quarta-feira, 5 de abril de 2023

O Socialismo do cabaz da fome

 

“War” – Paula Rego, 2003

Durante algum tempo as reivindicações dos professores fizeram as manchetes dos principais órgãos de comunicação social (ocs), com o empastelamento das conversações e das promessas sempre adiadas por parte do governo, depressa passaram a segundo plano dando lugar a outras contestações e problemas prementes mais sentidos pela sociedade, o preço dos alimentos, a especulação na habitação e a novela da transportadora aérea nacional, a TAP.

O cabaz da fome

Perante a inflação incontornável e insuportável dos preços dos alimentos básicos, sentidos mais fortemente pelo povo mais pobre mas igualmente pela classe média empobrecida e proletarizada, o governo sentiu necessidade de tomar algumas medidas; no entanto, recusando as mais evidentes e necessárias, a fixação dos preços e aumento do poder de compra do cidadão, optou pelo fim do IVA num cabaz de pouco mais de 40 produtos, considerados os mais básicos e procurados, na base de uma “acordo de cavalheiros” com os principais grupos de distribuição merceeira. Coloca-se em causa a eficácia da medida, será mais um cabaz de fome e mais outra maneira de fazer aumentar os lucros das famílias Azevedo e Soares dos Santos.

O governo do partido autodenominado “socialista” e chefiado por Costa tem-se limitado nesta história de “combate à inflação” a respeitar as directivas do BCE (Banco Central Europeu) e do FMI (Fundo Monetário Internacional), dar algum dinheiro aos cidadãos mais pobres para teoricamente manter o seu poder de compra. O resultado é fácil de antever, por um lado, a fonte dos dinheiros públicos não é ilimitada que, por sua vez, vem dos impostos, pagos na sua maioria pelos trabalhadores; pelo outro, as empresas que vendem podem manter os preços porque a procura não diminui. No final, a inflação mantem-se, a dívida pública aumenta, o povo continua pobre e os grandes capitalistas, alguns deles já aqui referidos, ficam mais ricos.

O grave problema da habitação

Esta política replica-se por todos os domínios da economia nacional (capitalista, será bom relembrar!) e, então, na habitação é o que se poderá chamar “é fartar vilanagem!”. O estado, diga-se, o governo, dá dinheiro a casais jovens para poderem aguentar rendas altíssimas, como a procura se mantem ou eventualmente poderá subir graças à ajuda do governo, os senhorios poderão continuar a especular com os arrendamentos. A situação estende-se agora por formas algo semelhantes e até mais gravosas para o erário público perante o agravamento deste problema nas grandes cidades: “o governo espera conseguir subarrendar mil casas de privados até 2026”. É o maná para os especuladores da área.

Mas mais: a ministra da tutela já sublinhou que o “arrendamento forçado não é o instrumento que os municípios vão utilizar”. Não se saberá ao certo qual será o instrumento privilegiado dos municípios, muito possivelmente será deixar tudo na mesma. Porque é bom que os estrangeiros continuem a especular – “Estrangeiros gastaram 895 milhões de euros na compra de casas em Lisboa em 2022” – ou que os preços das casas em Portugal tenham subido 11% no último trimestre de 2022 enquanto subiram apenas 2,9% na Zona Euro, ou que as rendas de novos contratos tenham acelerado no final de 2022 para 10,6%. Ganham os especuladores, ganham os escritórios de advogados, ganham as imobiliárias, ganham as autarquias e mais quem se abotoa com chorudas comissões. Perde o povo que mal tem dinheiro para comer.

As medidas eficazes para fazer frente a esta questão são essencialmente duas e fáceis de aplicar caso o governo fosse socialista de facto: promover a habitação do estado, começando pela reabilitação dos edifícios públicos abandonados e colocando-os de imediato no mercado a preços limitados, e construção de novos, pelo apoio à habitação cooperativa. Segunda medida, apropriação administrativa de todos os edifícios privados abandonados e/ou degradados, reabilitando-os, e receber as rendas como ressarcimento do investimento. E possivelmente uma terceira medida: eventualmente expropriar em casos de aberta especulação e proibição de compra de edifícios para habitação a estrangeiros e a fundos de investimento, coisa já feita em outros países da União Europeia.

Claro que haverá outras medidas e bem simples e rápidas para resolver o problema da habitação, mas tal só poderia acontecer se houvesses um governo revolucionário e em situação de profunda convulsão social, que é a situação para onde estamos a caminhar mais depressa do que pensamos e empurrados pela crise e degradação imposta pelo capitalismo, como, aliás, aconteceu logo após o 25 de Abril: o povo ocupa as casas. Toda a família que não tem casa ocupa o que está abandonado e desocupado sem direto a indemnização aos antigos proprietários rentistas e especuladores, e especialmente estrangeiros.

O PS é socialismo para os ricos e pobreza para povo e classe média

O governo, seja PS ou PSD ou qualquer outro, obedece a Bruxelas e segue as regras impostas via BCE, e, assim, deve-se estar mais atento ao que diz Centeno do que propriamente Costa. E Centeno não deixa margem para dúvidas e continua a insistir na “receita da contenção salarial em nome do controlo da inflação”, que traduzido por miúdos, como costuma dizer-se, é conter os salários para aumento dos lucros, começando e acabando nos bancos – nunca esquecer que Portugal não tem soberania monetária e a moeda que circula entre nós é aquela que o BCE nos disponibiliza. Quando foi a crise grega e no governo do Syriza / Tsipras o BCE chantageou, deixando os bancos gregos sem dinheiro e as caixas do multibanco vazias, como não havia alternativa planeada para criação de nova moeda, a Grécia ajoelhou.

O governo de Costa e PS não deixa ambiguidade, ao contrário do que aconteceu com o Syriza, e tem-se revelado umas mãos largas para o grande capital, cedendo em toda a linha: Soares dos Santos diz que IVA zero é possível "desde que Governo se torne honesto". E o governo tornou-se “honesto” mas com os grandes empresários que nem sequer pagam os impostos em Portugal. No entanto, Pedro Soares dos Santos, presidente do Conselho de Administração da Jerónimo Martins (Pingo Doce), recebeu 18,6 milhões de euros em três anos; e presidente executiva da Sonae manteve remuneração bruta de 1,6 milhões de euros no ano passado – vem nos ocs mainstream. Em contrapartida, o custo da hora de trabalho em Portugal foi de 16 euros, metade da média europeia. Resumindo, o porco para o capital, o chouriço para o trabalho, e se e quando o capital bem entender. Se isto não é o neoliberalismo mais nauseabundo, então teremos de acreditar que a terra é plana.

Parece que o estado não tem meios para fiscalizar os preços, fazendo lembrar outras políticas, nomeadamente a da saúde, onde o estado possui os meios mas paga aos privados pelo trabalho que a si caberia: Governo paga 230 mil euros a empresas privadas para fiscalizar os preços dos alimentos. Mais tarde ficou-se a saber que não seria bem para fiscalizar, mas mais para seguir a evolução dos preços. Um bocado como a aviação, o estado tem força aérea, tem pilotos, tem logística, mas prefere contratar aos privados: “Meios aéreos de combate a incêndios podem chegar aos 72 este ano. Mais 12 do que nos anos anteriores”. Será por “falta de vocação”, é o que se costuma ouvir. Contudo, não falta vocação, bem pelo contrário, à ICAR que, fazendo jus à sua tradição, vai explorando e vigarizando, no caso presente, o estado: “Lista de utentes aumentada com nomes de mortos. Obra Diocesana do Porto burla Segurança Social em mais de 3 milhões de euros”; ou como se gosta mais de dinheiro do que água benta.

A revolução poderá estar ao virar da esquina

As coisas não acontecem por acaso. Haverá razões, umas mais próximas e palpáveis e outras mais distantes e despercebidas: a dívida pública aumentou em Fevereiro 3,2 mil milhões de euros, Portugal vai emitir até 1.250 milhões de euros em bilhetes do tesouro no segundo trimestre de 2023, a taxa de esforço das famílias com crédito agrava-se para 25,1% do rendimento, salários estão no pódio de fatores de maior insatisfação profissional, em 2022 houve mais de 6 mil mortes em excesso e o envelhecimento não explica tudo, maioria dos portugueses aceita limites no consumo de carne pelo ambiente (porque não tem dinheiro para a comprar), fundo de pensões da Segurança Social desvaloriza 13% em 2022, praças e sargentos defendem que nova falha do 'Mondego' reforça alerta dos 13 militares, número de portugueses sem médicos de família subiu para 1,6 milhões, Galamba tinha avisado CEO da TAP que ia ser demitida, mas não por justa causa. Depois admirem-se: “qualquer dia temos aqui Paris a arder!”

Parece que terá provocado alguns incómodos a manifestação, realizada no passado Sábado, a reivindicar mais habitação para quem trabalha e estuda, para as famílias e para os jovens, que em Portugal são os que mais tarde saem da família por falta de perspectiva de emprego ou de habitação, levando a diminuição acentuada do índice de fertilidade, o que significa que Portugal está a tornar-se num país sem futuro e onde os velhos são mal tratados ou simplesmente abandonados. Clamar por mais habitação terá atingido o regime político no seu âmago da hipocrisia e da exploração dos sans coullote… e sem tecto, daí as reacções intempestivas e algumas aparentemente surpreendentes.

O ministro Carneiro, o da ordem interna, veio lampeiro afirmar que “ofender agentes das autoridades é ofender o Estado de Direito”, ou seja, “uma ofensa a todos nós", o “nós” será mais as elites e o órgão de defesa dos seus negócios que é o governo PS. O ministro é pessoa assustada que precisa de ter um polícia a proteger-lhe as costas, como se viu na imagem televisiva. Polícia desta, o povo passa bem sem ela. E viu-se bem na manifestação que os participantes presentes se dispuseram a libertar as companheiras identificados coercivamente pela PSP. Com medo de perder protagonismo no mundo do trabalho e da contestação social, foi lépido: “PCP demarca-se de confrontos na manifestação de Sábado em Lisboa”.

Criar uma polícia política soft, munida de meios tecnológicos avançados, a polícia judiciária (PJ), sob o estrito controlo governamental, não se faz de rogada, avançou com movimento a nível de alguns países da UE para haver liberdade, e pelo tempo que for necessário, de acesso ao metadados, contrariando as próprias directivas europeias sobre o assunto. Como é tão bom ser pide e com pouco trabalho, o director da PSP e o comandante da GNR de igual modo já tinham perorado no Parlamento sobre o tema: videovigilância e preservação dos metadados sem limites estabelecidos. Então, será fácil criar uma base de dados que poderá ser intercambiada com qualquer outro país do mundo – um big brother global do qual “não devemos ter medo”, como também referenciou o cívico chefe.

Como salientamos, e por mais do que uma vez, a oposição não está interessada neste momento na queda de Costa e do seu staff, independentemente dos resultados das rotineiras sondagens. Nesta última, o resultado dá um PS e um PSD empatados, 30% das intenções de voto, caso houvesse agora eleições. Só que o “agora” é fictício e por isso aquele resultado, se houvesse eleições, seria com certeza outro; a descida do PS e a subida do Chega (13%, mais 4%), o PSD estagna, servirá mais para criar uma opinião pública desfavorável ao governo e mais amiga da oposição e, de preferência, da extrema-direita. A finalidade é normalizar esta extrema-direita trauliteira e provocadora que terá mais essa função, de provocar e de abrir caminho, do que propriamente de vir a ser poder; para aqui outras forças se reservarão, se as coisas correram como projectado pelas elites. O PCP e BE ficam por baixo, dando a ideia de que a “esquerda”, seja ela qual for, não é alternativa.

Alguns comentadores e analistas políticos mais esclarecidos do regime alertam para outro facto, e esse sim bem mais preocupante, o partido do governo desce, mas o principal partido da oposição não sobe. Juntando este facto a um outro, o de surgirem manifestações (professores e mais habitação) não inteiramente controladas, ou não controladas simplesmente, por sindicalistas colaboracionistas e partidos moderados do establishment, então, os sinais de alarme passarão a tocar para o governo, polícias e classe no poder. Pois é, então, como dizia Marx no “18 Brumário”, a velha toupeira estará a fazer o seu belo trabalho.

2 comentários:

  1. «A revolução poderá estar ao virar da esquina» Estará? E depois?
    «As revoluções, quem quer que sejam os seus autores, não mudaram nada. Conduzem aos mesmos abismos. A dificuldade é mudar o homem...
    Ou bem que os portugueses não fazem nada, ou bem que vão até ao último pormenor e, chegados aí, largam tudo como de costume...
    Sem endereços e todos com o mesmo nome, obedecendo a dois ou três pequenos princípios, entre os quais o de inventarem títulos...»
    PS: de uma página de registos.
    Dominique de Roux (1977, Paris)

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