Karl Marx
No umbral da Revolução de Fevereiro, a
república social apareceu como uma frase, como uma profecia. Nas jornadas de
junho de 1848 foi afogada no sangue do proletariado de Paris, mas ronda os subsequentes
atos da peça como um fantasma. A república democrática anuncia o seu advento. A
13 de junho de 1849 é dispersada juntamente com sua pequena burguesia, que se
pôs em fuga, mas que na corrida se vangloria com redobrada arrogância. A
república parlamentar, juntamente com a burguesia, apossa-se de todo o cenário;
goza a vida em toda a sua plenitude, mas o 2 de dezembro de 1851 a enterra sob
o acompanhamento do grito de agonia dos monarquistas coligados: "Viva a
República!"
A burguesia francesa rebelou-se contra o
domínio do proletariado trabalhador; levou ao poder o lúmpen proletariado tendo
à frente o chefe da Sociedade de 10 de Dezembro. A burguesia conservava a
França resfolegando de pavor ante os futuros terrores da anarquia vermelha;
Bonaparte descontou para ela esse futuro quando, a 4 de dezembro, fez com que o
exército da ordem, inspirado pela aguardente, fuzilasse em suas janelas os
eminentes burgueses do Bulevar Montmartre e do Bulevar des Italiens. A
burguesia fez a apoteose da espada; a espada a domina. Destruiu a imprensa
revolucionária; sua própria imprensa foi destruída. Colocou as reuniões
populares sob a vigilância da polícia; seus salões estão sob a Guarda Nacional
democrática; sua própria Guarda Nacional foi dissolvida. Impôs o estado de
sítio; o estado de sítio foi-lhe imposto. Substituiu os júris por comissões
militares; seus júris são substituídos por comissões militares. Submeteu a
educação pública ao domínio dos padres; os padres submetem-na à educação deles.
Desterrou pessoas sem julgamento; está sendo desterrada sem julgamento.
Reprimiu todos os movimentos da sociedade através do poder do Estado; todos os
movimentos de sua sociedade são reprimidos pelo poder do Estado. Levada pelo
amor à própria bolsa, rebelou-se contra seus políticos e homens de letras; seus
políticos e homens de letras foram postos de lado, mas sua bolsa está sendo
assaltada agora que sua boca foi amordaçada e sua pena quebrada. A burguesia
não se cansava de gritar à revolução o que Santo Arsênio gritou aos cristãos:
Fuge, tace, quíesce! (Foge, cala, sossega!) Agora é Bonaparte que grita à
burguesia: Fuge, tace, quiesce!
A burguesia francesa há muito encontrara a
solução para o dilema de Napoleão: Dans cinquante ans l'Europe sera
republicaine ou cosaque!(26) Encontrara a solução na république cosaque.
Nenhuma Circe, por meio de encantamentos, transformara a obra de arte que era a
república burguesa, em um monstro. A república não perdeu senão a aparência de
respeitabilidade. A França de hoje já estava contida, em sua forma completa, na
república parlamentar. Faltava apenas um golpe de baioneta para que a bolha
arrebentasse e o monstro saltasse diante dos nossos olhos.
Por que o proletariado de Paris não se
revoltou depois de 2 de dezembro?
A queda da burguesia mal fora decretada; o
decreto ainda não tinha sido executado. Qualquer insurreição séria do
proletariado teria imediatamente instilado vida nova à burguesia, a teria
reconciliado com o exército e assegurado aos operários uma segunda derrota de
junho.
A 4 de dezembro, o proletariado foi incitado à
luta por burgueses e vendeiros. Naquela noite, várias legiões da Guarda
Nacional prometeram aparecer, armadas e uniformizadas na cena da luta.
Burgueses e vendeiros tinham tido notícia de que, em um de seus decretos de 2
de dezembro, Bonaparte abolira o voto secreto e ordenava que marcassem
"sim" ou "não", adiante de seus nomes, nos registros
oficiais. A resistência de 4 de dezembro intimidou Bonaparte. Durante a noite
mandou que fossem colocados cartazes em todas as esquinas de Paris, anunciando
a restauração do voto secreto. O burguês e o vendeiro imaginaram que haviam
alcançado seu objetivo. Os que deixaram de comparecer na manhã seguinte foram o
burguês e o vendeiro.
Por meio de um coup de main durante a noite de
1o. para 2 de dezembro Bonaparte despojara o proletariado de Paris de seus
dirigentes, os comandantes das barricadas. Um exército sem oficiais, avesso a
lutar sob a bandeira dos montagnards devido às recordações de junho de 1848 e
1849 e maio de 1850, deixou à sua vanguarda, as sociedades secretas, a tarefa
de salvar a honra insurrecional de Paris. Esta Paris, a burguesia a abandonara
tão passivamente à soldadesca, que Bonaparte pôde mais tarde apresentar
zombeteiramente como pretexto para desarmar a Guarda Nacional o medo de que
suas armas fossem voltadas contra ela própria pelos anarquistas!
Cest le triomphe complet et définitif du
Socialisme!(27) Assim caracterizou Guizot o 2 de dezembro. Mas se a
derrocada da república parlamentar encerra em si o germe da vitória da
revolução proletária, seu resultado imediato e palpável foi a vitória de
Bonaparte sobre o Parlamento, do Poder Executivo sobre o Poder Legislativo, da
força sem frases sobre a força das frases. No Parlamento a nação tornou a lei a
sua vontade geral, isto é, tornou sua vontade geral a lei da classe dominante. Renuncia,
agora, ante o Poder Executivo, a toda vontade própria e submete-se aos ditames
superiores de uma vontade estranha, curva-se diante da autoridade. O Poder
Executivo, em contraste com o Poder Legislativo, expressa a heteronomia de uma
nação, em contraste com sua autonomia. A França, portanto, parece ter escapado
ao despotismo de uma classe apenas para cair sob o despotismo de um indivíduo,
e, o que é ainda pior, sob a autoridade de um indivíduo sem autoridade. A luta
parece resolver-se de tal maneira que todas as classes, igualmente impotentes e
igualmente mudas, caem de joelhos diante da culatra do fuzil.
Mas a revolução é profunda. Ainda está
passando pelo purgatório. Executa metodicamente a sua tarefa. A 2 dezembro
concluíra a metade de seu trabalho preparatório; conclui agora a outra metade.
Primeiro aperfeiçoou o poder do Parlamento, a fim de poder derrubá-lo. Uma vez
conseguido isso, aperfeiçoa o Poder Executivo, o reduz a sua expressão mais
pura, isola-o, lança-o contra si próprio como o único alvo, a fim de concentrar
todas as suas forças de destruição contra ele. E quando tiver concluído essa
segunda metade de seu trabalho preliminar, a Europa se levantará de um salto e
exclamará exultante: Belo trabalho, minha boa toupeira!
Esse Poder Executivo, com sua imensa
organização burocrática e militar, com sua engenhosa máquina do Estado,
abrangendo amplas camadas com um exército de funcionários totalizando meio
milhão, além de mais meio milhão de tropas regulares, esse tremendo corpo de
parasitas que envolve como uma teia o corpo da sociedade francesa e sufoca
todos os seus poros, surgiu ao tempo da monarquia absoluta, com o declínio do
sistema feudal, que contribuiu para apressar. Os privilégios senhoriais dos
senhores de terras e das cidades transformaram-se em outros tantos atributos do
poder do Estado, os dignitários feudais em funcionários pagos e o variegado
mapa dos poderes absolutos medievais em conflito entre si, no plano regular de
um poder estatal cuja tarefa está dividida e centralizada como em uma fábrica.
A primeira Revolução Francesa, em sua tarefa de quebrar todos os poderes
independentes - locais, territoriais, urbanos e provinciais - a fim de
estabelecer a unificação civil da nação, tinha forçosamente que desenvolver o
que a monarquia absoluta começara: a centralização, mas ao mesmo tempo o
âmbito, os atributos e os agentes do poder governamental. Napoleão aperfeiçoara
essa máquina estatal. A monarquia legitimista e a monarquia de julho
nada mais fizeram do que acrescentar maior divisão do trabalho, que crescia na
mesma proporção em que a divisão do trabalho dentro da sociedade burguesa
criava novos grupos de interesses e, por conseguinte, novo material para a
administração do Estado. Todo interesse comum (gemeinsame) era imediatamente cortado
da sociedade, contraposto a ela como um interesse superior, geral (allgemeins),
retirado da atividade dos próprios membros da sociedade e transformado em
objeto da atividade do governo, desde a ponte, o edifício da escola e a
propriedade comunal de uma aldeia, até as estradas de ferro, a riqueza nacional
e as universidades da França. Finalmente, em sua luta contra a revolução, a
república parlamentar viu-se forçada a consolidar, juntamente com as medidas
repressivas, os recursos e a centralização do poder governamental. Todas
as revoluções aperfeiçoaram essa máquina, em vez de a destruir (N1). Os
partidos que disputavam o poder encaravam a posse dessa imensa estrutura do
Estado como o principal espólio do vencedor.
Mas sob a monarquia absoluta, durante a
primeira Revolução, sob Napoleão, a burocracia era apenas o meio de preparar o
domínio de classe da burguesia. Sob a Restauração, sob Luís Filipe, sob a
república parlamentar, era o instrumento da classe dominante, por muito que
lutasse por estabelecer seu próprio domínio.
Unicamente sob o segundo Bonaparte o Estado
parece tornar-se completamente autônomo. A máquina do Estado consolidou a tal
ponto a sua posição em face da sociedade civil que lhe basta ter à frente o
chefe da Sociedade de 10 de Dezembro, um aventureiro surgido de fora,
glorificado por uma soldadesca embriagada, comprada com aguardente e salsichas
e que deve ser constantemente recheada de salsichas. Daí o pusilânime
desalento, o sentimento de terrível humilhação e degradação que oprime a França
e lhe corta a respiração. A França se sente desonrada.
E, não obstante, o poder estatal não está
suspenso no ar. Bonaparte representa uma classe, e justamente a classe mais
numerosa da sociedade francesa, os pequenos (Parzellen) camponeses.
Assim como os Bourbons representavam a grande
propriedade territorial e os Orléans a dinastia do dinheiro, os Bonapartes são
a dinastia dos camponeses, ou seja, da massa do povo francês. O eleito do
campesinato não é o Bonaparte que se curvou ao Parlamento burguês, mas o
Bonaparte que o dissolveu. Durante três anos as cidades haviam conseguido
falsificar o significado da eleição de 10 de dezembro e roubar aos camponeses a
restauração do Império. A eleição de 10 de dezembro de 1848 só se consumou com
o golpe de Estado de 2 de dezembro de 1851.
Os pequenos camponeses constituem uma imensa
massa, cujos membros vivem em condições semelhantes mas sem estabelecerem
relações multiformes entre si. Seu modo de produção os isola uns dos outros, em
vez de criar entre eles um intercâmbio mútuo. Esse isolamento é agravado pelo
mau sistema de comunicações existente na França e pela pobreza dos camponeses.
Seu campo de produção, a pequena propriedade, não permite qualquer divisão do
trabalho para o cultivo, nenhuma aplicação de métodos científicos e, portanto,
nenhuma diversidade de desenvolvimento, nenhuma variedade de talento, nenhuma
riqueza de relações sociais. Cada família camponesa é quase auto-suficiente;
ela própria produz inteiramente a maior parte do que consome, adquirindo assim
os meios de subsistência mais através de trocas com a natureza do que do
intercâmbio com a sociedade. Uma pequena propriedade, um camponês e sua
família; ao lado deles outra pequena propriedade, outro camponês e outra
família. Alguma dezenas delas constituem uma aldeia, e algumas dezenas de
aldeias constituem um Departamento. A grande massa da nação francesa é, assim,
formada pela simples adição de grandezas homólogas, da mesma maneira que
batatas em um saco constituem um saco de batatas. Na medida em que milhões de
famílias camponesas vivem em condições econômicas que as separam umas das
outras, e opõem o seu modo de vida, os seus interesses e sua cultura aos das
outras classes da sociedade, estes milhões constituem uma classe. Mas na medida
em que existe entre os pequenos camponeses apenas uma ligação local e em que a
similitude de seus interesses não cria entre eles comunidade alguma, ligação
nacional alguma, nem organização política, nessa exata medida não constituem
uma classe. São, consequentemente, incapazes de fazer valer seu interesse de
classe em seu próprio nome, quer através de um Parlamento, quer através de uma
Convenção. Não podem representar-se, têm que ser representados. Seu
representante tem, ao mesmo tempo, que aparecer como seu senhor, como
autoridade sobre eles, como um poder governamental ilimitado que os protege das
demais classes e que do alto lhes manda o sol ou a chuva. A influência política
dos pequenos camponeses, portanto, encontra sua expressão final no fato de que
o Poder Executivo submete ao seu domínio a sociedade.
A tradição histórica originou nos camponeses
franceses a crença no milagre de que um homem chamado Napoleão restituiria a
eles toda a glória passada. E surgiu um indivíduo que se faz passar por esse
homem porque carrega o nome de Napoleão, em virtude do Code Napoléon,(28) que
estabelece: La recherche de la paternité est interdite.(29) Depois de 20 anos
de vagabundagem e depois de uma série de aventuras grotescas, a lenda se
consuma e o homem se torna imperador dos franceses. A Ideia fixa do sobrinho
realizou-se porque coincidia com a Ideia fixa da classe mais numerosa do povo
francês.
Mas, pode-se objetar: e os levantes camponeses
na metade da França, as investidas do exército contra os camponeses, as prisões
e deportações em massa de camponeses?
A França não experimentara, desde Luís XIV,
uma semelhante perseguição de camponeses "por motivos demagógicos".
É preciso que fique bem claro. A dinastia de
Bonaparte representa não o camponês revolucionário, mas o conservador; não o
camponês que luta para escapar às condições de sua existência social, a pequena
propriedade, mas antes o camponês que quer consolidar sua propriedade; não a
população rural que, ligada à das cidades, quer derrubar a velha ordem de
coisas por meio de seus próprios esforços, mas, pelo contrário, aqueles que,
presos por essa velha ordem em um isolamento embrutecedor, querem ver-se a si
próprios e suas propriedades salvos e beneficiados pelo fantasma do Império.
Bonaparte representa não o esclarecimento, mas a superstição do camponês; não o
seu bom-senso, mas o seu preconceito; não o seu futuro, mas o seu passado; não
a sua moderna Cevènnes, mas a sua moderna Vendée.
"O 18 de Brumário de Louis Bonaparte". K. MARX - (Capitulo VII. Escrito entre dezembro de 1851 a março de 1852)
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