, como o Estado, por sua vez, está tentando fazer por meio de uma série indefinida de decretos, que alteraram de alto a baixo o princípio da estabilidade da lei. Temos na origem um Estado que conduz e tenta codificar uma forma disfarçada de guerra civil.
A segunda, que para mim constitui uma tese inalienável, é que nas condições atuais a resistência não pode ser uma atividade separada: ela só pode se tornar uma forma de vida.
Só haverá resistência real se e quando cada um for capaz de extrair desta tese as consequências que lhe dizem respeito.

quodlibet

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