segunda-feira, 20 de junho de 2022

QUANDO OS LOBOS UIVAM

Aquilino Ribeiro

Chegado pois Outubro, despejavam-se os povos para as portelas da serra, quando uma voz correu: Deixassem-se ficar em casa: o Governo ia já tomar conta da serra e expulsá-los. Acabou-se; nunca mais teriam o direito de lá cortar um chamiço ou levar uma ovelha parida a encher o fole.

Meia manhã, era tudo cheio nas dez aldeias e nos montes, onde alguns roçadores e mateiros tinham rompido na faina sôfrega e desatinada. Quem levou a notícia? Foi este tio, foi aquele recoveiro, foi a Júlia Tanganha, que anda aos ovos, foi o António João que passou com a camioneta, a questão é que era verdade. Tão verdade que já estavam na vila os carros dos engenheiros e as máquinas de lavrar – informou outra voz. Vinham portanto os cães do Governo escorraçá-los da serra! Então o dia de juízo estava a amanhecer!

Governo para o aldeão é sinónimo de Estado e de tudo o que dá leis, uma quadrilha do olho vivo. Já lhes levavam coiro e camisa em contribuições, tributos, posturas, alcavalas de vária ordem, e vinham ainda esbulhá-los da serra! Hoje a serra, amanhã, por uma razão análoga, corriam-nos de casa para fora. Ah, cachaporra dum santo! O que todos queriam era viver à custa da barba longa, mãos brancas com bons anéis, bom automóvel, amigas para o gozo e criadas para todo o serviço que vinham buscar aos viveiros da plebe, cabritos gordos que se criavam nos ferregiais, e trutas que eles serranos estavam proibidos de pescar nos seus rios. Que maiores carrascos e ladrões!?

Esta era a noção que tinham do Governo. O Governo não era formado por um corpo de homens bons e sábios, com função directiva, reguladora e distribuidora dos bens comuns, e atentos à promulgação e defesa do direito? Qual o quê? Bandoleiros das encruzilhadas e gorgulhos silenciosos das arcas e larvas da carne é que eles eram!

– Morram! – rouquejava a voz irosa pelas vielas das dez aldeias.

Uma vez a correr o rumor de que o Governo ia tomar posse da serra, o problema transcendia para o terreno do assalto e roubalheira à mão armada. Em brejos e chapadas, os roçadores endireitaram a suã e, queixo por cima dos punhos, apoiados ao cabo da roçadoira, olhos em alvo, quedavam-se a considerar. Alguns amortalhavam o seu paivante. Os mais desatinados jogaram fora a enxada:

– Se me hão-de levar o mato, já não roço mais. Puta que os pariu!

Foram-se juntando e alagando os ecos com sua grita de incêndio. Entretanto tais e tais mandavam dizer para casa que viessem buscar as cocadas, que no dia seguinte de sorte as poderiam levantar. E a alturas do meio-dia uma grande febre se tinha apossado da população, em remoinho e zumbente. Depois, com o entrechoque de opiniões e sentenças e os fumos da vinhaça bebida à desmedida, a cólera subiu. De aldeia para aldeia como de homem para homem trocavam-se protestos de tesura. Tudo a postos, sem que soasse o clarim! Ia-se ver quem os tinha no seu lugar. Parada da Santa era a sede do quartel general, uma vez que ali residia o mais afoito e denodado dos serranos, homem de cabeça e de pulso, o João Rebordão. Este, por fas ou por nefas, estava arvorado em caudilho. Mas ele queria e, tomando a investidura a capricho, desatou a dar ordens de alevante. Os mensageiros largaram a todos os horizontes a pé e a cavalo, para trazerem essa noite, a bem ou a mal, a Parada os maiorais das aldeias. Havia que combinar as operações contra o inimigo. Os portadores eram moços de cara direita, prontos como ordenanças, e com todo o recato, sem soprar palavra, a fim de não dar azo a que se esquivassem os medrosos, cumpriram as instruções à risca.

Foi assim que o Manuel do Rosário, alcaide virtual da Azenha, recebeu a parte. Andava ele, ferreiro com larga freguesia de porta e de mercado, a amanhar carvão nas devesas da serra, que lhe faltara de todo na forja, quando se apercebeu de dois homens que cresciam de peito para ele, mato fora. Só o fumo da queimada, encastelando-se direito no céu sereno, os pudera guiar até aqueles andurriais, longe de vila e termo. Viandantes desgarrados, gente com recado, bandoleiros, foi-se pondo de sobreaviso.

– De parte do senhor João Rebordão, de Parada da Santa – disse um dos homens depois de salvar. – Meu amo roga-lhe o favor de chegar lá...

– Chegar lá...? Há novidade em casa do meu compadre?

– Que me conste, não há.

– Vêm de caso feito?

– Saiba vossemecê que sim.

Manuel do Rosário quedou meditabundo, de braços à dependura, rente à cova, redonda como cisterna, que o torgo em brasa enrubescia. Trabalhava-o o incerto motivo daquele passo.

– Não desconfiam para que seja?

– Pergunta bem... – respondeu o que parecia ter a cargo ser o língua da embaixada, abrindo as mãos em sinal de ignorância.

Em volta, suspensos como ele, o Calhandro, moço da forja, e os filhos, Céu, muito amojuda e cheia das ancas, Serafim, ainda com pêlo de rato no pescoço, olhavam admirados.

O ferreiro enxotou-os:

– Gira, estes tios não trazem bêberas.

Rodaram, e ele pegou dum estaqueiro a espertar o fogo que amortecia. E, esquivando a cabeça à labareda que se ateava com a mexida, os dentes em arreganho, murmurou:

– Alguma coisa há... Meu compadre não é homem para panos quentes.

Os recoveiros não descerraram os lábios e ele decidiu-se:

– Pois, amigos, eu amanhã, se Deus quiser, lá apareço.

– O senhor João Rebordão pede-lhe para vir hoje.

– A estas horas? São duas da tarde, para mais que não para menos. Os dias vêem-se fugir...

– Nós fazemos-lhe companhia – pronunciou o que estivera mudo até então. – Os lobos não o comem...

– Assim é sangria desatada?

– Só sabemos que nos mandou dar-lhe este recado, estivesse lá no cabo do mundo.

– Mas é noite, meus santos, é noite! A que horas chegamos lá? E quem me há-de tratar do carvão?... A gente que para aí trago só presta para comer...

– Jurámos que o havíamos de levar... Sem o amigo não entramos à porta do senhor João Rebordão – tornou o segundo num assomo de impaciência, mostrando a dentuça de mastim.

– Boa vai ela – disse o ferreiro em tom sorridente. – Pois já que assim é, vamos lá. Manda quem pode...

Traçou da véstia e, deitando uma derradeira vista de olhos à cova ardente, disse para o Calhandro:

– Ao tempo de abordarmos ao povo, abafai. Mas haveis de pôr mais tocas. Os torrões também não são bastantes...

E despediu de vereda para a aldeia a ensaboar-se e a vestir o fato de ver a Deus, que não parecia bem ao pai dum senhor doutor – trazia um filho em Coimbra – pôr pé em terra alheia, roto, com a roupa de cote e suja à força de bater.

Caminho fora, Manuel do Rosário, sobressaltado, não se lembrando, em seu génio intemporal, que se podia tratar da serra, tentou ainda espreitar para a alma crispada dos estafetas. Com manhoso jeito, de começo; deliberadamente, sem resguardo, depois:

– Amigos, vamos a fumar. Para entreter o caminho...

– Bem haja, foi extravagância que nunca usei – respondeu o mais velho, declinando o cigarro que o Rosário lhe metia pelos olhos.

E não houve modo de lhes abrir a boca.

Foi só perto de Parada da Santa que, topando-se com outros amigos e moradores de Arcabuzais da Fé, Corgo das Lontras, Urrô do Anjo, Ponte do Junco, veio ao fundamento do negócio. Quando chegaram à povoação, tendo-se-lhes associado vizinhos daquém e dalém, chamava-se àquilo uma açudada de gente.

Era à noitinha e na casa deste e daquele se deparou agasalho aos forasteiros. Cearam, beberam e, antes de volverem a suas terras, juntos os chefes no alpendre do Rebordão, concertaram a táctica a seguir.

Manhã alta, quando romperam para o planalto as duas turmas dos Serviços Florestais com tractores, caterpillars , arados de ferro puxados a bois do vale do Távora, e uma centena de operários engajados, longe, nas aldeias famintas dos ratinhos, já encontraram muito povo pelas rechãs. Da banda do norte, no sector compreendido pelos lugares de Valadim das Cabras, Almofaça, Azenha, Parada da Santa, Rebolide, comandava o engenheiro-chefe Streit da Fonseca. Os aldeões, que foram saindo das luras, perante o homem de meia-idade, alto, de lábios e mãos delicadas, cabelo loiro aparado à escovinha, orelhas tombantes, olhos pequenos por cima duma massa gelatinosa cor de açafrão, uma grande carraça branca no ouvido, cobraram o seu respeito. Reparando bem para ele, ficaram com a ideia dum rosto cortado à goiva, ângulos vivos, linhas bruscas, como as imagens dos santeiros na primeira mão.

Nas outras aldeias, sul e sudoeste, Arcabuzais da Fé, Urrô do Anjo, Ponte do Junco, Favais Queimados, Corgo das Lontras, superintendia César Fontalva. Instalado no jeep com a sua pasta e as suas plantas topográficas, acolhia afável e risonho a quem vinha. Quando este aparato todo, com a sua mecânica infernal e caras que ninguém vira mais gordas, automóveis pejados de ferramentas, uma carrinha alentejana com sobrecéu amarelo, vozes, petardadas dos motores, subiu de Almofaça para a serra pelo caminho dos gados, o gentio que restava dentro de muros saiu a ver. Igual apenas os cortiços quando enxameiam:

– Excomungados, vêm-nos roubar a serra!

-Oh, malditos eles sejam!

-Onde vão pastar as nossas pobres ovelhinhas?

– Toque-se a rebate! Toque-se a rebate, e vamo-nos a eles!

E, de facto, os sinos de Almofaça desataram a tocar. Estes passaram senha aos outros, e dali a pouco dez, vinte campanários repicavam freneticamente. Pelas aldeias, velhos, mulheres e crianças, depois de atafulharem no caldo mais umas sopetarras, e meterem na algibeira o seu tropeço de broa com meio queijo ou um salpicão, puseram-se em marcha para a serra, a ajuntar-se às hostes. Estava um dia mortiço de Inverno, e na luz baça, esvantes, os longes perdiam todo o relevo. Aos engenheiros em seus jeeps devia ter sido assinalado o avanço das várias colunas de povo que marchavam a corta-mato, subindo os cerros, afundindo-se nos vales para reaparecer mais perto, nítidas e truculentas, com seu matiz de horda, estopa, burel, chitas versicolores nas mulheres, mobilidades fugazes de rapazes e rapariguinhas, e uma ou outra voz mais alta, às vezes um rumor de palavras marteladas, trazidas na refega do vento. Eram seis, dez colunas, afora os grupos por detrás dos oiteiros, que se viam crescer. A certa altura, a falange que parecia mais compacta deteve-se, um galope de cavalo à distância dos caterpillars. Logo vultos se entrecruzaram dumas para as outras, por certo no papel de parlamentários.

Streit, que era homem de expediente, deu ordem para que se iniciassem os trabalhos. As escavadoras por um lado, as juntas de bois por outro, romperam. No intuito de averiguar com que fígados vinha aquela gente mandou os dois Lêndeas falar com eles.

Bruno chegou e disse:

– Vós que quereis? Medir-vos com a tropa? Estais muito enganadinhos. Não vedes a cavalaria com as clavinas a tiracolo? Reparai bem para o que ides fazer. Depois não vos queixeis!

– Traidor! Fora o traidor! Fora o lêndeas que se vendeu!

Bruno Barnabé, ante aquela assuada, temeu-se:

– Não me queiram mal, rapazes! Cada um governa a vida como pode. Eu estou convosco, mas é preciso tino. O chefe é o Rebordão, não é? Onde está ele?

O Rebordão apartou-se com Bruno. Lá estiveram em grande cavaco, primeiro contumelioso, depois amainado.

Na outra turma, onde dirigia Fontalva, Modesto Lêndeas não chegou a assentar pé. Correram com ele. O Louvadeus disse-lhe:

– Aqui não se toca em ninguém com um dedo molhado. Vai dizê-lo ao chefe e deixa-nos campo para cebolas. Mas já!...

(“Quando os Lobos Uivam”, Aquilino Ribeiro. Bertrand Editora, 2005)

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